domingo, 31 de março de 2019
Celebrar o terror e a cobardia
«Sim, o atual presidente defende que a tomada do poder pela força pelos militares, deixando o Brasil sem eleições diretas para presidente de 1964 a 1989; rasgando a Constituição e estabelecendo a censura; obrigando alguns dos melhores quadros do Brasil a amargar o exílio; prendendo, sequestrando e torturando, inclusive crianças, e matando opositores é motivo de comemoração. (...) A Defensoria Pública da União e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão já se manifestaram. Mas ainda é pouco. E ainda é tímido, diante da enormidade do que significa comemorar o crime como ato de Governo. Não apenas um crime comum, mas aquele que é considerado crime contra a humanidade. A Comissão da Verdade concluiu que a ditadura matou ou desapareceu com 434 suspeitos de dissidência política e com mais de 8.000 indígenas. Entre 30 e 50 mil pessoas foram torturadas.»
Eliane Brum, Bolsonaro manda festejar o crime
«A devoção às forças militares dos seus países é uma das várias coisas que o presidente Trump e o presidente brasileiro Jair Bolsonaro têm em comum. (...) No caso de Trump - que ao contrário de muitos políticos de sua geração nunca esteve em guerras dos EUA no exterior - o amor proclamado pelas tropas faz parte do nacionalismo beligerante que carateriza a sua política. Mas no caso de Bolsonaro, um ex-capitão do exército, as coisas são um pouco mais sérias. (...) Um porta-voz do presidente disse que Bolsonaro "acredita que a sociedade no seu todo, percebendo o perigo a que o país estava sujeito", conseguiu em 1964 unir "civis e militares, para recolocar... o nosso país no seu trilho». (...) Para ele, o que aconteceu há cinco décadas e meia não foi um «golpe». (...) Durante a campanha, Bolsonaro parecia querer materializar a sua nostalgia pelo impiedoso regime na sua causa eleitoral contra o crime nas favelas. A sua vitória, argumentou Serbin, foi "o mais recente sintoma" de uma "política do esquecimento" global mais ampla.»
Ishaan Tharoor, A triste história que o presidente do Brasil quer celebrar
sábado, 30 de março de 2019
IVG: a caixa de Pandora que não se abriu
Nos acirrados debates que antecederam o referendo sobre a despenalização do aborto, realizado em fevereiro de 2007, um dos argumentos mais esgrimidos pela direita - em tom de profecia intimidatória - foi o de que a vitória do «sim» à despenalização (até às 10 semanas de gestação e a pedido da mulher) iria abrir uma caixa de Pandora e gerar uma torrente inaudita de casos de interrupção voluntária da gravidez (IVG).
Ora, o que os dados mais recentes vêm de novo demonstrar, e reforçar, é exatamente o contrário. Não só o número de abortos tem vindo a diminuir paulatinamente desde 2011 (após três anos de subida, depois de 2008), como se atingiu, em 2017, a mais baixa taxa de incidência de IVG em jovens adolescentes (menos de 20 anos de idade). De facto, o número de IVG situa-se pela primeira vez abaixo de 15 mil em 2017 (estima-se que rondava 20 mil por ano, antes da despenalização) e o rácio de IVG em jovens adolescentes fixa-se nos 1,5‰ (quando rondava os 2,0‰ em 2008).
Mas há mais. Na média do período (2008 a 2017), cerca de 74% das mulheres nunca recorreu anteriormente à interrupção da gravidez, sendo de 20% o peso médio relativo das que a tinham feito uma vez (e de apenas 6% os casos de interrupção da gravidez por mais que uma vez). Por outro lado, entre 2011 e 2017 o ritmo de redução de IVG tende a ser mais significativo nas situações laborais e ocupacionais em regra mais críticas: estudantes (-31%), desempregadas (-33%) e trabalho não qualificado (com uma quebra de apenas -1%). Isto é, valores que comparam com a diminuição de -22% do número total de IVG). Por último, a percentagem de mulheres que adere a um método contraceptivo em momento posterior à interrupção da gravidez é sempre superior a 93%, entre 2008 e 2017.
Estes dados evidenciam que a profecia do descalabro, agitada pela direita, estava de facto errada. E arrasam, por isso, duas presunções morais sobre a natureza humana em que essa profecia assentou. Por um lado, a noção de que a inexistência de um maior número de abortos em Portugal, antes de 2008, se devia ao facto de o mesmo constar como crime no Código Penal. E, por outro lado, a ideia de que - uma vez eliminado o suposto efeito dissuasor da prescrição penal - a situação resvalaria para um autêntico regabofe, com a ligeireza e a irresponsabilidade a comandarem as opções das mulheres, que passariam por isso a abortar por «dá cá aquela palha».
Ora, o que os dados mais recentes vêm de novo demonstrar, e reforçar, é exatamente o contrário. Não só o número de abortos tem vindo a diminuir paulatinamente desde 2011 (após três anos de subida, depois de 2008), como se atingiu, em 2017, a mais baixa taxa de incidência de IVG em jovens adolescentes (menos de 20 anos de idade). De facto, o número de IVG situa-se pela primeira vez abaixo de 15 mil em 2017 (estima-se que rondava 20 mil por ano, antes da despenalização) e o rácio de IVG em jovens adolescentes fixa-se nos 1,5‰ (quando rondava os 2,0‰ em 2008).
Mas há mais. Na média do período (2008 a 2017), cerca de 74% das mulheres nunca recorreu anteriormente à interrupção da gravidez, sendo de 20% o peso médio relativo das que a tinham feito uma vez (e de apenas 6% os casos de interrupção da gravidez por mais que uma vez). Por outro lado, entre 2011 e 2017 o ritmo de redução de IVG tende a ser mais significativo nas situações laborais e ocupacionais em regra mais críticas: estudantes (-31%), desempregadas (-33%) e trabalho não qualificado (com uma quebra de apenas -1%). Isto é, valores que comparam com a diminuição de -22% do número total de IVG). Por último, a percentagem de mulheres que adere a um método contraceptivo em momento posterior à interrupção da gravidez é sempre superior a 93%, entre 2008 e 2017.
Estes dados evidenciam que a profecia do descalabro, agitada pela direita, estava de facto errada. E arrasam, por isso, duas presunções morais sobre a natureza humana em que essa profecia assentou. Por um lado, a noção de que a inexistência de um maior número de abortos em Portugal, antes de 2008, se devia ao facto de o mesmo constar como crime no Código Penal. E, por outro lado, a ideia de que - uma vez eliminado o suposto efeito dissuasor da prescrição penal - a situação resvalaria para um autêntico regabofe, com a ligeireza e a irresponsabilidade a comandarem as opções das mulheres, que passariam por isso a abortar por «dá cá aquela palha».
sexta-feira, 29 de março de 2019
O estranho caso do filho pródigo
Aparte introdutório
Muita tinta tem corrido a propósito das relações familiares no governo. Não é tema que me aqueça as veias: trata-se, no essencial, de um sintoma de desespero de uma direita sem discurso, que se vê obrigada a viver de caso em caso para sobreviver. Já foram os incêndios, já foi Tancos, agora são as relações familiares.
Embora não o considere um tema de grande relevo, creio que não deve deixar de inspirar algum juízo crítico junto dos envolvidos. Nos casos trazidos a debate, é evidente que não se trata de um favorecimento familiar direto. Na sua maioria, a relação política existia muito antes da relação afetiva e familiar. Mas essa coincidência não causal não deixa de ser um indício de algo que nos deve preocupar a todos: o facto de as elites políticas e intelectuais onde se recrutam quadros políticos serem muito exíguas. Nem sempre é propositado: os cargos de nomeação reúnem, desejavelmente, um misto de competência e confiança pessoal que germina mais facilmente em círculos restritos. O sujeito A não nomeia o sujeito B por ser seu familiar ou familiar de um outro dirigente político, mas por terem frequentado a mesma universidade, os mesmos espaços profissionais, de militância e\ou de lazer. Contudo, num momento em que a extrema-direita procura usar a desconfiança nos políticos como instrumento para a sua ascensão, a prudência aconselha a que se minimizem os fatores que, aos olhos dos cidadãos, transmitem a ideia de que os altos cargos políticos são distribuídos por uma elite restrita. Por isso, e ainda que sob pena de se cometerem injustiças individuais, deve evitar-se de futuro uma concentração tão elevada deste tipo de casos. (E, de caminho, escusarem-se de colocar o Carlos César a comentar eventuais casos de nepotismo - é como pôr um pirómano a falar de prevenção florestal).
O filho pródigo
Há, no entanto, relações bem mais misteriosas no espaço mediático português do que as relações familiares. E essas, confesso, preocupam-me muito mais do que as anteriores, porque espelham o quanto os círculos de confiança do poder económico e de algum poder político são ainda mais restritos.
David Dinis acaba de ser nomeado diretor-executivo do Expresso. Antes desta nomeação, David Dinis já tinha ocupado as posições de editor de política do Diário Económico, editor de política do Diário de Notícias, editor de política de Jornal de Notícias, editor de política do Sol, diretor do Público, diretor Observador e diretor da TSF.
Face a este percurso, há uma pergunta que surge: que características únicas tem David Dinis para ser do agrado de um espectro tão vasto de projetos editoriais, ocupando sempre lugares de destaque? Será que na classe jornalística, tão vasta e pejada de profissionais talentosos, não haverá um conjunto numeroso de pessoas com competência para assumir cargos de direção? Por que motivo é que os cargos de direção dos jornais parecem sempre circular entre um círculo mesmo muito restrito de indivíduos, que pulam de projeto editorial em projeto editorial? E por que motivo a esmagadora maioria dessas figuras tem um posicionamento de centro-direita ou de direita?
A todas estas perguntas os responsáveis dos conselhos de administração responderão apenas que se trata de um conjunto de pessoas com provas dadas, que asseguram a qualidade de conteúdos e a viabilidade económica do projeto. Mas, se ultrapassarmos o patamar da ingenuidade, sabemos que se trata de bem mais do que isso. Numa época em que o diretor de um jornal não dirige apenas o seu projeto mas é também um comentador regular de todos os assuntos de atualidade - basta recordar o número de vezes que este pequeno círculo aparece em espaços televisivos de comentário - a posição que ocupa goza de uma imenso magistério de influência. Como ficou evidente durante a intervenção da Troika ou durante o processo de criação da Geringonça, estas figuras são capazes de criar um clima social de aceitação ou rejeição de determinado facto político pelo espaço de comunicação de que dispõem.
Assim, não é estranho que um número tão restrito de pessoas circule pelos mais variados meios de comunicação. A sua direção assegura que os projetos que dirigem e os comentários que produzem sejam convenientes ao poder económico e político dos proprietários desses meios de comunicação, que se que se estende desde a direita mais assumida até ao velhos tempos do centrão da política nacional, muito mais vivo do que a experiência dos últimos quatro anos pode fazer sugerir.
