Agora que o governo tomou posse, vale a pena ler o registo de alguns dos velhos interesses associados a novos ministros feito por Adriano Campos. Temos assim boas e adicionais razões para garantir a mais curta duração da história democrática a este governo.
Agora, por favor, evitem a tentação de convocar o “isto só neste país”. A porta giratória entre política e negócios parece ser o feitio internacional de um capitalismo cada vez mais liberto de impurezas democráticas, de freios e contrapesos.
Este feitio parece manifestar-se ainda mais intensamente, dada a natureza mais retintamente pós-democrática das coisas, na escala supranacional e nos seus não-lugares enxameados de grupos de pressão ligados ao grande capital: a Comissão Europeia, em Bruxelas, é talvez a porta giratória por excelência. O cherne e outros peixes graúdos que o digam.
Não é aliás por acaso que a Comissão Europeia é um dos outros nomes da promoção politica da globalização neoliberal no continente e para lá dele: o tratado transatlântico é só o último e potencialmente gravoso exemplo deste feitio.
sábado, 31 de outubro de 2015
sexta-feira, 30 de outubro de 2015
A vez da esquerda
A leitura na internet dos comentários sobre a possibilidade de o país vir a ter um governo do PS, com o apoio parlamentar do BE e PCP, tem sido muito instrutiva. É particularmente interessante ler o que escrevem as pessoas ansiosas pela mudança de governo que se avizinha. Percebe-se que o sofrimento infligido pelas políticas do anterior governo não desapareceu e deixará marcas profundas na sociedade portuguesa. Como é comum nas redes sociais, as emoções andam à solta e turvam a avaliação dos riscos e das potencialidades desta solução política. Mesmo as pessoas ponderadas, e até com instrução superior, têm dificuldade em criar o distanciamento necessário a uma avaliação crítica da conjuntura política. Este clima psicossocial torna mais difícil uma intervenção realista que não queira assumir o papel de Cassandra.
Num contexto de grande alívio para a maioria da população, por finalmente nos vermos livres do governo da PàF, percebe-se como é delicado fazer uma avaliação do que pode ganhar o país com esta experiência governativa. Antes de mais, é possível melhorar a vida de muitos cidadãos revogando legislação com evidente marca ideológica e escasso impacto orçamental em vários sectores, a começar pela legislação laboral. Depois, consegue-se evitar dois rudes golpes sobre o sistema de pensões. O primeiro, sobre as pensões mínimas, num valor para quatro anos estimado em 1020 milhões de euros. Graças ao acordo à esquerda, os militantes socialistas evitam passar pela vergonha de ver um governo da PàF aplicar uma medida que está no programa do PS e transformar um direito social – a pensão mínima como direito conferido pelo trabalho – numa medida de assistência pública sujeita a condição de recursos.
O segundo golpe, a redução da TSU, diz respeito à utilização dos descontos para a Segurança Social como instrumento de política económica, o que frontalmente viola o contrato social que sustenta a nossa democracia. Este autonomizou o orçamento da Segurança Social e conferiu-lhe uma gestão tripartida no âmbito da concertação social. A medida constituiria o precedente necessário para, mais tarde, permitir tratar a TSU como um imposto que, de facto, não é – como contribuição* social, é receita consignada que confere o direito a uma contraprestação –, o que sujeitaria o financiamento da Segurança Social aos ciclos políticos esquerda-direita. Seria o golpe final no legado histórico das lutas de gerações de trabalhadores por uma vida decente e pela mutualização dos riscos sociais. Para formar governo, o PS teve de deixar cair uma medida que foi bem acolhida pela PàF.
Há também uma distribuição um pouco mais justa do rendimento nacional que resultaria de uma política orçamental que, tanto quanto possível, transferisse alguns custos da austeridade para as classes de maior rendimento e património. Neste ponto, resta saber se a Comissão Europeia não invocará um imaginário impacto orçamental negativo dessas medidas para as recusar no exame prévio que fará ao Orçamento. E isto leva-nos ao ponto decisivo nesta experiência de “governo à esquerda”. Em que medida é possível fazer deslizar as metas do défice orçamental para acomodar os impactos das mudanças na política interna e da estagnação mundial? Como manter uma consistência mínima nesta política de esquerda, respeitadora das regras da direita, no quadro de um previsível endurecimento da atitude da CE e do Eurogrupo?
A forma como as esquerdas vão explicar ao povo as dificuldades que António Costa encontrará em Bruxelas para aprovar o seu primeiro Orçamento determinará a percepção da nova maioria social quanto à margem de manobra que nos sobra para o exercício da democracia. Esta experiência governativa deve conduzir a um alargamento da consciência popular de que o euro é a causa desta crise. Esta é uma oportunidade que a esquerda não pode desperdiçar. Para que Portugal tenha futuro, os que se identificam com Cavaco Silva na submissão ao ordoliberalismo alemão têm de ser derrotados. O dia 1 de Dezembro de 1640 não foi esquecido.
(O meu artigo no jornal i)
* Por lapso, no artigo está "prestação"
quinta-feira, 29 de outubro de 2015
O «empreendedorismo» é só para disfarçar o vazio
Não por acaso, um dos domínios em que o paradigma do «empreendedorismo» se começou a instalar de modo relevante entre nós, há mais de uma década, foi o das políticas de combate à pobreza e à exclusão social urbana. Aclamado como sinal da emergência de uma nova cultura de intervenção social e de um novo quadro de políticas públicas, o empreendedorismo foi anunciado como uma abordagem inovadora, capaz de superar as limitações do assistencialismo (caridade) e do providencialismo estatal (direitos sociais), sublinhando-se o seu potencial no «empoderamento» dos indivíduos, na activação das suas «competências» e na sua «capacitação». Ou seja, meio caminho andado para desinvestir no combate à exclusão e responsabilizar subrepticiamente os pobres pela sua própria situação e condição, desprezando o peso das trajectórias de vida, a natureza cíclica da reprodução social da pobreza ou a adversidade dos contextos sócio-espaciais. Bastava de pieguices. Era chegado o momento de caber aos próprios pobres, e às comunidades a que pertenciam, safar-se. Era chegado o tempo de pôr cobro aos apoios e prestações sociais (como o RSI), à «subsidiodependência» (imaginária) e à suposta «rigidez e ineficiência» das políticas públicas de combate à pobreza.
Como todas as narrativas fraudulentas, a ideologia neoliberal do «empreende» dispôs de condições propícias para vingar na opinião pública. Bastou amplificar conversetas de café e dar corda à ideia de que os portugueses são incapazes «de ir à luta», de «criar o seu próprio posto de trabalho» e de «produzir riqueza», antes preferindo «esperar que alguém (...) lhes arranje emprego» e assim viver «à sombra de direitos adquiridos (...), enfronhados numa atitude resignada e fatalista» (para recuperar aqui a fina ironia de João Pinto e Castro, num dos mais eloquentes e certeiros textos de crítica ao empreendedorismo como política pública). Contudo, à semelhança da falsa ideia de senso comum sobre os «preguiçosos do sul», também neste caso os números desmentem a tese de um suposto «défice empreendedor» português: em 2013, segundo dados da OCDE, Portugal encontrava-se entre os países com maior taxa de emprego por conta própria (22%), cinco pontos percentuais acima da média europeia (17%) e a par de países como a Grécia, a Itália, a Irlanda ou a Espanha.
Nos últimos quatro anos, contudo, a proclamada «mudança estrutural da economia» elegeu o empreendedorismo como política oficial de emprego e solução mágica para o crescimento da economia - concomitante com a elevação da «sopa» ao estatuto de política social, num regresso ao passado que nunca imaginámos poder vir a acontecer. Os resultados desta aposta empreendedora estão hoje à vista: «a maioria do empreendedorismo em Portugal é de necessidade, gera turbulência no tecido empresarial e contribui para o crescimento "anémico" da economia», conclui Gonçalo Brás, da Faculdade de Economia de Coimbra. Para acrescentar que um dos «traços preocupantes do empreendedorismo em Portugal» é este ser alimentado pelo Governo, assumindo-se o desemprego como «condição 'sine qua non' para haver apoio». Ou seja, em que o desemprego leva a que as pessoas, através de um empreendedorismo compulsivo, sejam «empurradas para o mercado, muitas vezes impreparadas, o que pode resultar no seu endividamento».
Não se trata aqui de pôr em causa o empreendedorismo como uma estratégia, entre outras - e com as limitações que lhe são inerentes - de combate à pobreza e exclusão. Nem da sua importância, muito relativa, na criação apoiada de emprego e de oportunidades de negócio, sempre que tal faça sentido (como sucede nos bons exemplos de microcrédito). Do que se trata é de denunciar a tentativa de camuflar, com o romance do «empreender», o esvaziamento deliberado do papel do Estado e das políticas públicas, tanto no âmbito das estratégias integradas de desenvolvimento (através do investimento em educação e ciência ou de estratégias públicas à escala regional e local), como ao nível das políticas de emprego e de combate à pobreza e exclusão. Do que se trata é de desmascarar o logro e as ficções ideológicas nesta matéria, assinalando as consequências que advém da conversão do empreendedorismo em «política oficial de emprego», em grande medida assente na tese de que «o Estado asfixia a economia privada» e que se comprovou, nos últimos quatro anos, ser falsa. Aliás, talvez tenha chegado o momento de proceder a uma avaliação exaustiva dos resultados concretos que se obtiveram depois de tantas iniciativas, estímulos, workshops, financiamentos e programas, destinados ao fomento do «empreender».
Como todas as narrativas fraudulentas, a ideologia neoliberal do «empreende» dispôs de condições propícias para vingar na opinião pública. Bastou amplificar conversetas de café e dar corda à ideia de que os portugueses são incapazes «de ir à luta», de «criar o seu próprio posto de trabalho» e de «produzir riqueza», antes preferindo «esperar que alguém (...) lhes arranje emprego» e assim viver «à sombra de direitos adquiridos (...), enfronhados numa atitude resignada e fatalista» (para recuperar aqui a fina ironia de João Pinto e Castro, num dos mais eloquentes e certeiros textos de crítica ao empreendedorismo como política pública). Contudo, à semelhança da falsa ideia de senso comum sobre os «preguiçosos do sul», também neste caso os números desmentem a tese de um suposto «défice empreendedor» português: em 2013, segundo dados da OCDE, Portugal encontrava-se entre os países com maior taxa de emprego por conta própria (22%), cinco pontos percentuais acima da média europeia (17%) e a par de países como a Grécia, a Itália, a Irlanda ou a Espanha.
Nos últimos quatro anos, contudo, a proclamada «mudança estrutural da economia» elegeu o empreendedorismo como política oficial de emprego e solução mágica para o crescimento da economia - concomitante com a elevação da «sopa» ao estatuto de política social, num regresso ao passado que nunca imaginámos poder vir a acontecer. Os resultados desta aposta empreendedora estão hoje à vista: «a maioria do empreendedorismo em Portugal é de necessidade, gera turbulência no tecido empresarial e contribui para o crescimento "anémico" da economia», conclui Gonçalo Brás, da Faculdade de Economia de Coimbra. Para acrescentar que um dos «traços preocupantes do empreendedorismo em Portugal» é este ser alimentado pelo Governo, assumindo-se o desemprego como «condição 'sine qua non' para haver apoio». Ou seja, em que o desemprego leva a que as pessoas, através de um empreendedorismo compulsivo, sejam «empurradas para o mercado, muitas vezes impreparadas, o que pode resultar no seu endividamento».
