sexta-feira, 31 de maio de 2024

Conversar e lutar sempre


A realidade da economia política da integração é ofuscada por doses maciças de propaganda, assente em truques ideológicos e na mentira mais despudorada. Afinal de contas, um Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, garantiu que “em vinte anos, o euro trouxe prosperidade e proteção aos nossos cidadãos”. Foi o mesmo que afirmou, em plena crise do euro, que quando “as coisas ficam difíceis é necessário mentir”. 

Quando as coisas ficam difíceis é preciso insistir na partilha da soberania contra os egoísmos nacionais, na defesa de uma economia social de mercado alegadamente capaz de conjugar rigor orçamental com coesão social, porque só unidos podemos influenciar a regulação da globalização. 

A economia muito política da UE, em geral, e do euro em particular,  indica-nos que partilha de soberania é uma forma de obscurecer a realidade da perda desigual de soberania entre Estados crescentemente desiguais e a sua desigual transferência para instituições supranacionais muito menos democráticas e muito mais controladas por interesses económicos egoístas e invisibilizados. É que ao contrário do que diz a propaganda, a história confirma que as expressões institucionais mais consequentes de solidariedade foram construídas à escala nacional, justamente aquelas que são atacadas de múltiplas formas pela escala supranacional da UE: da negociação coletiva ao serviço nacional de saúde, passando pela segurança social de base nacional. 

 A ideia de uma economia social de mercado, por sua vez, foi uma forma que os ordoliberais inventaram para tentar passar o capitalismo concorrencial, mas crescentemente monopolista, por um sistema com as melhores consequências sociais. Outra mentira, como se vê. 

Já a ideia da UE para pesar na globalização, esquece que esta tem sido o outro nome deste processo de integração supranacional neste continente, expondo as sociedades nacionais aos efeitos deletérios da abertura irrestrita aos fluxos económicos. Obviamente, não há capitalismo sem regras, sem regulação. As regras dominantes estão, na UE, ao serviço da transferência de recursos de baixo para cima na pirâmide social e na hierarquia vincada de Estados: classe e geopolítica, em suma. Só com um diagnóstico deste tipo é possível identificar as forças e as fragilidades deste arranjo e evitar os becos sem saída do europeísmo, mesmo que eivado das melhores intenções. 

De facto, como se viu na Grécia em 2015, a força da UE está no manejo, sem qualquer escrúpulo, de todos os instrumentos de política, incluindo a monetária, para submeter Estados fragilizados, de onde irrompam forças políticas que se dizem radicais, mas que não dispõem de um diagnóstico e de um programa adequados a transformações que vão à raiz dos problemas. 

A fraqueza da UE está em ser fator permanente de polarização e crises, ao mesmo tempo que o sentimento de dignidade nacional, ofendido pelas ingerências sucessivas de instituições sem legitimidade democrática, é alimentado. 

A questão é saber se este sentimento vai ser dirigido, por quem e com que impactos, até porque a UE, sendo uma máquina de liberalização é correlativamente uma máquina de gerar fascistas. Se assim é, a resposta antifascista dificilmente deixará de partir do Estado democrático e social de base nacional que ainda resta.

Recupero um excerto de uma recensão relativamente longa, publicada na Vêrtice em 2021, ao livro O Estado capitalista e a suas máscaras, da autoria de António Avelãs Nunes, com quem vou estar hoje a conversar na Figueira da Foz. É uma iniciativa da CDU, que começa às 21h, na Assembleia Figueirense.
 

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Quem quer a independência do BCE?

 

Nos debates para as eleições europeias, um dos temas que tem merecido maior atenção é o papel do Banco Central Europeu (BCE). A atuação do banco central tornou-se um assunto incontornável desde que começou a subir as taxas de juro, que fez com que as prestações de boa pare dos créditos à habitação (indexados a taxas variáveis) disparassem nos últimos dois anos. A maioria dos partidos tem defendido a independência do BCE, com base na premissa de que a política monetária não deve ser definida pelo poder político. Mas raramente se discute o quão frágil - e pouco democrática - é esta ideia.

O resto do texto pode ser lido aqui.

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Integração europeia e governação económica: análise e política à esquerda


Como contributo para a reflexão sobre a integração económica europeia, o José Gusmão e eu próprio (declaração de interesses: somos ambos candidatos pelo Bloco de Esquerda a estas eleições, sendo ele eurodeputado desde 2019) escrevemos o seguinte texto em que abordamos a constitucionalização europeia do liberalismo, as regras de governação económica e a arquitetura monetária e financeira da UE.