Há elites muito mais restritas e influentes do que os casos mediáticos que têm estado em destaque. E a direita, que tanto tem insuflado a questão das ligações familiares, é a principal promotora desses pequenos círculos de poder, que lhe garantem a hegemonia da opinião, mesmo numa conjuntura política desfavorável.
Há laços não familiares que são verdadeiros laços de sangue. O Diogo Queiroz de Andrade, o Paulo Baldaia, o Manuel Carvalho e uma mão cheia de outros nomes que vão circulando pela direção dos órgãos de comunicação são os filhos muito acarinhados de um poder económico e político que os trata com o maior afeto. E, de todos eles, nenhum será porventura tão mimado como David Dinis, o verdadeiro filho pródigo.
David Harvey e as crises do capitalismo
Excerto ilustrado de uma palestra de David Harvey, professor na City University of New York, sobre as diferentes interpretações acerca da última crise financeira.
quinta-feira, 28 de março de 2019
Nacionalismos
Identificar o nacionalismo exclusivamente com a direita política significa não compreender a sua natureza e a forma como moldou quase todas as ideologias políticas modernas, incluindo as liberais e progressistas. O nacionalismo forneceu os fundamentos ideológicos para instituições como a democracia, o Estado-Providência e a educação pública, já que todas foram justificadas em nome de um propósito partilhado e de um ideal de obrigação mútua. O nacionalismo foi uma das forças que ajudou a derrotar a Alemanha nazi e o Japão imperial. E foram os nacionalistas que libertaram a grande maioria da humanidade da dominação colonial.
Andreas Wimmer, Porque é que o nacionalismo funciona e porque é que está para ficar?, Foreign Affairs, Março/Abril de 2019, p. 28, minha tradução.
Apesar da capa ameaçadora, a convencionalíssima Foreign Affairs tem um dossiê sobre “o novo nacionalismo” que é bem mais plural do que os debates públicos neste país sobre o tema. Salvo raras excepções, onde se inclui um ou outro estudioso dos nacionalismos, por cá o termo tende a ser imediatamente associado a tudo o que é politicamente tóxico. É a imaginação do centro a funcionar entre as elites que monopolizam o debate público.
E, no entanto, basta molhar a medo os pés no vasto e revoltoso oceano da literatura histórico-sociológica sobre o assunto para concluir que a posição de Wimmer tem muito a seu favor. E já nem falo no só aparentemente mais calmo mar da história da economia política, onde a posição de um Gunnar Myrdal, só para dar um exemplo, representa o melhor dos estudos do desenvolvimento sobre este tema. Quem disse que um determinado tipo de nacionalismo não pode fomentar o mais consequente internacionalismo? Não se pode é confundir internacionalismo com a neoliberal UE...
Andreas Wimmer, Porque é que o nacionalismo funciona e porque é que está para ficar?, Foreign Affairs, Março/Abril de 2019, p. 28, minha tradução.
Apesar da capa ameaçadora, a convencionalíssima Foreign Affairs tem um dossiê sobre “o novo nacionalismo” que é bem mais plural do que os debates públicos neste país sobre o tema. Salvo raras excepções, onde se inclui um ou outro estudioso dos nacionalismos, por cá o termo tende a ser imediatamente associado a tudo o que é politicamente tóxico. É a imaginação do centro a funcionar entre as elites que monopolizam o debate público.
E, no entanto, basta molhar a medo os pés no vasto e revoltoso oceano da literatura histórico-sociológica sobre o assunto para concluir que a posição de Wimmer tem muito a seu favor. E já nem falo no só aparentemente mais calmo mar da história da economia política, onde a posição de um Gunnar Myrdal, só para dar um exemplo, representa o melhor dos estudos do desenvolvimento sobre este tema. Quem disse que um determinado tipo de nacionalismo não pode fomentar o mais consequente internacionalismo? Não se pode é confundir internacionalismo com a neoliberal UE...
terça-feira, 26 de março de 2019
Há bancos e bancos
João Salgueiro foi durante décadas um dos rostos da banca nacional, quer como banqueiro público, do já extinto Banco de Fomento Nacional à Caixa Geral de Depósitos (CGD), quer como ministro das Finanças na década de oitenta, quer sobretudo como presidente, entre 1994 e 2009, da todo-poderosa Associação Portuguesa de Bancos, um sector fundamentalmente controlado por privados desde a liberalização e privatização dos anos oitenta e noventa e onde pontificava o Banco Espírito Santo – um sector por isso cada vez menos nacional a prazo, ou seja, destinado a ser cada vez mais controlado pelo capital estrangeiro. Em entrevista recente, este apoiante de sempre da europeização liberal da economia política nacional, incluindo o euro, denuncia agora o corolário deste processo: a opacidade do comando central europeu, que culminou na entrega, forçosamente apressada e prejudicial, do Novo Banco à norte-americana Lone Star, com garantias públicas do Estado português ainda por quantificar. Conclui João Salgueiro: «A União Europeia gostava de acabar com todos os bancos portugueses, penso eu, quanto muito ficava a Caixa. E tudo o que é aparente mostra isso. Já no Banif foi assim». De facto, no Banif tinha ficado visível a lógica da União Europeia, que, como Salgueiro reconhece, «dificulta a vida» à banca nacional que resta, a CGD, enquanto facilita a vida ao capital estrangeiro, do Santander à Lone Star.
Salgueiro tem experiência suficiente para saber que o Estado pode e deve ser o «senhor do tempo», para usar a expressão de um livro sobre alguns dos seus papéis económicos incontornáveis. Na realidade, é na banca que este papel assume uma importância particularmente crucial. Só o Estado, através da liquidez do seu Banco Central, o prestamista de último recurso, e das suas finanças públicas, injectando capital, está em condições de dispor de um horizonte temporal mais amplo para garantir a recuperação necessária dos bancos, que é ajudada pela, e ajuda na, recuperação da economia. Salgueiro faz uma comparação, na mesma entrevista, entre o Novo Banco, em Portugal, e o Lloyds Bank, no Reino Unido: «É possível viabilizar um banco em semanas? O doutor Horta Osório viabilizou o Lloyds em oito anos». Onde está «doutor Horta Osório» leia-se o Estado britânico, que assumiu o controlo do banco nos seus tempos e nos seus termos.
O plano de recuperação do Lloyds Bank só foi possível através de uma estratégia articulada entre o Tesouro britânico e o seu Banco Central, disponível para injectar a liquidez necessária para manter este banco operacional até recuperar a sua solvabilidade. Esta defesa da estabilidade de um sistema bancário nacional, cujo modelo de intervenção tem, ainda assim, muito de criticável, só foi possível com um Banco Central nacional.
Excertos de um artigo, em co-autoria com Nuno Teles, com quase dois anos, publicado no Le Monde diplomatique - edição portuguesa e agora disponibilizado na íntegra no sítio do jornal. No fundo, a falta que nos faz um Novo Banco, mas de Portugal...
segunda-feira, 25 de março de 2019
Memória de uma entrevista
A entrevista de António Costa ao Público merece três ou quatro comentários esperançosos e três ou quatro sem ilusões e sem preocupações de ser exaustivo.
Em primeiro lugar, reconhece a realidade ululante: “o euro foi o maior bónus que a Europa ofereceu à Alemanha”. Eu adicionaria a dimensão de classe à da geopolítica; falaria, por exemplo, de capital financeiro alemão e das duas alas do partido único exportador alemão, mas não quero ser picuinhas.
Em segundo lugar, vem reconhecer a inevitabilidade da “geometria variável” das alianças entre Estados, abrindo campo para várias velocidades e até direcções, perante a realidade do desenvolvimento desigual, da crescente heterogeneidade social e política da União Europeia, mesmo que seja para superar a “paralisia” da integração. As ilusões não acabam todas de uma vez.
Em terceiro lugar, parece reconhecer a medo que nacionalismos há muitos e que a dicotomia liberal dos “abertos” e dos “fechados” representa um estreitamento perverso do combate político, embora por vezes caia nessa dicotomia já habitual.
Em quarto lugar, reconhece que a integração europeia estreitou os termos do combate político. Quando Tsipras e Macron, o perigoso plástico político que ainda flutua, são as componentes de uma suposta aliança progressista está tudo dito sobre os destroços de uma social-democracia afundada pela UE.
Em quinto lugar, Costa continua a estar disponível para novas perdas de soberania, em nome de potenciais avanços progressistas na UE. Nem ele próprio pode acreditar numa loucura com cada vez mais condicionalidades depois de todos estes anos; de todas estas décadas, na realidade.
Em sexto lugar, mantém a esperança na União Bancária, quando está farto de saber que Portugal, também graças ao seu governo, foi uma cobaia para mecanismos perversos com lastro, onde o Estado português continuará a pagar e os estrangeiros cada vez mais a mandar.
Finalmente, quando a lógica realista das grandes potências as impele a defender as suas indústrias, continua a achar que Portugal beneficiará da abertura irrestrita. Desta forma, continuaremos sem instrumentos decentes de política industrial, monetária ou comercial para gerir o grau de abertura em função de algo tão irremovível quanto potencialmente objecto de deliberação democrática: o nem sempre convocado interesse nacional.
Em primeiro lugar, reconhece a realidade ululante: “o euro foi o maior bónus que a Europa ofereceu à Alemanha”. Eu adicionaria a dimensão de classe à da geopolítica; falaria, por exemplo, de capital financeiro alemão e das duas alas do partido único exportador alemão, mas não quero ser picuinhas.
Em segundo lugar, vem reconhecer a inevitabilidade da “geometria variável” das alianças entre Estados, abrindo campo para várias velocidades e até direcções, perante a realidade do desenvolvimento desigual, da crescente heterogeneidade social e política da União Europeia, mesmo que seja para superar a “paralisia” da integração. As ilusões não acabam todas de uma vez.
Em terceiro lugar, parece reconhecer a medo que nacionalismos há muitos e que a dicotomia liberal dos “abertos” e dos “fechados” representa um estreitamento perverso do combate político, embora por vezes caia nessa dicotomia já habitual.
Em quarto lugar, reconhece que a integração europeia estreitou os termos do combate político. Quando Tsipras e Macron, o perigoso plástico político que ainda flutua, são as componentes de uma suposta aliança progressista está tudo dito sobre os destroços de uma social-democracia afundada pela UE.
Em quinto lugar, Costa continua a estar disponível para novas perdas de soberania, em nome de potenciais avanços progressistas na UE. Nem ele próprio pode acreditar numa loucura com cada vez mais condicionalidades depois de todos estes anos; de todas estas décadas, na realidade.
Em sexto lugar, mantém a esperança na União Bancária, quando está farto de saber que Portugal, também graças ao seu governo, foi uma cobaia para mecanismos perversos com lastro, onde o Estado português continuará a pagar e os estrangeiros cada vez mais a mandar.
