terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O mau hábito de governar por anúncio

O hábito não nasceu com este governo, nem com o anterior. Desde há pelo menos uma década que nos habituámos a ver os governantes a anunciar, sempre com pompa, programas novos e estratégicos que fazem falta ao país. Frequentemente, porém, o que é anunciado não são programas, nem são novos, nem necessariamente estratégicos.

Desta vez o caso dá pelo nome de Programa Interface, que António Costa afirma ser o mais importante do Programa Nacional de Reformas (PNR).

Na verdade, no PNR não existe nenhuma referência a um Programa Interface. Embora se mencionem três das quatro medidas que o compõem – os Apoios aos Centro de Interface Tecnológico, os Laboratórios Colaborativos e o Clube de Fornecedores – elas surgem associadas a propósitos distintos (as duas primeiras ao reforço da I&D e Inovação, a terceira à internacionalização da economia). E a quarta medida do Interface – os Clusters de Competitividade – não vem sequer mencionada no que se conhece do PNR.

O problema não é apenas o facto de estarem aqui em causa medidas com propósitos aparentemente distintos. No caso do “Interface” também não se percebe qual a coerência entre as quatro medidas, nem como serão articuladas (tendo presente que cada uma delas é conduzida por uma agência pública distinta, sendo tuteladas por três ministros diferentes), nem ainda por que ficaram de fora outras medidas relevantes do sistema nacional de inovação relacionadas com a noção de interface (por exemplo, os gabinetes de transferência de tecnologia das instituições de ensino superior).

Dizem-me que a política é mesmo assim, que a comunicação é 2/3 da governação, que a forma sobrepõe-se com frequência à substância. Empacotar medidas dispersas, não exaustivas e por vezes já no terreno, sob nomes pomposos de programas supostamente novos, é uma forma eficaz de mostrar à opinião pública que há vida para além do défice. Pode ser que sim. O que me preocupa é saber quem se ocupará do 1/3 que falta à governação, depois de cumpridos os objectivos promocionais.

A questão central pode ser posta nestes termos: ao contrário da política orçamental, que tem um responsável político claro, ninguém sabe quem responde pela política de inovação em Portugal (é o Ministro da Economia? O da Ciência? O do Planeamento?); ao contrário da política orçamental, que é continuamente escrutinada pela UTAO e pelo Conselho de Finanças Públicas, nenhum organismo autónomo está incumbido de monitorizar e analisar criticamente as políticas seguidas nestes domínios; ao contrário da política orçamental, os resultados destas políticas não se medem ao fim do ano, mas ao fim de décadas. Tudo isto faz com que poucos dêem a devida atenção às estratégias que poderão definir o desenvolvimento do país a prazo.

Da mesma forma que os jornalistas e os partidos da oposição querem sempre saber os pormenores da política orçamental, há coisas que todos deveríamos querer saber acerca das medidas agora anunciadas.

Por exemplo, o governo vai criar programas plurianuais de financiamento de entidades de interface tecnológico. No entanto, governos de várias cores optaram no passado por deixar de financiar directamente tais entidades, apoiando ao invés as despesas das empresas que recorriam aos serviços de interface tecnológico. Isto por três motivos principais: i) para evitar a excessiva dependência daquelas entidades face aos subsídios públicos; ii) para assegurar que as actividades desenvolvidas iam ao encontro das necessidades do tecido produtivo nacional; e iii) para evitar concorrência desleal entre entidades (públicas e privadas) que prestam serviços idênticos. O actual governo até pode ter boas razões para esta mudança de orientação. Eu gostaria que ela fosse devidamente justificada e que se explicasse de que forma o governo pretende evitar os problemas identificados no passado com modelos idênticos ao que se pretende agora implementar.

Outro exemplo: os Clusters de Competitividade, agora empacotados no Programa Interface, correspondem a uma medida que tem mais de uma década. Há uns anos foi objecto de uma avaliação detalhada, a qual identificou várias limitações da política que estava no terreno. Mais uma vez, seria bom percebermos o que pensa o actual governo sobre a experiência passada e como pretende evitar as enormes limitações identificadas nessa experiência. Sobre isto nada sabemos.

O que aqui escrevo não significa que as medidas em causa não tenham valor intrínseco. O problema é que a sobrevalorização do anúncio genérico face ao detalhe, da forma face ao conteúdo, tende a deixar de fora o que é verdadeiramente importante. Há muitos anos que Portugal tem no terreno o leque essencial das medidas de promoção da inovação e internacionalização que existem nos países mais avançados. O que falta não são medidas: são mecanismos institucionais que garantam a sua abrangência, coerência, articulação, continuidade e clareza de propósitos.

Estas políticas, centradas na qualificação do tecido produtivo nacional, são as que verdadeiramente importam para os destinos deste espaço a que chamamos Portugal. Merecem muito mais atenção e dignidade do que lhe tem sido concedido - pelo governos, pelas oposições e pela comunicação social.
 

Os offshores e a «economia do pingo»

«No fundo, no fundo, o núcleo duro de ideias sobre a sociedade e a economia do Governo Passos-Portas foi que a recuperação do país passava pelo aumento da riqueza dos mais ricos, que traria por arrasto uma melhoria das condições de vida dos mais pobres. Era em cima que deveria haver “liberdade”, enquanto em baixo deveria haver “ajustamento” e cortes, até porque os de baixo já estavam mais acima do que deviam e tinham que ser postos na ordem e devolvidos “às suas posses habituais”. Da legislação laboral ao “ajustamento”, este era o programa. Dêem as voltas que derem, esta era a concepção e ainda o é, como se vê na questão do salário mínimo. Qualquer ideia, aliás na base do ideário social-democrata, de que o Estado deveria garantir um equilíbrio social, era e é tida como uma violação das regras da “economia”, com os de baixo a quererem mais do que a “economia” lhes pode dar. Em cima, não há essas restrições e, por isso, a indiferença face ao que acontece com os offshores é completamente natural».

Pacheco Pereira, A afronta de nos tomarem por parvos

Em artigo no Público do passado sábado, que merece ser lido na íntegra, Pacheco Pereira assinala uma dimensão crucial do «episódio» dos offshores: o «pano de fundo» em que o mesmo se encaixa. Ou seja, o enriquecimento do topo à custa do empobrecimento na base, a coberto das «imposições» do memorando de entendimento, para que a «economia do pingo» se instale (mesmo que nunca acabe por pingar).

Tudo ligado portanto e o resto é apenas poeira para os olhos: do «esforço de sacrifício (...) repartido rigorosamente por todos» (Vítor Gaspar) à «ética social na austeridade» (Pedro Mota Soares); da ideia de que os pobres «não foram afetados por cortes nenhuns» (Passos Coelho) à acusação da atual maioria por «tirar a muitos para dar relativamente pouco a alguns» (Maria Luís Albuquerque). Poeira para os olhos e lata, muita lata.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Dívidas impagáveis não são pagas. Faz hoje 64 anos.

A 27 de Fevereiro de 1953 foi assinado em Londres um acordo que resultou no cancelamento de metade da dívida externa da Alemanha.


Naquele dia, os credores da Alemanha, Grécia incluída, escolheram não fingir que dívidas impagáveis podem ser pagas.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

Auditoria precisa-se

Ainda sobre o caso dos 10 mil milhões de euros.

Vejam esta declaração do ex-responsável da Autoridade Tributária dada ao jornal online Eco em resposta ao ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio, que o culpou por não ter publicado as estatísticas de transferências para os ditos offshores. E tomem atenção às datas da tramitação sobre o pedido de publicação das referidas estatísticas:
"A informação em causa foi preparada de raiz para acomodar a solicitação efetuada pelo SEAF na resposta ao primeiro pedido de publicação, tendo sido remetida à Secretaria de Estado no início de Novembro de 2012. No entanto, o SEAF devolveu o processo à AT – em meados de Junho de 2014 – apenas com um despacho de “Visto”. Ou seja declarou ter tomado conhecimento dos elementos que lhe foram comunicados, mas não autorizou a sua divulgação, tal como lhe foi solicitado”, escreve Azevedo Pereira, em comunicado enviado ao ECO. 
Esta não é a primeira vez que o Governo PSD/CDS culpa a administração tributária. Já a propósito da Lista VIP aconteceu o mesmo. Lembram-se?  Nessa altura, o PSD era bem mais solidário com o seu parceiro CDS. Mas agora como o CDS se demarcou do PSD, o PSD aceita queimar o CDS na praça pública e pede apuramento de responsabilidades até "às última consequências", o que quer que isto queira dizer. O que Passos não faz para sobreviver...

