quarta-feira, 31 de outubro de 2018
Defesa dos negócios estrangeiros
Paulo Portas é Vice-Presidente da Confederação de Comércio e Indústria de Portugal, para além de Presidente do Conselho Estratégico da Mota Engil para a América Latina. Desempenha também cargos de administração no board internacional de Petroleos de Mexico (Pemex) e faz ainda consultoria estratégica internacional de negócios, sendo para efeito founding partner da Vinciamo Consulting. Dá aulas de mestrado Geo Economics and International Relations na Universidade Nova e na Emirates Diplomatic Academy; dirige seminários sobre internacionalização e risco político para quadros de companhias multinacionais e é ainda presença frequente na televisão em comentários de política internacional e speaker da Thinking Heads em conferências. Foi ministro da Defesa, ministro dos Negócios Estrangeiros e Vice-Primeiro Ministro de Portugal.
Esta é a apresentação do “experto” Paulo Portas no sítio da Llorente & Cuenca, “a consultora líder na Gestão de Reputação, Comunicação e Assuntos Públicos em Portugal, Espanha e na América Latina”. Para Paulo Portas, Bolsonaro não tem nada de “eticamente reprovável”. Graças a novas rondas de privatizações, muito mais oportunidades para certos negócios estrangeiros surgirão no Brasil.
Ridículo e perigoso
O Tribunal Superior Eleitoral do Brasil aceitou os argumentos estapafúrdios da equipa de Bolsonaro e abriu um inquérito... ao cantor Roger Waters, ex-Pink Floyd! Ver aqui.
Os argumentos judiciais da acusação não são originais como forma de intimidação. Cá em Portugal também funcionam quando acusam os jornalistas de má-fé e de difamação e as instâncias judiciais superiores corroboram as queixas dos visados pelos jornalistas em artigos.
Mas este caso no Brasil é paradigmático do discurso circular-contraditório em que caem aqueles que não gostam de discutir ideias.
Isso acontece ao acusar-se o oponente (neste caso, o cantor Rogers Waters) de conluio com um partido (o PT) quando Waters acusa Jair Bolsonaro de ser um dos protagonistas do neofascismo e quando as suas mensagens contra Bolsonaro "são de extrema gravidade e demonstram a premeditação e o explícito propósito de denegrir sua imagem e causar nos telespectadores/fãs uma forma de repulsa, pela evidente campanha negativa, o que não condiz com a realidade".
Nada como uma mensagem de teor democrático para conseguir um efeito anti-democrático que - por acaso - condiz com a acusação original do cantor e nega os próprios argumentos da queixa do visado...
Os argumentos judiciais da acusação não são originais como forma de intimidação. Cá em Portugal também funcionam quando acusam os jornalistas de má-fé e de difamação e as instâncias judiciais superiores corroboram as queixas dos visados pelos jornalistas em artigos.
Mas este caso no Brasil é paradigmático do discurso circular-contraditório em que caem aqueles que não gostam de discutir ideias.
Isso acontece ao acusar-se o oponente (neste caso, o cantor Rogers Waters) de conluio com um partido (o PT) quando Waters acusa Jair Bolsonaro de ser um dos protagonistas do neofascismo e quando as suas mensagens contra Bolsonaro "são de extrema gravidade e demonstram a premeditação e o explícito propósito de denegrir sua imagem e causar nos telespectadores/fãs uma forma de repulsa, pela evidente campanha negativa, o que não condiz com a realidade".
Nada como uma mensagem de teor democrático para conseguir um efeito anti-democrático que - por acaso - condiz com a acusação original do cantor e nega os próprios argumentos da queixa do visado...
É mesmo uma pergunta
Se defender um regime ditatorial, a subversão da separação de poderes, o recurso à tortura, execuções sumárias, a impunidade das forças policiais ou a perseguição das minorias, não contém nada de «eticamente reprovável», como sustenta Paulo Portas quando se refere aos «27 anos de vida pública do capitão Bolsonaro», o que é que poderá ser considerado «eticamente reprovável»?
A pergunta não é retórica, que dispense resposta. A pergunta é genuína. Porque só me ocorre (não me consigo lembrar de mais nada), a defesa - preto no branco - da reintrodução da pena de morte (coisa que Bolsonaro nunca terá formulado nesses termos, apesar da equivalente instigação à violência e à barbárie).
terça-feira, 30 de outubro de 2018
Acaba por disparar
“Bolsa brasileira dispara para máximo histórico após vitória e discurso de Bolsonaro”, informava o Negócios. O discurso e o programa económico têm todos os ingredientes de que este capital gosta: muitas referências a “empreendedores” e a “propriedade privada”. “Tem de vender tudo”, como já declarou o economista da Escola de Chicago Paulo Guedes, o futuro Ministro das Finanças.
Em artigo recente no El Pais Brasil, “Escola de Chicago floresce no autoritarismo”, Joaquím Estefanía fala do “estranho vínculo”, que se pode repetir no Brasil, entre autoritarismo político e neoliberalismo. Mas não há nada de estranho nos vinculados valores e interesses materiais. Aliás, a associação entre limitação, ou mesmo eliminação, da democracia e expansão radical do poder capitalista, perdoem-me, dos mercados, assim é que é suposto ser, tem sido teorizada pelos próprios neoliberais, quer nos meios, quer nos fins da política. E, para lá de devaneios distópicos, os neoliberais não são “anarcocapitalistas”, ao contrário do que diz Estefanía, mas antes gente que sabe que o poder do Estado é absolutamente fundamental para o triunfo do seu programa de sociedade.
A ameaça mais profunda está na economia política e na política económica. É isto que muita gente à esquerda tem descurado, aceitando muitos dos termos dos seus inimigos. Olhem sempre para a forma como um certo capital acaba por disparar...
segunda-feira, 29 de outubro de 2018
Passos Coelho brasileiro
Leia-se esta notícia da Folha de S.Paulo de ontem e sinta-se o déjà vu.
O Brasil tem a especificidade da complexidade de um continente. Portugal é uma faixa à beira-mar com 10 milhões de habitantes. Mas os ideários - e os interesses - têm uma fonte. E é possível ver traços semelhantes porque são ideias importadas, impulsionadas por interesses estrangeiros.
Tal como Bolsonaro, Pedro Passos Coelho iniciou o seu triste mandato em 2011 com uma pretendida reestruturação do Governo, que seria - pretendia-se - o início de uma reforma do Estado, que libertasse recursos para a sociedade. Mas tudo acabou por borregar, de tal maneira que a estrutura do Governo ficou muito próxima do que estava antes. E a reforma do Estado - por ausência de ideias milagrosas e de coragem de fazer uma redefinição do papel do Estado como se prometera - morreu numa página A4 de Paulo Portas, que se destilou na sua vontade de fugir do Governo em Julho de 2013. Bolsonaro anunciou querer ir muito longe, mas ainda nem há governo e já cedeu aos industriais para que não mexa nas estruturas que eles dominam...
Passos Coelho também quis privatizar a Segurança Social no sentido anunciado por Bolsonaro - passagem dos dinheiros da Segurança Social para fundos nas mãos do sector financeiro. Primeiro, era o plafonamento das contribuições para a Segurança Social - o que daria cabo do equilíbrio das contas sociais, mas libertaria recursos para o sector financeiro. Depois, alvitrou-se o estudo das contas individualizadas que desse cabo do sistema de repartição actual, de solidariedade inter-geracional. Mas quando chegou ao poder recuou em toda a linha porque não tinha feito as contas e como a reforma iria prejudicar as metas orçamentais (apesar de ter dito que as tinha feito)...
Nem por coincidência, os assessores de Bolsonaro já afirmaram que a reforma é urgente, mas que as contas ainda não estão concluídas... Apesar disso, as intenções têm o total apoio do sector financeiro, para quem a reforma está a ser efectivamente pensada.
Em Portugal, Passos Coelho ainda tentou uma transferência directa de dinheiros dos trabalhadores para as empresas em Setembro de 2012 (mediante uma mexida na TSU), mas o protesto nas ruas foi tal que recuou e nunca mais se levantou. Apesar disso, tudo foi repetido e aglomerado ainda em 2017, nem faz um ano. Mas Passos Coelho "morreu" entretanto para o PSD, ainda que tudo indique quer ressuscitar (já fora de prazo), mediante velhos apoios no aparelho.
O Brasil tem a especificidade da complexidade de um continente. Portugal é uma faixa à beira-mar com 10 milhões de habitantes. Mas os ideários - e os interesses - têm uma fonte. E é possível ver traços semelhantes porque são ideias importadas, impulsionadas por interesses estrangeiros.
Tal como Bolsonaro, Pedro Passos Coelho iniciou o seu triste mandato em 2011 com uma pretendida reestruturação do Governo, que seria - pretendia-se - o início de uma reforma do Estado, que libertasse recursos para a sociedade. Mas tudo acabou por borregar, de tal maneira que a estrutura do Governo ficou muito próxima do que estava antes. E a reforma do Estado - por ausência de ideias milagrosas e de coragem de fazer uma redefinição do papel do Estado como se prometera - morreu numa página A4 de Paulo Portas, que se destilou na sua vontade de fugir do Governo em Julho de 2013. Bolsonaro anunciou querer ir muito longe, mas ainda nem há governo e já cedeu aos industriais para que não mexa nas estruturas que eles dominam...