Finalmente, quando a lógica realista das grandes potências as impele a defender as suas indústrias, continua a achar que Portugal beneficiará da abertura irrestrita. Desta forma, continuaremos sem instrumentos decentes de política industrial, monetária ou comercial para gerir o grau de abertura em função de algo tão irremovível quanto potencialmente objecto de deliberação democrática: o nem sempre convocado interesse nacional.
sábado, 23 de março de 2019
Mudanças de regime
"Não há nenhuma dúvida que Saddam Hussein possui armas biológicas e a capacidade de produzir muitas mais em pouco tempo."
A garantia foi dada por Colin Powell, secretário de Estado dos EUA, a 5 de fevereiro de 2003. Não foi preciso esperar muito tempo até que a coligação liderada pelos norte-americanos e britânicos anunciasse o início da intervenção militar no Iraque, mesmo contra as indicações do Conselho de Segurança da ONU. A invasão que Noam Chomsky descreveu como "o crime mais grave deste século" já conta 16 anos e deixou centenas de milhares de mortos, feridos, deslocados e a desintegração de um país dividido pela guerra e pelo terrorismo. As armas, claro, nunca apareceram. Para que não esqueçamos o legado das intervenções militares norte-americanas.
A garantia foi dada por Colin Powell, secretário de Estado dos EUA, a 5 de fevereiro de 2003. Não foi preciso esperar muito tempo até que a coligação liderada pelos norte-americanos e britânicos anunciasse o início da intervenção militar no Iraque, mesmo contra as indicações do Conselho de Segurança da ONU. A invasão que Noam Chomsky descreveu como "o crime mais grave deste século" já conta 16 anos e deixou centenas de milhares de mortos, feridos, deslocados e a desintegração de um país dividido pela guerra e pelo terrorismo. As armas, claro, nunca apareceram. Para que não esqueçamos o legado das intervenções militares norte-americanas.
Assim reza a História
«Eu gostava muito que os EUA levassem por diante a atual política de imigração, porque em grande medida nós devemos a nossa democracia no Hemisfério Sul aos Estados Unidos» (Jair Bolsonaro, em entrevista à Fox News).
sexta-feira, 22 de março de 2019
Jantar fora ou gastar luz em casa?
Ainda a propósito do IVA da restauração e do que alegadamente o «Estado perde» com essa medida - de acordo com os entusiastas da austeridade - lembrei-me há dias do comentário de João Duque ao OE de 2019. Segundo o economista, teria sido «mais eficiente não se ter mexido no IVA da restauração e baixar o IVA da eletricidade». Por quê? Porque «as pessoas para pouparem ficam em casa e em casa gasta-se eletricidade». Ou seja, segundo João Duque, com a descida do IVA o Governo beneficiou, erradamente, os «que vão jantar fora e que apagam a luz em casa». Não é que a opção fiscal não seja discutível, é-o de facto. Apenas a aparente candura e simplismo desta imagem faz lembrar uma outra comparação, menos recente, do mesmo economista e professor universitário: aquela em que aludia a cinema e pipocas.
quinta-feira, 21 de março de 2019
Quando falar com um economista, tenha cuidado. Comentário a uma entrevista de Robert Barro
Este artigo foi motivado pela leitura recente de uma entrevista de Robert Barro. Antes de se passar à análise da entrevista, contudo, é necessário um pouco de contextualização sobre o percurso deste autor e as características e relevância da escola de pensamento económico que representa.
Robert Barro é um dos mais distintos economistas da nova escola clássica e um dos economistas mais influentes da segunda metade do século XX. A nova escola clássica emergiu na década de 70 do século passado como contraponto intelectual à hegemonia do pensamento keynesiano. A sua ascensão foi meteórica: de mão dada com a escola dos ciclos económicos reais (real business cycles) – com quem partilha grande familiaridade de premissas e resultados - viria a triunfar, escassos anos depois, na década de 80, em alguns dos mais influentes departamentos de economia à escala global, embora o seu ascendente tenha sido mais vincado na academia americana e menos expressivo no continente europeu. Perdeu o seu lugar cimeiro ao longo da década de 90, com a consolidação do paradigma novo-keynesiano, mas ocupa ainda um lugar destacado no ensino e na investigação contemporâneas. Mesmo que parte dos seus resultados sejam hoje objeto de crítica, a sua vitória epistemológica é inegável: a teoria das expetativas racionais e os modelos de maximização com base no agente representativo subsistem como a formulação canónica dos modelos económicos convencionais, mesmo que existam esforços – sobretudo desde a crise financeira – para adicionar imperfeições ao modelo base, de modo a que reproduza mais fielmente a dinâmica efetiva do ciclo económico.
A nova escola clássica assenta o seu edifício teórico num triângulo de premissas que determinam as suas prescrições de política económica: igualdade contínua entre oferta e procura em todos os mercados, expetativas racionais e a validade de um agente maximizador representativo da economia agregada. Tomadas no seu conjunto, garantem alguns dos seus resultados mais célebres: a ineficácia da política orçamental (fruto da equivalência ricardiana com expetativas racionais), a ineficácia da política monetária (se antecipada pelos agentes) e o postulado de que as flutuações económicas se devem sobretudo a choques reais (este último resultado mais herdeiro dos seus companheiros dos ciclos económicos reais).
Porém, no que respeita à contextualização da entrevista, a dimensão mais importante a ter presente é a fundação teórica do mercado de trabalho feita pelos novos clássicos. Neste domínio, deve-se reter que a nova escola clássica não reconhece a existência de desemprego involuntário, já que assume que todos os mercados estão equilibrados, incluindo o mercado de trabalho. Todos os agentes que pretendem trabalhar pelo valor do salário real vigente são capazes de o fazer. O ato de trabalhar é, na verdade, apenas um ato de escolha voluntária entre o prazer (utilidade) do consumo do lazer e o sacrifício (desutilidade) da redução de trabalho. Assim, neste quadro, não existem pessoas desempregadas na aceção que comummente se costuma atribuir ao conceito. Existe apenas um conjunto de pessoas que pretende consumir lazer em vez de realizar trabalho, porque consideram que o salário real prevalecente não lhes permitirá comprar bens cuja utilidade supere a desutilidade que a escolha do trabalho implicaria. Mais: neste mundo alternativo, trabalhar ou não trabalhar não é uma decisão binária como na maioria das situações da vida real. Os agentes escolhem apenas trabalhar mais ou menos horas, não encontrando qualquer barreira institucional (nomeadamente a legal) a essa decisão.
As flutuações do emprego são explicadas por choques de produtividade. Tomemos o exemplo de um choque positivo de produtividade. O choque positivo causa um aumento do salário real, aumentando o custo de oportunidade de consumir lazer, fazendo com que os agentes aumentem o número de horas trabalhadas. Este mecanismo, defendem, é o que explica a flutuação do emprego ao longo da história.
De novo, todo o processo resulta da decisão livre de um agente maximizador: o desemprego não é um problema nem individual nem social.
Visto por qualquer cidadão não economista, esta teoria é surpreendentemente absurda: todos sabemos que o desemprego está historicamente associado a situações de pobreza e exclusão social; todos sabemos que as pessoas não escolhem, marginalmente, se pretendem trabalhar mais ou menos uma hora em função do salário real; e, evidentemente, todos sabemos que o desemprego involuntário existe e que a incapacidade de usar plenamente o fator trabalho é uma das mais salientes e regulares características das economias capitalistas.
Mas toda esta evidência não encontra relevância na discussão especializada de economia, porque o instrumentalismo é o critério epistemológico que, explícita ou implicitamente, enquadra a discussão. Isto significa que a validade de um modelo não depende da plausibilidade das suas premissas. O único critério de verificação tido como válido é a capacidade de gerar resultados que se ajustem ao comportamento das variáveis económicas na realidade. Isto é, a validade advém apenas da sua avaliação empírica.
Neste plano, os novos clássicos registaram a sua mais aclamada vitória na teoria da inflação. Mas também a teoria da determinação dos salários se transformou num palco do seu alegado sucesso: a sua teoria permitia fundamentar teoricamente a regularidade empírica segundo a qual a os salários reais evoluem de forma pró-cíclica. Ou seja, que os salários tendem a acompanhar o sentido da expansão ou da contração económica. Pelo contrário, o paradigma keynesiano (na sua versão da síntese neoclássica) assume que os salários reais são contra-cíclicos, resultado que decorre de assumir uma produtividade marginal do trabalho decrescente.
Terminado o enquadramento, chegamos finalmente ao objeto deste texto. No início da década de 90, Robert Barro concedeu uma entrevista aos autores do livro “A Modern Guide to Macroeconomics: An Introduction to Competing Schools of Thought”, Brian Snowdon, Howard Vane e Peter Wynarczyk. Nessa entrevista, pode encontrar-se o excerto reproduzido abaixo:
Muitos críticos da nova economia clássica argumentaram que existe uma falta de suporte empírico para a existência de fortes efeitos de substituição intertemporal na oferta de trabalho. Como reage a esta crítica?
Robert Barro: É difícil obter evidência direta disso, assim como é difícil obter evidência do quão sensível é o investimento ao custo de financiamento – é o mesmo tipo de problema. Assim como se pode ver que o investimento é muito sensível ao longo do ciclo económico, o fator trabalho também se move bastante. Se assumir uma perspetiva de equilíbrio e observar que o fator trabalho se está a mover, tem de pensar acerca de quais os incentivos que estão a fazer com que ele se mova. Mas conseguir evidência direta dos efeitos intertemporais é difícil, porque é difícil isolá-los O mesmo acontece com o consumo. É difícil destrinçar os efeitos intertemporais, mesmo que as pessoas estejam dispostas a acreditar que esses efeitos existem. Na verdade, isolar curvas de oferta e procura também é um exercício difícil. É um problema de identificação difícil.
Este excerto chamou-me a atenção por sintetizar num exemplo breve os enviesamentos que a comunicação com economistas pode gerar, quando trazida para o espaço público. A análise da pergunta e dos pressupostos e omissões da resposta permite guiar-nos pela forma como alguns economistas gostam de publicitar os seus resultados e opiniões sem submeter a escrutínio as suas premissas.
Em primeiro lugar, a pergunta tem a maior pertinência. Para que as flutuações agregadas do emprego pudessem ser explicadas exclusivamente por efeitos de substituição intertemporal entre trabalho e lazer, as elasticidades teriam de ser muito superiores às verificadas em sucessivos testes empíricos – e, mesmo esses testes, assentam em pressupostos questionáveis.