Toda a gente sabe que, na linguagem administrativa, o superior hierárquico despacha favoravelmente dizendo "Concordo" ou algo do género. Paulo Núncio escreveu "Visto". Ou seja, algo como "tomo conhecimento, mas não quero que faça nada". E agora afirma que ficou convicto que não tinha bloqueado a publicação. Tudo bem.

Só que, neste caso, até pouco importa. Porque o pedido de publicação das estatísticas ficou na gaveta de Núncio...  ano e meio. Só depois é que apôs a sua rubrica, num "Visto". Como qualificar este gesto?

No mínimo, trata-se de uma rara conduta para quem diz estar muito interessado em divulgar, de forma transparente, essa estranha realidade -. como são as transferência para offshores - sobretudo num período de brutal austeridade, tal como a que ele estava a aplicar, através do brutal aumento de impostos.

Recorde-se que Novembro de 2012 coincide com o período mais negro da gestão do Governo PSD/CDS, pós caso da TSU, em que o Governo quis tirar - de um dia para o outro - 7% dos salários nominais dos trabalhadores para os dar às empresas (7/9/2012). Foi a altura em que a Maioria perdeu o país na rua (15/9/2012) e em que se iniciou o fim da confiança e da popularidade do Governo. Julho de 2013 seria o mês das demissões/fuga de Vítor Gaspar (1/7/2013) e de Paulo Portas (2/7/2013). E tudo descarrilava... 

Era, pois, importante que a Inspecção Geral de Finanças aproveitasse este caso para levar a cabo uma auditoria a toda a gestão feita por Paulo Núncio na Secretaria de Estado. Sabe-se lá o que se irá encontrar na sua gaveta - relatórios dos serviços, por exemplo, à espera de homologação (ou seja, sem produzir efeitos). Ou tudo o que foi despachado sem demoras e de que maneira.

Este caso promete abrir uma porta ainda desconhecida.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Síndrome de Suábia ou talibanismo ideológico?

A notícia de uma descida do défice mais acentuada do que a esperada voltou a evidenciar o grave problema de saúde pública que há anos afeta parte significativa da opinião publicada em Portugal: Suábia. Uma doença que começou por atingir a classe dominante alemã e que alastrou rapidamente, sobretudo a partir de 2010, contaminando a quase totalidade da direita europeia e a parcela da social democracia que se rendeu ao social-liberalismo. O quadro clínico é invariante: aversão extrema a défices públicos; aversão esta que assenta na crença errada, segundo a qual as finanças públicas são comparáveis às finanças dos agregados familiares e, assim sendo, o Estado deve agir economicamente emulando as decisões das famílias, ou seja, procurando sempre, sempre, sempre, equilibrar os seus orçamentos, o que significa défice zero ou superávite.

Ricardo Paes Mamede já veio tentar proporcionar algum alívio a estes pacientes, explicando o que devia ser claro para todos os que escrevem sobre assuntos de macroeconomia: um défice no orçamento do Estado pode, ou não, resultar em maior endividamento público. Sendo uma ideia algo contraintuitiva é, comprovadamente, um remédio eficaz no combate a esta doença.

Mas quem padece de Suábia não é facilmente persuadido a tomar a medicação. O remédio cujo princípio ativo é a elementar aritmética parece não lhes atrair a atenção; aos medicamentes mais facilmente disponíveis, baseados no Keynesianismo, são alérgicos. Dois entraves fatais a uma recuperação rápida. A uma recuperação lenta, também, acrescente-se.

Com uma dose mínima de aritmética poderiam colocar a maleita em guarda percebendo que o défice orçamental não é único factor que afecta o rácio dívida PIB. A taxa de juro, a taxa de inflação e a taxa de crescimento real, tudo conta. Poderiam então concluir quão pernicioso é o mito de um orçamento equilibrado. E, havendo vontade, os mais avessos aos números não teriam sequer dificuldade em encontrar um manual detalhado e explicativo.

Vencida a alergia, com Keynes (um só xarope mas em dois goles), poderiam debelar o que restasse da doença: primeiro, atacavam-na com a ideia que o necessário é olhar pelo emprego e que, uma vez esta questão resolvida, o equilíbrio orçamental olharia por si próprio; depois, uma cristalina estocada final: “[U]ma economia não é como um agregado familiar. Uma família pode decidir gastar menos e tentar ganhar mais. Mas numa economia como um todo, gastar e ganhar vão a par e passo: a minha despesa é o teu rendimento; a tua despesa é o meu rendimento. Se todos tentarem ao mesmo tempo cortar na despesa, o rendimento cairá e o desemprego disparará”.

Vencida a alergia, aqueles que melhor suportam óleo de fígado de bacalhau, perdão, esse radical do Krugman, poderiam ainda prevenir novas infecções, entendendo que as finanças públicas também não são comparáveis às finanças empresariais. A este nível, este livrinho, de apenas 50 páginas e formato A5, pode, de facto, ter efeitos profiláticos. Senão vejamos apenas dois exemplos:

Se um doente de Suábia também padecer, como é habitual, da ideia que as exportações são a solução para todo o sempre, de todos os problemas, de toda a gente, tem aqui uns comprimidos inventados quando se inventou a finitude do planeta (págs. 39-40): “um empresário olha para os empregos diretamente criados pelas exportações e vê-os como a parte mais importante da história. (...) O que o economista vê, contudo, é que o emprego é um sistema fechado: trabalhadores que ganham empregos em resultado do aumento das exportações (...) têm de os obter à custa de alguém”.

De igual modo, aqueles pacientes que tendem a bradar por mais investimento estrangeiro enquanto, simultaneamente, clamam contra o endividamento externo, podem beneficiar enormemente desta mezinha (pág. 40): “(...) o empresário olha para os efeitos diretos do investimento estrangeiro na competição dentro de uma determinada indústria; os efeitos dos fluxos de capital nas taxas de câmbio, preços e por aí fora não lhe parecem particularmente fidedignos ou importantes. O economista sabe, contudo, que a balança de pagamentos é um sistema fechado: a entrada de capitais é sempre acompanhada por um défice comercial e, consequentemente, qualquer aumento naquela entrada de capitais tem de resultar num aumento do défice”.

Contudo, calhando, uma população que parece a alguns de nós atingida por uma doença, padece, afinal e apenas, de ignorância. “Mas a ignorância obstinada”, como se aprende com Kalecki, “é habitualmente uma manifestação de ocultas motivações políticas”.

Se assim for, como parece ser o caso, os remédios têm de ser outros.

Estamos perante uma direita económica e política que, com pouquíssimas exceções, detém um espaço hegemónico na opinião publicada para, surfando a crise, defender um programa político de um extremismo sem precedentes: o programa de uma sociedade incrustada na economia e de uma economia absolutamente mercantil onde o controle democrático efetivo e a provisão pública não assistencial estão, por design, ausentes.

Se esta direita talibanizada tenta entreter-nos com discussões sem qualquer sentido macro-económico enquanto atira para debaixo do tapete a discussão que realmente interessa, o que nos compete é fazer o contrário. Disputar a hegemonia da narrativa dominante usando meios de comunicação alternativos para construir alternativas progressistas. Pensar e agir coletivamente com o objetivo de superar os espartilhos políticos e institucionais que nos impedem de fazer a política necessária em tempo de crise económica, ou seja, uma política orçamental contra cíclica, apoiada por uma política monetária e cambial autónoma, que permita aumentar a despesa pública para combater a estagnação e o desemprego, e que procure, simultaneamente, que a compatibilização dos necessários equilíbrios interno e externo não seja suportada exclusivamente por trabalhadores e pensionistas. É uma tarefa hercúlea, como se sabe. Que se agiganta com o correr do tempo.

Nós só queremos salvar o euro

António Vitorino e outros destacados dirigentes da social-democracia europeia puseram no papel o que muitos andam a dizer há longo tempo: “na sua forma actual, o euro não é viável a longo prazo”. Até aqui estamos de acordo, o problema vem a seguir.

Para salvar o euro, dizem, é preciso transformar o Mecanismo de Estabilidade Europeu (MEE) numa espécie de FMI do Velho Continente e completar a União Bancária.

Ora, estou muito menos preocupado em salvar o euro do que em garantir um futuro decente para a generalidade das populações europeias. Dar poder ao MEE para impor a vontade dos seus financiadores aos Estados com dificuldades financeiras (como faz o FMI), ou dar poder ao BCE para decidir arbitrariamente sobre o destino dos sistemas financeiros nacionais, até pode ajudar a salvar o euro. Mas não é isto que evita que a UE prossiga o seu actual papel de destruição dos Estados sociais de direito democrático na Europa.