Não se trata aqui de pôr em causa o empreendedorismo como uma estratégia, entre outras - e com as limitações que lhe são inerentes - de combate à pobreza e exclusão. Nem da sua importância, muito relativa, na criação apoiada de emprego e de oportunidades de negócio, sempre que tal faça sentido (como sucede nos bons exemplos de microcrédito). Do que se trata é de denunciar a tentativa de camuflar, com o romance do «empreender», o esvaziamento deliberado do papel do Estado e das políticas públicas, tanto no âmbito das estratégias integradas de desenvolvimento (através do investimento em educação e ciência ou de estratégias públicas à escala regional e local), como ao nível das políticas de emprego e de combate à pobreza e exclusão. Do que se trata é de desmascarar o logro e as ficções ideológicas nesta matéria, assinalando as consequências que advém da conversão do empreendedorismo em «política oficial de emprego», em grande medida assente na tese de que «o Estado asfixia a economia privada» e que se comprovou, nos últimos quatro anos, ser falsa. Aliás, talvez tenha chegado o momento de proceder a uma avaliação exaustiva dos resultados concretos que se obtiveram depois de tantas iniciativas, estímulos, workshops, financiamentos e programas, destinados ao fomento do «empreender».
quarta-feira, 28 de outubro de 2015
A caminho de um governo de esquerda
A cada dia que passa, torna-se mais forte a probabilidade de que estejamos mesmo a caminho de um governo de esquerda, viabilizado por uma maioria parlamentar PS-BE-CDU representativa da maioria do eleitorado. Quando um tal governo tomar posse, já não virá cedo, tendo em conta a enorme regressão social a que temos vindo a assistir no nosso país por deliberada engenharia social da direita. Nos últimos quatro anos, os níveis de pobreza e desigualdade de rendimento registaram um retrocesso nunca visto em Portugal, um recuo para o nível de há décadas atrás. E a culpa não foi da crise, dado que os percentis mais elevados da distribuição do rendimento – e os milionários, em particular – deram-se muito bem neste período. Não é uma coincidência que se trate dos mesmos quatro anos em que a direita retirou apoios sociais aos mais pobres, fez as pessoas trabalhar mais horas e mais dias por salários mais reduzidos, aumentou brutalmente a carga fiscal sobre a classe média, aliviou a tributação sobre o capital, alterou os escalões do IRS num sentido deliberadamente regressivo e reduziu os salários indirectos através da erosão dos serviços públicos.
É precisamente com vista à inversão deste rumo de desigualdade e desagregação social que é possível e desejável, apesar de todas as diferenças, encontrar uma base sólida de entendimento entre socialistas, comunistas e bloquistas. E está longe de ser coisa pouca, ao contrário do que afirmam os críticos de direita: é o próprio estado social, a coesão social e a decência mínima da sociedade portuguesa que estão em causa. Proteger o emprego, os salários e as pensões, promover a justiça social. Se não vale a pena unirmo-nos por isto, então vale a pena unirmo-nos por quê?
E quanto às importantes divergências entre PS, BE e CDU, sobre questões como a reestruturação da dívida, a desejabilidade de saída do Euro ou a posição face ao sector empresarial do Estado? Ao contrário do que se pensa, estas diferenças, se geridas habilmente e numa base de confiança mútua, serão um factor de solidez e não de instabilidade do futuro governo. Pois se é óbvio que a base essencial do programa de governo terá de ser o programa do PS, enquanto mais votado dos três, é também certo que será a exposição franca e leal destas mesmas diferenças que permitirá mitigar os riscos de “abraços de urso” de parte a parte, garantindo que nenhum dos três renuncia à sua matriz identitária e doutrinária ou aliena o seu eleitorado.
Vamos a isso.
(publicado no Caderno de Economia do Expresso de 24/10)
É precisamente com vista à inversão deste rumo de desigualdade e desagregação social que é possível e desejável, apesar de todas as diferenças, encontrar uma base sólida de entendimento entre socialistas, comunistas e bloquistas. E está longe de ser coisa pouca, ao contrário do que afirmam os críticos de direita: é o próprio estado social, a coesão social e a decência mínima da sociedade portuguesa que estão em causa. Proteger o emprego, os salários e as pensões, promover a justiça social. Se não vale a pena unirmo-nos por isto, então vale a pena unirmo-nos por quê?
E quanto às importantes divergências entre PS, BE e CDU, sobre questões como a reestruturação da dívida, a desejabilidade de saída do Euro ou a posição face ao sector empresarial do Estado? Ao contrário do que se pensa, estas diferenças, se geridas habilmente e numa base de confiança mútua, serão um factor de solidez e não de instabilidade do futuro governo. Pois se é óbvio que a base essencial do programa de governo terá de ser o programa do PS, enquanto mais votado dos três, é também certo que será a exposição franca e leal destas mesmas diferenças que permitirá mitigar os riscos de “abraços de urso” de parte a parte, garantindo que nenhum dos três renuncia à sua matriz identitária e doutrinária ou aliena o seu eleitorado.
Vamos a isso.
(publicado no Caderno de Economia do Expresso de 24/10)
terça-feira, 27 de outubro de 2015
Pedimos desculpa pelo incómodo causado, mas a linha de fractura mudou de lugar
A insistência obsessiva de Cavaco Silva no «consenso», como garante da «estabilidade», assentou sempre no quadro mental que pressupõe a existência de uma linha de fronteira entre o «arco da governação» e os recorrentemente designados «partidos de protesto» (BE e PCP/PEV). E que, no âmbito do «arco da governação», compreende os sectores do centro esquerda (PS) e do centro-direita e direita (PSD e PP). Sejamos justos: este é o quadro mental com que, até ao passado dia 4 de Outubro, a sociedade portuguesa se habituou genericamente a encarar e a interpretar o espectro político português e a própria composição da AR. Nestes termos, a linha de fractura parlamentar atravessa o território da esquerda, sinalizando nomeadamente os distintos posicionamentos face à Europa e os diferentes graus de disponibilidade para governar.
Nas últimas eleições legislativas, como bem sabemos, os partidos de esquerda obtiveram a maioria dos lugares no parlamento (122, contra os 107 da coligação PàF) e 50,7% dos votos válidos (contra os 38,4% da coligação de direita). Mas esse não foi o dado mais relevante dos resultados eleitorais. A novidade, com um alcance verdadeiramente histórico, reside na disponibilidade efectiva para que PS, BE, PCP e PEV cheguem a um acordo que assegure o apoio no parlamento a um governo de esquerda e que, desse modo, garanta a «estabilidade» e o «consenso» a que Cavaco Silva tanto apelou. Sim, uma maioria parlamentar, só que situada à esquerda e com um entendimento diferente daquele em que o presidente estava a pensar.
As implicações deste novo quadro de relacionamento à esquerda são profundas, ameaçando tornar obsoleto o mapa mental a que por tradição se recorre para interpretar a vida política, a representação parlamentar e a própria governabilidade do país. Os denominadores comuns desse consenso - que se estão a desenhar a partir da observação dos compromissos internacionais, da defesa do trabalho, das políticas sociais públicas e do papel do Estado, bem como a partir da recusa de um modelo económico de subdesenvolvimento, assente nos baixos salários e na desqualificação - forçam a deslocação da linha de fractura convencional para o lugar onde esquerda e direita verdadeiramente se dividem. E isolam, na actual conjuntura, uma direita que glorifica a austeridade como pedra angular de todo um projecto político e legislativo. Ou seja, a direita da selvajaria neoliberal que, se se olhar ao espelho, já não consegue nele ver reflectido qualquer traço de social-democracia ou de democracia cristã. Aliás, foi a sua fúria e extremismo que muito contribuiu para o reforço e a convergência das esquerdas, instadas pelos eleitores, durante a campanha, a dialogar e a entender-se.
Como num movimento telúrico de tectónica de placas, esta deslocação da principal linha de fractura suscita medos e perplexidades. À direita, sobressai o medo que o Pedro Nuno Santos assinalou aqui, de forma particularmente cristalina: o medo de que a convergência à esquerda seja bem sucedida, apesar de todos os arremedos golpistas, da sabotagem em curso e da invocação artificial de fantasmas e demónios. À esquerda, a perplexidade de se constatar que ainda há quem considere que é possível e desejável, nas actuais circunstâncias (e com os actuais protagonistas), chegar a um acordo de merceeiro com a coligação PàF, como se água e azeite se pudessem, de súbito, misturar. Não percebendo (ou preferindo não perceber) que às vezes não há nada melhor, para se conseguir um bom avanço quando se está em posição desfavorável, do que fingir recuar.
Nas últimas eleições legislativas, como bem sabemos, os partidos de esquerda obtiveram a maioria dos lugares no parlamento (122, contra os 107 da coligação PàF) e 50,7% dos votos válidos (contra os 38,4% da coligação de direita). Mas esse não foi o dado mais relevante dos resultados eleitorais. A novidade, com um alcance verdadeiramente histórico, reside na disponibilidade efectiva para que PS, BE, PCP e PEV cheguem a um acordo que assegure o apoio no parlamento a um governo de esquerda e que, desse modo, garanta a «estabilidade» e o «consenso» a que Cavaco Silva tanto apelou. Sim, uma maioria parlamentar, só que situada à esquerda e com um entendimento diferente daquele em que o presidente estava a pensar.
As implicações deste novo quadro de relacionamento à esquerda são profundas, ameaçando tornar obsoleto o mapa mental a que por tradição se recorre para interpretar a vida política, a representação parlamentar e a própria governabilidade do país. Os denominadores comuns desse consenso - que se estão a desenhar a partir da observação dos compromissos internacionais, da defesa do trabalho, das políticas sociais públicas e do papel do Estado, bem como a partir da recusa de um modelo económico de subdesenvolvimento, assente nos baixos salários e na desqualificação - forçam a deslocação da linha de fractura convencional para o lugar onde esquerda e direita verdadeiramente se dividem. E isolam, na actual conjuntura, uma direita que glorifica a austeridade como pedra angular de todo um projecto político e legislativo. Ou seja, a direita da selvajaria neoliberal que, se se olhar ao espelho, já não consegue nele ver reflectido qualquer traço de social-democracia ou de democracia cristã. Aliás, foi a sua fúria e extremismo que muito contribuiu para o reforço e a convergência das esquerdas, instadas pelos eleitores, durante a campanha, a dialogar e a entender-se.
Como num movimento telúrico de tectónica de placas, esta deslocação da principal linha de fractura suscita medos e perplexidades. À direita, sobressai o medo que o Pedro Nuno Santos assinalou aqui, de forma particularmente cristalina: o medo de que a convergência à esquerda seja bem sucedida, apesar de todos os arremedos golpistas, da sabotagem em curso e da invocação artificial de fantasmas e demónios. À esquerda, a perplexidade de se constatar que ainda há quem considere que é possível e desejável, nas actuais circunstâncias (e com os actuais protagonistas), chegar a um acordo de merceeiro com a coligação PàF, como se água e azeite se pudessem, de súbito, misturar. Não percebendo (ou preferindo não perceber) que às vezes não há nada melhor, para se conseguir um bom avanço quando se está em posição desfavorável, do que fingir recuar.
Depois da derrota, a sabotagem
Enquanto o país viola todos os prazos da governação económica e as instituições europeias ameaçam com sanções, a direita apresenta um governo de aparelho a passo de caracol e prepara-se para esgotar o prazo constitucional com a apresentação de um programa que será basicamente o prolongamento da campanha eleitoral.