Passos Coelho também quis privatizar a Segurança Social no sentido anunciado por Bolsonaro - passagem dos dinheiros da Segurança Social para fundos nas mãos do sector financeiro. Primeiro, era o plafonamento das contribuições para a Segurança Social - o que daria cabo do equilíbrio das contas sociais, mas libertaria recursos para o sector financeiro. Depois, alvitrou-se o estudo das contas individualizadas que desse cabo do sistema de repartição actual, de solidariedade inter-geracional. Mas quando chegou ao poder recuou em toda a linha porque não tinha feito as contas e como a reforma iria prejudicar as metas orçamentais (apesar de ter dito que as tinha feito)...
Nem por coincidência, os assessores de Bolsonaro já afirmaram que a reforma é urgente, mas que as contas ainda não estão concluídas... Apesar disso, as intenções têm o total apoio do sector financeiro, para quem a reforma está a ser efectivamente pensada.
Em Portugal, Passos Coelho ainda tentou uma transferência directa de dinheiros dos trabalhadores para as empresas em Setembro de 2012 (mediante uma mexida na TSU), mas o protesto nas ruas foi tal que recuou e nunca mais se levantou. Apesar disso, tudo foi repetido e aglomerado ainda em 2017, nem faz um ano. Mas Passos Coelho "morreu" entretanto para o PSD, ainda que tudo indique quer ressuscitar (já fora de prazo), mediante velhos apoios no aparelho.
Quando a esquerda faz a política económica da direita
O texto é útil porque discute algo que tem estado ausente das análises sobre o Brasil. Mostra que Dilma Roussef não teve azar com a crise que, segundo se diz, atingiu o Brasil. Não, a crise foi fabricada pela política económica da própria Dilma, assessorada pela sua equipa económica e financeira, gente formatada pela teoria económica neoliberal. Dilma traiu o seu programa eleitoral logo após a reeleição quando decidiu agradar ao poder financeiro através de um "ajustamento" orçamental que encomendou ao economista neoliberal Joaquim Levy. A enorme recessão produzida pela nova política orçamental foi decisiva para a erosão da base social de apoio ao PT e, finalmente, a sua derrota. Sem a crise que o governo produziu, os outros factores de erosão do PT teriam sido menos eficazes.
" Parece mais razoável acreditar que a combinação do ressentimento, dominante na classe média, relativamente à expansão dos programas sociais, com a aceitação dentro do partido de vários elementos do discurso neoliberal, que minou o apoio da sua base, estão no centro dos seus problemas actuais.
Os protestos de 2013 começaram com base em problemas legítimos ligados ao custo dos transportes públicos. Mas os protestos rapidamente alargaram o seu âmbito e os grupos da extrema-direita que lutavam contra o PT tomaram a liderança. Note-se, porém, que apesar dos protestos de massa, e das queixas por razões económicas e sobre a corrupção, Dilma Roussef ganhou as eleições em 2014 com a promessa de expandir os programas sociais do PT. O verdadeiro problema para o PT surge com o volte-face após as eleições, quando Dilma nomeia Joaquim Levy, um neoliberal do Bradesco, um dos maiores bancos, para ministro das finanças, com o mandato de realizar um ajustamento orçamental.
Política orçamental conservadora é, desde sempre, uma ideologia do PT, apenas posta entre parêntesis durante a crise de 2009 com um Plano para a Aceleração do Crescimento (PAC). Mas essas ideias estavam impregnadas, e as ideias dos peritos anti-austeridade, Keynesianos (Lernerianos, para ser mais preciso) eram marginais. Não me interpretem mal. Depois de uma austeridade inicial e da promessa de adoptar políticas orçamentais responsáveis (a vergonhosa carta ao povo brasileiro), o PT expandiu a despesa social, e isso seguramente foi importante para o crescimento económico e o aumento das receitas fiscais (por isso, os saldos orçamentais não se deterioraram), e ainda mais depois do PAC com mais investimento. Mas a noção ideológica de que os défice são problemáticos manteve um lugar central no partido e, sem surpresas, a equipa económica de Dilma aceitou o veredicto de que o ajustamento era necessário.
A enorme recessão causada pelas políticas de austeridade conduziu ao colapso da economia, o que facilitou a acusação de incompetência e permitiu inventar razões para o derrube de Dilma (essencialmente, a criminalização de políticas rotineiras relativamente inócuas, o atraso nos pagamentos aos bancos públicos, as chamadas "pedaladas").* Pior, algumas das ideias que estavam em discussão durante o ajustamento orçamental de 2015, como o limite para a despesa pública, já estão a ser implementadas. O Projecto de Emenda Constitucional 241/55 impõe um limite para a despesa real (despesa corrigida da inflação) durante 20 anos. A norma pretende resolver um problema que não existe, ou seja, pressupõe que a Constituição de 1988 deu demasiado no que toca a benefícios sociais e que isto causou a inflação recente e a falta de crescimento.** De qualquer forma, estas regras são criadas sobretudo para impedir políticas progressistas no futuro.
Portanto, uma combinação de erros do PT*** com o rancor revanchista da direita, beneficiando de importante apoio na classe média, explicam o inacreditável colapso do PT. (...)
Os actuais acontecimentos no Brasil têm importantes implicações. O escândalo da corrupção não só impediu uma discussão séria sobre o investimento público, já que o 'modus operandi' das regras para as compras públicas no Brasil exigiam várias destas práticas que agora estão sob escrutínio, mas também consolidou um consenso de que os défices orçamentais são, por definição, um instrumento de corrupção. Mais ainda, a crise quase certamente destruiu a possibilidade de usar a Petrobras como instrumento de política industrial, para comprar equipamento especializado, etc. (o meu palpite é de que os grupos da direita vão, pelo menos, tentar privatizá-la). Note-se que nos EUA a corrupção é tão endémica como no Brasil, até nalguns casos prevista na lei (quer dizer, não é ilegal, mesmo que seja moralmente inaceitável). E mesmo assim os EUA preservam a capacidade de fazer política industrial através do orçamento da defesa. (...)
Sem um partido do centro-esquerda capaz de ganhar eleições e usar o aparelho do Estado para promover um mínimo de redistribuição do rendimento através do aumento da despesa social e do salário mínimo, como fez o PT, o Brasil parece condenado a manter a sua longa história de desigualdade social. E isto não augura nada de bom para o resto da esquerda na América Latina."
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* Algo semelhante está a acontecer na Argentina, criminalizar a decisão sobre a taxa de câmbio tomada pelo banco central. Mais sobre isto quando escrever sobre a Argentina.
** Evidentemente, a inflação recente não está relacionada com a política orçamental expansionista. Nos últimos anos, ela andou a par com a recessão e a contracção orçamental. O comportamento dos salários e a taxa de câmbio são muitíssimo mais importantes. E se a recessão causada pela contracção orçamental não o convenceu quanto à falácia da "austeridade expansionista", então nada o convencerá.
*** Sobre isto, devemos acrescentar que os membros do PT sempre se tinham queixado da corrupção, uma questão moral, e sugerido que o seu governo seria diferente. Um erro enorme, pois o problema da corrupção - que deve ser combatida, não me interpretem mal - é estrutural. Isto é, a corrupção é intrínseca ao modo como o país é governado, e era óbvio que a administração do PT não lhe ficaria imune e que seriam necessários mecanismos para lidar com ela e reduzi-la.
domingo, 28 de outubro de 2018
Não
O Expresso desta semana convidou-me para um “duelo” com Ricardo Veludo: “São precisos benefícios fiscais para os senhorios baixarem as rendas e disponibilizarem mais casas?”. A minha resposta foi claramente não:
A escassez de casas com rendas acessíveis, em particular nas principais cidades do país, está a tornar-se um grave problema social. Uma das medidas mais discutidas para lidar com este problema é precisamente a redução do IMI e da tributação dos rendimentos prediais em sede de IRS (de 50%, em ambos os casos, na proposta inicial do governo). Em contrapartida, o senhorio teria de cobrar uma renda 20% abaixo do valor de mercado, prolongando também a duração do contrato.
Contudo, esta medida afigura-se como ineficaz e iníqua. É ineficaz porque o seu efeito sobre a oferta de novos alojamentos para o arrendamento será diminuto onde estes são mais necessários, os centros urbanos onde a atratividade de usos alternativos ao arrendamento de longa duração se faz sentir com mais intensidade. Assim sendo, esta medida terá pouco alcance para lá da redução do IRS e do IMI dos senhorios que já operam no mercado de arrendamento de longa duração.
Também não é expectável que esta medida tenha um impacto significativo sobre o valor das rendas. Por causa do atual momento especulativo do mercado imobiliário, um desconto de 20% sobre o “valor de referência de mercado”, tal como é apresentado, não tornará as casas mais acessíveis. Só nos primeiros três meses deste ano, face ao período homólogo do ano anterior, os preços das rendas aumentaram 20% nas cidades de Lisboa e do Porto. Isto significa que nos principais centros urbanos as rendas só continuarão a ser acessíveis para as classes de rendimentos mais elevadas. Basta lembrar a discrepância crescente entre a evolução dos preços da habitação e a dos rendimentos das famílias nos últimos anos para se chegar a esta conclusão. Por sua vez, os senhorios continuarão a receber aproximadamente o mesmo valor da renda, já que serão reembolsados pelo Estado pelo desconto que concedem ao inquilino.
À eficácia duvidosa desta medida acresce a sua profunda iniquidade. Por um lado, os descontos concedidos através de benefícios fiscais aos senhorios representam uma transferência de rendimento do Estado para estes, mantendo as rendas elevadas e aumentando a desigualdade entre os proprietários e os demais, amplificando disparidades de classe que lhe subjazem. Por outro lado, esta transferência de rendimento significa menores receitas fiscais e logo menos recursos para medidas socialmente mais justas, como a provisão pública de alojamentos para o arrendamento a preços acessíveis.