Se o governo português está a pensar em abrir uma guerra com a Alemanha por causa da Declaração de Roma (como sugere Teresa de Sousa neste texto), espero que o faça por algo que valha verdadeiramente a pena. Se a preocupação é salvar o euro independentemente das suas implicações para as nossas vidas, deixem lá que saia de Roma um texto redondo e vazio. Já estamos habituados.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A estranha ligação entre VIPs e offshores

O presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, Paulo Ralha, associa a falta de acompanhamento dos 10 mil milhões de euros transferidos para os offshores com a criação de uma lista VIP (Very Important Persons) na administração fiscal (entrevista nesta manhã na RTP3, não deve estar online, mas deverá ser possível encontrar aqui mais tarde).

O primeiro-ministro disse ontem, no Parlamento, que a Inspecção Geral de Finanças vai investigar "por que razão, durante quatro anos, a administração tributária foi dispensada de cumprir esta obrigação de fiscalização de transferências para offshores". Mas Paulo Ralha afirma que não era preciso haver instrução alguma para impedir o acompanhamento dessas transferências, que bastava a existência dessa lista VIP, que o anterior Governo apenas assume ter estudado essa possibilidade, mas que sempre negou ter existido.  

Sem explicar como funcionava esse mecanismo no caso do tratamento das transferências para offshores, deu o exemplo do clima intimidatório criado, de medo: um funcionário que, tendo acedido aos dados de um dado contribuinte, no âmbito do seu trabalho, foi chamado ao superior, foi-lhe instaurado um processo disciplinar e morreu por problemas cardíacos. Ralha recusou-se a dar pormenores sobre o caso porque recebeu instruções da família para não avançar mais.

Como disse Paulo Ralha ontem na TSF, "há uma grande coincidência temporal. Até 2011 há comunicação, entre 2011 e 2014 não há comunicação nenhuma, e essas comunicações retomam em 2015". Por outro lado, a directora-geral dos impostos que ocupava o cargo até 2015, era a mesma em 2016, e nesses dois momentos, não se publicou e passou a publicar-se as estatísticas. Ou seja, algo mudou quando o governo mudou. Por isso, era vantajoso ouvir, não só os secretários de Estado dos Assuntos Fiscais, mas igualmente os directores-gerais dos impostos (ideia já expressa antes em declarações ao Jornal de Negócios).

Como se recorda, a lista VIP é um escudo institucional, montado para proteger certas pessoas, quando começaram a surgir informações sobre a situação fiscal do então primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Caso se tenha curiosidade, relembre-se o caso.

Os infernos fiscais repetem-se


Perante o enésimo escândalo envolvendo infernos fiscais, podemos repetir duas ou três coisas, baseando-nos em parte numa boa análise desta pouca-vergonha institucionalizada.

Em primeiro lugar, os infernos fiscais são o produto deliberado da acção de muitos Estados desenvolvidos, os principais nós da rede dos paraísos fiscais, da Suíça à Grã-Bretanha, passando pelo Luxemburgo. Os infernos fiscais mais ou menos tropicais são muito falados, mas são apenas as periferias de uma rede.

Em segundo lugar, esta rede foi tecida sobretudo a partir dos anos setenta e é indissociável do fim progressivo, em particular nos países mais desenvolvidos, dos controlos de capitais, parte do processo mais vasto de privatização e liberalização dos sistemas financeiros; no continente europeu, este é o outro nome da integração europeia. Não há crise num banco que não passe por um inferno fiscal.

Em terceiro lugar, os supostos cosmopolitas progressistas, que nos dizem que a solução depende exclusivamente de acordos europeus ou globais, são aliados objectivos deste estado de coisas. Não é que a cooperação internacional não ajude. Ajuda e muito. Mas na sua base têm de estar acções nacionais unilaterais. Estas passam por reinstituir controlos de capitais, por regular o sistema financeiro de forma muito mais apertada, também através da socialização da sua propriedade, por deixar de depender de poupança externa. Por desglobalizar, a começar pela finança, em suma. Só assim os infernos fiscais podem vir a perder alguma da sua relevância.

É claro que há um detalhe que nos interessa por cá: a liberalização financeira está no ADN da integração europeia, do Euro. Em economia política isto está mesmo tudo ligado.

Texto publicado neste blogue a 4 de Abril de 2016. 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

O tema dos offshores morre sempre na praia

Edição online Diário de Notícias
Ontem à noite, percebeu-se que o assunto iria morrer facilmente.

Depois de algum estardalhaço mediático com um número redondo de 10 mil milhões de euros de transferências para offshores sem ter sido acompanhadas pela Autoridade Tributária de 2011 a 2014, o Jornal da SIC colocou o tema em minoria face ao prolífico e interessante
assunto das duas comissões de inquérito à CGD (2h30 para os offshores, contra 2h30 para o impasse na primeira comissão e mais 2h30 para a possibilidade de uma segunda comissão...).

O próprio Telejornal da RTP, antes do jogo do Manchester City-Mónaco, colocou o assunto em 8ª lugar, após a desmarcação da viagem a Angola da ministra da Justiça, a central de Almaraz, a fuga dos presos em Caxias, declarações da ministra da Justiça sobre o adiamento da viagem (não disse nada), impasse na comissão parlamentar de inquérito à CGD, opinião de constitucionalistas sobre o acesso a SMS, PCP sobre a nova comissão parlamentar de inquérito à CGD). E - pasme-se! - a repórter foi ouvir o alegado fiscalista Tiago Caiado Guerreiro que diz não acreditar na falta de acompanhamento das transferências e que não é ilegal desviar dinheiro para offshores.

Os jornais de hoje de manhã dão destaque às respostas do ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o militante do CDS Paulo Núncio, e que se podem traduzir em três ideias (estão entre aspas, mas não são verdadeiras declarações, apenas das suas ideias...): "Eu não soube de nada", "isso de transferências sem tratamento não quer dizer que não se possa cobrar ainda imposto porque fui eu que alarguei os prazos de prescrição" e "isso da não publicação das estatísticas não tem interesse nenhum porque eu tomei medidas para aprofundar o combate à fraude e evasão fiscais".

Edição online Expresso
Citação verdadeira: “Aliás, os relatórios de combate à fraude e evasão fiscal dos anos de 2011 a 2015 confirmam que os dados conhecidos relativos às transferências para paraísos fiscais foram cruzados e tratados pela inspeção tributária da AT. Em particular, e de acordo com o Relatório de combate à fraude e evasão fiscais do ano de 2015, só no ano de 2015 foram realizados 377 procedimentos inspetivos pela AT a transferências efetuadas para paraísos fiscais” (Eco).

O Público faz manchete ainda sobre o assunto e está a dar-lhe muito gás na edição no online, mas pela vertente política, de o Parlamento ter adiado a aprovação de legislação e ouvindo declarações, nomeadamente do Presidente da República que - claro está - comenta tudo. Ou seja, antevê-se que tudo vá morrer na praia, mais uma vez, e que apenas será revivido com a audição parlamentar de Paulo Núncio e do actual secretário de Estado. Aí, os jornalistas estarão à vontade: têm tantas pessoas para ouvir e encher tempo com declarações inúteis...

Até há já jornais que, hoje, passam ao lado do tema. Um deles é - espanto! - o Jornal de Negócios. Faz sentido? O Jornal pode ser de Negócios, mas convinha que a direcção do jornal tivesse um olhar arejado sobre a realidade. 


Eu teria alguma sugestão a fazer ao futuro tratamento noticioso sobre este assunto:

Dos azares do João Miguel Tavares



«Com a habitual ignorância embrulhada em fina análise económica, João Miguel Tavares escreve hoje que "voltámos a endividar-nos para consumir". Fê-lo precisamente no dia em que foi confirmado que o endividamento das famílias e das empresas está em mínimos de 10 anos...»

Tiago Barbosa Ribeiro (facebook)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Quanto tempo demorará o caso?

"Em 2010, por ordem do então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Sérgio Vasques (último Governo de José Sócrates), a publicação destas estatísticas passou a ser obrigatória e, nesse ano, foram divulgados valores relativamente às transferências de 2009. Mas depois disso, nos anos em que Paulo Núncio foi secretário de Estado, as estatísticas não foram publicadas no Portal das Finanças, o que só veio a acontecer em Abril de 2016".

De 2010 a 2015, foram quase 29 mil milhões de euros! Desse total, dez mil milhões não foram tratados pelo Fisco, apesar de comunicadas pelas instituições financeiras. Porquê? Ainda não se sabe.

Toda estes dados vêm de um artigo publicado hoje no Público sobre as transferências feitas para offshores de 2010 a 2015, sobretudo durante o governo PSD/CDS.

Concordamos todos que isto vale bem mais do que um SMS.