Cavaco, que estava tão preocupado com o cumprimento das regras europeias e a apresentação, tão rápida quanto possível, de um Orçamento do Estado para 2016, perdeu a pressa toda. Aguarda, cheio de paciência e bonomia, que a direita faça os seus números mediáticos e meta todos os seus meninos e meninas em cargos de chefia da administração pública. Tudo em nome da responsabilidade e do sentido de Estado.
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
Observar a reacção
É muito instrutivo observar a direita portuguesa na sua dimensão mais pura, ou seja, mais reaccionária, tão transparentemente exibida nas últimas semanas. É instrutivo ler, por exemplo, Maria João Avillez ou Rui Ramos no Observador. A primeira é uma espécie de Paula Bobone da politiquice oligárquica. O segundo é um distinto reabilitador do miguelismo e do salazarismo. Ambos exemplificam bem a retórica da reacção, na sua versão perversidade e risco com esteróides, face à possibilidade de um governo suportado por todas as esquerdas. Ambos criticam, implícita ou explicitamente, os que no seu campo alinham de forma considerada complacente com a opção da futilidade no reportório retórico reaccionário.
Depois de ter excomungado António Costa do círculo das pessoas de bem, sei lá, e de o ter colocado ao nível da ralé desonrada e perigosa, Avillez espanta-se com o silêncio da “metade do país que sou suposta representar”: o tal 1%, digamos, vale “metade”, reparem, confirmando de resto que a política de classe está viva e recomenda-se, podendo até acontecer que certa esquerda redescubra isso. E Avillez nem tinha ainda visto nada quando escreveu: a própria CIP, hoje liderada por alguém que vem de baixo, afastou-se prudentemente do golpista e sabotador que está ainda em Belém.
Por que é que o fez? Porque os patrões parecem detestar a instabilidade vista como artificial e Cavaco é a fonte primacial dessa instabilidade; porque o patronato, enquanto sujeito colectivo, é atravessado pelas contradições entre fracções do capital, entre o capital financeiro e o industrial, por exemplo, e entre ver o trabalho como um mero custo e como uma relevante fonte de procura; porque, e isto é decisivo, o patronato mais esclarecido aposta na modalidade retórica da futilidade – nada de relevante mudará (e que é aquela a que devemos dar mais atenção) – e daí o esperar para ver, sem precipitações desnecessárias.
Rui Ramos resume a mais séria modalidade demasiado bem, ao mesmo tempo que, algo cinicamente, a contesta: “A oligarquia prepara-se para aceitar o BE e o PCP no governo como já os aceitou na vereação em Lisboa, porque do seu ponto de vista, Costa não será mais do que o presidente da câmara municipal de Portugal, pequeno concelho de um Estado imaginário cuja capital é em Bruxelas (ou em Berlim) e cuja lei de finanças locais até é muito restritiva.” A sua preocupação em salvar a “oligarquia” de si própria, das suas supostas ilusões europeístas é muito instrutiva: raspa-se o verniz dito liberal na semiperiferia em crise e vê-se logo o quê? Como designar esta direita, ainda para mais quando apela à rua e tudo? Vá lá, esta é fácil.
Reparem, entretanto, como a ideia de que na direita domina uma tradição política assente numa disposição conservadora, baseada no gradualismo, no conhecimento tácito, na razoabilidade, na prudência ou na aversão ao radicalismo é um mito que não sobrevive a um escrutínio mínimo. Este facto tem sido destacado, entre outros, por Corey Robin, partindo da análise crítica do pensamento reaccionário no centro do sistema mundial, mas as suas conclusões aplicam-se que nem uma luva a esse pensamento, sempre mais inseguro e disposto por isso a tudo, mas mesmo a tudo, com mais rapidez, por estas bandas.
Sim, sim, eles estão dispostos a tudo, sempre o estiveram, sobretudo se a futilidade provar ser mesmo uma ilusão e se as classes subalternas obtiverem ganhos de causa relevantes. Ramos ou Avillez estão apenas a preparar um terreno. Isto não é só retórica, não é só persuasão. Estejamos atentos.
Depois de ter excomungado António Costa do círculo das pessoas de bem, sei lá, e de o ter colocado ao nível da ralé desonrada e perigosa, Avillez espanta-se com o silêncio da “metade do país que sou suposta representar”: o tal 1%, digamos, vale “metade”, reparem, confirmando de resto que a política de classe está viva e recomenda-se, podendo até acontecer que certa esquerda redescubra isso. E Avillez nem tinha ainda visto nada quando escreveu: a própria CIP, hoje liderada por alguém que vem de baixo, afastou-se prudentemente do golpista e sabotador que está ainda em Belém.
Por que é que o fez? Porque os patrões parecem detestar a instabilidade vista como artificial e Cavaco é a fonte primacial dessa instabilidade; porque o patronato, enquanto sujeito colectivo, é atravessado pelas contradições entre fracções do capital, entre o capital financeiro e o industrial, por exemplo, e entre ver o trabalho como um mero custo e como uma relevante fonte de procura; porque, e isto é decisivo, o patronato mais esclarecido aposta na modalidade retórica da futilidade – nada de relevante mudará (e que é aquela a que devemos dar mais atenção) – e daí o esperar para ver, sem precipitações desnecessárias.
Rui Ramos resume a mais séria modalidade demasiado bem, ao mesmo tempo que, algo cinicamente, a contesta: “A oligarquia prepara-se para aceitar o BE e o PCP no governo como já os aceitou na vereação em Lisboa, porque do seu ponto de vista, Costa não será mais do que o presidente da câmara municipal de Portugal, pequeno concelho de um Estado imaginário cuja capital é em Bruxelas (ou em Berlim) e cuja lei de finanças locais até é muito restritiva.” A sua preocupação em salvar a “oligarquia” de si própria, das suas supostas ilusões europeístas é muito instrutiva: raspa-se o verniz dito liberal na semiperiferia em crise e vê-se logo o quê? Como designar esta direita, ainda para mais quando apela à rua e tudo? Vá lá, esta é fácil.
Reparem, entretanto, como a ideia de que na direita domina uma tradição política assente numa disposição conservadora, baseada no gradualismo, no conhecimento tácito, na razoabilidade, na prudência ou na aversão ao radicalismo é um mito que não sobrevive a um escrutínio mínimo. Este facto tem sido destacado, entre outros, por Corey Robin, partindo da análise crítica do pensamento reaccionário no centro do sistema mundial, mas as suas conclusões aplicam-se que nem uma luva a esse pensamento, sempre mais inseguro e disposto por isso a tudo, mas mesmo a tudo, com mais rapidez, por estas bandas.
Sim, sim, eles estão dispostos a tudo, sempre o estiveram, sobretudo se a futilidade provar ser mesmo uma ilusão e se as classes subalternas obtiverem ganhos de causa relevantes. Ramos ou Avillez estão apenas a preparar um terreno. Isto não é só retórica, não é só persuasão. Estejamos atentos.
domingo, 25 de outubro de 2015
A propósito daquele grande argumento de ser contra a NATO...
Em Junho de 1955, os meus pais estavam presos. Ele nas cadeias privativas da PIDE no Porto, ela naquilo que se designava por "Depósito de Presos" de Caxias, em Lisboa, os dois acusados de serem membros do PCP. Como recém-casados, pediram ao director da PIDE para poder corresponder-se.
Resposta lapidar do director da PIDE:
"Corre-se sempre grande risco de prejudicar a instrução preparatória autorizando as comunicações e (Ilegível) entre arguidos, sobretudo quando se trata de 'quinta-colunistas' ao serviço do militarismo e imperialismo russos, como sucede nesta caso. Por estas razões, não se pode consentir o que é solicitado."
Para quem gosta tanto de suscitar a questão da NATO, como impeditivo de alguém - do PCP ou Bloco - poder integrar um Governo ou de qualquer governo poder ser apoiado por esses partidos, é um pouco arrepiante ver como velhos argumentos vêm tão rapidamente ao de cima.
E o trecho seguinte? Foi retirado de uma longa nota confidencial enviada pelo ministro do Interior ao director da PIDE, a 11/4/1957:
Até quando?
Resposta lapidar do director da PIDE:
Tomada da sede da PIDE em Lisboa, no dia 25 de Abril de 1974 |
Para quem gosta tanto de suscitar a questão da NATO, como impeditivo de alguém - do PCP ou Bloco - poder integrar um Governo ou de qualquer governo poder ser apoiado por esses partidos, é um pouco arrepiante ver como velhos argumentos vêm tão rapidamente ao de cima.
E o trecho seguinte? Foi retirado de uma longa nota confidencial enviada pelo ministro do Interior ao director da PIDE, a 11/4/1957:
"É do conhecimento geral que um dos slogans usados pelo chamado 'partido comunista português' é o de pedir amnistia para os delinquentes a quem chamam detidos políticos, mas que na realidade são comunistas condenados, nos termos legais, por actividades subversivas destinadas a subverter a liberdade e a independência da pátria e do povo portugueses".É daqui que nasce a nossa direita. E ainda hoje - a fazer fé no clima acirrado que presentemente se sente - andamos próximos disto.
Até quando?
The times they are a-changin'
«Come gather 'round people ▪ Wherever you roam ▪ And admit that the waters ▪ Around you have grown ▪
Come writers and critics ▪ Who prophesize with your pen ▪ And keep your eyes wide ▪ The chance won't come again ▪
And don't speak too soon ▪ For the wheel's still in spin ▪ And there's no tellin' who ▪ That it's namin' ▪
For the loser now ▪ Will be later to win ▪ For the times they are a-changin'»
Come writers and critics ▪ Who prophesize with your pen ▪ And keep your eyes wide ▪ The chance won't come again ▪
And don't speak too soon ▪ For the wheel's still in spin ▪ And there's no tellin' who ▪ That it's namin' ▪
For the loser now ▪ Will be later to win ▪ For the times they are a-changin'»
Lapidar
«O Presidente da República não tem o poder de apreciar os programas, porque a apreciação do programa do Governo compete à Assembleia da República. Acho que o discurso proferido pelo Presidente da República deveria ter-se limitado a dizer que, perante a passagem de quase três semanas após as eleições legislativas - e não tendo havido outra solução maioritária -, impunha-se indigitar primeiro-ministro o líder do partido mais votado dentro da coligação mais votada. Ponto final.
(...) Por definição, um Governo de gestão é para gestão, ou seja, para um período necessariamente limitado. Um Governo de gestão não é para o exercício de todas as competências que a Constituição atribui a um Governo.»
Jorge Miranda (Diário de Notícias, 24 Outubro 2015)
«Um sistema só é parlamentar quando o Governo assenta na confiança da maioria do Parlamento, quer à partida, quer durante a sua subsistência. (...) A regra do Governo Parlamentar não se compadece de modo algum com que um Governo se possa manter em funções depois de ter sido derrotado pela maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções. (...) É a própria credibilidade da democracia que exige que constantemente o Governo seja um Governo apoiado pela maioria dos Deputados, porque senão estamos a destruir a democracia ou, quando menos, a destruir o poder efectivo da Assembleia da República, que fica reduzida a mera Câmara de registo das decisões do Presidente.»
Jorge Miranda (Diário da Assembleia Constituinte n.º 128, 30-03-1976, pág. 4247)
(...) Por definição, um Governo de gestão é para gestão, ou seja, para um período necessariamente limitado. Um Governo de gestão não é para o exercício de todas as competências que a Constituição atribui a um Governo.»