A resposta de Barro a esta questão é, no mínimo, surpreendente. A maior fonte de surpresa é o facto de Barro nem sequer responder diretamente à pergunta, escusando-se de contra-argumentar. Expurgada do acessório, Barro limitou-se a dizer duas coisas: i) o efeito de substituição intertemporal da oferta de trabalho é muito difícil de avaliar empiricamente; ii) se assumirmos uma perspetiva de equilíbrio, temos de pensar os incentivos que fazem o emprego mover-se.
Tudo nesta resposta é um problema. Quando alguém que assume que a veracidade dos resultados e não das premissas é o critério para avaliar o seu modelo e afirma que os aspetos empíricos do seu modelo são difíceis de medir, qual é o critério de validação que subsiste? No fundo, Barro escolhe desmerecer a evidência empírica que não lhe é conveniente (como o caso da taxa de substituição intertemporal da curva da oferta) e manter as demais que lhe convêm. Na verdade, nem parece que a sua opinião sobre a difícil estimação do conceito seja particularmente robusta – parece, sobretudo, um instrumento evasivo.
Mas é no segundo elemento da resposta que se encontra o fulcro do truque de comunicação. Barro afirma que se assumirmos uma perspetiva de equilíbrio temos de considerar quais os incentivos que o fazem mover. E, embora não o afirme explicitamente, o que deixa implícito é que o único mecanismo que vê como plausível para esse movimento é a escolha microeconómica entre trabalho e lazer.
O autor mantém-se inamovível na sua premissa de partida para justificar a utilização da escolha intertemporal do consumidor para explicar as flutuações de emprego. Mas, e se a premissa de partida estiver errada? Nesse caso, se a substituição intertemporal não pode ser sustentada empiricamente, toda a fundação teórica para afirmar os seus resultados se esfuma.
E haverá boas razões para suspeitar de que o mercado de trabalho não está sempre em equilíbrio? A resposta é sim. Como foi referido, a incapacidade de empregar plenamente o fator trabalho é uma das mais recorrentes características das economias de mercado. As possíveis explicações para essa incapacidade são variadas.
Os novos keynesianos, apesar de manterem as hipóteses do agente maximizador e das expetativas racionais, avançam um conjunto de fatores que poderiam explicar a rigidez de salários e preços e impediriam o mercado de trabalho de atingir o equilíbrio. Esses fatores vão desde o custo associado à mudança contínua de preços (menu costs), passando pelos custos de procura de trabalhadores com características específicas até à fixação de salários acima do equilíbrio, de modo a aumentar o custo de oportunidade de perder o emprego e assim estimular os trabalhadores a serem mais produtivos (salários de eficiência).
Outros autores, mais próximos do pós-keynesianismo, rejeitam as expetativas racionais e o agente maximizador. Na sua perspetiva, a flexibilidade de salários e preços não garante o pleno emprego, porque despoleta efeitos que contrariam o caminho para o equilíbrio. A diminuição dos salários pode ter efeitos nocivos para a procura e despoletar efeitos perversos associados ao aumento do valor real da dívida dos agentes económicos. A taxa de juro – sendo muito influenciada pela preferência pela liquidez – não é suficiente para equilibrar o mercado de bens. Ambos os fatores podem ter um efeito colateral nas expetativas, afastando ainda mais a economia do equilíbrio. Na sua opinião, como as economias de mercado resultam da ação descentralizada de vários agentes com expetativas voláteis, é muito improvável que consigam gerar o pleno emprego dos seus recursos. Por isso, deve ser o Estado a regular a procura agregada, de modo a assegurar o pleno aproveitamento dos recursos.
Para o nosso argumento o ponto relevante é que assumir que o mercado de trabalho se equilibra continuamente é uma hipótese muito pouco razoável. Assentar toda uma teoria num pressuposto tão evidentemente falso deveria ser considerado um caminho muito pouco sensato.
Mas é a aí que surge a singularidade dos economistas. Em todas as ciências sociais é possível que os autores guiem o autor até um conjunto de conclusões que dependem, em grande medida, das premissas fixadas à partida, as quais, por sua vez, dependem muito do posicionamento político e moral do autor. Não há nenhum mal nisto: desde que seja mantida uma argumentação fundamentada e séria, o exercício é legítimo. Perigoso é negar que existe essa influência à partida de crenças e convicções.
Na economia, porém, tudo é muito menos transparente. Tal como noutras ciências sociais, os pressupostos de partida decorrem de convicções e valores à partida dos seus autores. Contudo, ao contrário de outras ciências sociais, os economistas utilizam um exercício dedutivo formalizado – a matemática – que permite obscurecer a relação entre pressupostos e resultados. Quanto maior a complexidade da matemática utilizada, menor a capacidade de escrutínio dos passos lógicos que são dados. Muitos economistas usam o subterfúgio de pedirem aos seus ouvintes que ignorem as premissas e se foquem nos resultados que, garantem, foram extraídos a partir das mais sofisticas e inatacáveis técnicas de modelação. Tal ação permite-lhes comunicar resultados favoráveis aos seus valores com a aparência de uma falsa neutralidade científica.
O processo de ação comunicacional de muitos economistas, descrito no parágrafo anterior de forma abstrata, é cabalmente replicado no caso concreto da resposta de Robert Barro. Todos os autores da nova escola clássica eram acérrimos liberais. Na sua visão do mundo, os mercados tendem para o equilíbrio e a ação de uma autoridade central – orçamental ou monetária – é mais nociva do que virtuosa. Refletindo estas convicções, os seus modelos começam por assumir a hipótese totalmente irrealista de que os mercados estão sempre em equilíbrio, o que, a par de uma paleta de premissas já referidas anteriormente, garantem resultados que vão ao encontro das suas convicções. Tal não significa desmerecer as capacidades intelectuais destes autores. Pelo contrário: os autores mais destacados da nova escola clássica são dotados de brilhantes capacidades de modelação matemática da economia. O problema é usarem o seu brilhantismo para ofuscarem a clareza do debate, negando-se a reconhecer que, aparte o sofisticado exercício de modelação, os seus resultados dependem em larga medida dos seus pressupostos e dos seus valores.
Robert Barro responde implicitamente que se assumirmos que os mercados estão em equilíbrio a substituição intertemporal da oferta de trabalho é uma boa explicação, porque nem concebe abandonar o seu pressuposto de que os mercados não estão sempre em equilíbrio. Para ele, os seus valores e pressupostos não se discutem. Se a evidência empírica está contra ele, é porque está mal estimada. A realidade é que tem de se adaptar à sua conceptualização da economia e do mundo.
Escolhi trazer o exemplo da resposta de Robert Barro para este artigo, porque o que podemos aprender com ela continua muito atual. Todos os dias vemos economistas em órgãos de comunicação a darem opiniões sobre temas sociais, reclamando para si um manto diáfano de grande ascetismo e neutralidade científica. Essa neutralidade pura não existe, nem é qualquer modelo matemático ou econométrico que a confere. Todos os pressupostos merecem ser discutidos e, raramente, poderá ser dada uma resposta unívoca às questões. Não existem resultados incontestáveis em ciências sociais.
Por isso, da próxima vez que falar com um economista, tenha cuidado. Depois não diga que não o avisei.
Do vício de pensar em modo austeridade
Há uns dias, o Público noticiava que, «de acordo com um relatório do Governo que acompanha a descida do IVA no sector da restauração para 13%, nos 18 meses que se sucederam à descida da taxa, a receita de IVA totalizou 619,1 milhões de euros, menos 38,4%, correspondentes a 385,3 milhões de euros, que a receita dos 18 meses anteriores». Perante a constatação, o jornal não vai de modas e puxa para título a ideia de que, com a descida da taxa de 23 para 13% em 2016, o «Estado perde» cerca de 385 milhões de euros nas receitas dos dezoito meses seguintes.
Avançando para o miolo da notícia, a história que se conta é contudo um pouco diferente. Refere-se, desde logo, o aumento do emprego no setor do alojamento e da restauração em 9,9% (mais 21 mil postos de trabalho) no segundo semestre de 2017, face ao semestre homólogo de 2016 (num ritmo que supera o do crescimento global do emprego no mesmo período, de 5,1%). Assinala-se, por outro lado, que esse aumento do emprego gerou uma receita de 289,5 milhões de euros mesmo semestre de 2017 (+14,1% face a 2016) nas contribuições para a Segurança Social e dá-se conta, por último, da quebra da despesa em prestações de desemprego, a rondar os -11,2%. Se a tudo isto se juntar o efeito no aumento do consumo, e portanto o impacto na economia, mais difícil se torna afirmar - como sugere o título da notícia - que o «Estado perdeu» com a decisão de reduzir o IVA da restauração.
Avançando para o miolo da notícia, a história que se conta é contudo um pouco diferente. Refere-se, desde logo, o aumento do emprego no setor do alojamento e da restauração em 9,9% (mais 21 mil postos de trabalho) no segundo semestre de 2017, face ao semestre homólogo de 2016 (num ritmo que supera o do crescimento global do emprego no mesmo período, de 5,1%). Assinala-se, por outro lado, que esse aumento do emprego gerou uma receita de 289,5 milhões de euros mesmo semestre de 2017 (+14,1% face a 2016) nas contribuições para a Segurança Social e dá-se conta, por último, da quebra da despesa em prestações de desemprego, a rondar os -11,2%. Se a tudo isto se juntar o efeito no aumento do consumo, e portanto o impacto na economia, mais difícil se torna afirmar - como sugere o título da notícia - que o «Estado perdeu» com a decisão de reduzir o IVA da restauração.
quarta-feira, 20 de março de 2019
Mais do que a dívida pública, a dívida externa
Acabaram de sair as estatísticas das contas externas portuguesas relativas a Janeiro. Mostram que a capacidade de financiamento da economia portuguesa face ao exterior está agora menos favorável do que no início de 2018 (que por sua vez era menos favorável do que no início de 2017). Não é de espantar, mas deve merecer atenção.
Todos sabíamos que à medida que a economia portuguesa recuperasse as contas externas iriam degradar-se. Mais crescimento económico significa mais consumo e mais investimento; dada a dependência energética e tecnológica do país, isto significa necessariamente um aumento mais que proporcional das importações. Além disso, aumenta também o repatriamento de lucros e juros para estrangeiros que têm comprado empresas e activos portugueses.
O problema é que a dívida externa portuguesa é uma das maiores do mundo e é uma das maiores fragilidades da economia nacional (e também da espanhola e da grega). Quem empresta dinheiro ao país (seja ao Estado ou ao sector privado) não gosta de ver Portugal a aumentar ainda mais a sua dívida externa em proporção do PIB. Podemos ter uma certeza: a partir do momento em que a dívida externa deixar de cair em percentagem do PIB (e é possível que isso aconteça em 2019, apesar da dívida pública continuar a cair) as dificuldades de financiamento de Portugal vão aumentar.