Dir-se-á que a provisão pública de habitação é uma medida de médio e longo prazo. Mas a implementação desta medida, mais eficaz e equitativa, não é só adiada: ela nunca surge. Como não emergem outras medidas de curto prazo que poderiam pelo menos conter a pressão imobiliária sobre as rendas. Seria o caso da cessação dos regimes fiscais especiais, por exemplo o dos residentes não habituais, ou da aplicação de uma regulação mais exigente sobre o alojamento local e o arrendamento urbano, principais causas da escassez de alojamentos e dos valores excessivos das rendas.
Num contexto que continua a ser de forte contenção orçamental, mais ou menos imposta ou assumida, a política social do governo parece assentar quase exclusivamente em novos estímulos fiscais para incentivar promotores privados a resolver os problemas de que o Estado se vai demitindo. As receitas fiscais que poderiam ser utilizadas para outro tipo de medidas mais eficazes e justas vão minguando. A escassez de casas com rendas acessíveis continuará a ser um problema social premente e os senhorios continuarão a praticar rendas excessivas com apoio público.
Leonard Cohen - Anthem
Ring the bells that still can ring. Forget your perfect offering
There is a crack, a crack in everythnig. That's how the light gets in
sábado, 27 de outubro de 2018
Brasil, a última década e meia
A confluência de diferentes fatores, sobretudo as três linhas de força aqui identificadas pelo Ivan Nunes (o impacto do processo Lava-Jato, o processo do impeachment de Dilma e o eclodir da crise), criaram uma atmosfera desmesurada de ódio e diabolização do PT. Um ambiente que, para lá das responsabilidades do partido, ajuda a perceber por que razão o Brasil se predispõe não só a eleger uma figura tenebrosa como Jair Bolsonaro (que não tem pejo de explicitar ao que vem), mas também a colocar em causa a própria democracia. Mais circunstancialmente, junta-se a tudo isto o ativismo da comunicação social de massas brasileira na causa antipetista, que não é de hoje, a profusão intensiva de fake news pela candidatura de Bolsonaro, com o apoio de grandes empresas, e uma campanha eleitoral bizarra, em que o candidato melhor posicionado para vencer a eleição se recusa a participar em debates com os seus opositores. Decorrendo sobretudo nas redes sociais, repletas de ódios e notícias falsas, a campanha relegou para segundo plano uma verdadeira discussão dos programas eleitorais e o debate sobre a situação do país e os resultados alcançados pela governação do PT nos últimos quase quinze anos.
Talvez por isso se tenha perdido a noção dos avanços que o Brasil conseguiu ao longo da última década e meia, com o Partido Trabalhista no poder (sobretudo com Lula, entre 2003 e 2011). Um dos mais relevantes, numa sociedade tão classista e desigual como a brasileira, é o da redução da pobreza. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de pobres cai de cerca de 42 milhões em 2003 para 14 milhões em 2014, com a respetiva taxa a passar de 24 para 8% (e a pobreza extrema a cair de 8,3 para 2,6% no mesmo período). O rendimento médio mensal, por seu turno, aumenta cerca de 18% entre fevereiro de 2003 e fevereiro de 2016, tendo praticamente atingido os 2.500 R$ em dezembro de 2014, antes de começar a cair, com a crise. E mesmo a tendência de aumento da violência, desde pelo menos 1996, é invertida em 2003, para voltar a subir sobretudo a partir de 2011 e com um agravamento significativo em 2016 (quando se atingem os cerca de 62 mil homicídios, 44 mil dos quais associados a mortes por arma de fogo). Que nada disto pareça pesar, ou pareça pesar pouco, na decisão da maioria dos brasileiros - em contraponto com o que se anuncia com a vitória da extema-direita de Bolsonaro - é algo muito inquietante, que devemos continuar a tentar perceber.
Talvez por isso se tenha perdido a noção dos avanços que o Brasil conseguiu ao longo da última década e meia, com o Partido Trabalhista no poder (sobretudo com Lula, entre 2003 e 2011). Um dos mais relevantes, numa sociedade tão classista e desigual como a brasileira, é o da redução da pobreza. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de pobres cai de cerca de 42 milhões em 2003 para 14 milhões em 2014, com a respetiva taxa a passar de 24 para 8% (e a pobreza extrema a cair de 8,3 para 2,6% no mesmo período). O rendimento médio mensal, por seu turno, aumenta cerca de 18% entre fevereiro de 2003 e fevereiro de 2016, tendo praticamente atingido os 2.500 R$ em dezembro de 2014, antes de começar a cair, com a crise. E mesmo a tendência de aumento da violência, desde pelo menos 1996, é invertida em 2003, para voltar a subir sobretudo a partir de 2011 e com um agravamento significativo em 2016 (quando se atingem os cerca de 62 mil homicídios, 44 mil dos quais associados a mortes por arma de fogo). Que nada disto pareça pesar, ou pareça pesar pouco, na decisão da maioria dos brasileiros - em contraponto com o que se anuncia com a vitória da extema-direita de Bolsonaro - é algo muito inquietante, que devemos continuar a tentar perceber.
Nobres Guedes
Os filhos não têm culpa dos pais, nem do que fizeram os seus familiares. Mas ele há coincidências ou hereditariedades. Heranças. Convivências e ambientes. Sentimentos e emoções. Conversas que se ouviu e que se repetem. Coisas que passam e que demoram a mudar.
Francisco Nobre Guedes foi o primeiro comissário nacional da Mocidade Portuguesa e, depois, quando foi substituído por Marcelo Caetano em 1940, foi nomeado embaixador em Berlim, pelas suas opiniões pró-nazis e anti-comunistas. Nobre Guedes substituiu então Veiga Simões, chamado a Lisboa porque terá informado Salazar da ofensiva alemã depois de receber essa informação da resistência alemã (ver António Telo, Portugal na Segunda Guerra, Perspectivas e Realidades, pag. 117/130).
Entretanto, passaram uns 80 anos e as coisas evoluíram ou reformataram-se. Mas também ninguém se pergunta a que corresponderia hoje o fascismo dos anos 30 do século 20. Poderia corresponder a algo como o afirmado hoje pelo seu neto Luís Nobre Guedes a um inquérito do Público, sobre em quem votaria nas eleições no Brasil? Disse ele, que escolheria um de dois caminhos: a abstenção ou o voto em Bolsonaro. A sério? Bolsonaro? Como é possível?
A violência? A pobreza?! Mas era maior a pobreza anterior ao PT, uma pobreza que aumentou com a aplicação de políticas que Nobre Guedes hoje defenderia, aliás ao arrepio das políticas originais do PT. E sobre a corrupção, de acordo com a informação difundida há mais processos contra outros partidos do que contra o PT. Sobre a corrupção em Portugal, hoje uma ameaça larvar à transparência e consistência da democracia nacional - e que passa também pelos múltiplos inquéritos que pendem sobre o grupo Espírito Santo - não tem um pensamento que abarque esse fenómeno. Parece que corrupção é apenas PT, um subproduto das esquerdas (ainda iremos ver muito deste argumento contra o PS), a restante parece ser entendida como o normal funcionamento da democracia, dos negócios que movem a economia e que, entretanto, dão emprego às pessoas comuns.
Disse isso recordando as eleições em que o comunista Álvaro Cunhal apelou ao voto no socialista Mário Soares (pediu aos militantes parta tapar a cara e pôr a cruz), porque o adversário era a direita representada por Freitas do Amaral.
Francisco Nobre Guedes foi o primeiro comissário nacional da Mocidade Portuguesa e, depois, quando foi substituído por Marcelo Caetano em 1940, foi nomeado embaixador em Berlim, pelas suas opiniões pró-nazis e anti-comunistas. Nobre Guedes substituiu então Veiga Simões, chamado a Lisboa porque terá informado Salazar da ofensiva alemã depois de receber essa informação da resistência alemã (ver António Telo, Portugal na Segunda Guerra, Perspectivas e Realidades, pag. 117/130).
Entretanto, passaram uns 80 anos e as coisas evoluíram ou reformataram-se. Mas também ninguém se pergunta a que corresponderia hoje o fascismo dos anos 30 do século 20. Poderia corresponder a algo como o afirmado hoje pelo seu neto Luís Nobre Guedes a um inquérito do Público, sobre em quem votaria nas eleições no Brasil? Disse ele, que escolheria um de dois caminhos: a abstenção ou o voto em Bolsonaro. A sério? Bolsonaro? Como é possível?
“Votaria convictamente contra o PT. Dizer que votaria a favor, é mais difícil. Acho o PT a maior tragédia que o Brasil conheceu. Aquela corrupção generalizada, a violência, a pobreza"
A violência? A pobreza?! Mas era maior a pobreza anterior ao PT, uma pobreza que aumentou com a aplicação de políticas que Nobre Guedes hoje defenderia, aliás ao arrepio das políticas originais do PT. E sobre a corrupção, de acordo com a informação difundida há mais processos contra outros partidos do que contra o PT. Sobre a corrupção em Portugal, hoje uma ameaça larvar à transparência e consistência da democracia nacional - e que passa também pelos múltiplos inquéritos que pendem sobre o grupo Espírito Santo - não tem um pensamento que abarque esse fenómeno. Parece que corrupção é apenas PT, um subproduto das esquerdas (ainda iremos ver muito deste argumento contra o PS), a restante parece ser entendida como o normal funcionamento da democracia, dos negócios que movem a economia e que, entretanto, dão emprego às pessoas comuns.