Jorge Miranda (Diário de Notícias, 24 Outubro 2015)
«Um sistema só é parlamentar quando o Governo assenta na confiança da maioria do Parlamento, quer à partida, quer durante a sua subsistência. (...) A regra do Governo Parlamentar não se compadece de modo algum com que um Governo se possa manter em funções depois de ter sido derrotado pela maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções. (...) É a própria credibilidade da democracia que exige que constantemente o Governo seja um Governo apoiado pela maioria dos Deputados, porque senão estamos a destruir a democracia ou, quando menos, a destruir o poder efectivo da Assembleia da República, que fica reduzida a mera Câmara de registo das decisões do Presidente.»
Jorge Miranda (Diário da Assembleia Constituinte n.º 128, 30-03-1976, pág. 4247)
sábado, 24 de outubro de 2015
Leituras
«A indigitação de Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro pelo Presidente da República é juridicamente sustentável e politicamente legítima e não constitui uma surpresa. Se a declaração do Presidente da República se ficasse por aqui, não haveria muito mais a dizer (...). Só que Cavaco Silva (...) quis sugerir que irá até onde for preciso para manter o BE e o PCP fora do poder ("é meu dever tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados, pondo em causa a confiança e a credibilidade externa do País"). (...) Pode esta loucura anti-democrática de Cavaco levá-lo a manter um governo de gestão PSD-CDS no poder até que outro presidente possa dissolver a Assembleia da República? A resposta sensata é não.»
José Vítor Malheiros, A Cavacada
«Cavaco não usou justificações democráticas e constitucionalmente sustentadas. Pelo contrário, adotou uma postura autocrática, tornando claro a uma parte do país que o seu voto e ideias cheiram mal - parte do país que, curiosamente, serviu para derrubar em 2011 um governo contra o qual reclamou "um sobressalto cívico". Para Cavaco, BE e PCP só dão jeito para deitar abaixo governos, nunca para os sustentar. E se os portugueses decidiram nas urnas virar a página, Cavaco cá está para lhes emendar a mão. Independentemente da vontade dos eleitores, o homem que ocupa Belém com a mais baixa votação e pior aprovação de sempre quer impor a sua, brandindo, como tantos, de Avillez a Barreto, fizeram nos últimos dias, a sua moca de Rio Maior. Ganha a verdade e a clareza, se tivéssemos dúvidas.»
Fernanda Câncio, Cavaco de Rio Maior
«Cavaco tem ainda razão noutro ponto do seu discurso: é ao Parlamento e aos deputados que cabe, em consciência, apreciar o programa de Governo. Ou seja, não lhe cabe a si. A intervenção de Cavaco foi por isso boa para um líder de claque. Decididamente, não é uma intervenção de um Presidente da República. (...) O discurso presidencial foi, na verdade, um insulto à democracia. Cavaco andou uma semana a apelar ao compromisso e ao diálogo, mas falou ao país de fantasmas e fez uma "declaração de guerra". Em resumo, o voto de um milhão de pessoas do nosso país não conta: a CDU e o Bloco de Esquerda seriam uma espécie de excrescência da democracia, vedados do direito de fazer parte de qualquer solução governativa.»
José Soeiro, A ameaça de um sequestro
«O senhor presidente da República disse que tinha acabado aqui o tempo do presidente. Eu infelizmente não vi nenhum presidente. O que eu vi foi uma declaração golpista de direita, que sequestra o parlamento e que faz uma coisa ainda pior (...), a exclusão de três partidos políticos, que são legais e que desenvolvem a sua actividade de forma legal em Portugal, que participam em eleições. E outra coisa que o senhor presidente da República fez hoje, que foi apelar a uma sublevação num grupo parlamentar de um partido que tem regras. E portanto, a todos os níveis, não foi a intervenção de um presidente da República, foi a intervenção de um golpista, absolutamente inaceitável e lamentável. Envergonha o país, envergonha a Constituição da República Portuguesa, devia envergonhar qualquer democrata.»
João Galamba (programa As Palavras e os Actos)
sexta-feira, 23 de outubro de 2015
As vossas notícias são a realidade (só que virada do avesso)
Perguntava hoje o Nuno Teles se o Negócios, que tem sido tão lesto a fabricar oscilações relevantes nos mercados (para sugerir o risco de formação de um governo de esquerda), já tinha noticiado o aumento das taxas de juro depois da declaração de ontem de Cavaco Silva. Parece que ainda não o fez, mas a variação dos juros, até ver, já aí está.
Já o Observador, contudo, opta não só por ignorar a realidade como a procura virar do avesso, sugerindo que os juros estão a cair na sequência do discurso do presidente. Como assinala o Pedro Lains, «quem escreveu ou mandou escrever [tal coisa] sabe que isso é mentira», acrescentando que é um bom sinal para a democracia «quando quem ataca os seus princípios fundamentais tem de ir até este nível». O problema, para quem acha que as coisas se fazem assim, é que já «não estamos na Europa dos anos 1930. Estamos na Europa democrática e nela vamos ficar. Na Hungria conseguiram, mas aqui não vão conseguir. Querem pôr o regime em causa, mas não é mais do que o canto do cisne.»
Já o Observador, contudo, opta não só por ignorar a realidade como a procura virar do avesso, sugerindo que os juros estão a cair na sequência do discurso do presidente. Como assinala o Pedro Lains, «quem escreveu ou mandou escrever [tal coisa] sabe que isso é mentira», acrescentando que é um bom sinal para a democracia «quando quem ataca os seus princípios fundamentais tem de ir até este nível». O problema, para quem acha que as coisas se fazem assim, é que já «não estamos na Europa dos anos 1930. Estamos na Europa democrática e nela vamos ficar. Na Hungria conseguiram, mas aqui não vão conseguir. Querem pôr o regime em causa, mas não é mais do que o canto do cisne.»
Golpista e sabotador
Lembrando esse grande filósofo político chamado Francisco Assis, “o silêncio é um refúgio eticamente inabitável” sobretudo quando confrontados com a declaração de guerra do Presidente da República, que assim procura reassumir o papel de chefe da direita portuguesa perante a desorientação em que esta entrou desde as eleições.
Cavaco confirma assim pela enésima vez que é o que sempre foi: um garante da dependência nacional, da financeirização do capitalismo português, que os seus governos e as suas acções políticas promoveram denodadamente, o que de resto é confirmado por um discurso que coloca precisamente os interesses “das instituições financeiras, dos investidores e dos mercados” no centro das prioridades políticas.
Cavaco procura convocar os tais mercados para ajudar na sabotagem de quaisquer veleidades progressistas num país desarmado, qual profecia auto-realizada, como assinalou o insuspeito Vital Moreira, promovendo desta forma o máximo de instabilidade que politicamente lhe é possível. Só faltou mesmo apelar directamente ao pós-democrático BCE para que o objectivo da sabotagem, tomando o precedente grego como inspiração, fosse politicamente ainda mais transparente. Temos um presidente que tem de ser tratado como um sabotador.
E temos um presidente golpista, ou pelo menos com tentações golpistas, como bem assinalou João Galamba. Os termos do seu discurso são absolutamente desrespeitadores do lugar e da proeminência do parlamento, da casa da democracia, são desrespeitadores da vontade popular maioritária que a partir dele vai emergir. Suspeito, dada a natureza da direita a quem estalou o verniz, que ainda não vimos nada em matéria de desrespeito pelo regular funcionamento das instituições democráticas. Temos um presidente que tem de ser tratado como um golpista.
E não, não é possível ajudar Cavaco a acabar o mandato com dignidade, tendo ainda em conta que, no fundo, ele está a defender os interesses dos que acham que tudo tem um preço...
Cavaco confirma assim pela enésima vez que é o que sempre foi: um garante da dependência nacional, da financeirização do capitalismo português, que os seus governos e as suas acções políticas promoveram denodadamente, o que de resto é confirmado por um discurso que coloca precisamente os interesses “das instituições financeiras, dos investidores e dos mercados” no centro das prioridades políticas.
Cavaco procura convocar os tais mercados para ajudar na sabotagem de quaisquer veleidades progressistas num país desarmado, qual profecia auto-realizada, como assinalou o insuspeito Vital Moreira, promovendo desta forma o máximo de instabilidade que politicamente lhe é possível. Só faltou mesmo apelar directamente ao pós-democrático BCE para que o objectivo da sabotagem, tomando o precedente grego como inspiração, fosse politicamente ainda mais transparente. Temos um presidente que tem de ser tratado como um sabotador.
E temos um presidente golpista, ou pelo menos com tentações golpistas, como bem assinalou João Galamba. Os termos do seu discurso são absolutamente desrespeitadores do lugar e da proeminência do parlamento, da casa da democracia, são desrespeitadores da vontade popular maioritária que a partir dele vai emergir. Suspeito, dada a natureza da direita a quem estalou o verniz, que ainda não vimos nada em matéria de desrespeito pelo regular funcionamento das instituições democráticas. Temos um presidente que tem de ser tratado como um golpista.
E não, não é possível ajudar Cavaco a acabar o mandato com dignidade, tendo ainda em conta que, no fundo, ele está a defender os interesses dos que acham que tudo tem um preço...
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
Memória (XVII)
«Trata-se, aliás, de uma realidade comum e natural nas democracias europeias. Na verdade, se excluirmos os casos particulares da Suécia e da Dinamarca, países onde existe uma forte tradição de consenso político e social, todos os governos dos Estados-membros da União Europeia dispõem atualmente de apoio maioritário nos respetivos parlamentos. Alguns Portugueses podem não estar conscientes deste facto, e por isso repito: os governos de 26 países da União Europeia dispõem de apoio parlamentar maioritário. Não há nenhum motivo para que Portugal seja uma exceção àquilo que acontece em todos os Estados-membros da União Europeia.»
Aníbal Cavaco Silva, presidente da República (Julho de 2015)
Quando o Estado era anti-comunista e anti-PCP
Enquanto não se forma o novo governo e não se conhecem ainda pormenores do acordo, e estando a vasculhar nos meus papéis, dei com este episódio muito esclarecedor de que é feito o nosso Portugal e de como de longe vêm os receios da participação social do PCP.
1 de Agosto de 1964. António Borges Coelho, historiador, é chamado à PIDE. É recebido pelo inspector-adjunto José Manuel da Cunha Passo, pelo subinpector Abílio Augusto Pires e o agente, também escrivão, Victor Manuel Varela. O subinspector Cunha Passo chegaria a membro do Comité Executivo da Interpol, cargo que exerceu até 1972. Em 1974, nas suas palavras, era um dos homens de topo da PIDE/DGS, juntamente com o Director Geral Major Silva Pais, o Subdirector Geral Barbieri Cardoso, o Director dos Serviços de Informação Álvaro Pereira de Carvalho. Segundo elementos recolhidos na internet, terá falecido este ano. Leia-se este seu depoimento.
Voltemos a 1964. A primeira pergunta foi se é autor do livro intitulado "Raízes da Expansão Portuguesa" e em caso afirmativo, qual a casa editora e o número de exemplares publicados. Borges Coelho responde que sim, que a editora foi a Editorial Prelo, Limitada e que desconhece o número de exemplares.
Segunda questão: "E porque, na publicação em referência, o declarante desvirtua algumas das páginas mais brilhantes da nossa História, adulterando sacriligamente os factos e classificando de 'abutres' homens que foram hérois e foram santos, é convidado a esclarecer o concretizar quais as razões do seu procedimento".
Borges Coelho dá então uma aula em poucas palavras.