Por isso, quero ver os deputados do PSD e do CDS a vociferar com Paulo Núncio por ter afectado a justiça social. Ou vão argumentar que não é ilegal e que, portanto, o que é que podem fazer senão prosseguir com a segunda comissão de inquérito aos SMS...?

Quero ver o presidente da República a escrever uma nota a poucos minutos da meia-noite a dizer que, depois de ter acesso aos dados transmitidos à Inspecção-Geral de Finanças, acha que é melhor o CDS mudar de atitude para com o seu ex-secretário de Estado, advogado de um dos maiores escritórios de advogados e conselheiro de Paulo Portas. Quero ver Paulo Núncio e Paulo Portas a almoçar em Belém. E quero ouvir Passos Coelho dizer que os números nunca lhe foram apresentados.

Quero ver mister "Blue eyes" a ser confrontado com este resultado governamental e dizer que claramente está longe de ter sido instigado pela Troika. Ou que ficou abaixo do previsto. Quero ver o presidente da Comissão Europeia a desvalorizar o valor, porque se este é de longe um recorde, está bem abaixo do que ele conseguiu no Luxemburgo, como primeiro-ministro.

E quero ver quatro manchetes do Público, de todos os jornais, com os jornalistas a seguir a vida de Paulo Núncio, a perguntar-lhe o que aconteceu; quero ver as emissões televisivas repetirem e repetirem este caso, mostrando a cara de Paulo Núncio em várias posições, com "Praças Públicas" sobre o assunto e debates nocturnos, com todos os responsáveis possíveis e opinadores em carteira.

Quero ver, uma vez que seja, o circo montado na direcção certa. E que nunca, mas nunca estes 10 mil milhões apareçam num qualquer RERT, ou seja, um daqueles planos extraordinários de regularização de capitais saídos fraudulentamente do país...

Hoje


Conferência organizada pela Assembleia da República (Comissões de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias; Educação e Ciência; Trabalho e Segurança Social; Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto), com início às 14h30, na Sala do Senado da Assembleia da República.

Participam, entre outros, Leonel MouraRobótica: o estado da arte»), Pedro Lima, («Chegaram os robôs: desafios e oportunidades»), João BarrosCidades Inteligentes»), José Manuel MendonçaIndústria 4.0: Em Portugal, o futuro já começou») e Nuno TelesA culpa é dos robôs? Futuros para o trabalho e emprego»).

Entrada livre (inscrições aqui).

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A ideia absurda do défice zero

No debate sobre o inesperado desempenho orçamental de 2016 (com o défice a ficar em torno dos 2,1% do PIB) houve quem, como é costume, defendesse a ideia de que qualquer défice acima de zero é mau para o país (Henrique Monteiro no último Expresso foi só um deles). Suspeito que quem faz afirmações destas nunca tenha feito as contas, nem se tenha questionado sobre as razões e implicações do que defende. Não é de espantar, já que a questão é menos óbvia do que parece, nomeadamente para quem não tem formação económica.

Há duas ideias fundamentais sobre a dívida pública que são pouco intuitivas, mas nem por isso menos verdadeiras:

• primeiro, não é preciso que o saldo orçamental seja nulo ou positivo para que a dívida pública diminua;

• segundo, não faz qualquer sentido estabelecer como objectivo da política orçamental a total eliminação da dívida pública.

Uma fórmula matemática simples e muito conhecida diz-nos que a dívida pública permanecerá estável em percentagem do PIB desde que a diferença entre receitas e despesas excluindo juros (ou seja, o saldo primário) for igual à diferença entre o crescimento nominal do PIB e a taxa de juro sobre a dívida pública. Sem complicar demasiado, tentemos perceber o que isto significa para Portugal na actualidade.

A taxa de juro que o Estado português paga em média sobre a sua dívida está próxima de 3,5%, enquanto o crescimento esperado para os próximos anos é de cerca de 3%. Ora isto significa que o saldo primário teria de ser ligeiramente positivo (0,5% do PIB) para que a dívida pública portuguesa não aumentasse.

Note-se porém que o saldo orçamental corresponde ao saldo primário menos a despesa com juros, que em Portugal ronda actualmente os 4,5% do PIB. Logo, nas circunstâncias actuais e salvo eventos inesperados, o não agravamento do rácio da dívida sobre o PIB seria compatível com um saldo orçamental de -4% – ou seja, um défice quase duas vezes superior ao registado neste ano. Por outras palavras, um défice de 2,1%, em condições normais, representa um esforço significativo de redução da dívida pública.

Imaginemos agora que o governo estabelecia como objectivo atingir um saldo orçamental nulo (ou seja, défice zero). Tendo por referência os valores actuais, isto levaria a que a dívida pública caísse para menos de 60% do PIB em pouco mais de duas décadas. Ao fim de 50 anos o rácio da dívida seria inferior a 30% do PIB e daqui a um século a dívida pública seria praticamente nula (ver gráfico).

Tudo isto para quê? Qual a racionalidade de anular a dívida pública no longo prazo? Nenhuma, na verdade. Se faz sentido a uma família ou a uma empresa assumirem dívidas para investirem, ainda o faz mais quando se trata de um Estado, na medida em que este não tem uma duração limitada no tempo. O objectivo dos Estados é promover o desenvolvimento das sociedades, assegurando que a dívida pública é sustentável (o que depende de vários factores) e não reduzi-la a níveis diminutos.

Entretanto, para o objectivo do défice zero ser atingido seria necessário que as receitas fossem maiores do que as despesas excluindo juros em pelo menos 1% do PIB durante o próximo meio século. Em particular, nos próximos 20 anos teríamos de observar continuamente saldos primários positivos superiores a 2,5% ao ano – algo nunca visto em nenhum país no passado (muito menos em países com crescimentos nominais do PIB inferiores a 4% do PIB).

A tentativa de atingir saldos orçamentais nulos em Portugal implicaria aumentar substancialmente os impostos e/ou reduzir fortemente as despesas com educação, saúde e protecção social (principais rúbricas de despesa pública). Em ambos os casos, isto reflectir-se-ia numa forte retracção do consumo e do investimento, com implicações negativas no crescimento do PIB (tornando ainda mais exigente o esforço orçamental). Ou seja, implicaria uma recessão profunda e prolongada sem precedentes.

Em resumo, a ideia de que um défice zero seria bom para o país está errada por três motivos: primeiro, não é necessária para reduzir a dívida pública ao longo do tempo; imporia custos económicos e sociais sem precedentes, que poriam em causa a própria sustentabilidade da dívida no curto e no médio prazos; e impediria que o Estado cumprisse o papel para que existe.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Memória (XXIV)



(Vídeo Geringonça)

«Na verdade, o que a direita não suporta é que Centeno tenha provado que era possível trilhar outro caminho económico, com menos sacrifícios para os portugueses, e mesmo assim conseguir reduzir o défice para valores historicamente baixos, o mais baixo em 42 anos de democracia, coisa que a direita nunca conseguiu até agora. O que a direita não perdoa a Centeno é que tenha conseguido fazer isto colocando a economia a crescer um pouco mais do que se esperava, com o regresso do investimento, a subida das exportações, a melhoria do clima económico e do indicador de confiança.»

Nicolau Santos, Défice de 2,1%: o grande silêncio

Recuperar a soberania, melhorar a democracia, alcançar o pleno emprego


No jantar comemorativo da revolta do 31 de Janeiro organizado pelo MIC-Porto.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Parar, reverter e avançar


Embora tenhamos por hábito falar de integração económica internacional e dos seus problemas, a verdade é que não temos escrito muito sobre o espectro dos novos acordos promovidos por essa máquina pós-democrática de liberalização económica internacional que dá pelo nome de UE. O eco da Comissão e das grandes potências, também conhecido por Parlamento Europeu, aprovou naturalmente o CETA, o acordo liberalizador entre a UE e o Canadá. Falta o mais importante, ou seja, a aprovação pelas democracias realmente existentes, pelos parlamentos dos vários Estados.

Infelizmente, só a socialista Ana Gomes acompanhou os eurodeputados comunistas e bloquistas. Os socialistas portugueses contrastaram, por exemplo, com os seus homólogos franceses, que começam a perceber o que está a destruir a social-democracia. Este padrão não augura nada de bom, confirmando que em matéria de soberania ainda não se rompeu com velhos hábitos que produziram a estagnação dependente que ainda se vê e sente.