Acho que era minha obrigação, como democrata, votar contra aquilo que põe em causa a democracia que é este reino do PT. É como vejo as coisas, se calhar mal, mas é assim”.
Disse isso recordando as eleições em que o comunista Álvaro Cunhal apelou ao voto no socialista Mário Soares (pediu aos militantes parta tapar a cara e pôr a cruz), porque o adversário era a direita representada por Freitas do Amaral.
“O que eu acho que põe em causa a democracia do Brasil era uma eventual vitória do PT, que originaria uma profunda revolta social e popular” (sic!!), afirma. “Não concordo com Bolsonaro em inúmeras coisas, com aquilo que tem dito, estou mesmo nos antípodas, mas concordo muito e bastante na parte económica”, afirma Nobre Guedes, sem concretizar, no entanto, quais as propostas ou afirmações de Bolsonaro que merecem discordância. “Na parte política, quem me conhece sabe que não subscrevo muitas coisas que tem dito”, declara. Quais, em concreto? As que se referem aos homossexuais? Às mulheres? Aos negros? “Não ouvi, tem de se ver o contexto [em que foram ditas as afirmações de Bolsonaro], mas sim, são coisas unânimes em se discordar. Mas, para mim, a questão é ser condescendente ou não com o tempo que o PT esteve no poder”, afirma.A democracia não existe, como regime inacabado nem como um bem em si. É um contínuo jogo de forças, fruto de quem tem mais força a cada momento. O regresso da ditadura não é apenas um risco para lá do oceano.
sexta-feira, 26 de outubro de 2018
Das (in)dependências
O texto apresentado começa pela habitual insistência no reforço do controlo orçamental por parte dos Estados-membro. Esta é uma preocupação que vem sendo expressa pela Comissão pelo menos desde o Tratado Orçamental, de 2012. Vale a pena recordar algumas das normas orçamentais europeias a que os países se encontram vinculados.
O TSCG (Treaty on Stability, Coordination and Growth, normalmente conhecido como Tratado Orçamental), aprovado em 2012, tem como fundamento a ideia de que os orçamentos dos países que assinaram o tratado devem estar equilibrados ou em excedente. O Tratado incentiva os países a inscrever na lei nacional (se possível, a nível constitucional) a regra de um saldo orçamental equilibrado, considerando-se como condição do cumprimento deste critério que o défice estrutural do país não ultrapasse 0,5% do PIB. Além disso, impõe a implementação de mecanismos de “correção” caso o país registe desvios significativos em relação ao seu objetivo orçamental de médio prazo. Como explica o Ricardo Cabral:
“Das novas regras e limites orçamentais destaca-se a obrigatoriedade de: reduzir, em cada ano, a dívida pública acima de 60% do PIB em 1/20 avos; atingir, em cada ano, um défice estrutural de 0,5% do PIB ou estar numa trajetória de convergência para esse objetivo; fazer convergir o saldo orçamental a uma taxa suficientemente rápida para um Objetivo de Médio Prazo (do inglês, MTO), em teoria, definido por cada país, mas, na prática, condicionado por “objetivos mínimos” definidos pela Comissão Europeia; não exceder um limite à taxa de crescimento nominal da despesa pública. Simultaneamente, foram definidos procedimentos sancionatórios mais apertados e quase automáticos caso um país membro não cumpra as regras e limites orçamentais.”
A novidade introduzida no documento agora apresentado é a proposta de criação de “corpos independentes” para fiscalizarem as políticas orçamentais. Na prática, estes corpos (não eleitos e com autonomia em relação aos governos) teriam autoridade para “avaliar a adequação das orientações orçamentais” e “recomendar aos governos medidas de correção de desvios significativos em relação aos objetivos de médio-prazo”. Além disso, o documento estipula a obrigatoriedade de os governos aceitarem estas recomendações ou recusá-las com justificações adequadas, numa lógica de “comply-or-justify” (cumprir ou justificar o incumprimento).
Se o fetiche do défice zero já deixou de ser novidade, o documento vai mais longe na discussão dos mecanismos de constrangimento. Assumir explicitamente a necessidade de um controlo pós-democrático dos orçamentos nacionais é o expoente máximo do consenso austeritário que se instalou entre as lideranças europeias, e que tão maus resultados originou nos últimos tempos. Os dirigentes europeus já perceberam há muito que numa Europa em que não há plano resta correr sem sair do lugar.
Vêm aí os bárbaros!
Fonte: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras |
Mas a realidade pode ser outra.
Em pouco menos de dez anos, iniciou-se uma alteração de fundo no perfil dos nossos imigrantes. Não se trata já de discutir o que será o futuro, porque ele está já a ser vivido de acordo com o que foi pensado para este pequeno terreno à beira-mar, em que ainda vivemos: ser uma fonte de mão-de-obra especializada, pronta a deslocalizar-se para o centro europeu, e em compensação tornarmo-nos no lar de idosos da Europa.
Olhando para os dados facultados pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), e atentando ao fluxo de imigrantes que chega em cada ano, é possível verificar-se já mudanças claras.
Fonte: SEF |
Aos países ocidentais, deve se somar ainda os imigrantes de três países nórdicos - Dinamarca, Suécia e Finlândia - que passaram de 223 pessoas em 2010 para 1514 em 2017; e seis países do leste europeu (Rússia incluída), que estão a perder o seu momento - de 11,2 mil em 2010 para 5,6 mil em 2017. Juntando todos, os imigrantes desses 19 países aumentaram o seu peso em oito anos: de 36 para 47% dos fluxos de imigrantes.
Por isso, os PALOPs perderam peso - de 17 para 11%. E o Brasil, apesar de continuar a fornecer contingentes crescentes de mão-de-obra a Portugal, viu o seu peso reduzir-se de 32 para 19%. Os asiáticos estão em subida lenta. Só a China e a Tailândia passaram de 3,8 para 4,8%. E assiste-se já a uma subida das zonas em guerra - Síria e Turquia são os principais países fornecedores. Mas já há entradas igualmente vindas da Eritreia, Irão, Iraque, etc.
Quem são, pois, estes europeus que nos estão a invadir?
quinta-feira, 25 de outubro de 2018
O euro/UE em lume brando
Até ao fim do ano o BCE vai reduzir as sua compras de títulos de dívida, ou seja, vai arrefecer a bolha da valorização artificial das acções que se formou com o chamado QE (Quantitative Easing). Este programa de compras foi feito para dar dinheiro (criado electronicamente) às empresas e bancos que detinham essas acções, no pressuposto de que esse dinheiro seria aplicado na economia, produzindo crescimento e emprego.
De facto, no geral, a zona euro foi crescendo e o desemprego baixou, mas muito devagar porque a política orçamental não existe. Os Tratados proíbem os défices deliberados para estimular a economia, mesmo com grande desemprego, porque os Estados estão obrigados a financiar-se nos mercados. Por isso, ocorreu um crescimento muito pouco saudável porque o dinheiro foi reinvestido em actividades que não geram melhoria da produtividade nem subida de salários, apenas geram lucro fácil: bolhas do imobiliário, especulação nos mercados financeiros globais (agora em turbulência porque as cotações não podem subir sempre) e estagnação da procura interna.
Mesmo com o fraco dinamismo do consumo das famílias e o continuado endividamento geral, o BCE teme a explosão das bolhas e diz que vai fazer subir gradualmente a taxa de juro, em coordenação com a Reserva Federal dos EUA. Mas está indeciso porque também há sinais de arrefecimento na procura. Por outro lado, terá que decidir o que vai fazer ao dinheiro dos títulos que comprou, à medida que eles vão sendo reembolsados no fim do prazo.
Aqui entra a Itália. O comportamento do BCE no mercado dos títulos de dívida decidirá o caminho que as taxas de juro da dívida italiana vai tomar nas próximas semanas. O discurso de Draghi será, como sempre, ambíguo. Se quiser colaborar abertamente com a Comissão para obrigar a Itália a ajoelhar - os bancos italianos só sobrevivem com juros baixos - a estratégia de aplicação do dinheiro do BCE fará subir os juros para a Itália e teremos uma escalada no confronto com o governo italiano. Mas também pode adoptar uma estratégia mais neutra, até porque a Comissão também receia o abandono do euro pela Itália. Esticam a corda mas têm medo que ela parta.
Havendo escalada nos juros de Itália, Portugal sofrerá o contágio, como seria de esperar. Aliás, ele já começou (ver figura) e só aguarda novos desenvolvimentos. De facto, mesmo com um saldo orçamental positivo, Portugal, Espanha e Grécia não podem fugir a seu destino: são a periferia da zona euro que não tem economia para aguentar uma moeda que torna tudo o que é importado demasiado barato. Os sacrifícios, em nome da credibilidade nos mercados financeiros, são inúteis.
Os mercados sabem o que significa, no contexto de uma união monetária, ter uma moeda demasiado forte e não poder desvalorizá-la. Chamam-lhe risco de "redenominação" (saída do euro e declaração de que a dívida nacional será reembolsada em nova moeda - convenção "lex moneta"). No caso da Itália, esse risco é crescente, sobretudo com o actual governo. No caso de Portugal, não há esse risco imediato mas a escalada dos juros significará (depois de gastos os depósitos em reserva) o regresso à austeridade pura e dura. Ora os especuladores sabem que o nosso masoquismo europeísta um dia acabará.
Repetição?
