sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A vez da esquerda


A leitura na internet dos comentários sobre a possibilidade de o país vir a ter um governo do PS, com o apoio parlamentar do BE e PCP, tem sido muito instrutiva. É particularmente interessante ler o que escrevem as pessoas ansiosas pela mudança de governo que se avizinha. Percebe-se que o sofrimento infligido pelas políticas do anterior governo não desapareceu e deixará marcas profundas na sociedade portuguesa. Como é comum nas redes sociais, as emoções andam à solta e turvam a avaliação dos riscos e das potencialidades desta solução política. Mesmo as pessoas ponderadas, e até com instrução superior, têm dificuldade em criar o distanciamento necessário a uma avaliação crítica da conjuntura política. Este clima psicossocial torna mais difícil uma intervenção realista que não queira assumir o papel de Cassandra.

Num contexto de grande alívio para a maioria da população, por finalmente nos vermos livres do governo da PàF, percebe-se como é delicado fazer uma avaliação do que pode ganhar o país com esta experiência governativa. Antes de mais, é possível melhorar a vida de muitos cidadãos revogando legislação com evidente marca ideológica e escasso impacto orçamental em vários sectores, a começar pela legislação laboral. Depois, consegue-se evitar dois rudes golpes sobre o sistema de pensões. O primeiro, sobre as pensões mínimas, num valor para quatro anos estimado em 1020 milhões de euros. Graças ao acordo à esquerda, os militantes socialistas evitam passar pela vergonha de ver um governo da PàF aplicar uma medida que está no programa do PS e transformar um direito social – a pensão mínima como direito conferido pelo trabalho – numa medida de assistência pública sujeita a condição de recursos.

O segundo golpe, a redução da TSU, diz respeito à utilização dos descontos para a Segurança Social como instrumento de política económica, o que frontalmente viola o contrato social que sustenta a nossa democracia. Este autonomizou o orçamento da Segurança Social e conferiu-lhe uma gestão tripartida no âmbito da concertação social. A medida constituiria o precedente necessário para, mais tarde, permitir tratar a TSU como um imposto que, de facto, não é – como contribuição* social, é receita consignada que confere o direito a uma contraprestação –, o que sujeitaria o financiamento da Segurança Social aos ciclos políticos esquerda-direita. Seria o golpe final no legado histórico das lutas de gerações de trabalhadores por uma vida decente e pela mutualização dos riscos sociais. Para formar governo, o PS teve de deixar cair uma medida que foi bem acolhida pela PàF.

Há também uma distribuição um pouco mais justa do rendimento nacional que resultaria de uma política orçamental que, tanto quanto possível, transferisse alguns custos da austeridade para as classes de maior rendimento e património. Neste ponto, resta saber se a Comissão Europeia não invocará um imaginário impacto orçamental negativo dessas medidas para as recusar no exame prévio que fará ao Orçamento. E isto leva-nos ao ponto decisivo nesta experiência de “governo à esquerda”. Em que medida é possível fazer deslizar as metas do défice orçamental para acomodar os impactos das mudanças na política interna e da estagnação mundial? Como manter uma consistência mínima nesta política de esquerda, respeitadora das regras da direita, no quadro de um previsível endurecimento da atitude da CE e do Eurogrupo?

A forma como as esquerdas vão explicar ao povo as dificuldades que António Costa encontrará em Bruxelas para aprovar o seu primeiro Orçamento determinará a percepção da nova maioria social quanto à margem de manobra que nos sobra para o exercício da democracia. Esta experiência governativa deve conduzir a um alargamento da consciência popular de que o euro é a causa desta crise. Esta é uma oportunidade que a esquerda não pode desperdiçar. Para que Portugal tenha futuro, os que se identificam com Cavaco Silva na submissão ao ordoliberalismo alemão têm de ser derrotados. O dia 1 de Dezembro de 1640 não foi esquecido.

(O meu artigo no jornal i)

* Por lapso, no artigo está "prestação"

12 comentários:

  1. Um romance algo monótono, construído sobre um logro e destinado a um fracasso.
    Mas a pedagogia do desastre aparece ao autor como um ganho a prazo, um ganho patriótico e de esquerda, em que o 1º de Dezembro aparece a mascarar uma revolta que não distingue o doador do credor, mas que ainda assim acredita poder prosseguir a incrementar o endividamento.

    Tudo considerado, a incoerência não destoa dos pressupostos da obra, onde 'uma grande maioria' surge identificada com uma revolta, ou até uma repulsão popular que, feitas as contas, em final e numa perspectiva muito optimista, só se exprimiu em escassos 30% dentre os que tiveram a oportunidade de o manifestar.

    Mas a ficção tem liberalidades que a realidade desconhece e que são de uso.

    .