A integração europeia poderia e deveria ser um processo de cooperação entre iguais, gerador de convergência, de prosperidade partilhada, de erradicação da pobreza e de nivelamento por cima dos direitos sociais e laborais. A realidade, porém, é que a cooptação política e ideológica do projeto de construção europeia pelo neoliberalismo, especialmente a partir do Tratado de Maastricht de 1992, converteu a UE num espaço de divergência entre países e regiões centrais e periféricos, um espaço de erosão de direitos laborais e sociais e de escasso dinamismo económico.

As pressões mais intensas para o aprofundamento da distopia neoliberal têm ocorrido em três grandes domínios: a constitucionalização do liberalismo nas políticas comercial e industrial; a adoção de uma arquitetura financeira não democrática e que asfixia as famílias, empresas e economias mais vulneráveis; e uma camisa-de-forças de regras orçamentais com um viés pró-cíclico e que muito dificulta investimentos críticos em áreas como as respostas à crise da habitação ou à emergência climática.

Ainda assim, a última década demonstrou que muitas regras e constrangimentos que eram apresentados como inexoráveis podem, assim haja vontade política, ser suspensos, contornados ou mesmo derrogados. No contexto da pandemia, foi possível suspender as regras orçamentais do pacto de estabilidade e crescimento e as regras relativas às ajudas de Estado. No âmbito dos programas de compras de ativos iniciados sob a governação de Draghi, o Banco Central Europeu passou a comprar títulos de dívida soberana, contribuindo decisivamente para a queda dos juros pagos pelos Estados e para a sustentabilidade financeira destes últimos. No contexto do Plano de Recuperação e Resiliência – NextGenerationEU, a União Europeia passou a emitir dívida comum, concretizando na prática os eurobonds que durante tanto tempo foram tão categoricamente rejeitados.

O Bloco de Esquerda não tem ilusões quanto ao caráter iníquo e gerador de desigualdades de muitos dos elementos do processo de integração económica europeia tal como tem sido construído nas últimas décadas. Porém, estes elementos são uma realidade em permanente mudança, que pode e deve ser disputada politicamente. A tarefa à nossa frente é a construção de maiorias sociais que permitam abrir mais brechas na muralha neoliberal, dirigindo o projeto europeu no sentido de mais solidariedade, mais justiça social e mais espaço de efetivo desenvolvimento.

Continuar a ler aqui.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Talvez valha a pena recordar

Repesco um artigo de Rui Pedro Martins (RPM), no Público de 19 de outubro do ano passado. O atual governo da AD prepara-se para recuar em matéria de regulação do Alojamento Local (AL), revogando a contribuição extraordinária e a caducidade das licenças, entre outras medidas, de modo a eliminar «certas restrições gravosas e desproporcionadas à iniciativa privada no setor», para usar os termos do Comunicado do Conselho de Ministros.

No referido artigo, RPM dava nota de um regulamento, adotado por Nova Iorque em setembro de 2023, que visava acabar com a oferta ilegal de AL, num claro reconhecimento, por parte do governo da cidade, do seu impacto na redução da oferta de habitação para fins residenciais. E é nesse contexto que RPM compara os indicadores de impacto de Nova Iorque com os de Lisboa.


Assim, quando se pondera o número de unidades de AL (cerca de 45 mil em Nova Iorque e 18 mil em Lisboa) pela população residente e pelo total de alojamentos, o resultado é esmagador. Constata-se que Nova Iorque tem cerca de 5 unidades de AL por cada mil habitantes e Lisboa 33 (cerca de 7 vezes mais). E que Nova Iorque tem cerca de 12 unidades de AL por mil alojamentos, valor muito inferior ao registado por Lisboa, com 56 unidades de AL por mil alojamentos (cerca de 5 vezes mais, portanto).