Terceira pergunta: "E porque, na mesma publicação, se contêm afirmações falsas, claramente tendenciosas ou grosseiramente deturpadas, com o objectivo evidente de atingir a Pátria no seu património histórico, é convidado a esclarecer e a concretizar quais as razões do seu procedimento e, ainda, com que fundamento se arroga o direito e a autoridade para o adoptar". Borges Coelho responde que o seu intuito foi "fazer história e não teve qualquer outro intuito".
Quarta pergunta: "E porque, ainda no mesmo livro, nega implicitamente a justiça da causa que defendemos em relação ao Ultramar, certamente porque não considera de 'abutres' aqueles que pretendem roubar-nos pedaços da Pátria, o que, no País, só é admitido pelo 'partido comunista português', é convidado a esclarecer e a concretizar como, quando e em que circunstâncias 'reatou' os seus 'contactos' com essa 'organização' ilegal, após ter-lhe sido concedido a liberdade condicional". Borges Coelho nega contactos com o PCP.
Quinta pergunta: "E porque, na mesma obra, defende a tese de que a finalidade dos descobrimentos foi o roubo, o saque e a conquista de riquezas e mercês honoríficas, tese absolutamente oposta àquela que o Governo da Nação vem defendendo nos areópagos internacionais, o que constitui autêntica traição, é convidado a esclarecer e a concretizar quais as razões do seu procedimento"...
Não vos maço mais com as perguntas do inspector-adjunto José Manuel da Cunha Passo.
Foi apenas há alguns anos.
1 de Agosto de 1964. António Borges Coelho, historiador, é chamado à PIDE. É recebido pelo inspector-adjunto José Manuel da Cunha Passo, pelo subinpector Abílio Augusto Pires e o agente, também escrivão, Victor Manuel Varela. O subinspector Cunha Passo chegaria a membro do Comité Executivo da Interpol, cargo que exerceu até 1972. Em 1974, nas suas palavras, era um dos homens de topo da PIDE/DGS, juntamente com o Director Geral Major Silva Pais, o Subdirector Geral Barbieri Cardoso, o Director dos Serviços de Informação Álvaro Pereira de Carvalho. Segundo elementos recolhidos na internet, terá falecido este ano. Leia-se este seu depoimento.
Voltemos a 1964. A primeira pergunta foi se é autor do livro intitulado "Raízes da Expansão Portuguesa" e em caso afirmativo, qual a casa editora e o número de exemplares publicados. Borges Coelho responde que sim, que a editora foi a Editorial Prelo, Limitada e que desconhece o número de exemplares.
Segunda questão: "E porque, na publicação em referência, o declarante desvirtua algumas das páginas mais brilhantes da nossa História, adulterando sacriligamente os factos e classificando de 'abutres' homens que foram hérois e foram santos, é convidado a esclarecer o concretizar quais as razões do seu procedimento".
Borges Coelho dá então uma aula em poucas palavras.
Terceira pergunta: "E porque, na mesma publicação, se contêm afirmações falsas, claramente tendenciosas ou grosseiramente deturpadas, com o objectivo evidente de atingir a Pátria no seu património histórico, é convidado a esclarecer e a concretizar quais as razões do seu procedimento e, ainda, com que fundamento se arroga o direito e a autoridade para o adoptar". Borges Coelho responde que o seu intuito foi "fazer história e não teve qualquer outro intuito".
Quarta pergunta: "E porque, ainda no mesmo livro, nega implicitamente a justiça da causa que defendemos em relação ao Ultramar, certamente porque não considera de 'abutres' aqueles que pretendem roubar-nos pedaços da Pátria, o que, no País, só é admitido pelo 'partido comunista português', é convidado a esclarecer e a concretizar como, quando e em que circunstâncias 'reatou' os seus 'contactos' com essa 'organização' ilegal, após ter-lhe sido concedido a liberdade condicional". Borges Coelho nega contactos com o PCP.
Quinta pergunta: "E porque, na mesma obra, defende a tese de que a finalidade dos descobrimentos foi o roubo, o saque e a conquista de riquezas e mercês honoríficas, tese absolutamente oposta àquela que o Governo da Nação vem defendendo nos areópagos internacionais, o que constitui autêntica traição, é convidado a esclarecer e a concretizar quais as razões do seu procedimento"...
Não vos maço mais com as perguntas do inspector-adjunto José Manuel da Cunha Passo.
Foi apenas há alguns anos.
Hoje
Concentração em frente à Embaixada de Angola em Lisboa (Avenida da República, 68), a partir das 18h30.
Os vossos desejos não são notícia
Hoje o negócios, às 10:30 da manhã, tinha como principal título do seu website "Juros de Portugal voltam a negociar acima dos 2,5%". Continua a campanha política dos media para condicionar a formação do próximo governo: "Com o cenário de uma coligação de esquerda a ganhar força, cresce a ansiedade no mercado de dívida, devido ao receio de alívio na austeridade. Os investidores deverão "odiar a ideia", dizem os analistas". Entretanto, Mario Draghi falou, dando a entender um reforço das operações de compra de activos no mercado e uma possível descida da taxa de juro, e aconteceu isto aos juros da dívida:
A actual acalmia financeira não significa insensibilidade futura dos "mercados" face às opções políticas de um governo de esquerda, sobretudo se elas não forem do seu interesse. De todo. No entanto, não é isso que está aqui em causa para jornais como o "Negócios". Para a generalidade da imprensa, o que é preciso é impedir uma mudança de governo, manipulando de forma despudorada tudo o que se puder. Quando se trata de algo que o público tem dificuldade em perceber, mas que, ao mesmo tempo, é fonte de medo e ansiedade, como acontece com os "mercados", então esta é uma oportunidade imperdível para a campanha em curso.
A actual acalmia financeira não significa insensibilidade futura dos "mercados" face às opções políticas de um governo de esquerda, sobretudo se elas não forem do seu interesse. De todo. No entanto, não é isso que está aqui em causa para jornais como o "Negócios". Para a generalidade da imprensa, o que é preciso é impedir uma mudança de governo, manipulando de forma despudorada tudo o que se puder. Quando se trata de algo que o público tem dificuldade em perceber, mas que, ao mesmo tempo, é fonte de medo e ansiedade, como acontece com os "mercados", então esta é uma oportunidade imperdível para a campanha em curso.
Memória (XVI)
«"Com um governo minoritário PSD/CDS, não é garantido que o programa de governo e o orçamento chumbem, por existir um artigozinho na Constituição onde se lê 'os Deputados exercem livremente o seu mandato' e não faltam exemplos de deputados desalinhados com a orientação da direção parlamentar na nossa história constitucional." (Graça Canto Moniz, Coordenadora do Gabinete de Estudos do CDS-PP)
"Por sua vez, os 230 deputados têm um direito de voto que é um dever perante o país. Em caso de votação e caso seja nomeado o vencedor das eleições, todos terão uma responsabilidade política mas sobretudo cívica." (Diogo Feio, Dirigente do CDS-PP)
"O deputado do PP, Daniel Campelo, mostra-se disponível para fazer passar o Orçamento de Estado. A direcção do CDS/PP já fez saber que se tal acontecer Campelo será expulso da bancada parlamentar e do partido. [...] A direcção do PP tem tentado demover Daniel Campelo desta intenção e diz ainda que não pode acreditar que algum deputado da oposição venha a faltar com o dever de disciplina de voto partidária.» (TSF, 1 de Novembro de 2000).»
José Gusmão (facebook)
quarta-feira, 21 de outubro de 2015
Hoje, Praça do Rossio, a partir das 18h30
«Heróis não são as vítimas acidentais dos déspotas. Nem são os mártires sem rumo. Heróis são os que enfrentam a arbitrariedade e a põem em risco no momento certo. Angola ainda agradecerá a Luaty Beirão, um rapper com mais coragem que um batalhão de políticos. Depende de nós, da pressão internacional, que ele venha a ouvir esse agradecimento. Caso contrário, a morte de Luaty pesará nas nossas consciências. Quem anda a fazer contas aos interesses da nossa comunidade em Angola terá de viver com a mesma vergonha com que devemos viver com apoio que demos, enquanto Estado democrático, ao regime do Apartheid.»
Daniel Oliveira, A morte de Luaty pesará nas nossas consciências
Mesmo que não possam estar hoje na vigília e concentração em Lisboa, exigindo a libertação dos activistas e presos políticos em Angola, não deixem de subscrever esta petição, a enviar ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, e ao embaixador português em Angola, João da Câmara, solicitando a intervenção do governo de Portugal na libertação de Luaty Beirão. Nem esta, da Amnistia Internacional, num apelo a que libertem imediata e incondicionalmente estes prisioneiros de consciência e que seja garantido que, enquanto se aguarda a sua libertação, estes não sejam sujeitos a tortura ou outros maus tratos. A hora é de urgência, de exigência e de solidariedade sem fronteiras.
«Aquilo de que uma parte da direita tem medo é que resulte»
«Paulo Portas é um monárquico convicto. E não consta que tenha estado no governo a tentar implantar a monarquia em Portugal. O Partido Comunista Português tem a sua visão sobre a Europa e o seu apoio a um governo alternativo não implicará a saída de Portugal do euro ou a rejeição dos nossos compromissos europeus. E por isso nós temos também, de alguma forma, de deixar de levantar fantasmas. Uma parte da direita portuguesa não tem medo que um governo destes corra mal. Não receia nacionalizações ou ocupações de terras. Aquilo de que uma parte da direita tem medo é que resulte. É que ao fim de um ano Portugal não tenha saído do euro, que não se tenha reestruturado a dívida e que as coisas tenham corrido bem. Porque nesse momento o monopólio que a direita hoje tem, de alianças, terminou. O que a direita queria mesmo era governar para sempre. Umas vezes sozinhos, outras vezes com a muleta do Partido Socialista. E isso não vai acontecer.
(...) Há matérias que são consensuais entre o PS, o PSD e o CDS. E essas matérias são o compromisso com a Europa e os compromissos internacionais. Esses compromissos estão salvaguardados. E a partir desse momento, do momento em que nós temos salvaguardado aquilo que é comum com a coligação de direita, nós estamos verdadeiramente, no resto, mais próximos do Partido Comunista Português e do Bloco de Esquerda. Estamos a falar do quê? Estamos a falar mesmo de serviços públicos universais e tendencialmente gratuitos. Estamos a falar de direitos no trabalho. E estamos a falar de um país que perceba que os salários não são um problema, mas sim parte da solução de um país desenvolvido e competitivo.
(...) Quando conhecer o acordo vai perceber onde é que há medidas que compensam outras. E vai perceber que do ponto de vista orçamental não há nenhuma derrapagem. A restrição orçamental vai ser cumprida. Deixe-me dizer que, para surpresa de muita gente, tanto o Partido Comunista Português como o Bloco de Esquerda e o Partido Ecologista Os Verdes têm estado nesta negociação com uma grande seriedade e uma grande boa fé. E as medidas que vão apresentando são medidas quantificadas. Houve da parte desses partidos essa preocupação, de neste processo negocial estarem a ser apresentadas propostas que tenham viabilidade do ponto de vista orçamental. E isso é um ganho para todos nós e para o futuro governo.
(...) Por vezes temos tendência a achar que Estado Social significa desperdício e que esta resposta, que a direita tem dado, de liberdade de escolha, poupa recursos. A direita quer financiar, de forma competitiva, escolas públicas e o ensino particular e cooperativo. E neste momento alterou a lei que permite que se façam contratos de associação com escolas privadas, onde, na vizinhança, há escolas públicas a funcionar abaixo da sua capacidade. Isto é um sinal claro de desperdício (...) e feito apenas por motivação ideológica. (...) Na saúde, com o aumento brutal das taxas moderadoras, empurraram-se muitos portugueses, da classe média, para a saúde privada. Nós não queremos esse país. E é de políticas que nós falamos quando falamos deste acordo.