Entre as razões para a posição crítica de Ana Gomes está a seguinte: “o Sistema de Tribunais de Investimento previsto contorna os sistemas judiciais estaduais através de tribunais privados de arbitragem que favorecem o setor privado contra o interesse público”. Quando um social-liberal, como Francisco Assis, dando o exemplo do CETA, fala na sua coluna do Público de “regulação da globalização”, devemos dizer que regras há muitas e que são sempre inevitáveis no capitalismo, qualquer que seja a sua escala. No capitalismo neoliberal essa regulação é calibrada para expandir o campo de actuação das forças capitalistas mais agressivas e destina-se a reduzir o espaço da soberania democrática, sendo tendencialmente fixada à escala supranacional, onde o grande capital está politicamente mais à vontade.

Entretanto, os comunistas portugueses sublinharam em comunicado o que há de mais relevante na economia política do CETA: “A pretensão de fazer entrar em vigor o CETA, mesmo antes da sua obrigatória ratificação pelos 28 Estados-membros da UE, é uma expressão da natureza antidemocrática da UE. O CETA tem como principal objectivo avançar ainda mais na liberalização do comércio e serviços, tentando eliminar quaisquer barreiras ao domínio das grandes multinacionais sobre as economias de Estados soberanos. O CETA é um instrumento para rebaixar os direitos sociais, laborais, ambientais e de saúde pública, para colocar os interesses das multinacionais acima dos direitos e interesses dos povos e das constituições e soberania dos Estados, representando mais um passo na escalada de liberalização do comércio mundial – com graves consequências para Portugal. O CETA é na verdade, um TTIP disfarçado, porque cerca de 24 mil empresas dos EUA operam no Canadá. 81 por cento das companhias canadianas estão ligadas, como subsidiárias, a empresas dos EUA, e perante o impasse em torno do TTIP, o CETA será a sua porta de entrada na UE.”

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Mais ladrões


Este blogue reforçou-se recentemente com a entrada de Diogo Martins e de Paulo Coimbra, dois economistas de combate. Quando se aproxima a celebração do décimo aniversário deste blogue de Abril, temos assim mais razões para ter confiança no projecto de sempre: economia, política, política económica, economia política. Em breve, teremos outras novidades para os leitores.

Na imprensa estrangeira as notícias são outras...


«O governo português provou que os seus críticos estavam errados, ao reduzir o défice orçamental para o valor mais baixo dos últimos 40 anos, apesar dos alertas de que as suas políticas anti-austeridade poderiam significar um desastre financeiro. (...) [De facto], alguns países da zona do euro manifestaram a sua preocupação e alarme quando o governo socialista de centro-esquerda, com o apoio do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, assumiu o poder em 2015, numa plataforma anti-austeridade.»

Washington Post, Portugal reduz o défice orçamental para o valor mais baixo das últimas quatro décadas

«O Primeiro-ministro António Costa tinha anunciado em meados de janeiro que o défice das contas públicas "não seria superior a 2,3%", ou seja, o mais baixo desde o alvor da democracia, em 1974. O que significa, sobretudo, que Portugal conseguiu assegurar a saída do procedimento por défice excessivo, previsto pelas regras orçamentais europeias (que exigem que os países membros da zona euro façam descer os seus défices abaixo da barreira dos 3%).»

Le Figaro, Portugal reduz o seu défice público para 2,1% do PIB

«A economia portuguesa cresceu 1,4% em 2016, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística. (...) Por isso, o executivo, apoiado pela esquerda radical pode respirar um pouco, mesmo que momentaneamente. De facto, se é certo que não se cumpriu, de todo, o descalabro macroeconómico que era vaticinado pelos social-democratas de Passos Coelho, também é certo que há problemas estruturais muito preocupantes que subsistem.»

ABC Economía, A economia portuguesa cresceu 1,4% em 2016

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

O passado pode ser um país com futuro

Num domingo passado convoquei selectivamente uma apologética história da social-democracia europeia, da autoria da cientista política norte-americana Sheri Berman, para valorizar a ilha sueca dos anos trinta e a partir dela a lição: quem hegemoniza o conceito de comunidade nacional ganha.

Nem de propósito, na segunda-feira seguinte, Berman escreveu um artigo na Social Europe, sobre a crescente irrelevância da social-democracia europeia, oportunamente traduzido. Segundo ela, o declínio deve-se à troca da chamada política de redistribuição, a de cima para baixo, claro, pela chamada política de reconhecimento. Centrada nas questões de classe, a primeira teria permitido construir uma coligação vencedora; centrada na valorização de múltiplas identidades, a segunda teria fragmentado essa coligação nacional.

Aceitando só por um momento o diagnóstico, logo surgem várias questões: O que levou a essa troca com efeitos perversos? Terá sido a promoção ou a aceitação, a partir dos anos oitenta, da europeização, ou seja, da expressão da globalização neoliberal no continente, prescindindo de instrumentos de política na escala onde tinha sido possível construir o tal propósito nacional redistributivo, centrado no pleno emprego e nos direitos sociais vinculados ao trabalho? Terá sido isso combinado com a força de novos movimentos sociais que colocaram em cima da mesa formas de opressão até aí desvalorizadas? E qual o papel da crise do comunismo, objectivamente o melhor aliado da social-democracia na persuasão, digamos assim, dos capitalistas? Berman não responde.

Seja como for, a verdade é que há uma coincidência entre o triunfo da redistribuição neoliberal, a de baixo para cima, e o reconhecimento selectivo de alguns novos direitos. A social-democracia social liberalizou-se, por assim dizer: liberal em tudo, incluindo na economia. Coincidência não significa necessariamente qualquer relação de causalidade, claro.

Estou convencido que chegámos a um momento em que grande parte das conquistas no campo do reconhecimento passarão a estar ameaçadas pelos recuos entretanto registados nas questões redistributivas de classe. A crise económica permanente e a nova questão social alimentam uma intolerância cultural crescente.

Não se trata então de propor uma reversão da troca. Trata-se de reencontrar uma articulação produtiva entre as duas, na linha do que tem tentado fazer Bernie Sanders, por exemplo. Contra Nancy Fraser, a autora associada a estes dois termos e que acha que a esfera nacional já não está disponível, apelando como a maioria da chamada teoria social crítica para uma transnacionalização sem futuro, tal passa por revalorizar o espaço nacional, onde todos os direitos de cidadania foram na realidade conquistados. Sanders nunca deixa de falar da nação, claro. Tudo o que aí não for garantido, dificilmente o será numa escala superior. E a partir da hegemonia sobre este espaço é necessário tentar encontrar as articulações internacionais mais vantajosas, que possam criar contágios favoráveis. Talvez seja de voltar ao passado como atalho para um futuro radicalmente diferente, para usar e abusar dos sugestivos termos de um astuto marxista, que nos ensina a desconfiar do progresso...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

As origens europeias da pós-verdade

Vale sempre a pena ler Wolfgang Munchau, editor de assuntos europeus do Financial Times, cujas crónicas semanais são desde há algum tempo também publicadas no DN: “A crise grega é apenas o exemplo mais flagrante do resultado de a verdade não ser dita. Há muitos outros. A adesão da Itália a uma união monetária com a Alemanha também é obviamente insustentável (...) Quando a verdade morre, não devemos surpreender-nos com a substituição desta por factos alternativos.”

E que dizer da adesão de Portugal? É que estamos estagnados como a Itália desde a viragem do milénio, mas tendo entretanto acumulado uma dívida externa, em percentagem do PIB, bastante superior. É verdade que não tivemos uma grande depressão, como a Grécia, mas se fizermos a comparação usando todo o período do Euro vemo-nos muito mais gregos do que se julga. De resto, e como temos por aqui insistido, os tais factos alternativos têm uma longa tradição numa economia política que, enquanto ideologia, tão bem tem servido as elites do poder europeu.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Compreender sem transformar


Encontra-se em discussão um documento da Comissão Europeia sobre o futuro da política orçamental para a área euro, enquadrado na elaboração do livro branco que a Comissão pretende publicar em Março.

O documento regista uma assinalável evolução no domínio do diagnóstico e das respostas à atual crise europeia. De forma assertiva, refere que a política monetária, usada isoladamente, não é suficiente para impulsionar a saída da recessão e que a política orçamental tem que assumir um papel central na estratégia de recuperação económica europeia. Em particular, refere o impacto muito positivo do multiplicador orçamental num contexto de taxas de juro baixas, bem como a influência virtuosa que o investimento público teria na dinamização do investimento privado. Indo ainda mais além, refere a capacidade de um estímulo orçamental bem delineado para elevar o PIB potencial dos países europeus, recusando a premissa ortodoxa de acordo com a qual os choques orçamentais não têm um impacto estrutural. Ainda neste domínio, adquire um tom veladamente autocrítico, ao conceder a possibilidade de as políticas de austeridade terem causado um impacto negativo no PIB potencial.