Conclui-se, pois, que a direita que reduz a crise de habitação à tese simplista de uma mera «falta de casas» é a mesma direita que não hesita em recriar os incentivos ao aumento da oferta de Alojamento Local, promovendo a deslocação de imóveis residenciais para o setor, mesmo quando há indícios de que as limitações introduzidas pelo anterior Governo poderiam estar a começar a surtir efeito. Recorde-se, aliás, que a redução sem precedentes no número de alojamentos em Lisboa e no Porto, entre 2011 e 2021, não será alheia ao aumento galopante da oferta de AL, ao longo da última década, nestas cidades.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Invenções ideológicas


Tal como Rui Tavares já tinha há uns anos, e totalmente a despropósito, mobilizado Marx para a sua causa federalista europeia, Hélder Fontes fez recentemente o mesmo com Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano: “Gramsci deu grande parte da vida pela coesão entre os povos europeus e fundou o eurocomunismo.” Trata-se de um mesmo esforço ahistórico para inventar uma tradição radical para uma escala e um quadro institucional onde praticamente só tem havido capitalismo cada vez mais puro e duro. 

Coesão entre povos europeus é uma ideia generosa, a questão é qual a melhor forma de a alcançar. O autor da ideia de vontade coletiva nacional popular falava de povos no plural, Estados no plural, com as suas peculiaridades culturais e de desenvolvimento, algo que este leninista italiano enfatizou nas suas reflexões sobre estratégia política para tornar a classe trabalhadora hegemónica nas sociedades e no Estados a ocidente da triunfante “revolução contra o Capital”. 

O revolucionário Gramsci não fundou, nem sequer foi percursor, do eurocomunismo, já que faleceu nas prisões do fascismo, em 1937, e o eurocomunismo surgiu nos anos 1970, num contexto de Guerra Fria e de tendências reformistas em alguns partidos comunistas, para se desvanecer nos anos 1980, antes da existência da UE, forjada em Maastricht no início dos anos 1990. De qualquer forma, o eurocomunismo dizia mais respeito a um certo distanciamento em relação à URSS, à questão do compromisso com os socialistas ou democratas-cristãos nos Estados da Europa Ocidental e às reformas nesse turbulento contexto histórico do que a qualquer outra coisa. Mais rigor. 

Hélder Fontes escreveu um artigo de crítica ao que apoda de “euro-exterminadores”, mas em que não nomeia qualquer posição atribuível a pessoas ou coletivos concretos. Assim é mais fácil. O Público sugere a leitura do artigo de Ricardo Paes Mamede. Talvez o artigo seja uma polémica com as suas posições. Quem sabe? Mais frontalidade e clareza e menos amalgamas. 

De resto, a UE não é, para a esquerda crítica deste arranjo, a “encarnação do mal”, embora seja a encarnação de muito do que está mal. É a expressão política, em grande parte do continente, do neoliberalismo – do mercado único à moeda única (e nem todos os Estados da UE aderiram ao euro, nem irão certamente aderir), passando pelos acordos de comércio e investimento liberalizadores, tudo blindado por tratados, como todos sabemos. 

O que fazer? Avançar com o neoliberalismo armado de pendor federalista, como propõe Mario Draghi, ao qual uma certa esquerda na prática há muito se rendeu, e assistir, entretanto, ao avanço imparável da extrema-direita, agora bastante confortável com um quadro institucional europeu que a favorece? Ou lutar por uma reconfiguração da UE, de geometria muito mais variável, que permita recuperar instrumentos de política para a escala onde está a democracia realmente existente, a nacional; instrumentos que tanta falta fazem para o desenvolvimento deste retângulo, com os seus bloqueios específicos: menos integração, melhor integração; menos submissão nacional, menos vieses de classe. É necessário estar disponível para todas as rupturas neste processo, como o trágico destino da esquerda dita radical grega, nos idos de 2015, demonstrou; é uma história recente e que muitos se esforçam por esquecer.

Sim, o mercado único e a moeda única, como todos os outros saltos federalistas neste contexto, têm um viés favorável ao capital que é grande e são comandados politicamente pelas grandes potências, favorecendo a nossa periferização. Mais realismo na análise e menos invenções ideológicas. 

domingo, 26 de maio de 2024

MST, o senso comum e o IRC

Miguel Sousa Tavares (MST) escreve no Expresso desta semana um texto em que ataca “a doutrina instalada da bondade de uma alta carga fiscal sobre a produção de riqueza”, segundo ele “um credo cultivado por economistas próximos da extrema-esquerda, com audição privilegiada na nossa imprensa.” Escreve o texto à boleia de um estudo recente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que elogia por “aportar rigor técnico àquilo que o senso comum já concluíra por si”, de acordo com o qual “baixar de forma assertiva, e não apenas cosmética, o IRC sobre as empresas produziria resultados imediatos e duradouros na economia”. Afirma ainda que se trata “da receita irlandesa, cujos resultados estão à vista, para poderem ser invejados ou desdenhados”.