(...) Não tenha dúvidas que isso [impacto financeiro das medidas] será muito claro. Que o programa será escrutinado. Nós já temos as contas no nosso, o que facilitará a avaliação de um programa de governo que queremos resulte deste acordo. (...) Nós o que não conhecemos - e isso pedimos à coligação que nos facultasse e até agora não nos facultou - é o impacto financeiro das medidas que constam do programa eleitoral do PSD e do CDS e que não foram inscritas no Programa de Estabilidade nem enviadas a Bruxelas. Nós não sabemos.»
Da entrevista de Pedro Nuno Santos a José Alberto Carvalho, no programa 21ª Hora, na TVI24 (a ver na íntegra aqui).
terça-feira, 20 de outubro de 2015
Terceira onda da crise internacional? (I) Países “emergentes” há muitos.
A Goldman Sachs publicou recentemente um dos seus documentos de estratégia global, onde alerta para a possibilidade de estarmos a assistir a uma terceira fase da crise internacional. Depois da crise nos EUA (2008-09) e da crise do Euro (2011-?), estaríamos agora em pleno “ajustamento” dos países ditos emergentes (sendo o Brasil melhor exemplo), vítimas do colapso dos preços das matérias-primas e da fuga de capitais provocada pela expectativa de taxas de juro mais altas nos EUA. O contágio destes países à economia internacional põe em causa qualquer perspectiva de recuperação económica global. Partindo deste documento, existem algumas reflexões a retirar. Comecemos pelos países "emergentes".
A presente crise nos países do “Sul Global”, mais do que o reflexo do colapso dos preços das matérias-primas que exportam, mostra a fragilidade do modelo de desenvolvimento baseado na integração financeira internacional, onde fluxos de capitais de curto-prazo afluíram em busca de atraentes taxas de juro (pedir emprestado a 0% no Japão e emprestar na África do Sul a 8% era um grande negócio), alimentado um mercado doméstico de crédito ao consumo e, sobretudo, dirigido ao sector imobiliário. A recente fuga de capitais tornou o modelo insustentável, com o crédito a cair, a economia a desacelerar e os estados a enfrentarem défices públicos crescentes que os mercados obrigam a diminuir com austeridade implacável.
Se precisássemos de um exemplo para mostrar a importância destes fluxos na crise face à causa normalmente apontada, os preços das matérias-primas, basta comparar o Brasil com a Argentina. Este último país, tão ou mais dependente das matérias-primas na sua estrutura de exportações, é um pária nos mercados financeiros internacionais, sem acesso aos fluxos internacionais de capital. Com um modelo de crescimento apoiado na procura interna (as divisas da soja obviamente ajudaram) e sem problemas em usar todos os instrumentos monetários (controlos de capitais, câmbios fixados e, aparentemente, financiamento monetário do Estado), a Argentina conseguiu, não só crescer muito acima do seu vizinho nos últimos anos, como agora manter-se à tona da água, sem entrar em recessão, face à crise que grassa em seu torno.
Final e decisivamente, o caso a acompanhar de perto é a China, ela própria na origem da queda dos preços de muito minérios e bens alimentares. Com elevadíssimas taxas de investimento (em torno dos 40% do PIB), a economia chinesa precisa de crescer a taxas bem acima do que consideraríamos crescimento pujante. Caso contrário, todo este investimento não consegue encontrar qualquer rendibilidade, tornando-se obsoleto. Nos últimos anos isso já tem acontecido. Depois de, em 2009, ter existido um debate sobre a promoção do consumo interno face ao investimento, desenvolvendo, por exemplo, um sistema nacional de saúde que promovesse taxas de poupança mais baixas por parte das famílias chinesas, decidiram-se a ir pelo caminho mais fácil. Com o controlo público sobre o sistema de crédito financiaram, primeiro, uma enorme bolha imobiliária, e mais recentemente, uma bolha bolsista que, felizmente, durou pouco. Hoje a China enfrenta um profundo debate político entre a liberalização financeira ou as propostas de 2009. Se é certo que a China dispõe de imensas reservas cambiais que tornariam o primeiro cenário atraente para alguns, a verdade é que com a presente quantidade de créditos tóxicos no seu sistema financeiro e o exemplo de outros países, mencionados acima, tornam este cenário muito assustador. Empurrar com a barriga, como está a acontecer, não é uma solução viável.
A presente crise nos países do “Sul Global”, mais do que o reflexo do colapso dos preços das matérias-primas que exportam, mostra a fragilidade do modelo de desenvolvimento baseado na integração financeira internacional, onde fluxos de capitais de curto-prazo afluíram em busca de atraentes taxas de juro (pedir emprestado a 0% no Japão e emprestar na África do Sul a 8% era um grande negócio), alimentado um mercado doméstico de crédito ao consumo e, sobretudo, dirigido ao sector imobiliário. A recente fuga de capitais tornou o modelo insustentável, com o crédito a cair, a economia a desacelerar e os estados a enfrentarem défices públicos crescentes que os mercados obrigam a diminuir com austeridade implacável.
Se precisássemos de um exemplo para mostrar a importância destes fluxos na crise face à causa normalmente apontada, os preços das matérias-primas, basta comparar o Brasil com a Argentina. Este último país, tão ou mais dependente das matérias-primas na sua estrutura de exportações, é um pária nos mercados financeiros internacionais, sem acesso aos fluxos internacionais de capital. Com um modelo de crescimento apoiado na procura interna (as divisas da soja obviamente ajudaram) e sem problemas em usar todos os instrumentos monetários (controlos de capitais, câmbios fixados e, aparentemente, financiamento monetário do Estado), a Argentina conseguiu, não só crescer muito acima do seu vizinho nos últimos anos, como agora manter-se à tona da água, sem entrar em recessão, face à crise que grassa em seu torno.
Final e decisivamente, o caso a acompanhar de perto é a China, ela própria na origem da queda dos preços de muito minérios e bens alimentares. Com elevadíssimas taxas de investimento (em torno dos 40% do PIB), a economia chinesa precisa de crescer a taxas bem acima do que consideraríamos crescimento pujante. Caso contrário, todo este investimento não consegue encontrar qualquer rendibilidade, tornando-se obsoleto. Nos últimos anos isso já tem acontecido. Depois de, em 2009, ter existido um debate sobre a promoção do consumo interno face ao investimento, desenvolvendo, por exemplo, um sistema nacional de saúde que promovesse taxas de poupança mais baixas por parte das famílias chinesas, decidiram-se a ir pelo caminho mais fácil. Com o controlo público sobre o sistema de crédito financiaram, primeiro, uma enorme bolha imobiliária, e mais recentemente, uma bolha bolsista que, felizmente, durou pouco. Hoje a China enfrenta um profundo debate político entre a liberalização financeira ou as propostas de 2009. Se é certo que a China dispõe de imensas reservas cambiais que tornariam o primeiro cenário atraente para alguns, a verdade é que com a presente quantidade de créditos tóxicos no seu sistema financeiro e o exemplo de outros países, mencionados acima, tornam este cenário muito assustador. Empurrar com a barriga, como está a acontecer, não é uma solução viável.
Amanhã, na Faculdade de Direito, em Lisboa
Organizado pelo Observatório sobre Crises e Alternativas, do Centro de Estudos Sociais (CES) e pelo Centro de Investigação em Direito Europeu, Económico, Financeiro e Fiscal (CIDEFF), da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, realiza-se amanhã, no Auditório da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, entre as 9h30 e as 13h00, o seminário «O Estado Social de Direito e a Crise da Política Democrática».
O seminário contará com intervenções de Tarso Genro (Advogado, ex-Governador do Rio Grande do Sul, Brasil), Laborinho Lúcio (Presidente do Conselho Geral da Universidade do Minho), Jorge Reis Novais (Constitucionalista, Professor de Direito da Universidade de Lisboa) e António Casimiro Ferreira (Professor e investigador, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e no Centro de Estudos Sociais). O encontro terá a moderação de Eduardo Paz Ferreira (Coordenador do CIDEEFF, Professor de Direito da Universidade de Lisboa).
Entrada livre, apenas sujeita a inscrição prévia, que pode ser feita aqui. Estão todos convidados.
O seminário contará com intervenções de Tarso Genro (Advogado, ex-Governador do Rio Grande do Sul, Brasil), Laborinho Lúcio (Presidente do Conselho Geral da Universidade do Minho), Jorge Reis Novais (Constitucionalista, Professor de Direito da Universidade de Lisboa) e António Casimiro Ferreira (Professor e investigador, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e no Centro de Estudos Sociais). O encontro terá a moderação de Eduardo Paz Ferreira (Coordenador do CIDEEFF, Professor de Direito da Universidade de Lisboa).
Entrada livre, apenas sujeita a inscrição prévia, que pode ser feita aqui. Estão todos convidados.
segunda-feira, 19 de outubro de 2015
Não são lugares, pá. É a política
«O que nos separa não são lugares no governo, que recusámos desde o início, ou o relacionamento pessoal - bastante cordial, devo reconhecê-lo - mas a imperiosa necessidade do país e a soberana vontade dos portugueses de uma reorientação de política, que persistem em não aceitar.»
António Costa, na carta hoje enviada a Pedro Passos Coelho (em que responde ao desafio do primeiro ministro para que o PS integrasse o governo da coligação de direita).
Podes sentir, mas não provar
Lisboa, em 1972 (fotografia de Cecília Ferreira Alves) "Os que sobrevivem do chamado partido democrático, monárquicos liberais ou integristas desgarrados, socialistas, elementos da Seara Nova, o directório democrata-social, vestígios dos partidos republicanos moderados, alguns novos, sedentos de mudança, e os comunistas - todos poderiam unir-se, como fizeram, mas só poderiam unir-se para o esforço da subversão, não para obra construtiva". A "impossível vitória" "das oposições" que nunca seriam uma "alternativa", significaria "cair-se no caos, abrindo-se novo capítulo da desordem nacional"
Esta antevisão do "caos" não é visivelmente recente. Mas é reveladora da forma como se arrumam as ideias do pensamento conservador, quando se trata de cercear o acesso ao poder. A frase é de António de Oliveira Salazar e foi proferida a 1 de Julho de 1958, numa alocução ao país na sede da União Nacional (Caminho do Futuro). E no entanto, ela parece adequar-se ao que se diz sobre... um possível governo de esquerda nos nossos dias.
Os nossos comentadores de direita e directores de jornais não conseguem interiorizar essa nova realidade. Mas olhando para trás pouco ligaram à brutalidade com que o governo PSD/CDS entrou no país. Não sentiram na pele a sua arrogância. Não pressentiram os riscos sociais - e políticos - de um programa radical de direita. Pior: até alinharam com ele. Apoiaram tudo até perceber, em 2013, que o Governo PSD/CDS desistira de reformar o Estado, de reformar o tecido económico e deixara a austeridade atenuar-se, com os olhos nas eleições. Sentiram-se decepcionados e desiludidos. Queriam mais!
Mas esta cegueira social cola-se a outra. Depois de tudo, os mesmos comentadores estranham agora que haja já um milhão de portugueses dispostos a afastar de imediato a coligação de direita, mesmo pondo de lado, tacticamente - veja-se lá o ódio gerado! - as ideias fortes do seu pensamento. E ainda os acusam de tacticismo!