Muitos insistem em criticar o governo por não ter assegurado uma descida mais rápida da dívida pública. Eu há algum tempo que o critico por ter sido feito muito pouco ou quase nada para lidar com este enorme problema estrutural que é a dependência da economia nacional face ao exterior. Gostaria de não ter razão.
Todos sabíamos que à medida que a economia portuguesa recuperasse as contas externas iriam degradar-se. Mais crescimento económico significa mais consumo e mais investimento; dada a dependência energética e tecnológica do país, isto significa necessariamente um aumento mais que proporcional das importações. Além disso, aumenta também o repatriamento de lucros e juros para estrangeiros que têm comprado empresas e activos portugueses.
O problema é que a dívida externa portuguesa é uma das maiores do mundo e é uma das maiores fragilidades da economia nacional (e também da espanhola e da grega). Quem empresta dinheiro ao país (seja ao Estado ou ao sector privado) não gosta de ver Portugal a aumentar ainda mais a sua dívida externa em proporção do PIB. Podemos ter uma certeza: a partir do momento em que a dívida externa deixar de cair em percentagem do PIB (e é possível que isso aconteça em 2019, apesar da dívida pública continuar a cair) as dificuldades de financiamento de Portugal vão aumentar.
Muitos insistem em criticar o governo por não ter assegurado uma descida mais rápida da dívida pública. Eu há algum tempo que o critico por ter sido feito muito pouco ou quase nada para lidar com este enorme problema estrutural que é a dependência da economia nacional face ao exterior. Gostaria de não ter razão.
Duas palavras para Luís Aguiar-Conraria: causalidade reversa
Num artigo de opinião onde começa por puxar dos galões assinalando que é professor de economia monetária internacional, Luís Aguiar-Conraria vem afiançar que “[s]em poupança não há investimento e sem investimento não há crescimento”. Voltarei mais tarde, com mais tempo, a este assunto. Por agora, recordo ao professor Conraria que, além de outros, os professores Keynes e Schumpeter nos deixaram boas razões para pensarmos que a causalidade é reversa e deixo a tradução de um pequeno trecho de um estudo produzido com a chancela do Banco de Inglaterra por dois dos seus economistas.
“Primeiro discutimos a causalidade lógica. Considere-se o caso especial de um novo empréstimo destinado a investimento físico. O empréstimo e o depósito criado levam a investimento adicional que doutro modo não teria ocorrido porque o investidor não tinha acesso ao necessário poder de compra. Eles [empréstimo e depósito] têm de levar, por definição, a poupança adicional, especialmente enquanto resultado da identidade da contabilidade nacional entre poupança e investimento (numa economia fechada e a nível global) e não enquanto resultado de um equilíbrio entre poupança e investimento gerado por uma taxa de juro de equilíbrio. A direção da causalidade é, portanto, do financiamento para o investimento para a poupança. Por outras palavras, a poupança não financia investimento, é o financiamento que o faz.”
terça-feira, 19 de março de 2019
É só mais um cromo
Este artigo trata das ligações estabelecidas entre os detentores de capital e os grupos de governantes e ex-governantes, a partir de uma perspetiva crítica capaz de realçar o papel do Estado na estruturação do poder económico. É dado especial enfoque ao processo de cooptação, numa análise que engloba os dados referentes aos 776 governantes que ocuparam 1281 cargos nos 19 governos constitucionais (1976-2014).
Adriano Campos, Jorge Costa, João Teixeira Lopes, Francisco Louçã e Nuno Moniz, Representantes e dominantes: Os governantes e as relações de classe em Portugal, Revista Crítica de Ciências Sociais, 2015, nº 108.
Lembrei-me deste artigo por causa da ida de Adolfo Mesquita Nunes, até agora um dos mais destacados quadros do CDS e antigo Secretário de Estado do turismo, para administrador não executivo da Galp. Esta lógica de circulação não é defeito, mas antes feitio de toda uma economia política por superar. É só mais um cromo para uma colecção que não tem parado de crescer.
Ao contrário da tese hayekiana sobre a ordem espontânea, título das crónicas de Mesquita Nunes no Negócios, o capitalismo sem freios e contrapesos à altura, fruto de todas as privatizações e liberalizações, é uma ordem politicamente construída. Nesta ordem, a grande empresa dita privada é um actor político de primeiro plano. Paula Amorim, um dos principais rostos do porno-riquismo em Portugal, sabe bem o que faz. E Mesquita Nunes também. Política com grandes meios.
A direita que se desvanece
Enki Bilal |
Quando confrontado com a descida desse rácio, lembrou-se de dizer que o gráfico estava... invertido!
Mas poderia ter dito que, com os actuais níveis da dívida, mesmo em função do PIB, e por causa do baixo crescimento económico, a dívida pública não é sustentável e que isso deveria abrir um verdadeiro debate nacional, o qual foi negado como importante por Passos Coelho, possivelmente porque estavam em causa os créditos externos ("as dívidas são para se pagar"). Mas para isso, Negrão teria de falar do Tratado Orçamental e das suas implicações orçamentais, dos anos malditos da troica e dos seus apoiantes em Portugal, que por acaso estavam, no início, no seu partido. E teria de propor um modelo diferente de crescimento económico, o que até agora mal se aflorou. Nem um novo papel do Estado se soube definir e PSD/CDS tinham uma maioria absoluta no Parlamento.
Mas, para espanto de todos, não é que Negrão falou mesmo dos tempos da troica?
segunda-feira, 18 de março de 2019
Mutação e metástases: uma década de crise europeia
Excertos de um texto publicado em Esquerda.net, acessível aqui.
"O euro chegou aos vinte anos sem grandes motivos para festejo. Apesar dos retratos entusiastas – Trichet, ex-presidente do BCE, descreveu o euro como um “sucesso histórico (...) em termos de credibilidade, resiliência, capacidade de adaptação, apoio popular e crescimento real”, enquanto Juncker elogiou a “prosperidade e proteção” trazida pela moeda única – a história é um pouco diferente. Mais de uma década depois da crise financeira de 2007-08, a recuperação na União Europeia tem sido dececionante, e os ténues sinais positivos nos números do crescimento económico e do emprego não têm sido acompanhados pelos salários, cuja estagnação surpreende as instituições europeias. O agravamento da desigualdade é um dos traços principais dos últimos dez anos.
A conclusão do QE no final de 2018, e a consequente subida esperada das taxas de juro, poderia colocar em causa a recuperação da atividade económica na zona euro e fazer reemergir problemas que apenas foram ocultados na última década. Draghi não perdeu tempo e lançou um novo programa de estímulos monetários e facilitação do crédito aos bancos há poucos dias – “num quarto escuro, movemo-nos com passos curtos”, justificou o presidente do BCE.
No entanto, os “passos curtos” não serão suficientes para evitar a recessão que se aproxima. O FMI já anunciou previsões em baixa para o crescimento em 2019, e os analistas começam a suspeitar que o abrandamento pode não ser passageiro. Os índices financeiros continuam a sugerir bolhas especulativas nos mercados de ações e obrigações (Alan Greenspan alertou há mais de um ano), e a volatilidade crescente revela o nervosismo dos investidores – prudente, o The Economist avisa que é provável que “este ano seja mais acidentado que o costume”. É por esta combinação explosiva que no seu recente livro Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World, Adam Tooze afirma que “o cenário com que nos deparamos agora não é de repetição, mas de mutação e metástases”. Uma década de estagnação acentuou os desequilíbrios da Zona Euro e revelou a desorientação das elites europeias."
O resto do texto pode ser lido aqui.
"O euro chegou aos vinte anos sem grandes motivos para festejo. Apesar dos retratos entusiastas – Trichet, ex-presidente do BCE, descreveu o euro como um “sucesso histórico (...) em termos de credibilidade, resiliência, capacidade de adaptação, apoio popular e crescimento real”, enquanto Juncker elogiou a “prosperidade e proteção” trazida pela moeda única – a história é um pouco diferente. Mais de uma década depois da crise financeira de 2007-08, a recuperação na União Europeia tem sido dececionante, e os ténues sinais positivos nos números do crescimento económico e do emprego não têm sido acompanhados pelos salários, cuja estagnação surpreende as instituições europeias. O agravamento da desigualdade é um dos traços principais dos últimos dez anos.
A conclusão do QE no final de 2018, e a consequente subida esperada das taxas de juro, poderia colocar em causa a recuperação da atividade económica na zona euro e fazer reemergir problemas que apenas foram ocultados na última década. Draghi não perdeu tempo e lançou um novo programa de estímulos monetários e facilitação do crédito aos bancos há poucos dias – “num quarto escuro, movemo-nos com passos curtos”, justificou o presidente do BCE.
No entanto, os “passos curtos” não serão suficientes para evitar a recessão que se aproxima. O FMI já anunciou previsões em baixa para o crescimento em 2019, e os analistas começam a suspeitar que o abrandamento pode não ser passageiro. Os índices financeiros continuam a sugerir bolhas especulativas nos mercados de ações e obrigações (Alan Greenspan alertou há mais de um ano), e a volatilidade crescente revela o nervosismo dos investidores – prudente, o The Economist avisa que é provável que “este ano seja mais acidentado que o costume”. É por esta combinação explosiva que no seu recente livro Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World, Adam Tooze afirma que “o cenário com que nos deparamos agora não é de repetição, mas de mutação e metástases”. Uma década de estagnação acentuou os desequilíbrios da Zona Euro e revelou a desorientação das elites europeias."
O resto do texto pode ser lido aqui.
sábado, 16 de março de 2019
Luxos
Para além do luxo de estar isenta do pagamento de impostos, a Universidade Católica Portuguesa também parece estar por vezes isenta do respeito pelos limites morais ao capitalismo que a Doutrina Social da Igreja prescreve. Digo isto, entre outras razões, por causa do seu programa executivo de gestão do luxo, o enésimo exemplo de promoção intelectual do porno-riquismo neste país.
Neste contexto, talvez seja oportuno lembrar alguns excertos da Encíclica Laudato Si do Papa Francisco, um notável texto sobre a questão ecológica:
“Uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (...) Dado que o mercado tende a criar um mecanismo consumista compulsivo para vender os seus produtos, as pessoas acabam por ser arrastadas pelo turbilhão das compras e gastos supérfluos. O consumismo obsessivo é o reflexo subjectivo do paradigma tecno-económico (...) O referido paradigma faz crer a todos que são livres pois conservam uma suposta liberdade de consumir, quando na realidade apenas possui a liberdade a minoria que detém o poder económico e financeiro (...) A educação será ineficaz e os seus esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza. Caso contrário, continuará a perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado.”
É caso para perguntar, neste contexto: será este tipo de programa um eficaz mecanismo de mercado?
sexta-feira, 15 de março de 2019
Robots com barbas
Às vezes, dá jeito conhecer o passado para reduzir a ansiedade com que vivemos o presente.