Em meia dúzia de linhas faz aquilo que não se deve fazer num debate sério: (i) tenta desqualificar quem pensa de forma diferente, não pelos argumentos que usa, mas por estar num campo político diferente do seu; (ii) declara como definitivo o resultado de um estudo, que é apenas um entre muitos, não pelos seus méritos ou fragilidades, mas por validar o suposto 'senso comum'; e (iii) reduz o desempenho da economia irlandesa à questão fiscal, como se a história de alguma economia nacional fosse assim tão simples.

Como contributo para a reflexão, deixo aqui três ideias. Primeiro, os economistas que põem em causa a bondade das descidas de impostos sobre os lucros incluem os prémios Nobel Joseph Stiglitz e Paul Krugman, ou Thomas Piketty (se estes são de ‘extrema-esquerda’, estamos conversados). Segundo, os argumentos usados por estes e outros economistas para criticar a descida de impostos sobre lucros baseiam-se não apenas nos efeitos distributivos (quem ganha e quem perde), mas também na relação cada vez menos estreita que existe entre lucros depois de impostos e investimento produtivo; ambos os aspectos põem em causa a relação entre baixa de IRC e crescimento económico. Terceiro, explicar o desempenho da economia irlandesa ignorando as décadas de atracção selectiva de investimento estrangeiro, a língua inglesa, as ligações históricas à diáspora nos EUA ou o investimento massivo (desde a década de 1960) na educação e formação avançada (em particular na área da engenharia), simplesmente não é sério.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

A luta é jovem


As direitas sempre quiseram substituir a real luta de classes por uma imaginária luta de gerações. As medidas fiscais, socialmente regressivas, apresentadas por este governo para a “juventude” são o resultado prático deste esforço ideológico. 

Pretende-se habituar os menores de trinta e cinco anos relativamente abonados a pagar taxas reduzidas de IRS para assim virem a reivindicar um Estado fiscal com cada vez mais enviesamentos de classe. 

Os jovens das classes trabalhadoras necessitam de serviços públicos capazes, de habitação pública com rendas controladas, de empregos com direitos laborais, que dêem liberdade, ou seja, poder para, através da ação coletiva, reivindicar melhores salários diretos e indiretos. 

O que fez tanta gente jovem sair do país, sobretudo nos anos de chumbo da troika, foi a austeridade, não o esqueçamos. E não nos esqueçamos das solidariedades de classe, que unem várias gerações, para lá deste egoísmo fiscal e não só promovido pelas políticas das direitas.

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Dia 29, conferência Praxis sobre os novos desafios da negociação coletiva

O alargamento de direitos aos trabalhadores independentes economicamente dependentes (TIED), a atribuição do direito à atividade sindical em empresas sem trabalhadores filiados e a introdução da nova modalidade de arbitragem alternativa à revogação da caducidade dos contratos, consubstanciam um novo quadro jurídico que coloca desafios às estruturas de representação coletiva dos trabalhadores (sindicatos, comissões de trabalhadores).
Neste âmbito, importa discutir várias questões, entre elas: Quais os limites do direito à representação sindical e à filiação dos trabalhadores economicamente dependentes? Qual a amplitude do seu direito à informação e do seu direito de participação e reunião? Que poder detêm na negociação e contratação coletiva? Qual a utilidade desta nova modalidade de arbitragem?

Em mais uma iniciativa, a Práxis propõe-se analisar o que é necessário para promover o uso efetivo destes direitos e o seu alargamento recente (com as alterações ao Código do Trabalho introduzidas em 2023), promovendo para o efeito a videoconferência que se realizará na próxima quarta-feira, dia 29, a partir das 18h30, e que conta com a participação de João Reis (professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra) e Júlio Gomes (Juiz Conselheiro e Professor da Faculdade de Direito do Porto da UCP). A moderação estará a cargo de Joana Neto, da Direção da Práxis. As inscrições podem ser feitas aqui.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

A «falta de casas» ou o impacto das novas procuras?

O INE publicou, recentemente, uma análise sobre a evolução do parque habitacional português entre 2011 e 2021 que identifica, entre outros aspetos, um desfasamento entre a variação da distribuição da população e do parque habitacional por regiões (pág. 13), tendencialmente interpretado como sinal da «falta de casas», no esteio da tese simplista que prevalece no debate público sobre a atual crise de habitação.