O mesmo documento refere que o atual quadro económico da zona euro é sub-ótimo por dois motivos. Em primeiro lugar, se cada país seguisse as atuais recomendações da Comissão para cada país, a política orçamental da zona euro seria globalmente contracionista, um resultado contraproducente face à estratégia expansionista necessária; por outro lado, é identificada a raiz assimétrica da crise económica e o efeito paralisador que esta encerra: os países que têm margem orçamental para assumir o estímulo não o pretendem fazer (caso dos países do norte, grosso modo), enquanto os países que mais beneficiariam desta nova estratégia (países do sul) estão demasiado constrangidos orçamentalmente para o iniciar. Em linha com esta interpretação, o documento reconhece que os atuais acordos referentes à política orçamental, como o pacto de estabilidade e crescimento, são incapazes de corrigir a falácia da composição resultante das recomendações dirigidas a cada país e apela à existência de maior coordenação na política orçamental europeia.

Importa colocar esta evolução do posicionamento da Comissão Europeia em contexto. Não se deve analisar este posicionamento sem ter presente o crescente tom crítico com que alguns setores da ortodoxia económica e do centro-esquerda, com responsabilidades na atual arquitetura da moeda única, têm vindo a assumir. Ainda assim, deve relevar-se o caráter notável deste desenvolvimento, sobretudo tendo presente as teses vigentes ainda há poucos anos, onde se destacava a crença na austeridade expansionista que a Comissão manteve nos anos iniciais da crise.

Mas se o desenvolvimento interpretativo é notável, este não deve inspirar qualquer esperança de mudanças benéficas a médio prazo. Em primeiro lugar, a adoção de uma estratégia orçamental expansionista sem enfrentar concomitantemente as outras dimensões do problema, como os elevados stocks de dívida pública dos países do Sul, teria efeitos colaterais nocivos mais do que prováveis. Basta pensar que uma política orçamental expansionista digna desse nome elevaria, ainda que moderadamente, a inflação dos países do centro, o que forçaria o BCE a cessar a política monetária expansionista seguida até aqui, precipitando Portugal e os restantes países do Sul numa nova crise de financiamento da dívida soberana. Política orçamental expansionista sem renegociação das dívidas soberanas e sem rever os objetivos de política monetária do BCE (e já agora a sua ausência de escrutínio democrático) não faz sentido.

Mas, fundamentalmente, não devemos esperar nada de novo deste documento, porque quem o escreveu não pretende ser consequente com o diagnóstico que traçou. O fosso entre o enquadramento do documento e as soluções propostas é avassalador. No quadro das propostas concretas, o documento apela a que cada país prossiga uma política expansionista no integral respeito pelos limites fixados nos tratados – o que para países como Portugal significa um apelo a que tudo fique na mesma. Para os países com maior flexibilidade orçamental, o texto também não é particularmente imperativo. Sugere-se que os países façam uso pleno dos fundos do Plano Juncker; ele próprio, como é sabido, muito insuficiente. Nada de novo, portanto. A montanha pariu um rato.

Na verdade, este documento é a melhor ilustração das contradições com que a zona euro se defronta no presente. Embora existam sinais positivos no reconhecimento de novas estratégias para combater a crise, elas não podem ser aplicadas no quadro político-institucional vigente e esse quadro nunca será alterado em tempo útil, em virtude da ascendência que os beneficiados pelo modelo de desenvolvimento assimétrico que o euro inaugurou têm na sua definição.

É permitido compreender, mas não é permitido transformar. E compreender sem transformar, ontem como hoje, vale de muito pouco.

Perdeu a hipocrisia, as mulheres ganharam por todos


10 anos depois da vitória do "SIM" no referendo sobre a despenalização do aborto, nenhuma das profecias do "NÃO" se concretizou. Nem uma. O aborto diminuiu, a repetição de aborto pela mesma mulher diminuiu drasticamente, o uso da contracepção aumentou. Milhares de mulheres foram a consultas de planeamento familiar porque fizeram o aborto em estabelecimentos de saúde. E foi erradicada a corrida à urgências de mulheres na sequência de abortos sem condições.

O direito que as mulheres conquistaram foi usado com o sentido de responsabilidade que faltou a quem não se cansou de explicar que as mulheres, sem a tutela da religião e a perseguição do Estado, não se saberiam comportar em condições. O sentido de responsabilidade que faltou à maioria de direita, não o esqueçamos, a tentar introduzir um conjunto de disposições repugnantes, tentando subverter o resultado do referendo.

Ah, e a educação sexual também foi avançando, com a permanente oposição daqueles que, durante a campanha do referendo, com ela encheram a boca.

É um dia bonito. Porque a luta continua.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

As tentações da direita perante a taxa de abandono escolar de 2016

Depois de tentar chamar a si os louros pelos resultados do PISA de 2015 (que avaliou as competências adquiridas pelos alunos cujo percurso escolar se iniciou em 2004/05), a direita tenta agora enjeitar quaisquer responsabilidades pelo ligeiro aumento do abandono escolar em 2016 (de 0,3 pp face ao valor de 2015, situado em 13,7%), procurando atribui-lo à mudança de políticas educativas encetada pelo atual governo (e invocando, nesses termos, a ruptura com medidas emblemáticas da anterior maioria).

Sucede porém que é muito mais fácil explicar este aumento do abandono escolar precoce (em pouco mais de mil jovens face a 2015, num universo que ronda os 750 mil jovens com idades entre os 18 e os 24 anos), como constituindo o lastro expectável das políticas do anterior governo, que atribuir à atual tutela a responsabilidade por esse acréscimo. Por três razões essenciais:


1. Desde logo, pelo aumento das taxas de reprovação no ensino básico e secundário durante o consulado de Nuno Crato, nomeadamente nos anos letivos de 2011/12 a 2013/14, em que se ultrapassa a média de retenções verificada nos últimos anos (situada em torno dos 12%). O Conselho Nacional de Educação disse-o de forma clara num estudo de 2015 e a OCDE reafirmou-o esta semana: as retenções devem ser uma opção de último recurso, dado que não contribuem para a melhoria do desempenho dos alunos e potenciam, a curto e médio prazo, o abandono escolar precoce. Ou seja, tudo indica que estamos hoje a sentir as ondas de choque da serôdia cultura dos exames e dos chumbos, impulsionada por Nuno Crato.

2. Encontrando-se em estágio ou em formação, no âmbito das políticas ativas do mercado de trabalho, os jovens com idades entre 18 e 24 anos (e que tenham no máximo o 3º ciclo) não contam para os números do desemprego nem do abandono escolar. Ora, ao consignar a estas medidas, que desvirtuou, «recursos financeiros que absorvem [até meados de 2015] mais de 60% da dotação» prevista para o período 2013-2020 (de modo a camuflar o desemprego e promover artificialmente o emprego, já com as eleições no horizonte), o anterior governo limitou severamente as verbas disponíveis para formação e estágios já em 2016, sendo preciso ter uma infinita lata para acusar o atual governo, como fez Luís Montenegro, de desinvestir na formação profissional, contribuindo desse modo para o aumento do abandono escolar.

3. Por fim, o ligeiro aumento do abandono escolar tende também a refletir a gradual recomposição do mercado de trabalho em 2016, marcada pela criação efetiva de emprego e pela diminuição do desemprego. No caso dos jovens entre 15 e 24 anos, o emprego aumentou 4,3% entre 2015 e 2016 (que compara com um aumento global da população empregada de 1,2%), tendo o desemprego diminuído nesta faixa etária cerca de 14% (quando a redução global do desemprego se fixou nos 11%). Assim, perante uma oportunidade de emprego, alguns jovens podem de facto ter optado por abandonar a escola (ou uma ação de formação ou um estágio), sem completar o respetivo ciclo de ensino. Infelizmente, claro, pois o ideal seria, sempre que as circunstâncias de vida o permitissem, ter prosseguido estudos e atingido maiores níveis de qualificação. Sejamos, contudo, muito claros: desta vez ninguém os mandou emigrar, ninguém lhes sugeriu que abandonassem o país.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Legalidades há muitas

Se está em causa a dívida pública, ainda que esta seja claramente insustentável, dizem-nos: “Não podemos aceitar um corte da dívida de um membro da moeda única europeia, está excluído pelo Tratado de Lisboa”.

Se a questão se prende com superávites na balança corrente, ainda que o Procedimento Relativo aos Desequilíbrios Macroeconómicos preveja que a Comissão Europeia inicie um procedimento por incumprimento sempre que um país ultrapasse o limite (média de 3 anos) de 6% no que ao excedente da  balança corrente diz respeito: no pasa nada.


E estamos nisto. Tudo para o bem comum, claro. Para que depois das ditas necessárias “reformas” todos possam acumular excedentes exportando para Marte.