Vem esta tirada a propósito do debate recorrente e cada vez mais presente na comunicação social sobre que vida se irá viver quando as máquinas nos roubarem o trabalho. E como vamos nós poder viver - e esse é outro tema recorrente, que vem logo atrás - recebendo um rendimento universal incondicional, dado pelo Estado, com o qual teremos de pagar tudo, tudo porque já não haverá trabalho.
Na verdade, nada disto é novo.
O Observatório sobre Crises e Alternativas, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, divulgou recentemente dois estudos de José Castro Caldas e Nuno Teles sobre essa problemática que será debatida na próxima 4ª feira em Lisboa (Ver inscrição gratuita aqui).
O primeiro caderno questiona os fundamentos das narrativas mais correntes acerca do tal futuro do trabalho. Mostra que o debate académico sobre os ritmos, a direção e os impactos da inovação tecnológica sobre o emprego e o trabalho está longe de ser conclusivo. Depois de passar em revista abordagens convencionais na teoria económica, argumenta-se que, em mercados capturados por um punhado de empresas tecnológicas financeirizadas, é diminuto o incentivo à inovação promotora de ganhos significativos de produtividade. Algo que se torna particularmente visível na emergência das plataformas digitais monopolistas, ditas colaborativas, cuja principal inovação se encontra na promoção de novas formas de desqualificação e desvalorização do trabalho.
No segundo caderno, aborda-se a tal invasão do espaço mediático sobre o futuro papel das máquinas. Nomeadamente, regressa-se aos primórdios da Revolução Industrial, relembram-se debates acalorados entre posições contrastadas que exprimiram as inquietações e as dúvidas de quem as experimentavam a partir de posições sociais diversas.
Se esta leitura incentiva e espicaça a sua imaginação, apareça na próxima 4ª feira, no CIU de Lisboa, no Picoas Plaza, pelas 17h30.
Vem esta tirada a propósito do debate recorrente e cada vez mais presente na comunicação social sobre que vida se irá viver quando as máquinas nos roubarem o trabalho. E como vamos nós poder viver - e esse é outro tema recorrente, que vem logo atrás - recebendo um rendimento universal incondicional, dado pelo Estado, com o qual teremos de pagar tudo, tudo porque já não haverá trabalho.
Na verdade, nada disto é novo.
O Observatório sobre Crises e Alternativas, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, divulgou recentemente dois estudos de José Castro Caldas e Nuno Teles sobre essa problemática que será debatida na próxima 4ª feira em Lisboa (Ver inscrição gratuita aqui).
O primeiro caderno questiona os fundamentos das narrativas mais correntes acerca do tal futuro do trabalho. Mostra que o debate académico sobre os ritmos, a direção e os impactos da inovação tecnológica sobre o emprego e o trabalho está longe de ser conclusivo. Depois de passar em revista abordagens convencionais na teoria económica, argumenta-se que, em mercados capturados por um punhado de empresas tecnológicas financeirizadas, é diminuto o incentivo à inovação promotora de ganhos significativos de produtividade. Algo que se torna particularmente visível na emergência das plataformas digitais monopolistas, ditas colaborativas, cuja principal inovação se encontra na promoção de novas formas de desqualificação e desvalorização do trabalho.
No segundo caderno, aborda-se a tal invasão do espaço mediático sobre o futuro papel das máquinas. Nomeadamente, regressa-se aos primórdios da Revolução Industrial, relembram-se debates acalorados entre posições contrastadas que exprimiram as inquietações e as dúvidas de quem as experimentavam a partir de posições sociais diversas.
Se esta leitura incentiva e espicaça a sua imaginação, apareça na próxima 4ª feira, no CIU de Lisboa, no Picoas Plaza, pelas 17h30.
quinta-feira, 14 de março de 2019
Caixas e copos
Há duas imagens que o pessoal de direita gosta de usar quando fez comentário económico.
Uma é associar a mítica metáfora da Caixa de Pandora à despesa pública. É uma escolha perversa porque, como se recorda, a Caixa estava cheia de demónios e pragas que, quando aberta por excesso de curiosidade, deu cabo do mundo, deixando apenas no fundo a Esperança. É como associar-se à despesa pública o seu papel demoníaco para a sociedade: quem opta por gastar, perde o controlo da despesa.
Outra imagem é o seu complemento: "Um copo meio vazio é um copo meio cheio". Ou, como diria um barman, "há quem olhe para a realidade como um copo meio vazio e quem olhe para o mesmo copo como meio cheio". Ou seja, contrair a despesa pública pode ter um lado mau - dá cabo dos serviços públicos - mas tem um lado bom: dá cabo do papel do Estado e liberta recursos para as empresas investirem...
A primeira foi usada por Vítor Bento, mais uma vez para criticar a situação do Governo (no programa da RTP Tudo é Economia de 11/3/2019). E digo mais uma vez porque ao longo da sua intervenção pública, já a usou inúmeras vezes. À pergunta sobre se o Governo tem capacidade para responder à contestação social, Bento respondeu:
O governo não tem muita margem de manobra. O governo abriu a Caixa de Pandora com as promessas que fez e, no fundo, com o slogan do fim da austeridade, que agora tem dificuldade em fechar. Libertou uma série de demónios e agora não os consegue colocar na caixa novamente. A dificuldade é essa.
Na verdade, a dificuldade do Governo está em conseguir conciliar as regras do Tratado Orçamental - que Bento e a direita aplaudem - com as promessas de virar a austeridade. E essa dificuldade é igualmente a dificuldade da direita em mostrar que o espartilho do Tratado Orçamental tem virtudes. É o cumprimento desse espartilho estúpido que está a libertar as reivindicações que podem fazer a diferença entre o Estado ter ou não ter um papel. E impedi-las em nome do Tratado Orçamental - que nem Bento nem a direita têm a coragem de o fazer - é mostrar a realidade nua e crua do actual regime: seja quem for que lá esteja, seja quem for em quem se vote, terá de fazer o mesmo. Estupidamente.
Mas essa questão Bento nem sem sequer a aborda. Como se fosse natural que se tenha de cumprir todo um edífício teórico - com os critérios de Maastricht e a necessidade de convergir rapidamente para eles - que assenta em ideias erradas, já assumidamente criticadas mesmo por quem está à frente do BCE ou de outras instituições multilaterais. Porque o Tratado Orçamental é um dispositivo político para manter a dívida pública como um instrumento de poder e de transferência de rendimento entre grupos sociais.
Pior: quando Bento é questionado se o Governo tem dinheiro para responder às reivindicações sociais, responde que o que se passa - em que o Governo se revela atrapalhado - é antes culpa sua.
quarta-feira, 13 de março de 2019
O porno-riquismo é tudo menos cor-de-rosa
O luxo está de volta a Portugal, informa-nos desta vez a Sábado. Há quem vá almoçar de helicóptero à praia e tudo. Como já aqui defendi, o porno-riquismo é a nova fase do consumo conspícuo num tempo de capitalismo multi-escalar com desigualdades pornográficas, onde o dinheiro assim concentrado é sempre quem mais ordena, incluindo na dimensão pessoal, que é sempre política. Neste contexto, certa comunicação social contribui para que os standards pecuniários pornográficos fixados pelos mais ricos, de resto tão pouco taxados quanto ambientalmente insustentáveis, sejam devidamente reconhecidos. Esta é só a enéssima reportagem do género, feita para gerar frustração e ansiedade sociais.
Esta abordagem celebratória dos hábitos e costumes dos ricos e famosos há muito tempo que deixou de estar confinada às revistas ditas cor-de-rosa. Da imprensa dita séria a um certo tipo de universidade, é toda uma cultura que celebra e ao mesmo tempo ofusca uma economia política que é tudo menos cor-de-rosa.
terça-feira, 12 de março de 2019
11 de Março de 1975, um passado cheio de agora
"Em última análise, foi a percepção do poder incomensurável do sector financeiro e dos riscos da sua má utilização por interesses particulares que levou à nacionalização da banca em 1975 e à sua inscrição como trave-mestra do regime pela generalidade dos partidos com representação parlamentar.
Entre 1975 e 1989 a banca nacionalizada foi um instrumento decisivo para ajudar os governos a lidar com a sucessão de crises que o país enfrentou. Por contraste, a reconstituição dos grupos monopolistas assentes no poder bancário, que teve lugar nos últimos 30 anos, surge hoje mais como uma fonte de problemas do que de soluções.
Não devemos pois surpreender-nos que a possibilidade da renacionalização da banca volte a ser tema de discussão. Mesmo que as posições de alguns partidos sobre o tema se tenham alterado radicalmente desde então."
Excerto do meu texto de hoje no DN.
Entre 1975 e 1989 a banca nacionalizada foi um instrumento decisivo para ajudar os governos a lidar com a sucessão de crises que o país enfrentou. Por contraste, a reconstituição dos grupos monopolistas assentes no poder bancário, que teve lugar nos últimos 30 anos, surge hoje mais como uma fonte de problemas do que de soluções.
Não devemos pois surpreender-nos que a possibilidade da renacionalização da banca volte a ser tema de discussão. Mesmo que as posições de alguns partidos sobre o tema se tenham alterado radicalmente desde então."
Excerto do meu texto de hoje no DN.
Teodora Cardoso e o lastro demográfico da austeridade
Numa espécie de legado de despedida, a poucos dias de deixar a presidência do Conselho de Finanças Públicas (CFP), Teodora Cardoso divulgou um estudo sobre financiamento e sustentabilidade da Segurança Social. Recuperando as conclusões de um sintomático relatório do Banco Mundial de 1994, assegura que o «financiamento da segurança social é um dos principais problemas com que Portugal se confronta» e que «só os da demografia e do aumento da produtividade se lhe comparam», estando os três ligados entre si e tendo, por isso, que «ser analisados em conjunto».
A partir daqui, e sem nunca utilizar a palavra «plafonamento» (vá-se lá saber por quê), Teodora Cardoso defende que «uma solução duradoura para o financiamento das pensões terá de incluir uma parcela relevante de mecanismos de capitalização, (...) que inevitavelmente atribui aos beneficiários uma parcela importante de risco». Ou seja, propõe uma rutura com o modelo redistributivo, rejeitando abordagens alternativas, como «a opção por frequentes alterações paramétricas ou de fontes de financiamento». Aliás, «diversificação das fontes de financiamento» é outra expressão que não consta do estudo, apesar das medidas adotadas (esta e esta) pelo atual governo nesse sentido.
Mas faz bem Teodora Cardoso em associar a questão demográfica à sustentabilidade da Segurança Social. Talvez assim perceba, sem ter que aludir a «milagres», a irracionalidade da austeridade que sempre defendeu. Basta reparar no efeito de aceleração que as respetivas políticas provocaram, a par do impacto da crise financeira, na redução da natalidade e na degradação dos saldos naturais a partir de 2012 e que só após 2015 começam a dar sinais de inversão. Ou do efeito da austeridade no recrudescer da emigração, que também só muito recentemente começou a estagnar.