Não surpreende, por isso, que a generalidade das notícias sobre o estudo seguissem esta linha, associando linearmente a diminuição do número de fogos construídos ao aumento de casas sobrelotadas (ver aqui ou aqui), ou enfatizando a insuficiência da oferta para responder à procura e às necessidades habitacionais do país (ver por exemplo aqui, aqui ou aqui).

É pena, de facto, que o próprio INE tenha explorado de forma muito superficial a relação entre a evolução do número de fogos e de famílias residentes, dispensado-se, nomeadamente, de analisar a evolução do respetivo rácio entre 2011 e 2021 à escala regional. Em contrário, teria ajudado a perceber que a relação entre estes universos (alojamentos e famílias) pouco se alterou na última década, com apenas 7 NUT a registar descidas, e sempre pouco significativas (em regra na ordem das centésimas) deste indicador.


Com efeito, mesmo no caso das Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto ou do Algarve, onde a subida dos preços da habitação é mais expressiva, o rácio entre o número de alojamentos e de famílias pouco se altera entre 2011 e 2021 (de 1,29 para 1,25 no caso de Lisboa e de 1,26 para 1,23 no Porto), evidenciando portanto que a atual crise de não é uma simples crise de oferta face à procura de habitação por parte das famílias. Sublinhe-se, aliás, que o Algarve tem um dos rácios mais elevados à escala das NUT do continente (a rondar uma média de duas casas por família).

Estes dados mostram, uma vez mais, que a atual crise de habitação não se resume a um simples desfasamento entre a oferta e a procura em termos convencionais (alojamentos e famílias residentes), como a direita nos quer fazer crer, antes evidenciando que é a existência de novas procuras - que encaram os alojamentos como ativos de investimento financeiro -, nacionais e internacionais, que desequilibra essa relação, provocando a subida dos preços. O que significa, por seu turno, que sendo procuras especulativas potencialmente inesgotáveis (dinheiro há muito), é tudo menos linear que o aumento da construção seja suficiente para as satisfazer e, nessa medida, permitir a descida dos preços.

terça-feira, 21 de maio de 2024

País merece explicações de Centeno sobre taxas dos depósitos



O Governador do Banco (que não é) de Portugal e anterior ministro das finanças, Mário Centeno afirmou publicamente querer explicações sobre as taxas dos depósitos bancários que a banca privada está a praticar. 

O que pretende Centeno com esta intervenção pública? 

Pretenderá acrescentar aos poderes do BCE a possibilidade deste fixar as taxas de juro com os quais o setor bancário privado remunera depósitos? 

Estará convencido que o simples enunciar público de uma exigência ('devem'), não suportada em força legal e ao arrepio da lógica mercantil sacrossanta na Zona Euro e na UE, obrigará a ultra poderosa banca privada a seja lá o que for? 

E se essa banca privada o deixar a falar sozinho? Deve o Governador colocar-se numa situação em que as suas exigências não são consideradas pelos actores que se espera que regule? 

Afinal por que razão está a banca privada, acumulando lucros sem qualquer justificação económica, a pagar às famílias e às empresas juros tão baixos pelos seus depósitos? 

Pedindo explicações, Centeno vai avançando algumas e 'admite' que o 'elevado nível de dinheiro nos bancos' é parte da explicação. 

Mas que dinheiro é este? De onde apareceu? 

Trata-se de dinheiro que foi sendo disponibilizado, sob a forma de reservas criadas do nada, à banca privada pelo BCE onde Centeno tem assento. 

A nadar neste dinheiro, a banca privada, no seu processo de criação de crédito não necessita de depósitos de famílias e empresas e, assim sendo, não os remunera. 

É inevitável que isto fosse assim? Obviamente que não

Como se isto não bastasse, esta hiper abundância de dinheiro na componente privada do sistema financeiro tem mais consequências muito nefastas. 

Repare-se que, numa economia monetária de produção, onde o preço também depende da procura e da oferta, estas quantidades fabulosas de dinheiro, esta não escassez, teria determinado taxas de juro zero. 

Como o BCE, onde o Centeno tem assento, decidiu, erradamente, que a inflação gerada por problemas de procura seria combatida com o aumento da taxa de juro, esta hiper abundância de dinheiro tornou-se um problema porque, não sendo escasso dentro do sistema financeiro, o dinheiro perderia o seu valor, ou seja, a taxa de juro seria tendencialmente zero, ou mesmo negativa, o que impossibilitaria esta política desastrosa de subida das taxas de juro. 