A propósito do anterior grande confronto entre a Grécia e os seus credores, deixo-vos umas notas que escrevi em Julho de 2015. Voltarei a este assunto brevemente.

Foi há 13 anos

Hoje, debateu-se no Parlamento a legislação laboral, nomeadamente a questão da contratação colectiva.

Era muito conveniente voltar ao passado para perceber ideias, convicções, promessas que ficaram pelo caminho.

Estávamos em 2003 e a maioria de direita no Parlamento, colocou à discussão uma promessa de Código de Trabalho, elaborada de forma não transparente num escritório de advogados. Nem foi na concertação social, veja-se lá!

Era o ministro do Trabalho, António Bagão Félix no governo Durão Barroso.

Não guardei o link da sessão, mas podem ler na íntegra no final, como se fosse em anexo. Mas dizia ele na sessão de a 16 de Janeiro de 2003:

Orador: Acabou definitivamente o tempo de emprego para toda a vida. Há, agora, que criar as condições de trabalho com qualidade e por toda a vida activa.
(...)
Todos consideram que um dos grandes problemas nacionais é o baixo nível de produtividade. O Código do Trabalho procura, na medida do seu âmbito, contribuir para a sua melhoria, pela alteração do paradigma da relação entre empregadores e trabalhadores, sabendo-se que a economia só se desenvolve com as pessoas e pelas pessoas.
(...)
A reforma laboral é necessária para fortalecer as empresas, dignificar o trabalho, proteger os que trabalham. Ganhará com ela o País que trabalha e quer trabalhar, os empresários responsáveis e com sentido de risco, os jovens à procura da inserção no mercado de trabalho. Ajudar-se-á a quebrar o ciclo vicioso de baixa produtividade indutora de baixos salários. Dar-se-ão novas oportunidades a quem, querendo trabalhar, não tem emprego e ser-se-á mais exigente para quem, tendo emprego, não quer trabalhar.

Orador: Foi este o desafio que aceitámos. Será este o desafio a que Portugal vai responder patrioticamente.

Aplausos do PSD e do CDS-PP, de pé.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Pedalada

As estatísticas do desemprego agora publicadas mostram a continuação da recuperação do emprego em Portugal durante 2016, embora com um ligeiro decréscimo no quarto trimestre de 2016. Esta recuperação do emprego acompanha o ligeiro crescimento económico do ano passado, sobretudo fruto do crescimento do consumo privado, o que pode indicar que o emprego criado tenha sido sobretudo no sector de serviços, mais reactivos ao consumo e mais dependentes da força de trabalho na sua resposta à evolução do mercado. De facto, se a ligeira queda do emprego no 4º trimestre não surpreende, pois acompanha o que tem acontecido nos últimos trimestres, é notório que esta sazonalidade do emprego afecta sobretudo as regiões mais dependentes de serviços, como o turismo. A Área Metropolitana de Lisboa e, sobretudo, o Algarve são as únicas zonas onde o desemprego cresce neste trimestre.

Sem uma recuperação robusta do investimento, este crescimento do emprego revelar-se-á demasiado frágil no futuro, como é sublinhado pela continuada diminuição da população activa durante 2016. Com uma força de trabalho disponível em contínuo recuo, acompanhada por níveis de investimento insuficientes para manter a capacidade produtiva disponível, a recuperação económica e do emprego parecem muito limitadas no futuro. O relançamento do emprego continua urgente já que, não obstante o seu recente crescimento, encontramo-nos ainda muito abaixo do nível existente no início de 2011 (menos 131 mil postos de trabalho).

Nuno Teles no Público de hoje.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Agendas há muitas

Porfírio Silva deu uma entrevista, defendendo que a esquerda “tem de pensar uma agenda para a década”. Creio que conjuntamente tem mais em que pensar aqui e agora. No contexto da actual solução governativa, não tem certamente de colocar questões que não está ainda em condições de resolver, como alguns dos termos da sua entrevista de resto ilustram. Então para quê colocá-las?

Aposto que quando todos estivermos em condições de as colocar é porque, por exemplo, os hábitos de pensamento que associam a nobre palavra internacionalismo a uma rematada distopia monetária chamada euro serão parte do passado e é porque já estaremos em condições de recuperar instrumentos para planear indicativa e consequentemente na escala onde pode estar a escolha democrática.

Lamentavelmente ou não, no actual contexto estrutural, passados um ou dois anos já ninguém se lembra de agendas para a década.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Para exercitar o músculo democrático


Ainda recentemente, o Congresso dos Jornalistas, que reuniu após 19 anos de interregno, foi muito marcado pela denúncia da degradação da autonomia e das condições laborais em que os jornalistas exercem a sua profissão – um problema social generalizado para o qual, infelizmente, a maior parte da comunicação social contribuiu, cada vez que não fez jornalismo de trabalho ou o fez usando enviesamentos ideológicos e estereótipos de classe, contribuindo para convencer os cidadãos de que não haveria alternativas a essa degradação. Por vezes prova-se do próprio veneno. E não é agradável, mas pode ser um momento de aprendizagem. Quando as pessoas voltam a encontrar-se para agirem colectivamente na defesa dos seus direitos, descobrem que acumularam também outros tipos de dificuldades: de mobilização, de informação, de meios (materiais e outros), de definição de princípios e valores comuns, de identificação de pontos de acordo e de discórdia, de estabelecimento de regras de funcionamento e de prioridades estratégicas, etc. Descobrem, ou pelo menos podem descobrir, que a participação democrática, seja ela em associações, movimentos ou sindicatos, é uma forma de os trabalhadores exercitarem, na prática, o tal músculo democrático que sempre definha com a falta de uso.

Sandra Monteiro, Trabalho e organização colectiva, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Fevereiro de 2017.

Uma boa prova do veneno é a hipótese de uberização do jornalismo avançada neste blogue por João Ramos de Almeida: o fim dos trabalhadores.

Regressando ao jornal, deixo-vos o editorial de Serge Halimi sobre Trump e o resumo do número:

“Na componente redactorial portuguesa, destaque para o dossiê «Habitação, racismo: no Portugal dos violentos costumes», onde analisamos as políticas de exclusão, despejos e demolições, com que se redesenham as periferias, e várias formas de racismo institucional e desigualdades étnico-raciais persistentes no país. As evoluções recentes do emprego dos jovens diplomados, a situação das artes do espectáculo, o papel do direito no apoio a refugiados e migrantes e as agruras do trabalho de jornalismo e do jornalismo de trabalho são outros temas do mês.

No internacional, reflectimos sobre a passagem da rua ao exercício do poder nas «cidades rebeldes» espanholas, sobre o significado da candidatura de François Fillon nas eleições presidenciais francesas, sobre a política do medo e a escalada militar nos Estados Unidos, sobre a situação catastrófica das prisões no Brasil, sobre a progressão da anexação israelita e a forma como ela inviabiliza, na prática, a criação do Estado da Palestina, sobre o outro lado do primeiro-ministro canadiano Justin Trudeau... e muito mais.”

domingo, 5 de fevereiro de 2017

O passado é um país que fica lá em cima


Os anos vinte e trinta são usados e abusados pela sabedoria convencional. São anos sombrios, claro. No campo da social-democracia, os EUA de Roosevelt e sobretudo a Suécia são duas ilhas.

Como sublinha Sheri Berman, no seu The Primacy of Politics, a social-democracia sueca, sob a liderança de Per Albin Hansson desde 1928, adopta a fórmula “casa do povo” (Folkhemmet), oriunda da crítica anti-liberal da direita nacionalista, dando-lhe um cunho igualitário substantivo, associado a uma noção de comunidade política densa, subjacente à construção do Estado Providência e a um “keynesianismo antes de Keynes”, que muito deve a figuras como Gunnar Myrdal, o grande economista do desenvolvimento social-democrata sueco (em 1974, lá terá de partilhar o Prémio dito Nobel com Friedrich Hayek).

A partir dos anos trinta, inicia-se o longo período, de mais de quatro décadas, de hegemonia social-democrata, de longe a principal força nacional. Não por acaso, os social-democratas suecos foram predominantemente cépticos em relação à CEE até ao final dos anos oitenta, estando, ao mesmo tempo, a Suécia na vanguarda da cooperação internacional, incluindo no auxílio aos movimentos nacionalistas anti-coloniais. As sociedades mais igualitárias, seguras na sua identidade, são mais cooperativas, sabemo-lo há muito.