Mas o preço da austeridade não se fica por aqui, pelo agravamento do desequilíbrio entre ativos e reformados. De facto, o desemprego em massa, induzido por essas mesmas políticas, traduziu-se igualmente numa perda de receitas da Segurança Social e na degradação das carreiras contributivas de quem ficou desempregado. Como bem assinalou o ministro Vieira da Silva, glosando os termos utilizados pela própria ex-presidente do CFP, «é excessivo dizer que as pessoas não partilham o risco. (...) Quando têm uma dificuldade na sua carreira profissional, quando perdem o emprego, quando estão um longo tempo desempregadas, estão a assumir uma parte do risco porque o sistema vai reduzir a sua pensão. (...) As pessoas já estão a partilhar o risco... e de que maneira».
A partir daqui, e sem nunca utilizar a palavra «plafonamento» (vá-se lá saber por quê), Teodora Cardoso defende que «uma solução duradoura para o financiamento das pensões terá de incluir uma parcela relevante de mecanismos de capitalização, (...) que inevitavelmente atribui aos beneficiários uma parcela importante de risco». Ou seja, propõe uma rutura com o modelo redistributivo, rejeitando abordagens alternativas, como «a opção por frequentes alterações paramétricas ou de fontes de financiamento». Aliás, «diversificação das fontes de financiamento» é outra expressão que não consta do estudo, apesar das medidas adotadas (esta e esta) pelo atual governo nesse sentido.
Mas faz bem Teodora Cardoso em associar a questão demográfica à sustentabilidade da Segurança Social. Talvez assim perceba, sem ter que aludir a «milagres», a irracionalidade da austeridade que sempre defendeu. Basta reparar no efeito de aceleração que as respetivas políticas provocaram, a par do impacto da crise financeira, na redução da natalidade e na degradação dos saldos naturais a partir de 2012 e que só após 2015 começam a dar sinais de inversão. Ou do efeito da austeridade no recrudescer da emigração, que também só muito recentemente começou a estagnar.
Mas o preço da austeridade não se fica por aqui, pelo agravamento do desequilíbrio entre ativos e reformados. De facto, o desemprego em massa, induzido por essas mesmas políticas, traduziu-se igualmente numa perda de receitas da Segurança Social e na degradação das carreiras contributivas de quem ficou desempregado. Como bem assinalou o ministro Vieira da Silva, glosando os termos utilizados pela própria ex-presidente do CFP, «é excessivo dizer que as pessoas não partilham o risco. (...) Quando têm uma dificuldade na sua carreira profissional, quando perdem o emprego, quando estão um longo tempo desempregadas, estão a assumir uma parte do risco porque o sistema vai reduzir a sua pensão. (...) As pessoas já estão a partilhar o risco... e de que maneira».
segunda-feira, 11 de março de 2019
O mito do mercado da poupança
Neste vídeo explico sumariamente o funcionamento do negócio bancário. O senso comum, consagrado nos manuais de macroeconomia, de que os bancos são intermediários entre a procura e a oferta de poupança, é um mito que procuro desmontar.
Na verdade, o dinheiro emprestado não vem dos depósitos no banco, é criado por um registo electrónico. O dinheiro do crédito como que cai do céu. Afinal de contas, nenhum conselho de crédito pergunta à tesouraria do banco, antes de tomar a decisão, se há dinheiro para emprestar.
Infelizmente, os nossos alunos de economia terminam o curso sem perceber o negócio dos bancos nem o modo como a taxa de juro 'base' é fixada. No pacote da ignorância também vai a ideia do 'crowding-out', ou seja, a de que um défice público faz subir a taxa de juro e, assim, prejudica o investimento privado.
Para quem puder e quiser ler alguma coisa que ajude a arrumar as ideias, entre outros, recomendo o blogue de Bill Mitchell. Evidentemente, também recomendo o livro de macroeconomia que acaba de sair. Em Portugal, de certeza que não vai ser adoptado como manual da disciplina em qualquer faculdade, nem sequer recomendada a sua consulta. Desmonta muita teoria que tem dado cobertura pseudo-científica ao catecismo neoliberal.
Como motivação para aprofundamento do assunto, traduzi alguns parágrafos de um dos seus textos:
"No centro desta concepção está a teoria clássica dos fundos emprestáveis [poupança], que é uma construção agregada da forma como, no pensamento macroeconómico dominante, se admite que os mercados financeiros funcionam. Ainda há reconhecidos manuais de economia que ensinam estas coisas.
A ideia original foi concebida para explicar como a procura agregada nunca poderia ficar aquém da oferta agregada porque os ajustamentos das taxas de juro levariam sempre o investimento e a poupança ao equilíbrio.
No coração dessa hipótese errada está uma visão equivocada dos mercados financeiros. O chamado mercado de fundos emprestáveis é construído pelos economistas do pensamento dominante para mediar a poupança e o investimento através de variações nas taxas de juro.
Este é um pensamento pré-Keynesiano e era uma parte central do chamado modelo clássico, onde preços perfeitamente flexíveis proporcionavam sempre mercados agregados auto-ajustáveis, mercados que tendem para o equilíbrio. Se o consumo caísse, então a poupança aumentaria e isto não levaria a um excesso de oferta de bens porque o investimento (procura de bens de capital) acompanharia o aumento da poupança. Assim, embora a composição do produto pudesse mudar (os trabalhadores seriam deslocados entre o sector de bens de consumo e o sector de bens de capital), um equilíbrio de pleno emprego seria sempre mantido desde que a flexibilidade de preços não fosse impedida. A taxa de juro tornou-se o veículo para mediar a poupança e o investimento de modo a assegurar que nunca haveria excedentes.
Assim, a poupança (oferta de fundos) é concebida como uma função positiva da taxa de juro real porque o aumento das taxas de juro aumenta o custo de oportunidade do consumo corrente e, assim, incentiva a poupança. O investimento (procura de fundos) diminui com a taxa de juro porque os custos dos fundos para investir (casas, fábricas, equipamentos, etc.) sobem.
Alterações na taxa de juro criam assim um equilíbrio contínuo de tal forma que a procura agregada é sempre igual à oferta agregada e a composição da procura final (entre consumo e investimento) varia à medida que as taxas de juro se ajustam.
De acordo com esta teoria, se houver um aumento do défice orçamental, então há um aumento da procura sobre a poupança escassa (através da alegada necessidade de empréstimo por parte do governo), o que faz subir a taxa de juro para 'reequilibrar' o mercado de fundos emprestáveis. Isto reduz a despesa de investimento.
Supostamente, quando o governo pede emprestado para "financiar" o seu défice orçamental, exclui agentes privados que procuram obter fundos para investimento. Os economistas do pensamento dominante entendem isto como se o governo estivesse a reduzir a poupança nacional (por meio de um défice orçamental) e a aumentar a taxa de juro, prejudicando o investimento privado. A análise baseia-se numa camada de mitos que se instalaram no espaço público a ponto de se tornarem verdades quase óbvias."
domingo, 10 de março de 2019
Recensão
A edição portuguesa do Le Monde diplomatique de Março traz a recensão que fiz do livro do Ricardo Noronha "A Banca ao Serviço do Povo". Segue abaixo um excerto:
"Ricardo Noronha encontra na intervenção em massa dos trabalhadores a chave para desvendar um dos grandes enigmas do PREC: a nacionalização do sistema bancário em Março de 1975 e a sua longevidade. Note-se que a nacionalização da banca não constava no programa do MFA. E que Assembleia Constituinte que inscreveu a irreversibilidade das nacionalizações na Constituição de 1976, já depois de ultrapassada a fase revolucionária, era composta em mais de 85% por deputados eleitos pelo PS, PPD/PSD e CDS. Ainda assim, a propriedade pública da banca foi assumida como eixo fulcral do novo regime. Só uma década e meia mais tarde e após duas revisões constitucionais a banca comercial voltaria a mãos privadas, servindo então de base à reconstituição dos grupos monopolistas. Nas palavras do autor, foram as lutas sociais que criaram o plano inclinado para que a “transição socialista” se tornasse o único programa concretizável.
“A Banca ao Serviço do Povo” põe assim em causa dois vícios habituais nas narrativas sobre o 25 de Abril e o PREC: a focalização excessiva nos “pais fundadores da democracia” e nos processos políticos institucionais; e a menorização do envolvimento de centenas de milhares de pessoas sem rosto que fizeram a revolução portuguesa. Este é o grande contributo deste livro. A forma vivida como descreve este período único da história portuguesa é só mais uma boa razão para o ler."
"Ricardo Noronha encontra na intervenção em massa dos trabalhadores a chave para desvendar um dos grandes enigmas do PREC: a nacionalização do sistema bancário em Março de 1975 e a sua longevidade. Note-se que a nacionalização da banca não constava no programa do MFA. E que Assembleia Constituinte que inscreveu a irreversibilidade das nacionalizações na Constituição de 1976, já depois de ultrapassada a fase revolucionária, era composta em mais de 85% por deputados eleitos pelo PS, PPD/PSD e CDS. Ainda assim, a propriedade pública da banca foi assumida como eixo fulcral do novo regime. Só uma década e meia mais tarde e após duas revisões constitucionais a banca comercial voltaria a mãos privadas, servindo então de base à reconstituição dos grupos monopolistas. Nas palavras do autor, foram as lutas sociais que criaram o plano inclinado para que a “transição socialista” se tornasse o único programa concretizável.
“A Banca ao Serviço do Povo” põe assim em causa dois vícios habituais nas narrativas sobre o 25 de Abril e o PREC: a focalização excessiva nos “pais fundadores da democracia” e nos processos políticos institucionais; e a menorização do envolvimento de centenas de milhares de pessoas sem rosto que fizeram a revolução portuguesa. Este é o grande contributo deste livro. A forma vivida como descreve este período único da história portuguesa é só mais uma boa razão para o ler."
sábado, 9 de março de 2019
Um jornal que não bajula os poderosos
A 24 de Janeiro último, Macron exigiu «a restauração da democracia na Venezuela». Passados quatro dias, chegou de alma leve ao Cairo, muito decidido a vender mais algumas armas ao presidente egípcio Abel Fattah Al-Sissi, autor de um golpe de Estado que foi rapidamente seguido do encarceramento de sessenta mil opositores políticos e da condenação à morte do seu antecessor livremente eleito. Em matéria de política externa que se pretende virtuosa, será que o pior ainda está para vir?
Serge Halimi, O presidente e os pirómanos, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Março de 2019.