Solução encontrada pelo BCE, onde Centeno tem assento?

Remunerar com mais reservas criadas do nada o depósito no seu próprio balanço daquelas outras reservas excedentárias na posse da banca privada.

Qual é o objectivo? O objectivo é desincentivar a banca privada de fornecer crédito à economia a uma taxa inferior àquela a que o próprio BCE remunera aquelas reservas que anteriormente criou, disponibilizou e agora remunera quando as recebe de volta na forma de depósitos. 

Parece complicado mas a lógica é simples: Se o BCE garante uma remuneração mínima aos bancos privados, esses bancos não aplicarão as reservas de que dispõem, não fornecerão crédito à economia, por um proveito menor. O problema da não escassez do dinheiro, da taxa de juro tendencialmente zero ou negativa, é politicamente superado e o BCE pode agora impor à economia as taxas que desejar com a condição de remunerar os bancos privados com essa mesma taxa.   


Teria havido alternativa? Sim, teria havido alternativa e, para o futuro, continua a haver

Quem deve, afinal, explicações ao país? 

Os bancos que, previamente libertados de quaisquer exigências de bem comum, se aproveitam das condições da política monetária? 

O BCE que, com uma pós democrática total discricionariedade, decide esta política? 

Os sucessivos governos que aceitaram a delegação da política monetária em entidades externas pretensamente independentes?

E Centeno? Nas opacas reuniões do BCE, opôs-se a este estado de coisas? Ou não? É ouvido pelo seus pares? Ou não? 

Afinal quem deve explicações? Inegável, parece-me, é que o país a elas tem direito. Nada disto é natural. Tudo foi politicamente decidido por ação e inação dos atores envolvidos.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Inovação é mais do que uma palavra no nome de um ministério

"O conservador Joseph Schumpeter citava o revolucionário Karl Marx para explicar que a inovação é um factor indissociável do desenvolvimento do capitalismo – e que ela não acontece por acaso. A competição obriga as empresas a inovar em permanência.

O facto de investirem menos em inovação do que seria desejável é um problema para as próprias empresas, mas não só. Para o conjunto da economia, menos inovação significa menos eficiência, menos qualidade, menos diversidade de produtos e menos satisfação de necessidades. Por outro lado, não é certo que toda a inovação resulte em benefícios para a sociedade como um todo – como acontece, por exemplo, quando novos produtos ou processos produtivos põem em causa a saúde pública ou o ambiente. 

São estes vários aspectos da inovação – a sua natureza cumulativa, interactiva e sistémica, a incerteza que envolve todo o processo, os impactos que tem no conjunto da sociedade, os potenciais problemas que pode gerar – que justificam a intervenção do Estado neste domínio. 

As políticas de inovação podem assumir várias formas: subsídios, incentivos fiscais e garantias públicas aos investidores privados; desenvolvimento de actividades de investigação científica e tecnológica em universidades, institutos politécnicos, laboratórios do Estado e empresas públicas; financiamento ou participação em fundos de capital de risco; apoio a centros tecnológicos especializados; promoção de redes colaborativas entre vários tipos de actores; apoio a incubadoras de novas empresas tecnológicas; divulgação de boas práticas e de casos exemplares; formação de competências transversais e especializadas; compras públicas orientadas para a inovação; realização de estudos de prospectiva tecnológica; regulação de produtos e processos inovadores; entre outros. 

A política de inovação é, pois, muito mais do que uma palavra na designação de um Ministério. Na verdade, exige quase sempre a articulação estreita entre várias tutelas. Se alguma vez teremos em Portugal uma política de inovação que vá para além da semântica, é algo que ainda estamos para ver."

O resto do meu texto pode ser lido no Público de hoje, em papel ou online.

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Sessão Pública «Que futuro para a economia portuguesa perante a União Europeia?»

Intervenções
⦿ João Ferreira 0:00
⦿ João Rodrigues 12:35
⦿ Ana Costa 30:10
⦿ Paulo Coimbra 51:20
⦿ Ricardo Paes Mamede 1:17:00
Perguntas e respostas 1:44:52
⦿ João Oliveira 2:17:26

Slow-burning: A dívida externa como determinante do desenvolvimento. Debates sobre a Argentina, Portugal e Espanha.