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  2. Ouvi os discursos da tomada de posse da coligaçao direitista e pensei ca´ para comigo: isto e´ um redil ardiloso dos interesses que rejeitam a participação da soberania popular no Estado, para reafirmar a rigidez econômica e institucional prevalecente.
    A invocaçao da confiança, da estabilidade governativa e institucional so revela receio da perda de interesses pessoais julgados perenes – dos tachos e capelinhas em volta da mesa do orçamento…Que não temam , nem oscilem perante o abominavel “homem do leme”, ate por que o timoneiro esta de saida. De Adelino Silva

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  3. Pode ser uma oportunidade única para a esquerda mostrar que tem competências para transformar este cantinho à beira mar plantado, num local digno de se viver. Filipe P

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  4. O primeiro passo foi dado e é o resultado de muita luta ao longo destes últimos anos: o governo PSD/CDS foi derrotado, alterou-se a correlação de forças na Assembleia da República e Cavaco Silva foi obrigado a recuar, pelo menos no radicalismo e agressividade do discurso.
    O segundo passo será o acordo de medidas políticas a aplicar pelo próximo governo (ao que parece, um governo do PS com apoio do BE, do PCP e do PEV).
    O futuro governo não terá, certamente, a mesma postura de submissão do anterior e de souber apoiar-se na luta dos trabalhadores e do povo vai encontrar soluções.
    A realidade tem muita força e "os factos são teimosos"...

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  5. A correlação de forças foi alterada -não por o ter sido matematicamente- porque ao leme do Partido Socialista está um homem que não teme a ligação aos Partidos à sua esquerda e isso requer alguma coragem, visão e capacidade de leitura do "possível". O PCP e o BE tem que aproveitar esta oportunidade e permitir ao PS ser um verdadeiro Partido do Arco do Socialismo/Social Democracia. Porque com isso estarão a permitir a si próprios abrir portas nunca dantes abertas. Para isso é necessário "consciência" e "pragmatismo" para um período de tempo que pode alargar-se e conduzir a outros domínios de participação conjunta.
    É o caminho da Esperança de uma imensa percentagem de Portugueses.
    Acho que pode ser uma das portas que Abril abriu e que rapidamente se fechou por força de sectarismos estéreis. Se somos todos de esquerda, embora com visões diferenciadas, então sejamos dignos desse epíteto.

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  6. Se não conseguimos atingir o Socialismo Utópico -porque o caminho é muito difícil de percorrer, são tantos os escolhos e as barreiras- então tentemos conseguir um "Socialismo Escandinavo" e façamos o nosso Portugal mais feliz!...Já o merecemos, os nossos filhos merecem-no.

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  7. O radicalismo programático da Direita, "empurrou" o PS para Esquerda, assim como podemos admitir, que o radicalismo da Esquerda antes "empurrara" o PS para a Direita.
    Assim completar-se-á um ciclo e abrir-se-á um ciclo novo.

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  8. Já agora, soube que o PRECSilva tem -ou teve- muito más relações com o sogro -pai da Maria Silva- que por sua vez é casado -ou foi casado- em segundas núpcias com outra mulher...

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  9. Excelente texto de Jorge Bateira.

    Para azar do Jose e contra a sua vontade, a oportunidade foi dada a 100% da população e, os milhões de pessoas que continuam a resistir aos desmandos saqueadores do Jose e seus comparsas constituem, de facto, uma maioria social que se alarga muito para lá dos processos formais.

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  10. De facto os tratados europeus e os poderes dominantes não dão grandes esperanças. Digamos que é uma tentativa (esta de "esquerda") que tem tudo para falhar, como aconteceu na Grécia, apesar das situações serem diferentes. Por outro lado é um risco que pode resultar se em Espanha vierem bons ventos, para variar. Aí teríamos uma "vontade" em Portugal, Espanha, Grécia e, talvez, Itália. A tal famosa e muito utópica "União do Sul da Europa". Será isso possível? É uma aposta de risco e com muitas chances de falhar. Mas, quem sabe? o Futuro é uma Aventura...

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  11. Não será mais correcto dizer que os gastos excessivos são o amago desta crise? É que mascarar com o euro, o facto do país não produzir o suficiente para o que gasta, parece-me a mim uma falsidade.

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  12. Sim, em certa medida, o ultimo comentador tem razão quando diz que os gastos excessivos são o amago desta crise; mas, atenção, esse foi um padrão europeu e norte-americano, um padrão que praticamente nos foi imposto através da venda de dinheiro fácil, portanto devemos resistir a uma visão paroquial dos problemas. O insuspeito Mira Amaral coloca o problema nestes termos:
    “As economias ocidentais consumiam mais do produziam, recorrendo ao endividamento público e privado, assistindo-se a uma transferência de riqueza para os países com excedentes comerciais (China) e com rendas petrolíferas. Essa época de crescer só com endividamento acabou, vão mudar os nossos hábitos de consumo e acabam as facilidades de financiamento desse passado. Vamos também assistir a novas regras no jogo económico-financeiro mundial concertadas com as novas potências emergentes como a Índia, China e Brasil. O modelo de consumo e importação dos EUA está posto em causa mas também a estratégia de poupança e exportação da China, Japão e Alemanha tem de ser mudada na medida em que nestes países o crescimento terá de vir também do mercado interno. Agora os países com excedentes comerciais como a China, o Japão Alemanha vêem-se também a braços com reduzida procura externa devendo então compensá-la com estimulo à procura interna. "

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