Em 10 anos, Soares dos Santos já investiu 74 milhões de euros na FFMS [Fundação Francisco Manuel dos Santos]. Quer «transferir para as pessoas o conhecimento»… «para não nos queixarmos do Governo, mas termos voz activa nas decisões». Diz que doravante não se ficará por «debates em Lisboa ou sessões no Porto», que quer «saber o que se passa nos municípios (…) e criar movimentos para ir apoiar». Os entrevistadores não inquiriram sobre o que se prepara. Mas é sensato manter a atenção focada em todos os que são complacentes com este projecto político, económico e mediático. A falta de informação paga-se caro.
Sandra Monteiro, Sabe bem informar tão pouco, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Março de 2019.
Para além de excertos dos dois editoriais, disponíveis na íntegra no sítio do jornal, deixo-vos por aqui um resumo da edição deste mês:
“O destaque da edição de Março vai para um dossiê sobre «Uma União a refazer», que interroga, a partir de diferentes perspectivas, o que está em jogo nas próximas eleições europeias, fazendo também um balanço dos 20 anos do euro (Antoine Schwartz, Frédéric Lordon, Thomas Guénolé e Yanis Varoufakis).
Na componente portuguesa analisamos as convergências e concretizações necessárias para uma Lei de Bases da Saúde que defenda o SNS (Teresa Gago) e traçamos o retrato do emprego da economia social, para interrogar o paradigma em que se insere (Margarida Antunes). Perguntamos o que são reformas estruturais de esquerda (Nuno Serra) e viajamos pela anatomia brutal da adolescência tal como vista na peça Margens (Paula Varanda).
No internacional, destaque ainda para a situação na Venezuela, com dois artigos que questionam os rumos da oposição e o regresso dos Estados Unidos às «guerras sujas». Voltamos à guerra no Iémen e ao tortuoso caminho da paz no país, e acompanhamos a persistente repressão dos uigures no Xinjiang chinês. Por fim, iniciamos uma série sobre «fake news» que começa por perguntar por que só algumas são denunciadas...”
Serge Halimi, O presidente e os pirómanos, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Março de 2019.
Em 10 anos, Soares dos Santos já investiu 74 milhões de euros na FFMS [Fundação Francisco Manuel dos Santos]. Quer «transferir para as pessoas o conhecimento»… «para não nos queixarmos do Governo, mas termos voz activa nas decisões». Diz que doravante não se ficará por «debates em Lisboa ou sessões no Porto», que quer «saber o que se passa nos municípios (…) e criar movimentos para ir apoiar». Os entrevistadores não inquiriram sobre o que se prepara. Mas é sensato manter a atenção focada em todos os que são complacentes com este projecto político, económico e mediático. A falta de informação paga-se caro.
Sandra Monteiro, Sabe bem informar tão pouco, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Março de 2019.
Para além de excertos dos dois editoriais, disponíveis na íntegra no sítio do jornal, deixo-vos por aqui um resumo da edição deste mês:
“O destaque da edição de Março vai para um dossiê sobre «Uma União a refazer», que interroga, a partir de diferentes perspectivas, o que está em jogo nas próximas eleições europeias, fazendo também um balanço dos 20 anos do euro (Antoine Schwartz, Frédéric Lordon, Thomas Guénolé e Yanis Varoufakis).
Na componente portuguesa analisamos as convergências e concretizações necessárias para uma Lei de Bases da Saúde que defenda o SNS (Teresa Gago) e traçamos o retrato do emprego da economia social, para interrogar o paradigma em que se insere (Margarida Antunes). Perguntamos o que são reformas estruturais de esquerda (Nuno Serra) e viajamos pela anatomia brutal da adolescência tal como vista na peça Margens (Paula Varanda).
No internacional, destaque ainda para a situação na Venezuela, com dois artigos que questionam os rumos da oposição e o regresso dos Estados Unidos às «guerras sujas». Voltamos à guerra no Iémen e ao tortuoso caminho da paz no país, e acompanhamos a persistente repressão dos uigures no Xinjiang chinês. Por fim, iniciamos uma série sobre «fake news» que começa por perguntar por que só algumas são denunciadas...”
sexta-feira, 8 de março de 2019
Coisas simples
Há uma coisa que é mais simples do que outra: uma falar sobre o que é necessário fazer, a outra fazer o que é necessário fazer.
No dia internacional da mulher, o primeiro-ministro chamou a atenção para a desigualdade de género (nomeadamente salarial) e para as necessárias melhorias na conciliação entre a vida familiar e a profissional, designadamente quanto aos horários de trabalho.
Ora, na altura em que está no Parlamento mais um pacote laboral, era talvez o momento para o PS liderar a iniciativa política e contribuir verdadeiramente para aquilo que está a prejudicar essa conciliação: todos os dispositivos legais que foram criados para desarticular os limites ao horário de trabalho, conseguidos por prolongadas lutas de trabalhadores em todo o mundo, desde sempre. É o caso, por exemplo, dos regimes de adaptabilidade e o banco de horas, que tornam o trabalho suplementar desnecessário ou quase gratuito, porque a anormalidade do trabalho suplementar passou a fazer parte do trabalho normal.
É simples. Pelo menos, foi simples aprová-los.
No dia internacional da mulher, o primeiro-ministro chamou a atenção para a desigualdade de género (nomeadamente salarial) e para as necessárias melhorias na conciliação entre a vida familiar e a profissional, designadamente quanto aos horários de trabalho.
Ora, na altura em que está no Parlamento mais um pacote laboral, era talvez o momento para o PS liderar a iniciativa política e contribuir verdadeiramente para aquilo que está a prejudicar essa conciliação: todos os dispositivos legais que foram criados para desarticular os limites ao horário de trabalho, conseguidos por prolongadas lutas de trabalhadores em todo o mundo, desde sempre. É o caso, por exemplo, dos regimes de adaptabilidade e o banco de horas, que tornam o trabalho suplementar desnecessário ou quase gratuito, porque a anormalidade do trabalho suplementar passou a fazer parte do trabalho normal.
É simples. Pelo menos, foi simples aprová-los.
Amanhã, no Seixal: apresentação do nº 2 da revista Manifesto
Quinta sessão de apresentação da revista, tendo como mote o debate «Transportes Públicos: a austeridade ainda está a passar por aqui?». Participam nesta sessão Fernando Nunes da Silva (urbanista e docente no IST), José Encarnação (Plataforma Cívica Montijo Não) e Sérgio Manso Pinheiro (Departamento de Gestão e Planeamento do Sistema de Transporte e Mobilidade da AML). O debate será moderado por Rosa Félix. É no Restaurante «O Bispo» (Praça da República, nº 2), a partir das 17h00. Apareçam.
quinta-feira, 7 de março de 2019
8 de março
Porque em Portugal a violência machista mata, em média, duas de nós a cada mês;
Porque somos 80% das vítimas de violência doméstica e 90.7% das de crimes sexuais;
Porque não acreditam em nós quando denunciamos, e nos atribuem a responsabilidade das violências que sofremos;
Porque somos as que vivem em alerta permanente, pelo assédio a que estamos sujeitas no espaço público e no local de trabalho;
Porque é a nós que nos é exigida a conciliação entre a atividade profissional, a maternidade e a vida familiar;
Porque somos as mais pobres na sociedade;
Porque somos as mais precárias no mercado de trabalho;
Porque a desigualdade salarial faz com que trabalhemos 58 dias por ano sem receber;
Porque o trabalho doméstico e de cuidados que sustenta a vida não é partilhado entre homens e mulheres e recai sobretudo em nós, é invisibilizado e desvalorizado;
(Ver o resto do apelo à greve aqui)
quarta-feira, 6 de março de 2019
Diz-me quem te paga...
Numa publicação anterior (que
pode ser lida aqui) fundamentei a minha crítica a uma das principais conclusões
da nota de conjuntura de fevereiro do Fórum para a Competitividade.
Publico agora este post breve
apenas para sublinhar que o Fórum da Competitividade está longe de ser uma
organização independente. É um think-tank de direita financiado por alguns dos
seus maiores contribuintes. Na imagem acima, fica claro que contam com o apoio
da AESE – Business School (o braço académico da Opus Dei) e da APIFARMA,
representante da indústria farmacêutica e uma das maiores financiadoras da CIP,
a maior confederação patronal portuguesa.
Não tenho nada a opor a que
existam organizações que federem académicos e empresários comprometidos com uma
causa política. Têm toda a legitimidade para o fazer. Este blogue, por exemplo,
não esconde o seu compromisso à esquerda.
Menos legítimo é os membros do Fórum
para a Competitividade – em especial Joaquim Miranda Sarmento – gostarem de
afirmar que só perseguem a mais impoluta neutralidade científica e gostarem de
desmerecer as opiniões vindas de alguns autores deste blogue por serem
“políticas”.
A hipocrisia é uma coisa muito
feia.
terça-feira, 5 de março de 2019
Prometer o desastre
O gráfico ao lado mostra as previsões sistematicamente (e consistentemente) erradas do BCE sobre a evolução da inflação na zona euro. John Kenneth Galbraith não se enganou quando disse que "a única função das previsões económicas é fazer a astrologia parecer respeitável".
No entanto, o problema não se resume a meros erros de previsão: a necessidade de controlar a inflação serve para justificar uma atuação mais contida do banco central. Mas a política expansionista que o BCE apenas adotou como último recurso (a oposição de Merkel e do governo alemão impediu que o fizesse mais cedo) foi a única forma de atenuar os danos do colapso financeiro de 2007-08 e conter o pânico na zona euro, ainda que se trate de uma resposta incompleta que alimenta novas bolhas especulativas.
Além disso, as previsões alarmistas sobre o nível de preços costumam ser usadas pelos economistas convencionais como um dos fundamentos para as políticas de austeridade que devastaram a periferia europeia depois da crise. Seria mais acertado ter alguma inflação e crescimento dos salários para recuperar a procura na zona euro, mas as instituições europeias preferem a recessão - a crise é a mais eficaz forma de manutenção e reforço do seu poder. Restam dúvidas sobre a atuação política de um banco central que se supõe e se apresenta como independente?
No entanto, o problema não se resume a meros erros de previsão: a necessidade de controlar a inflação serve para justificar uma atuação mais contida do banco central. Mas a política expansionista que o BCE apenas adotou como último recurso (a oposição de Merkel e do governo alemão impediu que o fizesse mais cedo) foi a única forma de atenuar os danos do colapso financeiro de 2007-08 e conter o pânico na zona euro, ainda que se trate de uma resposta incompleta que alimenta novas bolhas especulativas.
Além disso, as previsões alarmistas sobre o nível de preços costumam ser usadas pelos economistas convencionais como um dos fundamentos para as políticas de austeridade que devastaram a periferia europeia depois da crise. Seria mais acertado ter alguma inflação e crescimento dos salários para recuperar a procura na zona euro, mas as instituições europeias preferem a recessão - a crise é a mais eficaz forma de manutenção e reforço do seu poder. Restam dúvidas sobre a atuação política de um banco central que se supõe e se apresenta como independente?