Já o disse e não me importo de repetir, agora no contexto do chamado chumbo da Comissão Europeia ao Orçamento do Estado italiano: não tenho qualquer simpatia política pela variante italiana dos populismos, que floresceram nas ruínas da chamada esquerda europeísta, mas tenho ainda menos por um bando de eurocratas, sem qualquer legitimidade democrática e com concepções de política orçamental austeritárias, de resto inscritas numa zona euro que condenou a Itália a uma estagnação com duas décadas.
terça-feira, 23 de outubro de 2018
A fugir de Bolsonaro
Fonte: Serviços de Estrangeiros e Fronteiras |
O candidato da extrema-direita está assustar aqueles que não votam nele, mas - curiosamente - também assusta aqueles que dizem apoiá-lo.
Vai se conhecendo cada vez mais casos de pessoas da classe média brasileira que já chegaram a Portugal e que afirmam votar Bolsonaro, mas que acham que a situação no país é tão insustentável que preferem abandonar o país e vir viver para a Europa. Na semana passada, os pedidos de nacionalidade portuguesa de residentes no Brasil entupiram o consulado português de S.Paulo, ao subir 30% face ao mesmo período de 2017. Esta fuga está a gerar anti-corpos em Portugal: essas pessoas procuram as vantagens de um Estado Social (com educação, saúde, transportes, segurança, etc.), em muitos casos sem que tenham descontado para ele - porque vivem em Portugal de rendimentos gerados no Brasil - embora estejam contra a consolidação de um Estado Social no Brasil.
O que se está a passar? Ver-se-á de que forma um uso abusivo da lei - não controlado pelas autoridades nacionais - lhes pode conceder uma vantagem que os faz evitar trabalhar durante cinco anos em Portugal para conseguir ser portugueses na plenitude dos seus direitos.
segunda-feira, 22 de outubro de 2018
Quantos pobres para fazer um rico?
Num país com tantos pobres, com tantos trabalhadores pobres, num país com desigualdades “chocantes”, seguindo a Comissão Nacional Justiça e Paz, é preciso insistir, entre outras, na questão garrettiana: quantos pobres para fazer um rico?
Foi também por causa desta questão que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Setembro o artigo que agora deixo por aqui:
Porno-riquismo
Numa reportagem do Expresso sobre o crescimento do luxo em Portugal, Miguel Guedes de Sousa, director do grupo Amorim Luxury (CEO, acrónimo em inglês, a língua dominante dos negócios sem fronteiras), afirmou que «não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classificados»[1]. Guedes de Sousa é casado com Paula Amorim, o principal rosto da maior fortuna nacional, deixada por Américo Amorim e hoje avaliada em 4502 milhões de euros[2]. Daí o nome do grupo, detido e presidido por Paula Amorim, e que inclui, entre outros, «um espaço de indulgência único» na Avenida da Liberdade chamado JNcQuoi (a língua francesa ainda dá cartas no campo da distinção), englobando um restaurante e uma loja de luxo; esta última é parte de uma cadeia[3]. A mesma reportagem do Expresso informa-nos que os clientes mais indulgentes têm a honra de ter o seu nome gravado no balcão do bar. Entre os 48 nomes aí gravados no primeiro ano de funcionamento, encontram-se o do milionário francês do imobiliário Claude Berda, de que voltarão a ouvir falar neste artigo, o do político e advogado de privatizações para estrangeiros, José Luís Arnaut, ou o do gestor de rendas eléctricas também para estrangeiros, António Mexia: «Nomes que num fim de tarde passado entre queijos e vinhos Barca Velha e Château Margaux gastam facilmente dez mil euros e outro tanto (ou mais) numa manhã de compras, na loja Fashion Clinic no piso de baixo, entre roupas e calçado Gucci, Valentino e Dolce&Gabbana».
domingo, 21 de outubro de 2018
Últimos dias
É também de leitura imprescindível, para perceber a vertigem em que o Brasil se encontra, o artigo de Ivan Nunes na versão online do Diário de Notícias. Nele se identificam os processos de fundo («o que rebenta agora é uma panela de pressão que vinha cozinhando desde 2014», um período em que «o Brasil viveu a Lava-Jato, a mais profunda crise do século e um processo de impeachment») e as razões circunstanciais, entre o induzido e o insólito, que colocaram o país à beira do abismo.
Brasil os últimos dias
Ivan Nunes (Diário de Notícias) [*]
No dia em que saímos à rua, numa manifestação que juntou centenas de milhares de pessoas contra Jair Bolsonaro, o pano de fundo já era depressivo. Não era ainda a convicção de uma derrota inevitável, a ideia de que o fim já estivesse dado, um pessimismo racional no campo das previsões. O desfile, composto maioritariamente por mulheres, tinha um rosto alegre, um humor de Carnaval, mas no meu espírito a tristeza dominava, uma tristeza nascida da experiência repetida e traumática, da impotência e da derrota. Era impossível não notar que desde 2015 tínhamos estado a protestar contra retrocessos, que nenhuma reivindicação era por uma melhoria, antes uma sequência de tentativas quase desesperadas de evitar uma coisa muito ruim que tem mostrado sempre ser mais forte do que nós.
sábado, 20 de outubro de 2018
São os facilitadores
Pedro Siza Vieira era um advogado de certos negócios, um facilitador, para usar uma fórmula justamente famosa, e foi formalmente confirmado como Ministro da Economia, ou seja, como o facilitador político de certos negócios.
Entretanto, vale a pena reler a investigação de João Ramos de Almeida para o Ladrões de Bicicletas sobre Pedro Siza Vieira e ler o artigo de Ana Cordeiro Santos no número de Outubro do Le Monde diplomatique – edição portuguesa sobre “sociedades de investimento em património imobiliário”, “um novo salto na financeirização da habitação”, onde Siza Vieira é um protagonista importante.
Agora, fala-se, uma vez mais, num potencial conflito de interesses. Num certo sentido, o problema é que há excesso de convergência de interesses e escasso conflito num nexo turismo-imobiliário-finança que se vai densificando. Será que é a isto que se chama a normalidade reposta por uma suposta esquerda?
Aqui chegados, é preciso dizer que a questão não é tanto pessoal quanto política, de rede económico-política.
Facilitadores há muitos, claro. Atente-se, por exemplo, na Secretária de Estado do Turismo. Em plena greve na Ryanair, Ana Godinho decidiu ir a Dublin tirar uma fotografia com a encarnação multinacional da selvajaria laboral.
Recentemente, no Público, São José Almeida denunciava a arrogância de Michael O’Leary para com a Assembleia da República. A falta de respeito, a prepotência patronal, é estimulada por governantes que não se dão ao respeito. E que não respeitam as regras básicas da ética republicana. São os facilitadores.
Entretanto, vale a pena reler a investigação de João Ramos de Almeida para o Ladrões de Bicicletas sobre Pedro Siza Vieira e ler o artigo de Ana Cordeiro Santos no número de Outubro do Le Monde diplomatique – edição portuguesa sobre “sociedades de investimento em património imobiliário”, “um novo salto na financeirização da habitação”, onde Siza Vieira é um protagonista importante.
Agora, fala-se, uma vez mais, num potencial conflito de interesses. Num certo sentido, o problema é que há excesso de convergência de interesses e escasso conflito num nexo turismo-imobiliário-finança que se vai densificando. Será que é a isto que se chama a normalidade reposta por uma suposta esquerda?
Aqui chegados, é preciso dizer que a questão não é tanto pessoal quanto política, de rede económico-política.
Facilitadores há muitos, claro. Atente-se, por exemplo, na Secretária de Estado do Turismo. Em plena greve na Ryanair, Ana Godinho decidiu ir a Dublin tirar uma fotografia com a encarnação multinacional da selvajaria laboral.
Recentemente, no Público, São José Almeida denunciava a arrogância de Michael O’Leary para com a Assembleia da República. A falta de respeito, a prepotência patronal, é estimulada por governantes que não se dão ao respeito. E que não respeitam as regras básicas da ética republicana. São os facilitadores.
sexta-feira, 19 de outubro de 2018
Hoje e amanhã, em Lisboa
«Aproxima-se o final de uma legislatura inédita na democracia portuguesa. Pela primeira vez, e perante a necessidade premente de romper com a devastação causada pela maioria de direita nos anos do "ajustamento", as esquerdas convergem numa solução política que permitiu viabilizar, com o necessário suporte parlamentar, o XXI Governo Constitucional. Um processo que permitiu travar e reverter, nos seus traços essenciais, as lógicas de "empobrecimento competitivo", de desregulação e de retração do papel do Estado e das políticas públicas.
O que pode um país, regressado à "normalidade" e ao qual foi devolvida a esperança através desses entendimentos, esperar das esquerdas na próxima legislatura, seja qual for o modelo de convergência que venha a ser adotado? Como aprofundar a governação à esquerda, para lá da restituição de rendimentos e da reversão das políticas e da recusa da agenda da direita? Como desatar os principais nós que dividem PS, BE, PCP e PEV, em matérias como a Europa, as opções orçamentais, os serviços públicos ou as políticas que respondem aos desafios essenciais que hoje se colocam a Portugal?»
Fórum de Outono da Manifesto: «Os nós da Geringonça». Programa e inscrições aqui.
Por um país inteiro
O país a que este OE quase sem défice se destina cresce pouco e é sabido que pouco nos afastámos do lugar para onde a austeridade nos empurrou. Há gente e lugares ainda a cambalear. Para além de fraco, o crescimento é certamente instável. Surfa-se a onda circunstancial de uma procura turística que busca amenidades a baixo preço mas não a da reconstituição da capacidade produtiva de bens e serviços qualificados com a melhor mão-de-obra. O território está fragilizado, de tal forma que se pode perguntar se o país permanece inteiro ou se é só uma área metropolitana a inchar.