Se escrevo sobre isto, é só para dar um exemplo de um tempo em que a esquerda social-democrata sabia que nacionalismos há muitos e que hegemonia é a capacidade de protagonizar um projecto nacional e popular orientado para o desenvolvimento inclusivo. E sabia que as Nações Unidas fazem sentido porque podiam ser um veículo anti-colonial e anti-imperial para uma nova ordem política e económica internacional, que tenha Estados fortes, com capacidade de controlar soberanamente os seus recursos, no seu centro. Em 1974, foi aí aprovado um projecto de ordem económica, refletindo o auge do chamado nacionalismo internacionalista, logo enterrado pelo neoliberalismo emergente.

Por várias razões, nos terríveis anos oitenta e noventa, à sombra dos quais ainda vivemos, a social-democracia esqueceu tudo isto, perseguindo miragens puramente pós-nacionais. Entre as razões para a desgraçada tendência está, elemento a que não se presta suficiente atenção, a crise internacional da alternativa comunista, que tinha afinal de contas permitido a uma certa social-democracia ser a verdadeira via do meio ou terceira via lá em cima. Não é por acaso que nos anos noventa a ideia de terceira via passou a estar associada à diluição da social-democracia...

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Prestações sociais, «Estado paralelo» e «proximidade»

Um dos argumentos recorrentemente utilizados para defender a contratualização de funções sociais do Estado com organizações da «sociedade civil» (IPSS e demais entidades do designado «Terceiro Setor»), na lógica da constituição e consolidação de um autêntico «Estado paralelo» (para recuperar a certeira expressão do Pedro Adão e Silva), consiste em afirmar que estas organizações funcionam numa lógica de «proximidade». Ou seja, conhecem de modo mais profundo os problemas e as necessidades e por isso gerem e administram melhor os recursos públicos e as diferentes medidas de política social.

É nesta linha que se situam, por exemplo, as recentes declarações de Isabel Jonet, ao manifestar a sua preocupação e desconfiança em relação às alterações que o governo pretende introduzir no apoio alimentar (substituindo o mais possível as cantinas sociais pela entrega de cabazes com alimentos a pessoas e famílias carenciadas). Para Jonet, é necessário que o papel das IPSS seja salvaguardado. Por quê? Porque «quando se tem uma rede de apoio social como a nossa, temos que confiar que são estas instituições que conhecem a realidade», que são elas que têm «uma noção muito clara, porque é muito próxima, das necessidades de cada família».

Sucede, porém, que o relatório de avaliação do «Programa de Emergência Alimentar», recentemente publicado pelo GEP, não dá suporte esta tese, concluindo que a rede de cantinas sociais que se constituiu não só tem escassa correspondência com os territórios mais carenciados inicialmente identificados, como revela descoincidências com a distribuição territorial dos beneficiários de RSI (o indicador disponível mais adequado para medir a pobreza à escala do distrito). De facto, a distribuição dos beneficiários de cantinas sociais aproxima-se mais da configuração da rede de equipamentos e respostas sociais existente do que da distribuição territorial das carências. O que sugere que, a partir de certo ponto, as cantinas sociais serviram mais para alimentar as necessidades da rede de IPSS do que para responder aos níveis de prevalência de pessoas e famílias mais carenciadas.


Como os mapas evidenciam, o caso do Porto é particularmente expressivo: embora concentre 10,7% do total ponderado de beneficiários de RSI no país, comporta apenas 1,7% do total de beneficiários de cantinas sociais (um valor mais próximo do peso relativo das respostas sociais, a rondar os 1,4%). Por contraste, Portalegre é o distrito do país que detém simultaneamente a maior concentração de beneficiários de cantinas sociais (12,6%) e de equipamentos e respostas sociais (20,4%), apesar do reduzido peso de beneficiários de RSI (7,5%). No total dos distritos, a soma dos desvios dos valores de beneficiários de cantinas sociais face aos beneficiários de RSI atinge os 58 p.p., valor que desce para 43 p.p. quando a comparação é feita com o peso relativo dos equipamentos e respostas sociais. Ou seja, discrepâncias que certamente não se verificariam caso existisse o tal «maior conhecimento da realidade» por parte das IPSS.

O argumento da «proximidade», apresentado como atributo intrínseco das IPSS e que as diferenciaria, com vantagens comparativas, dos serviços públicos (como se estes não estivessem também incrustados no território e portanto igualmente próximos), é pois todo um programa. Um programa que ignora que a dita proximidade se traduz muitas vezes em práticas de discricionariedade e assistencialismo moralista (fundadas numa cultura de intervenção tendencialmente avessa ao reconhecimento de direitos) e que são agravadas por significativos défices de acompanhamento e escrutínio. Aliás, talvez seja precisamente por isso que Isabel Jonet confessa ser «mais adepta da caridade do que da solidariedade social». Por quê? Porque a caridade «é amor, é espírito de serviço», enquanto «a solidariedade é algo mais frio que incumbe ao Estado e que não tem a ver com amor, mas sim com direitos adquiridos».

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Sobre o livre comércio


“A Zona Euro não deve virar costas ao livre comércio, diz Draghi” (Negócios, edição de hoje, página 13). Draghi argumenta que “a abertura económica... é a única forma de enfrentar os desafios que hoje se colocam, entre os quais a ascensão do extremismo político.” Para o presidente do BCE, há que manter o rumo da política económica porque “tem funcionado bem”.

É nesta bolha intelectual e política que funcionam os responsáveis pelo estado catastrófico em que se encontra boa parte da UE. Esta elite cuidou de agravar a crise de 2008 com a generalização de políticas recessivas, mandou recuperar os créditos dos bancos do centro que tinham alimentado os défices da periferia ao sabor de uma taxa de juro única, baixa e sem risco de desvalorização. E têm a lata de repetir que é preciso mais do mesmo.

Os povos europeus estão a ficar fartos destas elites que lhes impõem políticas erradas e, pior ainda, se mantêm em estado de negação. Não é apenas a obsessão com os défices, num contexto de estagnação (no caso grego, depressão) que está clamorosamente errada e nos levou a uma década perdida. É, sobretudo, a lógica ordoliberal, inscrita nos tratados da UE e nas Constituições de alguns países, que visa retirar da deliberação democrática a escolha das políticas macroeconómicas, como se a UE já fosse um Estado federal.

A participação empenhada da UE na Organização Mundial do Comércio, para que os princípios neoliberais do chamado “comércio livre” fossem impostos a todos os países, teve o apoio dos partidos socialistas europeus que meteram na gaveta o socialismo e fizeram do euroliberalismo a sua nova ideologia. Hoje estão a pagar o preço dessa escolha político-ideológica, em benefício da extrema-direita de que dizem ter tanto medo.

Note-se que nenhum país se desenvolveu com base no "comércio livre". Todos praticaram uma abertura inteligente protegendo as suas indústrias nascentes, progressivamente baixando as barreiras aduaneiras e retirando subsídios às exportações à medida que construíam capacidades para enfrentar a concorrência e dela beneficiar pela inovação. O Japão gastou imensos recursos para fazer vingar a Toyota e, com essa aposta ganha, pôde construir especializações produtivas muito mais promissoras do que a sua tradicional indústria da seda. Não foi o "livre comércio" que fez o desenvolvimento do Japão.

Ao contrário do que dizem os europeístas, defensores do definitivo desaparecimento da soberania dos países-membros da UE, voltar as costas ao “livre comércio” não significa fechamento da economia, não significa viver em autarcia. Significa recuperar espaço de política para poder levar a cabo uma estratégia de desenvolvimento, o que é impossível sem moeda própria, sem política monetária, cambial e orçamental, sem política comercial externa.

Como muito bem disse um grande especialista do desenvolvimento, Robert Wade, em vez de endeusar o comércio livre, cujos resultados foram maus – a China não pode entrar nas contas que os livre-cambistas gostam de exibir – “a maioria dos países que aceleraram o seu crescimento criou um sistema de coordenação entre os vários interesses dos grupos sociais relevantes, o que permitiu constituir um “estado desenvolvimentista”. É este modelo que está proibido na UE.

Por conseguinte, o "comércio livre" é a ideologia que convém aos Estados que já estão em cima e querem impedir os de baixo de seguirem pelo mesmo caminho, o de uma política industrial e comercial inteligente, ao serviço de uma estratégia nacional (ver Ha-Joon Chang).

Ao insistir nas mesmas políticas que antecederam o colapso de 1929 e agravaram a crise nos anos seguintes, as elites do europeísmo confirmam a cegueira e o desnorte que conduziu à ascensão de partidos da extrema-direita. Hoje, na UE, quem lidera a luta contra o euro e as suas políticas depressivas é, regra geral, a extrema direita. Pelo menos em Portugal, as esquerdas já começaram a acordar, esperemos que ainda a tempo de nos prepararmos para minimizar os efeitos do colapso do euro que, mais tarde ou mais cedo, chegará.