Os países periféricos estão sujeitos a ciclos de endividamento e austeridade, complementados por políticas estruturais neoliberais impostas pelo FMI. Como deve ser proposta uma alternativa e que políticas económicas exige? A nova estratégia da Argentina envolve uma radicalização de velhos preceitos obrigando-nos a aprofundar debates críticos. 


A Sociedad Argentina de Economia Crítica, a Associación Española de Economia Crítica e a Associação Portuguesa de Economia Política propõem, com este seminário, inaugurar uma reflexão conjunta, fortalecendo os laços institucionais com uma perspetiva de longo prazo. 

⦿ Oradores: 
- Argentina: Emilia Val e Francisco Cantamutto 
- Portugal: Paulo Coimbra, João P. Avelãs Nunes e Ricardo Cabral 
- Espanha: Nuria Alonso 

⦿ Organização: Andrés Musacchio/ Ana Costa/ Eugénia Pires 
 
⦿ Mesa redonda virtual. 
- Data: 21 de maio de 2024, 17:00.
- Acesso Zoom: Link; ID: 949 2294 5900; Senha: 658751.

domingo, 12 de maio de 2024

Dois pesos


Os EUA anunciaram uma tarifa de 100% sobre a importação de carros elétricos chineses, confirmando que a tradição protecionista, que vem desde a independência, está bem viva. O comércio livre é mesmo o protecionismo dos mais fortes e os EUA já não se sentem fortes perante a política industrial chinesa. 

Na UE, a maior máquina de liberalização comercial e financeira jamais inventada, a presidente da Comissão Europeia ameaça agora a China nesta área: ou contêm as exportações ou haverá retaliações. A indústria alemã está sujeita a vários choques, incluindo o energético, e faz sentir o seu peso político. Não haja ilusões sobre a superestrutura política supranacional do capital do centro europeu. 

Quando foi para desindustrializar prematuramente esta nossa periferia europeia, não houve estas preocupações. Trancados numa moeda forte, num momento de intensificação da globalização, prescindindo de instrumentos de política, ficámos progressivamente acantonados numa economia de serviços. Não nos resignemos a este destino liberal.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Amanhã, em Lisboa


São já mais de 110 mil as pessoas mortas ou feridas, na sua maioria crianças e mulheres. Hospitais, centros de saúde, escolas e instalações das Nações Unidas são transformados em alvos militares e arrasados. O número de jornalistas mortos pelas forças de Israel ultrapassa a centena. Médicos, profissionais de saúde, funcionários das Nações Unidas e de agências humanitárias são mortos como em nenhum outro conflito no mundo. E o genocídio continua, alimentado pelo apoio militar, político e diplomático dos EUA e seus aliados, incluindo a União Europeia. É urgente um cessar-fogo imediato e permanente!

Do comunicado das organizações promotoras da manifestação que se realiza amanhã, dia 11 de maio, em Lisboa, a partir das 15h, com início no Largo José Saramago (em frente à Fundação José Saramago) e em direção ao Martim Moniz.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

A transição injusta na União Europeia

 

Embora tenha passado relativamente despercebida em Portugal, o Parlamento Europeu e o Conselho chegaram a acordo sobre a reforma das regras orçamentais europeias em fevereiro. A discussão sobre a necessidade de rever as regras já se arrastava pelo menos há uma década, desde que a crise do Euro empurrou países como a Grécia ou Portugal para programas de austeridade com consequências profundas. Apesar de o acordo provisório fazer referência à “proteção de reformas e investimentos em áreas estratégicas como a digital, a climática, a social ou a de defesa”, a verdade é que as novas regras não trazem melhorias e a sua aprovação, pouco escrutinada até agora, coloca em causa a transição energética justa nos países europeus. [...]

As regras orçamentais colocam em causa a transição energética. De acordo com um relatório elaborado pelos investigadores Dominik Caddick e Sebastian Mang, só há três países europeus – Suécia, Dinamarca e Irlanda – para os quais os limites impostos não impedem o investimento público necessário para atingir os compromissos sociais e climáticos da UE e limitar o aumento da temperatura média global a 1,5ºC. Todos os outros ficam impossibilitados de investir o suficiente na transição energética – e nos serviços públicos – devido às novas regras. Portugal, com uma dívida pública de 98,7% do PIB, enfrentará restrições significativas.