Excerto de um artigo no Público, da autoria de José Reis, entitulado As opções e os limites de um Estado autolimitado. O autor de A economia portuguesa - formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017) acaba a chamar a atenção, como não podia deixar de ser, para os limites deste OE, entre Bruxelas, credores e seus defensores internos. Realmente, os escassos avanços, fáceis de reverter, até porque nada mudou na estrutura de constragimentos, não autorizam celebrações complacentes.
Excerto de um artigo no Público, da autoria de José Reis, entitulado As opções e os limites de um Estado autolimitado. O autor de A economia portuguesa - formas de economia política numa periferia persistente (1960-2017) acaba a chamar a atenção, como não podia deixar de ser, para os limites deste OE, entre Bruxelas, credores e seus defensores internos. Realmente, os escassos avanços, fáceis de reverter, até porque nada mudou na estrutura de constragimentos, não autorizam celebrações complacentes.
quinta-feira, 18 de outubro de 2018
Excelente orçamento para gerir a resignação
A discussão do Orçamento do Estado para 2019 tem dado atenção a uma lista de medidas que alguns comentadores consideram ter sido composta sobretudo para um ano de eleições. Esse não é o meu critério de avaliação de um orçamento.
Acabar com a penalização das reformas antecipadas, repor algum poder de compra perdido pelas pensões mais baixas, aumentar um pouquinho o valor abaixo do qual não se paga IRS porque se é pobre, aliviar em cerca de 5% o custo da luz nos alojamentos com baixa potência contratada, manter algum apoio aos desempregados de longa duração, sobretudo quando têm filhos, ou criar um esquema de desconto nos passes sociais para o transporte público das famílias, tudo isto é o mínimo que se espera de um orçamento que procure melhorar o bem-estar dos cidadãos mais modestos. É o normal funcionamento de uma democracia, por muito que isso incomode alguns (demasiados) analistas.
Compreendo o seu incómodo. Andaram, durante anos, a moer-nos o juízo com a ladainha das contas certas e a aldrabice da austeridade expansionista, como se a economia de um país fosse semelhante a uma economia doméstica. Agora, com um défice previsto de 0,2%, não podem ter o topete de dizer que o orçamento é mau. Ainda por cima, quando foi elaborado pelo presidente do chamado Eurogrupo. Que mais querem?
Há sempre aquele argumento da necessidade de um excedente, de uma “folga orçamental” para, numa conjuntura adversa, o défice poder subir através dos estabilizadores automáticos. Mas isso não é política orçamental, isso é apenas o funcionamento da imbricação economia-orçamento que (às vezes) não querem ver. Uma política orçamental, digna desse nome, usa o orçamento para promover o pleno emprego e a estabilidade dos preços. Como ensina a boa teoria, o orçamento é apenas um instrumento de política económica para a promoção daqueles objectivos. Bem sei, na zona euro a política orçamental está proibida. Assim, a próxima crise financeira vai apanhar vários países ainda a recuperar da última e, mais uma vez, sem política orçamental para a enfrentar. Um dia destes, virão lembrar-nos que somos como Sísifo: nova recessão, mais desemprego, novos cortes e novas recapitalizações, tudo sob a condicionalidade do Mecanismo Europeu de Estabilidade que passa a substituir a troika.
Isto remete para o cenário de um crescimento de 2,2%. Aqui, importa lembrar que as medidas acima enunciadas, acrescidas do que se destina à Administração Pública (aumentos modestos dos funcionários, progressões nas carreiras, novas contratações), reforçadas por um aumento do investimento público que ainda assim o mantém, em percentagem do PIB, em valores historicamente baixos, terão um efeito multiplicador significativo. O público-alvo tem elevada propensão a consumir produção nacional. Com alguma sorte, o crescimento pode ser superior a 2,2%, convertendo então o défice em excedente, tudo para a maior glória de Mário Centeno e a “credibilidade” de Portugal. As enormes carências do país, essas terão de esperar por nova legislatura.
E se um mau alinhamento dos astros – “Trump-China-Brexit-Itália-petróleo-finança” – fizer descarrilar este cenário, com o regresso do tempo da grande turbulência? Nesse caso, só me resta esperar que ainda haja alguém no governo que saiba para que serve um orçamento, fora do ordoliberalismo dos Tratados, e perceba que a verdadeira política orçamental trabalha articuladamente com a política monetária. Porém, a conversa sobre os 600 milhões que o Banco (que já não é) de Portugal vai entregar ao Estado – depois de avaliar cautelosamente os riscos do seu balanço! –, não me deixa tranquilo. Fica-se com a impressão de que não sabem que um banco central cria a moeda de que precisa e garante sempre o reembolso da dívida pública emitida em moeda nacional.
(Publicado ontem no Jornal de Negócios)
(Publicado ontem no Jornal de Negócios)
quarta-feira, 17 de outubro de 2018
A «natalidade» e a «família» como pretexto
Já em reentré, e com a discussão do OE de 2019 no horizonte, o CDS-PP propôs um pacote de «políticas integradas de natalidade e de valorização da família». Sim, o mesmo CDS-PP que, nos anos do «ajustamento», se empenhou no «empobrecimento competitivo», responsável por um aumento sem precedentes do desemprego (que atingiu os 16,4% nos jovens com 25 e 44 anos); pelo recrudescer da emigração para níveis próximos dos anos sessenta (600 mil saídas entre 2011 e 2015); e, a par da perda de rendimentos das famílias, pelo corte de Mota Soares na proteção social (com, por exemplo, menos 67 mil crianças e jovens a serem apoiados pelo RSI). Sem estranheza, a natalidade - que agora preocupa os centristas e que registou valores acima dos 100 mil nados-vivos nos primeiros dez anos do século XXI - caiu para valores inéditos, não indo além dos 85 mil nascimentos em 2015.
O que significa esta guinada programática de um partido que até há pouco tempo se estava nas tintas para as condições de vida dos jovens casais e para a natalidade? Terá o CDS-PP percebido o dano demográfico que causou ao país e decidido arrepiar caminho? É apenas mais um episódio de transfiguração política de um partido que tem por hábito fazer uma coisa no Governo e propor o seu contrário quando está na oposição? Ou a «natalidade» e a «família» são só os pretextos para retomar a velha agenda de regressividade fiscal e privatização do Estado Social?
Quando se olha para as medidas apresentadas as dúvidas dissipam-se. Além de propostas redundantes (no âmbito das licenças parentais ou da comissão na AR para as questões da natalidade), é retomado o iníquo quociente familiar (que beneficia tanto mais as famílias com filhos quanto mais elevado for o seu rendimento), cujo princípio passaria a desmultiplicar-se em várias deduções fiscais (IMI, tarifas de água, luz e gás, taxas moderadoras, acesso à habitação, etc.). Soma-se a isto o incentivo ao teletrabalho e os tradicionais apoios às empresas (convenientemente revestidos com a película da «responsabilidade social»). E, claro, o reforço dos apoios ao «Estado paralelo», com a criação de gabinetes técnicos de apoio familiar, na «rede protocolar social», e o alargamento da isenção de IVA a todas as creches e ATL privados (a lembrar o tempo em que as prestações do RSI atribuídas às pessoas se convertiam em apoios às organizações para distribuir sopa). Cereja em cima do bolo: a proposta de não aplicação do fator de sustentabilidade quando o requerente tenha mais de dois filhos e aplicação a 50% ao requerente que tenha dois filhos (numa absurda punição a quem não teve ou só teve um filho e recalcando a lógica regressiva do quociente familiar).
Por último, como se não bastasse instrumentalizar a família e a natalidade para alimentar mercados e fomentar a desigualdade social e fiscal, a proposta do CDS-PP prima também pelas ausências: nem uma palavra sobre salários, precariedade ou sobre imigração, uma vertente indispensável para quem realmente queira recuperar a sustentabilidade demográfica do país.
O que significa esta guinada programática de um partido que até há pouco tempo se estava nas tintas para as condições de vida dos jovens casais e para a natalidade? Terá o CDS-PP percebido o dano demográfico que causou ao país e decidido arrepiar caminho? É apenas mais um episódio de transfiguração política de um partido que tem por hábito fazer uma coisa no Governo e propor o seu contrário quando está na oposição? Ou a «natalidade» e a «família» são só os pretextos para retomar a velha agenda de regressividade fiscal e privatização do Estado Social?
Quando se olha para as medidas apresentadas as dúvidas dissipam-se. Além de propostas redundantes (no âmbito das licenças parentais ou da comissão na AR para as questões da natalidade), é retomado o iníquo quociente familiar (que beneficia tanto mais as famílias com filhos quanto mais elevado for o seu rendimento), cujo princípio passaria a desmultiplicar-se em várias deduções fiscais (IMI, tarifas de água, luz e gás, taxas moderadoras, acesso à habitação, etc.). Soma-se a isto o incentivo ao teletrabalho e os tradicionais apoios às empresas (convenientemente revestidos com a película da «responsabilidade social»). E, claro, o reforço dos apoios ao «Estado paralelo», com a criação de gabinetes técnicos de apoio familiar, na «rede protocolar social», e o alargamento da isenção de IVA a todas as creches e ATL privados (a lembrar o tempo em que as prestações do RSI atribuídas às pessoas se convertiam em apoios às organizações para distribuir sopa). Cereja em cima do bolo: a proposta de não aplicação do fator de sustentabilidade quando o requerente tenha mais de dois filhos e aplicação a 50% ao requerente que tenha dois filhos (numa absurda punição a quem não teve ou só teve um filho e recalcando a lógica regressiva do quociente familiar).