Agora, quando a esquerda quer ser poder, fala-se de "fraude eleitoral". Democracia é apenas quando a direita ganha. Ou que qualquer ideia de esquerda terá de ser de direita (porque as propostas do PS são de direita). E até já se interpreta o sentido de voto dos socialistas (Durão Barroso: "Os eleitores socialistas não votaram no PS para um Governo com PCP e BE. Toda a gente sabe que não foi esse o sentido de voto dos eleitores socialistas.") A entrada do PCP e do BE no governo só pode ser "abrupta" ou "uma golpada". A austeridade - estúpida e, sobretudo, ineficaz - foi um aproveitamente legítimo por parte da coligação de direita, já o do PS é uma subversão às regras da UE. Uma aliança à esquerda só é própria de um desespero de um arrivista. Nem sequer é sincero... Até a igreja sente a necessidade de considerar "mais natural" uma aliança da classe média, repartida por dois partidos.
Decidamente, a nossa direita não aprendeu nada com a social-democracia e mantém todos os traços do conservadorismo agressivo. O regime salazarista estava em nós, não foi um acaso, nem uma ditadura de um só homem. Como nunca é. Era a forma policial de um sentimento muito claro que ora se vive em Portugal: o "arco da governação" é um cinto de aço, de uma ideia retrógrada, que visa impedir certas forças da sociedade - aquelas que querem mudá-la - de chegar ao poder.
Na ditadura, podia ser-se de esquerda em pensamento. Podia procurar-se livros proibidos. Em 1972, Marx, Engels e Lenine eram vendidos em certas livrarias, cooperativas. Comprei muitos. O regime fechava os olhos a essas coisas. Pressionava, mas deixava. "Podes viver, mas não tocar; podes tocar, mas não sentir; podes sentir, mas não provar." A repressão actuava precisamente quando se pensava em derrubar o regime. Quando se mexia um dedo e se pensava em ser poder. Isso estava vedado. Protegido a certas forças. Violentamente.
E tudo isso explodiu em liberdade. Como não podia deixar de ser. O fascismo forjou várias gerações de militantes anti-fascistas e anti-capitalistas que se mantêm ainda hoje no terreno.
Memória (XV)
«Não me parece que haja, no actual contexto, nenhuma ideia de que um governo - juntando CDS, PSD e Partido Socialista - pudesse sequer funcionar. (...) Todos os sinais que temos hoje é que qualquer coisa parecida com isso (...), não tem nenhumas condições para funcionar. Porque o programa económico é divergente, o modelo económico é diferente, a forma como o Partido Socialista (e já vão em duas lideranças) vem colocando o problema político e económico, mantém o mesmo perfil... E não é conciliável com os objectivos que temos. Quer com as regras europeias, quer com o que tem sido o esforço de modernização e de reforma estrutural da sociedade portuguesa.»
Pedro Passos Coelho, em entrevista ao SOL, antes das eleições legislativas (via As Minhas Leituras).
Por uma vez, estamos de acordo com o primeiro ministro. Como defendi aqui, no final da semana passada, o que está hoje em causa «é a escolha, para o nosso futuro, entre uma economia medíocre, que aprofunda o empobrecimento do país, e uma economia aposta na qualificação do trabalho, na modernização dos tecidos produtivos e na coesão social». Por isso, «pensar que uma e outra se podem conciliar e calibrar, num qualquer Orçamento de Estado negociado com a direita, é não perceber o que se passou nos últimos anos e subestimar a agenda ideológica que se pretende prosseguir, com a ajuda e cumplicidade das instituições europeias».
De resto, é querer «sol na eira e chuva no nabal», como assinala o Pedro Lains: «O PSD quis tudo. Juntou-se ao CDS para ganhar eleições, sabendo que dificilmente os dois teriam maioria absoluta. Não pensou, evidentemente, no dia a seguir. Se tivesse ido sozinho, por causa do método de Hondt, até podia ter tido menos deputados que o PS, mas poderia então lutar pelo bloco central. Assim, o que é que queria? Quer que o PS se junte a toda direita? Não pensaram em tudo, não foi? Agora é tarde. Foi esse quadro que o BE e o PCP viram e avançaram em conformidade, e o PS foi na onda. Para acabar com a austeridade. Qual é o problema? Quiseram tudo, podem ficar sem nada. Fizeram uma campanha dita de sucesso, mas ninguém pensou um minuto no que poderia acontecer à esquerda, e aconteceu. A arrogância paga-se caro».
sábado, 17 de outubro de 2015
Hoje temos aula
Para lá do óbvio economicamente ululante – o fracasso retumbante da austeridade inscrita na zona euro ou a insustentabilidade da dívida e a necessidade da sua renegociação e reestruturação –, acaba por ser frustrante ler Yanis Varoufakis no Público. No início da entrevista, o reconhecido erro de avaliação da economia política da zona euro – “o meu grande erro foi imaginar que esta era uma negociação honesta e genuína” – desemboca, no final da entrevista, na forma ainda intelectualmente mais vistosa de fuga para a frente e de impotência políticas – “chegou a altura de os cidadãos europeus se juntarem e formarem um movimento pan-europeu”, aparentemente à revelia das dinâmicas políticas nacionais. Pelo meio, vem a recusa não argumentada de “planos credíveis para a saída do euro”. Credível para quem?
As perguntas a colocar multiplicam-se, começando pela que considero principal – afinal, de que é quem têm medo e de que é que temos medo? – e que foi formulada também a pensar nas fórmulas ditas kantianas de Varoufakis; apelos à ética das elites muito difundidos à esquerda, mas ausentes na prática da direita. Esta no fundo sabe de que é que é feita a política, a sua política – de poder e dos seus instrumentos.
Há muitas outras perguntas. Por exemplo e para não ir às mais óbvias sobre a experiência grega: Será que não se aprendeu nada com a experiência fracassada dos fóruns sociais europeus? Não acha que considerar o modelo federal dos Estados Unidos como horizonte normativo é a melhor demonstração da irrelevância da esquerda face à potência do vírus liberal? Quem paga os bilhetes para a deslocação das classes populares a Bruxelas, a Berlim ou a Frankfurt e para onde se liga quando se quiser falar com tal movimento, desdobramentos radicais da famosa pergunta realista de Kissinger, que hoje tem desgraçadamente uma resposta? A política pan-europeia é absolutamente necessária, mas será que a que não seja feita a partir da aprendizagem com, e do contágio de, experiências políticas democráticas nacionais vitoriosas e transformadoras, do enraizamento comunitário, poderá ser mais do que um jogo de elites intelectuais e políticas, os tais passageiros frequentes facilmente perdidos nos não-lugares de Bruxelas?
Bom, lá estaremos hoje na aula de Yanis Varoufakis. Aprende-se sempre e sobretudo com quem se discorda à partida, mesmo que seja só em alguns pontos. A entrada é livre e há transmissão em directo.
O empobrecimento competitivo
Assinalando o Dia Internacional da Erradicação da Pobreza (17 de outubro), o Instituto Nacional de Estatística apresentou ontem - num documento síntese que vale a pena ver na íntegra - os dados definitivos do mais recente «Inquérito às Condições de Vida e Rendimento». O balanço da legislatura que agora termina não podia ser mais claro: Portugal converteu-se num país mais pobre e mais desigual, como demonstram os resultados obtidos pelo INE.
O Risco de pobreza, que se manteve em cerca de 18% até 2011 dispara, em 2013, para 20%. A Intensidade da pobreza sofre um agravamento sem precedentes: aumentando apenas cerca de meio ponto percentual durante a crise financeira (2008-2011), regista um acréscimo de dois pontos percentuais desde então (para passar a situar-se, em 2013, nos 30,3%). A Privação material severa, que traduz a carência forçada num conjunto de itens (como a capacidade para pagar a renda, ter uma refeição de carne ou de peixe pelo menos de 2 em 2 dias, ou manter a casa adequadamente aquecida) atinge os 10,6% (quando entre 2008 e 2011 tinha descido de 9,7 para 8,3%). Por último, a Desigualdade na distribuição do rendimento atinge um rácio de 6,2 na diferença entre a proporção do rendimento dos 20% da população com maiores rendimentos e o rendimento auferido pelos 20% com menores rendimentos).
Poderá pensar-se que estes são os custos inevitáveis do «ajustamento», mesmo quando os dados desmentem a «ética social na austeridade», prometida pelo governo no início da legislatura. Mas o que sucede, na verdade, é que o empobrecimento constitui um dos vectores essenciais da proclamada «mudança estrutural da economia portuguesa», assente na competitividade à custa de cortes nos salários directos e indirectos (e que implica, por seu turno, a desestruturação do mundo do trabalho e o reforço das «zonas de conforto» e dos rendimentos do capital).
É por isso, aliás, que muito do que está em causa nos dias que correm é a escolha, para o nosso futuro, entre uma economia medíocre, que aprofunda o empobrecimento do país, e uma economia aposta na qualificação do trabalho, na modernização dos tecidos produtivos e na coesão social. Pensar que uma e outra se podem conciliar e calibrar, num qualquer Orçamento de Estado negociado com a direita, é não perceber o que se passou nos últimos anos e subestimar a agenda ideológica que se pretende prosseguir, com a ajuda e cumplicidade das instituições europeias. Já bastam, de facto, as dificuldades e constrangimentos que teremos de enfrentar.
O Risco de pobreza, que se manteve em cerca de 18% até 2011 dispara, em 2013, para 20%. A Intensidade da pobreza sofre um agravamento sem precedentes: aumentando apenas cerca de meio ponto percentual durante a crise financeira (2008-2011), regista um acréscimo de dois pontos percentuais desde então (para passar a situar-se, em 2013, nos 30,3%). A Privação material severa, que traduz a carência forçada num conjunto de itens (como a capacidade para pagar a renda, ter uma refeição de carne ou de peixe pelo menos de 2 em 2 dias, ou manter a casa adequadamente aquecida) atinge os 10,6% (quando entre 2008 e 2011 tinha descido de 9,7 para 8,3%). Por último, a Desigualdade na distribuição do rendimento atinge um rácio de 6,2 na diferença entre a proporção do rendimento dos 20% da população com maiores rendimentos e o rendimento auferido pelos 20% com menores rendimentos).
Poderá pensar-se que estes são os custos inevitáveis do «ajustamento», mesmo quando os dados desmentem a «ética social na austeridade», prometida pelo governo no início da legislatura. Mas o que sucede, na verdade, é que o empobrecimento constitui um dos vectores essenciais da proclamada «mudança estrutural da economia portuguesa», assente na competitividade à custa de cortes nos salários directos e indirectos (e que implica, por seu turno, a desestruturação do mundo do trabalho e o reforço das «zonas de conforto» e dos rendimentos do capital).
É por isso, aliás, que muito do que está em causa nos dias que correm é a escolha, para o nosso futuro, entre uma economia medíocre, que aprofunda o empobrecimento do país, e uma economia aposta na qualificação do trabalho, na modernização dos tecidos produtivos e na coesão social. Pensar que uma e outra se podem conciliar e calibrar, num qualquer Orçamento de Estado negociado com a direita, é não perceber o que se passou nos últimos anos e subestimar a agenda ideológica que se pretende prosseguir, com a ajuda e cumplicidade das instituições europeias. Já bastam, de facto, as dificuldades e constrangimentos que teremos de enfrentar.
sexta-feira, 16 de outubro de 2015
Mais ilusões?