O resto do texto pode ser lido na Ebulição (acesso livre).

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Democratizar


Politizar a questão dos media é hoje urgente para defender o futuro da democracia. Muito se tem escrito nas páginas deste jornal sobre o modo como a crise de um modelo de negócio dos media assente na publicidade favoreceu precariedade e baixos salários no sector, num contexto geral de enfraquecimento de direitos laborais. Ou sobre a forma como os media, para aumentar influência, receitas e audiências, passaram a apostar num jornalismo que foi cedendo espaço de investigação e reportagem ao comentário infinito, feito de duelos inflamados e de um dissenso fulanizado, rude e ofensivo, que de facto transforma divergência em dissidência. Quem procura dedicar algum tempo do seu dia a informar-se depara, cada vez mais, com um jornalismo de lama. Não é nas redes sociais, como os jornalistas gostam de acusar.

Sandra Monteiro, Jornalismo de lama, jornalismo oficial, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, maio de 2024.

terça-feira, 7 de maio de 2024

O défice de pluralismo é transversal à comunicação social

Desengane-se quem possa pensar que o défice de pluralismo no debate político e político-económico se restringe às televisões. O relatório do MediaLab (ISCTE) de 2023, que procede também ao mapeamento do comentário nas rádios e em «meios online» (websites do Expresso, Público e Observador) permite constatar que o padrão de desequilíbrio, em termos ideológicos, se mantém, favorecendo os partidos à direita do espetro político.


De facto, no total de 213 comentadores identificados (dos quais cerca de 21%, sobretudo jornalistas, não são politicamente enquadrados), 58% são de direita e apenas 38% se posicionam à esquerda (com 4% de centro). Contudo, nos «meios online» o peso relativo dos comentadores de direita atinge os 63%, sendo nas rádios que o desequilíbrio é ligeiramente menos acentuado (com a esquerda a situar-se nos 42%).

Um aspeto interessante aponta para o facto de ser no critério da «militância» que a diferença de representatividade de comentadores é menor. Ou seja, em que os meios de comunicação se sentem, de algum modo, mais «obrigados» a respeitar equilíbrios. Mas o mesmo tende a já não suceder quando o critério passa a ser o da «conotação» política do comentador (em regra por pertença, no passado, a um partido político) e, muito menos ainda, quando é critério é o da «tendência», o qual gera um fosso expressivo entre o comentário político à direita e à esquerda. E note-se, por último, que é nos «meios online» que a militância tende a ser menos valorizada como critério.

Estes dados remontam a 2023, ano em que o comentário político televisivo estava, claramente, a preparar eleições. Nunca como nesse ano, de facto, e desde que o MediaLab produz relatórios, a desproporção entre esquerda e direita foi tão significativa (ver aqui), com o aumento abrupto de comentadores de direita no espaço televisivo, entre 2022 e 2023. Como se estivesse em causa, é difícil não pensar isso, uma operação de desgaste do governo maioritário do PS, bem como um acantonamento das esquerdas, através do tal «contínuo político-mediático» que Pacheco Pereira tem vindo, e bem, a assinalar.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Obrigado, Sérgio Ribeiro


Se, pela moeda única, as decisões orçamentais, monetárias e financeiras saírem do nível nacional e forem entregues a um BCE, sedeado algures (em Frankfurt), com escasso ou nulo controlo político, sofrem rude golpe as soberanias nacionais, o poder dos povos participarem nas decisões que a si dizem respeito, em estruturas políticas que lhes são próximas e controlam. 
Sérgio Ribeiro, Não à Moeda Única – Um contributo, Edições Avante, 1997. 

No quadro do argumento soberanista, ou seja, democrático, Sérgio Ribeiro (1935-2024) sublinhava como a perda de instrumentos cruciais de política económica tinha implicações regressivas, de classe, em matéria da política social e laboral, num contexto de “competitividade selvagem”, de “moeda forte para economia fraca”. No fundo, estava a antecipar a desvalorização interna, a dependência e a divergência e tinha boas razões para o fazer.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Desconstrução de mitos no 1º de Maio

O 1º de Maio é uma boa ocasião para recordar que, nas últimas décadas, os salários em Portugal não têm acompanhado a produtividade, como o Paulo Coimbra tem sublinhado. Ouvimos frequentemente dizer que "é preciso criar riqueza para depois distribuir", mas o que tem aumentado é a desigualdade na distribuição funcional do rendimento.