Por último, como se não bastasse instrumentalizar a família e a natalidade para alimentar mercados e fomentar a desigualdade social e fiscal, a proposta do CDS-PP prima também pelas ausências: nem uma palavra sobre salários, precariedade ou sobre imigração, uma vertente indispensável para quem realmente queira recuperar a sustentabilidade demográfica do país.
terça-feira, 16 de outubro de 2018
Fórum Manifesto: «Os nós da Geringonça»
«Aproxima-se o final de uma legislatura inédita na democracia portuguesa. Pela primeira vez, e perante a necessidade premente de romper com a devastação causada pela maioria de direita nos anos do "ajustamento", as esquerdas convergem numa solução política que permitiu viabilizar, com o necessário suporte parlamentar, o XXI Governo Constitucional. Um processo que permitiu travar e reverter, nos seus traços essenciais, as lógicas de "empobrecimento competitivo", de desregulação e de retração do papel do Estado e das políticas públicas.
O que pode um país, regressado à "normalidade" e ao qual foi devolvida a esperança através desses entendimentos, esperar das esquerdas na próxima legislatura, seja qual for o modelo de convergência que venha a ser adotado? Como aprofundar a governação à esquerda, para lá da restituição de rendimentos e da reversão das políticas e da recusa da agenda da direita? Como desatar os principais nós que dividem PS, BE, PCP e PEV, em matérias como a Europa, as opções orçamentais, os serviços públicos ou as políticas que respondem aos desafios essenciais que hoje se colocam a Portugal?»
«Os nós da Geringonça» é o tema do Fórum de Outono de 2018 da Manifesto, que decorrerá nos próximos dias 19 e 20 de outubro. Para além da sessão de abertura, com Isabel do Carmo (sexta-feira às 18h30) e de encerramento, com Diogo Martins (sábado, às 19h00), o fórum inclui três sessões temáticas:
● Este país não é para jovens
....Sexta (21h30), com Ana Drago, Helena Roseta e Jorge Malheiros (moderação de Daniel Oliveira).
● Há privado a mais no SNS?
....Sábado (10h30), com João Nunes Rodrigues, Paulo Fidalgo e Tiago Correia (moderação de Margarida Santos).
● Para onde vai o dinheiro?
....Sábado (14h30), com Eugénia Pires, Fernando Rocha Andrade e Ricardo Paes Mamede (moderação de José Vítor Malheiros).
● O lugar da esquerda nesta Europa
....Sábado (17h00), com Francisco Louçã, João Rodrigues e José Pacheco Pereira (moderação de Sandra Monteiro).
O Fórum de Outono da Manifesto realiza-se na Pousada da Juventude do Parque das Nações, em Lisboa. A entrada é livre e gratuita (podendo as inscrições podem ser feitas aqui). Estão todos convidados, apareçam.
segunda-feira, 15 de outubro de 2018
Afirma Pereira, repete Pereira
Voltamos às repetições: o Orçamento não é português, é estrangeiro, subordinado aos interesses dos nossos credores e às políticas que eles impõem, que não são “portuguesas” num aspecto fundamental — é que não servem o interesse nacional, nem as necessidades de desenvolvimento do país, mas apenas a submissão às políticas alemãs e à vulgata política da troika disfarçada de inevitabilidade económica. O Orçamento serve o pagamento da dívida transformado no alfa e no ómega de toda a política de défice zero. Há outras coisas sob o mesmo céu, mas aqui o sol não nasce para todos (...) Nestas matérias está-se como a “voz clamando no deserto”. O que se ouve de imediato como resposta é uma variante do discurso do ocupado que interioriza o discurso do ocupante, uma soma de argumentos ad terrorem, de que quem contesta o oito quer o 80, ou do desabar cataclísmico de tudo, à mais pequena contestação do estado de coisas (…) O PSD, o CDS e PS são partidos do Tratado Orçamental, o BE e o PCP por razão da “geringonça” não têm qualquer autonomia nesta matéria. À mais pequena crise de fora, vai desabar tudo. E depois queixem-se do populismo.
Excertos da crónica de José Pacheco Pereira no sábado passado no Público. Certamente por acaso, não teve qualquer destaque no sítio do jornal. Concordando no fundamental, tenho duas ou três observações vagamente críticas.
Em primeiro lugar, creio que Pacheco Pereira continua a enfatizar em demasia a dimensão informal do poder na UE, em detrimento da formal, quando as duas estão articuladas. Voltamos também às repetições:
A informalidade do Eurogrupo tem servido bem as grandes potências, em especial a Alemanha. A formalidade das restantes instituições europeias serve o pesado acervo de regras políticas que de forma explícita se destina a construir mercados mais amplos e que operem em cada vez mais esferas da vida, beneficiando os “povos dos mercados”, os ganhadores da integração. E isto à custa da soberania democrática de Estados nacionais desprovidos de instrumentos decentes de política, o que é pior para as periferias, que deles mais necessitam, e dentro destas para os “povos dos Estados”, a grande massa de perdedores. No fundo, a complexidade e opacidade institucional da União Europeia e da zona euro estão ao serviço de duas lógicas que não se articulam espontaneamente, mas que requerem instituições, formais e informais, para esse efeito: a da geopolítica, associada ao poder das grandes potências, e a de classe, associada à dominação do capital financeiro.
Em segundo lugar, não creio que as posições do PCP e do BE possam ser resumidas a uma “falta de autonomia”. Cada um à sua maneira, PCP e BE, nos quais creio que Pacheco Pereira até se revê em matéria europeia, não têm força suficiente ainda. Mas têm autonomamente sublinhado a sua discordância com a tralha europeia e os seus efeitos em termos de soberania democrática e de desenvolvimento nesta e noutras áreas. De qualquer forma, convém insistir mais nesta dimensão nacional, até em termos de investimento programático.
Em terceiro lugar, populismos, tal como nacionalismos, há mesmo muitos. De alguns, não devemos mesmo ter razões de queixa...
Excertos da crónica de José Pacheco Pereira no sábado passado no Público. Certamente por acaso, não teve qualquer destaque no sítio do jornal. Concordando no fundamental, tenho duas ou três observações vagamente críticas.
Em primeiro lugar, creio que Pacheco Pereira continua a enfatizar em demasia a dimensão informal do poder na UE, em detrimento da formal, quando as duas estão articuladas. Voltamos também às repetições:
A informalidade do Eurogrupo tem servido bem as grandes potências, em especial a Alemanha. A formalidade das restantes instituições europeias serve o pesado acervo de regras políticas que de forma explícita se destina a construir mercados mais amplos e que operem em cada vez mais esferas da vida, beneficiando os “povos dos mercados”, os ganhadores da integração. E isto à custa da soberania democrática de Estados nacionais desprovidos de instrumentos decentes de política, o que é pior para as periferias, que deles mais necessitam, e dentro destas para os “povos dos Estados”, a grande massa de perdedores. No fundo, a complexidade e opacidade institucional da União Europeia e da zona euro estão ao serviço de duas lógicas que não se articulam espontaneamente, mas que requerem instituições, formais e informais, para esse efeito: a da geopolítica, associada ao poder das grandes potências, e a de classe, associada à dominação do capital financeiro.
Em segundo lugar, não creio que as posições do PCP e do BE possam ser resumidas a uma “falta de autonomia”. Cada um à sua maneira, PCP e BE, nos quais creio que Pacheco Pereira até se revê em matéria europeia, não têm força suficiente ainda. Mas têm autonomamente sublinhado a sua discordância com a tralha europeia e os seus efeitos em termos de soberania democrática e de desenvolvimento nesta e noutras áreas. De qualquer forma, convém insistir mais nesta dimensão nacional, até em termos de investimento programático.
Em terceiro lugar, populismos, tal como nacionalismos, há mesmo muitos. De alguns, não devemos mesmo ter razões de queixa...
domingo, 14 de outubro de 2018
Nova ministra, velha política?
Entrevista dada ao jornal Público, 13/7/2018 |
O sector privado - aproveitando décadas de subfinanciamento do SNS - tem ido buscar médicos e técnicos so sector público, sem que o Estado acabe com estes vasos comunicantes. Essa captura, muitas vezes em acumulação de funções, até evita um desfalque total de pessoal no sector público, mas ao mesmo tempo facilita aos governantes o adiamento de opções de fundo - que têm desarticulado serviços e equias - e de apostas no sector público, combinando a preguiça com a cumplicidade.
Por isso, embora sem conhecer os pormenores, a ideia suscitada por Marta Temido em curta entrevista dada há uns meses, ao jornal Público, a 13/7/2018, faz-nos questionar. É um pouco mais do mesmo, ou até pior, corre-se o risco de aumentar a perversão? Como pensa realmente a nova ministra sobre esta questão de fundo? O que conseguirá ela fazer com o grupo de trabalho, coordenado pela omnipresente Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Saúde, administradora do grupo Luz Saúde e membro da comissão política nacional do PS, aliás tal como o actual ministro?
A Saúde - pelo menos a julgar pela necessidade mostrada pelo primeiro-ministro em remodelar o seu ministro - vai ser um dos temas centrais até às próximas eleições. Veremos quem vence esta batalha.
sábado, 13 de outubro de 2018
Quem beneficia?
