sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017
Sobre o livre comércio
“A Zona Euro não deve virar costas ao livre comércio, diz Draghi” (Negócios, edição de hoje, página 13). Draghi argumenta que “a abertura económica... é a única forma de enfrentar os desafios que hoje se colocam, entre os quais a ascensão do extremismo político.” Para o presidente do BCE, há que manter o rumo da política económica porque “tem funcionado bem”.
É nesta bolha intelectual e política que funcionam os responsáveis pelo estado catastrófico em que se encontra boa parte da UE. Esta elite cuidou de agravar a crise de 2008 com a generalização de políticas recessivas, mandou recuperar os créditos dos bancos do centro que tinham alimentado os défices da periferia ao sabor de uma taxa de juro única, baixa e sem risco de desvalorização. E têm a lata de repetir que é preciso mais do mesmo.
Os povos europeus estão a ficar fartos destas elites que lhes impõem políticas erradas e, pior ainda, se mantêm em estado de negação. Não é apenas a obsessão com os défices, num contexto de estagnação (no caso grego, depressão) que está clamorosamente errada e nos levou a uma década perdida. É, sobretudo, a lógica ordoliberal, inscrita nos tratados da UE e nas Constituições de alguns países, que visa retirar da deliberação democrática a escolha das políticas macroeconómicas, como se a UE já fosse um Estado federal.
A participação empenhada da UE na Organização Mundial do Comércio, para que os princípios neoliberais do chamado “comércio livre” fossem impostos a todos os países, teve o apoio dos partidos socialistas europeus que meteram na gaveta o socialismo e fizeram do euroliberalismo a sua nova ideologia. Hoje estão a pagar o preço dessa escolha político-ideológica, em benefício da extrema-direita de que dizem ter tanto medo.
Note-se que nenhum país se desenvolveu com base no "comércio livre". Todos praticaram uma abertura inteligente protegendo as suas indústrias nascentes, progressivamente baixando as barreiras aduaneiras e retirando subsídios às exportações à medida que construíam capacidades para enfrentar a concorrência e dela beneficiar pela inovação. O Japão gastou imensos recursos para fazer vingar a Toyota e, com essa aposta ganha, pôde construir especializações produtivas muito mais promissoras do que a sua tradicional indústria da seda. Não foi o "livre comércio" que fez o desenvolvimento do Japão.
Ao contrário do que dizem os europeístas, defensores do definitivo desaparecimento da soberania dos países-membros da UE, voltar as costas ao “livre comércio” não significa fechamento da economia, não significa viver em autarcia. Significa recuperar espaço de política para poder levar a cabo uma estratégia de desenvolvimento, o que é impossível sem moeda própria, sem política monetária, cambial e orçamental, sem política comercial externa.
Como muito bem disse um grande especialista do desenvolvimento, Robert Wade, em vez de endeusar o comércio livre, cujos resultados foram maus – a China não pode entrar nas contas que os livre-cambistas gostam de exibir – “a maioria dos países que aceleraram o seu crescimento criou um sistema de coordenação entre os vários interesses dos grupos sociais relevantes, o que permitiu constituir um “estado desenvolvimentista”. É este modelo que está proibido na UE.
Por conseguinte, o "comércio livre" é a ideologia que convém aos Estados que já estão em cima e querem impedir os de baixo de seguirem pelo mesmo caminho, o de uma política industrial e comercial inteligente, ao serviço de uma estratégia nacional (ver Ha-Joon Chang).
Ao insistir nas mesmas políticas que antecederam o colapso de 1929 e agravaram a crise nos anos seguintes, as elites do europeísmo confirmam a cegueira e o desnorte que conduziu à ascensão de partidos da extrema-direita. Hoje, na UE, quem lidera a luta contra o euro e as suas políticas depressivas é, regra geral, a extrema direita. Pelo menos em Portugal, as esquerdas já começaram a acordar, esperemos que ainda a tempo de nos prepararmos para minimizar os efeitos do colapso do euro que, mais tarde ou mais cedo, chegará.
Ainda não percebi exatamente que estratégia defendem os anti-Euro, que não implique um espécie de retorno ao modelo produtivo vigente nos anos 70, que funcionou até à crise do petróleo. Aliás, o Ricardo Paes Mamede já aqui lembrou há muito a falácia da 'reindustrialização' (ver http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2013/01/5-ideias-sobre-reindustrializacao.html). Convém ainda lembrar que o neokeynesianismo apareceu como tentativa para explicar o falhanço clamoroso das políticas keynesianas que geraram 'stagflation' nos anos 70. E, já agora, conviria igualmente lembrar que o crescimento do comércio mundial ultrapassou o do PIB até 1914 e depois de 1945, ao passo que os anos 1918-1939 se caracterizaram ao invés pelo contrário, com as consequências que se conhecem. Sabe, Jorge Bateira, você parte do pressuposto que nós podemos, saídos do Euro e da UE, ter a política comercial que quisermos, sem que isto tenha qualquer consequência para as nossas empresas exportadoras. Isto até pode ser verdade no caso dos EUA ou do Japão, ou talvez do Reino Unido (que tem uma balança comercial fortemente desequilibrada, pelo que lhes convém algum protecionismo, embora não pareçam ser essas as intenções de May). Relativamente a Portugal, que sempre foi uma Economia Aberta, com um défice da balança comercial que remonta aos anos 50 e que agora finalmente tem um superavit, não me parece nada que isto funcione. Mas estarei disposto a deixar-me convencer se nos mostrar estudos que o sustentem...
ResponderEliminarUm muito bom post a chamar o nome aos bois.
ResponderEliminarE que convoca imediatamente alguns comentadores apressados mas sobretudo perturbados. Um particularmente useiro e vezeiro em "cretinos" e outros mimos com que adorna a sua linguagem e que cumpre os seus preceitos ao lado dos agiotas, credores e especuladores.
Reduzidos a este panorama de indigência intelectual.
Já lá iremos
Excelente post.
ResponderEliminar"...o comércio livre" é a ideologia que convém aos Estados que já estão em cima e querem impedir os de baixo de seguirem pelo mesmo caminho..."
Lapidar.
Num mundo que se quer globalizado a competição tem de dar lugar à cooperação, a riqueza produzida tem de ser partilhada para que seja possível todos "remarem" para o mesmo lado. O modela de trocas comerciais tem de ser refeito, a principal falha dos cientistas sociais dos nossos dias tem sido a incapacidade de conceberem modelos radicalmente diferentes dos que têm sido aplicados, só estes serão capazes de responder aos desafios de um mundo moderno.
É perturbador ouvir de altos dignitários que têm de ser aplicadas medidas que não só falharam como transferiram os custos do processo para os que estão numa situação mais frágil, penso que estas declarações devem ser entendidas como actos de agressão, têm de ser criados poderes paralelos a estas instituições, politicas económicas erradas terminam sempre em tragédia.
Como se poderá afirmar em absoluto que “comercio livre” seja o praticado na U.E. se não temos soberania nem independência nem liberdade para o praticar?
ResponderEliminarE que liberdade e´ esta quando temos de entregar a´ NATO “Para Portugal: em 2016 o orçamento foi de 2,54 mil milhões de euros, ou seja, 1,38% do PIB e 6,96 milhões de euros por dia”. Verba muito abaixo dos 2% exigidos pela NATO. Verba esta que ajudaria a praticar muito mais livremente o tal “Comercio Livre?
De Adelino Silva
Eu não vejo ninguém com coragem de dizer não a UE e ao Euro!
ResponderEliminarComo diz o outro somos todos uma cambada de "mariconços"!!!