Já aqui argumentei que não são possíveis políticas de esquerda dentro da zona euro. Hoje é a vez de Portugal tomar consciência dessa dura realidade: não há escolha democrática no seio da zona euro. Os seus membros abdicaram do exercício da soberania na política económica, o que significa que entregaram um amplo leque de decisões que organizam a vida social nas mãos de um colectivo de países. A ideologia do ordoliberalismo alemão foi consagrada nos tratados, ao mesmo tempo que o funcionamento e as nomeações da tecnoburocracia de Bruxelas e do BCE ficaram convenientemente amarrados à mesma ideologia. Não é pelo facto de esta perda de soberania ser designada por “partilha de soberania”, ou pelo facto de os media esconderem aos cidadãos que muito do que determina as nossas vidas se decide fora de Portugal, que a realidade deixa de ser o que é. A soberania reside no povo mas, dizem-nos hoje, o povo só pode eleger as maiorias que os tratados permitem.
A maioria do povo português ainda não terá consciência de que a democracia conquistada no dia 25 de Abril de 1974 ficou, no essencial, comprometida com a participação num processo de integração carregado de ambiguidades. Do mercado comum ao mercado único, deste à moeda única e, agora, o tesouro único, a UE consolida passo a passo um regime político híbrido que escapa ao controlo democrático dos cidadãos. Se o exercício da democracia pressupõe uma unidade territorial onde o povo elege os seus representantes e toma decisões sobre a vida da comunidade, então o caminho que a UE já tomou é tudo menos democrático. Onde está o povo europeu? Onde está essa comunidade de partilha de vida e de deliberação, o demos que detém o poder soberano? A verdade é que, na ausência de uma língua comum, largamente partilhada, a cidadania europeia não passa de um mito que serve a estratégia política de uma elite cosmopolita desligada dos seus povos.
A crise que estamos a viver tem diferentes níveis. É uma crise nacional, de que o impasse na constituição do novo governo constitui um importante sintoma, em articulação com a crise da UE, também ela participante da crise de um capitalismo que vai a caminho de mais uma explosão financeira, ela mesma fruto de um crescimento ambientalmente insustentável e ao serviço da ganância e do desvario de uma minoria. Tendo presente este pano de fundo, é profundamente inquietante que os líderes dos partidos da esquerda que hoje negoceiam com o PS a formação de um governo tenham assumido que é possível governar o país nos próximos anos pondo entre parêntesis a interdependência dos vários níveis da crise. Estando à vista de todos que a política orçamental expansionista está bloqueada pela escolha ideológica de fazer depender dos mercados financeiros o financiamento da dívida pública, e não dos bancos centrais; estando à vista de todos que uma nova política económica enfrenta a oposição determinada da Alemanha e seus satélites, que não aceitam outra visão do federalismo orçamental que não seja a do ordoliberalismo (ler Shahin Vallée, “How the Greek Deal Could Destroy the Euro”); estando à vista de todos que não há margem de manobra para qualquer política de relançamento da economia portuguesa, bem pelo contrário, como é possível que a esquerda continue a alimentar a expectativa de tornar mais suave o afundamento da sociedade portuguesa na desesperança?
Aos olhos de muitos, uma crise gerida pela esquerda será mais suportável do que uma crise gerida pela direita. A meu ver, tendo em conta o impasse em que a UE se encontra, um governo apoiado pelas esquerdas apenas será útil ao país se estas forem capazes de mostrar ao povo, no decurso desta experiência de governo, que o problema está mesmo no respeito pelos compromissos europeus. Se forem capazes de deixar cair a guerrilha verbal contra a direita e disserem, preto no branco, que sem soberania sobre a política económica não temos futuro. O país não precisa de mais ilusões.
(O meu artigo no jornal i)
«Medo de que alguma coisa mude no que tem estado tão bem assim»
«No meu tempo de criança, dizia-se que os comunistas comiam crianças ao pequeno-almoço, e muitos acreditavam, talvez porque fosse mais provável do que no Vaticano. Tentando despertar velhos fantasmas, as capas dos diversos jornais portugueses falavam no PREC e o Expresso tinha um mural comunista na sua edição online. Depois de semanas a distribuir a biografia do Hitler, agora estão em pânico com o PREC. Pinto Balsemão está com ataques de anacronismo. Percebo o descontrolo, em 15 dias perderam o Governo e a indústria alemã como exemplo. Só falta o Marcelo ser um travesti.
No fundo, tudo isto se resume a um medo terrível de que alguma coisa mude no que tem estado tão bem assim. Tudo pela tradição que aqui nos trouxe. Até a lógica do deve fazer Governo o partido mais votado, com o apoio do outro do arco, é a mesma da praxe: se não fizeres, és excluído. Não vem na lei, mas é tradição. Estamos perante a chamada Democracia de Barrancos. O melhor é matar o animal.»
João Quadros, Papão nosso que estais no céu
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
A retórica da reacção
Num livro editado já há uns bons anos entre nós com um título diluído, O Pensamento Conservador, o saudoso economista político Albert Hirschman analisou “a retórica da reacção”, indicando que esta tipicamente tem assumido ao longo da história contemporânea três modalidades argumentativas mais ou menos complementares: perversidade – a mudança produz consequências contrárias às pretendidas –, futilidade – no fundo, nada muda – e risco – a mudança tem consequências negativas em ganhos anteriormente obtidos.
Face à possibilidade de um governo apoiado pelas esquerdas, na retórica da reacção lusa, e para lá da irracionalidade, tem dominado a modalidade do risco, seguida pela da perversidade. Entretanto, começo a notar que, aqui e ali, a modalidade da futilidade vai fazendo o seu caminho: é muito menos provável que as coisas mudem, ou, melhor, que a direcção das coisas mude no essencial, do que mudem aqueles que querem mudar a direcção das coisas, afiançam. Dado o seu conhecimento das objectivas estruturas de constrangimento europeias e dos seus efeitos, estou em crer que é nesta modalidade que os sectores mais ilustrados da sabedoria convencional, reaccionária ou não, irão cada vez mais apostar e é nesta modalidade que as nossas atenções devem estar mais seriamente concentradas.
Leituras
«Diz-nos a Constituição da República Portuguesa que o primeiro-ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais. Ora, precisamente tendo em conta os resultados eleitorais das últimas eleições legislativas, afigura-se como perfeitamente legítima uma solução governativa com o apoio da maioria dos deputados eleitos. Adjetivar um acordo entre PS, PCP/CDU e BE (e eventualmente Os Verdes e o PAN) como uma coligação negativa ou um golpe-de-estado constitucional é um excesso de estilo que carece de fundamentação racional. Efetivamente, nas eleições legislativas não se elege um governo ou um primeiro-ministro, mas sim a composição de um parlamento.»
Pedro Coelho dos Santos, A apoplexia nervosa da Direita portuguesa
«PS, BE e PCP disseram, os três, durante a campanha eleitoral, que não viabilizariam um governo de Pedro Passos Coelho. Partindo do princípio que não preciso de recordar as posições de Catarina Martins e Jerónimo de Sousa, deixo apenas a de António Costa, a 18 de setembro, em plena campanha eleitoral: "A última coisa que fazia sentido é o voto no PS, que é um voto de pessoas que querem mudar de política, servisse depois para manter esta política. É evidente que não viabilizaremos, nem há acordo possível entre o PS e a coligação de direita." (...) Ou seja, quem votou no PS, no PCP ou no BE, que correspondem a mais de metade dos eleitores e a mais de 120 deputados, sabia que o voto nestes partidos tornaria inviável um governo de Passos Coelho. É por isso legítimo assumir que a maioria dos eleitores votou para garantir que Passos Coelho não governava.»
Daniel Oliveira, Democrático, constitucional, estável
«Pode ser perda de tempo [o presidente só avançar para o segundo partido mais votado depois de tentar um executivo liderado pela força que ganhou as eleições]. Se ele não souber qual vai ser o comportamento dos partidos, tudo bem, compreende-se. Isto é, se PS, BE e PCP não disserem exatamente, com plena certeza, o que vão fazer na Assembleia, compreende-se que dê posse a um governo minoritário PSD-CDS. Agora, se antes os três partidos lhe disserem "olhe, é escusado estar a nomear PSD-CDS porque nós reprovamos e o governo não vai governar", aí qual era o interesse para o país de estar a perder tempo com isso?»
Jorge Reis Novais (Diário de Notícias)
«Decididamente, há setores da direita que nunca abandonam a sua vocação golpista. Só que esta golpada não tem pés para andar. Primeiro, não havendo outra alterativa de governo nem possibilidade imediata de convocar novas eleições, o PR tem uma obrigação constitucional de chamar a formar governo o líder do segundo partido mais representado na AR e de nomear o governo que este lhe proponha. Segundo, Cavaco Silva, que é um institucionalista, não pode permitir-se incorrer num abuso de poder dessa gravidade, mantendo em funções um governo rejeitado pela AR, assim pondo em causa o regular funcionamento das instituições que ele próprio tem a obrigação constitucional de garantir. Terceiro, manter em funções durante mais de oito meses um "governo de gestão", com poderes muito limitados, deixaria o País em pantanas. Por último, deixar essa batata quente para o próximo PR seria envenenar dramaticamente as próximas eleições presidenciais.»
Vital Moreira, A golpada
quarta-feira, 14 de outubro de 2015
Varoufakis em Coimbra
Aproveitando a oportuníssima iniciativa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, espero poder esclarecer uma dúvida que aqui já coloquei, sendo que o pensamento deste notável economista político parece estar a evoluir, como a sua subscrição de um plano B indicia: como é que quem reconhecidamente viu o que chamou de primavera grega ser esmagada por um transparente euro-imperialismo, consegue ainda perspectivar a democratização desse projecto político regressivo de uma quase moeda mundial? Nem de propósito, dois economistas políticos, Costas Lapavitsas e Heiner Flassbeck, publicaram recentemente um detalhado programa nacional e social de resgate da Grécia que vale a pena ler e sobre o qual será interessante conhecer a opinião de Varoufakis.
Adenda: a aula de Varoufakis será transmitida online.
# Liberdade já!
«Luaty Beirão está hoje no seu 23º dia de greve de fome. Detido há mais de três meses, então sem mandato judicial, foi agora acusado, com 14 outros jovens, de uma obscura conspiração contra o Estado angolano. Para fundamentar a cabala, o governo de Eduardo dos Santos convocou os diplomatas acreditados em Luanda e mostrou-lhe um vídeo gravado nas reuniões dos jovens por um infiltrado da polícia. Um diplomata que assistiu a essa exibição do vídeo confirmou-me que este é irrelevante e que, pelo contrário, confirma que se trata de presos políticos e de um ataque ao exercício da liberdade de opinião. (...) Angola só tem a ganhar em evitar o prolongamento desta crise. Se o seu governo ouve a opinião pública, saberá que deixar Luaty morrer seria uma tragédia. Angola perderia um herói e todos perderíamos dignidade.»
Francisco Louçã, Um por todos e Luaty Beirão
Hoje, 14 de Outubro - Concentração em Lisboa, no Largo Jean Monnet, em frente ao Gabinete do Parlamento Europeu (17h30), seguida de vigília na Praça do Rossio (a partir das 18h30). Vigília em Coimbra, na Praça 8 de Maio (a partir das 21h00).
Amanhã, 15 de Outubro: Vigília no Porto, em frente ao Consulado de Angola, na Boavista (Rua Dr. Carlos Cal Brandão), a partir das 18h30.