“PS negoceia à direita benefícios fiscais para os senhorios”, afiança o Negócios. Realmente, pelas razões que Ana Santos ou Sandra Monteiro já muito bem expuseram, uma opção política de direita tem de ser negociada com a direita. Quando olhamos para alguns dos mais cruciais sistemas de provisão, como a habitação, confirmamos até que ponto o neoliberalismo colonizou profundamente a social-democracia.
No último debate quinzenal, António Costa declarou que a liberalização das rendas demonstrou que “o mercado” não resolve tudo, ao mesmo tempo sugerindo que a solução para os problemas do senhor mercado estaria em favorecer ainda mais os senhorios deste mercado, cujo poder o governo PSD-CDS já tinha decisivamente aumentado, concedendo-lhes agora benefícios fiscais. No fundo, mais políticas conformes aos interesses dos senhorios deste mercado para resolver problemas criados por anteriores políticas com a mesma orientação, a definição canónica de neoliberalização nesta área.
A conversa só aparentemente neutra dos “incentivos”, fruto da hegemonia de uma sabedoria convencional profundamente medíocre, oculta as entranhadas desigualdades de classe, em termos de economia política, e a corrosão das instituições públicas, em termos de economia moral.
É preciso sublinhar sempre que um sistema fiscal mais injusto e opaco é também o resultado da falta de instrumentos de política a sério, confiscados pela integração europeia. A elite que aceitou esta confiscação habituou-se a esta política. Os resultados estão e estarão desgraçadamente à vista. A recusa de tal caminho é um sinal básico de clarividência da parte dos que não desistem.
sexta-feira, 12 de outubro de 2018
Tempo de autocrítica
Lendo este texto de Brian Winter, fica-se com a sensação de que estamos num mundo cada vez mais parecido com os anos trinta. A causa? O capitalismo selvagem de que foram cúmplices, ou agentes directos, os partidos democratas, trabalhistas, social-democratas, socialistas democráticos, ... enfim, todos os que, mesmo dizendo-se de esquerda e executando políticas sociais, quase sempre desgarradas e epidérmicas, nos conduziram até aqui.
A direita antidemocrática e desumana, a direita que só deseja eliminar quem dela discorda, a direita que se propõe resolver todos os problemas pela força bruta e à margem do direito, essa direita, é a expressão da raiva perante os efeitos da globalização sem freio, a especulação financeira numa espiral de ganância global, a erosão das leis que protegiam o trabalho e garantiam alguma dignidade à vida humana, o financiamento dos partidos pelo mundo dos negócios, as algemas que os Estados se puseram a si mesmos perante uma finança em roda livre, a entrega de boa parte da comunicação social, da saúde, da educação, das pensões a parasitas do Estado, as políticas geradoras do desemprego de massa, a desigualdade escandalosa, o esvaziamento do sentido da vida e a frivolidade promovidos pela moda, a publicidade e o marketing, a precarização e a erosão de tudo o que cria laços de respeito mútuo, e de cuidado pelo outro e pelo bem-comum.
Sim, a esquerda que hoje acumula derrotas acomodou-se a isto e só disputa o poder para gerir isto. Para ultrapassar este refluxo, a esquerda tem de estar disposta a fazer a autocrítica dos erros políticos cometidos e ter a mente aberta para imaginar outra vida e pensar outras políticas.
Em nome de uma alternativa que dê esperança numa vida outra. Em nome dos dias melhores que podemos ter. Se quisermos mesmo.
quinta-feira, 11 de outubro de 2018
O que esperar de Jair Bolsonaro
É de leitura imprescindível o artigo de Brian Winter, publicado esta semana no Americas Quarterly, cuja tradução se transcreve aqui. Uma análise rigorosa, consistente e crua sobre o momento de vertigem em que o Brasil se encontra e na qual se identificam os quatro aspetos essenciais em que se deverá traduzir a presidência de Bolsonaro, caso venha a ser eleito: derramamento de sangue, política económica a favor dos negócios privados, alinhamento com a Administração Trump e erosão da democracia e das suas instituições.
O que esperar de Jair Bolsonaro
Brian Winter (Americas Quarterly, 9 outubro 2018)
«Tudo indica que Jair Bolsonaro está prestes a tornar-se no próximo presidente do Brasil, depois de vencer com 46% as eleições da primeira volta, no domingo passado. Enquanto se prepara para enfrentar Fernando Haddad, na segunda volta, a 28 de outubro, muitos observadores, investidores e cidadãos brasileiros estão atentos ao dia depois das eleições, interrogando-se sobre como irá governar o ex-capitão, de extrema-direita, se for eleito.
Acompanhei de perto Bolsonaro durante mais de dois anos. Entrevistei-o a ele e aos filhos (também eles políticos proeminentes) e mantive contacto com pessoas próximas da sua candidatura. Escrevi diversas crónicas e artigos a reportar a sua ascensão e passei a semana passada no Brasil, tendo conversado com os seus críticos e apoiantes e com agentes do tecido económico, jornalistas e membros de organizações da sociedade civil. Omitirei neste texto a minha visão pessoal sobre a candidatura e abordarei, nos termos mais frios e factuais que me é possível, como Bolsonaro poderá agir para enfrentar a maior crise económica que o Brasil já atravessou e a epidemia de homicídios, que já atingiu o número recorde de 63.880 pessoas em 2017, entre outras prioridades de ação política.
A partir da minha análise, e com a ressalva de que mesmo os planos mais sólidos mudam com frequência, considero serem quatro as tendências que poderão caraterizar a presidência de Bolsonaro:
Primeiro os benefícios, depois a estabilidade fiscal
Depois da entrevista da Secretária de Estado da Habitação, seguem-se as declarações do Presidente da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP), Luís Lima, a exercer pressão política numa altura em que o parlamento discute a atribuição de benefícios fiscais e as decisões sobre os seguros de renda: “É possível convencer os proprietários que vale a pena colocar as casas no mercado, se tiverem benefícios fiscais que compensem o facto de tirarem as casas de outros segmentos.” E ainda: “Quem impedir esta dinamização terá de assumir as responsabilidades de colocar os interesses políticos acima dos interesses dos jovens e famílias portuguesas.”
Nunca são demais as isenções e benefícios fiscais para os proprietários, quer dizer, para os melhores interesses dos jovens e das famílias. Mas também chegará o tempo em que se insurgirão contra a revisão desses ineficazes e iníquos benefícios, a bem da estabilidade fiscal de que tanto o país precisa. E assim vão perdurando os Vistos Dourados, o regime especial para os residentes não habituais, as isenções e benefícios fiscais para os proprietários, compondo todo um regime cada vez mais favorável às rendas fundiárias.
Nunca são demais as isenções e benefícios fiscais para os proprietários, quer dizer, para os melhores interesses dos jovens e das famílias. Mas também chegará o tempo em que se insurgirão contra a revisão desses ineficazes e iníquos benefícios, a bem da estabilidade fiscal de que tanto o país precisa. E assim vão perdurando os Vistos Dourados, o regime especial para os residentes não habituais, as isenções e benefícios fiscais para os proprietários, compondo todo um regime cada vez mais favorável às rendas fundiárias.
terça-feira, 9 de outubro de 2018
A nova questão da habitação
A Secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho, deu ontem uma entrevista ao Negócios. É muito esclarecedor que esta entrevista se tenha centrado na proposta de benefícios fiscais para os proprietários e na criação de um pacote de seguros para o arrendamento. É a política pública reduzida a estímulos fiscais e engenhosas soluções financeiras para incentivar promotores privados a fornecer os bens e serviços que o Estado só marginalmente provisiona, gerando mais desigualdades. Estas ideias já foram expostas num artigo que escrevi para o Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Agosto, intitulado Financeirização do Estado, política de habitação e subsídios à especulação, e que deixo agora aqui:
Um dos desenvolvimentos mais marcantes do capitalismo contemporâneo é a expansão do setor financeiro e sua crescente influência na vida das famílias e empresas, e dos Estados. No caso português, este processo de financeirização caracterizou-se essencialmente pelo mais facilitado acesso a financiamento externo a baixo custo a partir de meados da década de 1990. Contudo, a economia portuguesa não beneficiou da disponibilidade acrescida de capital. Foi mesmo das economias que menos cresceu no novo milénio, registando uma taxa de crescimento do produto abaixo da média da União Europeia. Este processo já é bem conhecido, assim como o papel do Estado, que de uma forma mais ou menos convicta, o conduziu. Menos notada, talvez, é a crescente financeirização do próprio Estado.
Parte fraca, com moeda forte, de uma União Económica e Monetária, os constrangimentos do Estado português não pararam de aumentar. Suscetível à chantagem do capital que exige condições (fiscais e laborais) para produzir e dependente dos mercados financeiros externos para se financiar, Governos sucessivos foram pressionados a levar a cabo políticas de austeridade. A crise financeira agravou ainda mais estes constrangimentos. O subsequente ataque especulativo à dívida pública culminou num Memorando de Entendimento com credores oficiais, que reforçou a austeridade como contrapartida política do financiamento externo garantido agora pelas instituições europeias (Comissão Europeia, Banco Central Europeu) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI).
Num contexto que continua a ser de forte contenção orçamental, a provisão de bens e serviços essenciais assenta cada vez mais em novos estímulos fiscais e engenhosas soluções financeiras para incentivar promotores privados a fornecer os bens e serviços que o Estado vai abdicando de fornecer. Na era da Troika, as soluções assentes na provisão privada eram consentâneas com a sua ideologia neoliberal. No atual momento, a adoção deste tipo de políticas denotará talvez a cristalização de um senso comum que se foi entranhando, mas que importa questionar. A política de habitação servirá de exemplo ilustrativo do que está em causa.