terça-feira, 20 de outubro de 2015

Terceira onda da crise internacional? (I) Países “emergentes” há muitos.

A Goldman Sachs publicou recentemente um dos seus documentos de estratégia global, onde alerta para a possibilidade de estarmos a assistir a uma terceira fase da crise internacional. Depois da crise nos EUA (2008-09) e da crise do Euro (2011-?), estaríamos agora em pleno “ajustamento” dos países ditos emergentes (sendo o Brasil melhor exemplo), vítimas do colapso dos preços das matérias-primas e da fuga de capitais provocada pela expectativa de taxas de juro mais altas nos EUA. O contágio destes países à economia internacional põe em causa qualquer perspectiva de recuperação económica global. Partindo deste documento, existem algumas reflexões a retirar. Comecemos pelos países "emergentes".

A presente crise nos países do “Sul Global”, mais do que o reflexo do colapso dos preços das matérias-primas que exportam, mostra a fragilidade do modelo de desenvolvimento baseado na integração financeira internacional, onde fluxos de capitais de curto-prazo afluíram em busca de atraentes taxas de juro (pedir emprestado a 0% no Japão e emprestar na África do Sul a 8% era um grande negócio), alimentado um mercado doméstico de crédito ao consumo e, sobretudo, dirigido ao sector imobiliário. A recente fuga de capitais tornou o modelo insustentável, com o crédito a cair, a economia a desacelerar e os estados a enfrentarem défices públicos crescentes que os mercados obrigam a diminuir com austeridade implacável.


Se precisássemos de um exemplo para mostrar a importância destes fluxos na crise face à causa normalmente apontada, os preços das matérias-primas, basta comparar o Brasil com a Argentina. Este último país, tão ou mais dependente das matérias-primas na sua estrutura de exportações, é um pária nos mercados financeiros internacionais, sem acesso aos fluxos internacionais de capital. Com um modelo de crescimento apoiado na procura interna (as divisas da soja obviamente ajudaram) e sem problemas em usar todos os instrumentos monetários (controlos de capitais, câmbios fixados e, aparentemente, financiamento monetário do Estado), a Argentina conseguiu, não só crescer muito acima do seu vizinho nos últimos anos, como agora manter-se à tona da água, sem entrar em recessão, face à crise que grassa em seu torno.

Final e decisivamente, o caso a acompanhar de perto é a China, ela própria na origem da queda dos preços de muito minérios e bens alimentares. Com elevadíssimas taxas de investimento (em torno dos 40% do PIB), a economia chinesa precisa de crescer a taxas bem acima do que consideraríamos crescimento pujante. Caso contrário, todo este investimento não consegue encontrar qualquer rendibilidade, tornando-se obsoleto. Nos últimos anos isso já tem acontecido. Depois de, em 2009, ter existido um debate sobre a promoção do consumo interno face ao investimento, desenvolvendo, por exemplo, um sistema nacional de saúde que promovesse taxas de poupança mais baixas por parte das famílias chinesas, decidiram-se a ir pelo caminho mais fácil. Com o controlo público sobre o sistema de crédito financiaram, primeiro, uma enorme bolha imobiliária, e mais recentemente, uma bolha bolsista que, felizmente, durou pouco. Hoje a China enfrenta um profundo debate político entre a liberalização financeira ou as propostas de 2009. Se é certo que a China dispõe de imensas reservas cambiais que tornariam o primeiro cenário atraente para alguns, a verdade é que com a presente quantidade de créditos tóxicos no seu sistema financeiro e o exemplo de outros países, mencionados acima, tornam este cenário muito assustador. Empurrar com a barriga, como está a acontecer, não é uma solução viável.

5 comentários:

  1. Segundo li, a bolha imobiliária tem a sua razão lógica. O governo (e os cidadãos) querem que um número elevado de pessoas saiam da pobreza rural, com as consequentes deficiências de acesso ao mundo moderno, para meios urbanos onde mais facilmente têm acesso a educação e a empregos de grandes empresas. Devido ao grande número envolvido, só realmente construindo cidades inteiras por antecipação.
    Mais dados do que isto não tenho, seria uma questão de procurar.

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  2. Uma balança de pagamentos equilibrada dá capacidade de formular políticas autónomas.

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  3. Terceira onda?
    Então, ainda temos muito que penar!
    Ate´ contar sete ondas, segundos os velhos lobos – do - mar há que esperar para safar.
    Segundo algumas estimativas - a Terra tem capacidade de alimentar ate´ cerca de 10 mil milhões de pessoas nas
    Condições dos anos 70 do XX seculo. O que pressupõe um mercado mais vasto e ambicioso para ondas ainda maiores.
    Estou ca´ cogitando… que onda rebentara´ nesse momento, se
    hoje as pessoas, como párias, já´ acorrem as praias da Europa?
    A segunda onda ainda se faz sentir!…
    Os algozes persistem na destruição das Florestas, esventram a Terra e consporcam os Mares…isto não e´ profecia, e´ a realidade da hora…
    Já não terei tempo para o verificar… mas esta terceira onda que ora comecera´, vai certamente movimentar mais humanos por guerra ou por fome e etc. e tal. De Adelino Silva

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  4. Caro Teles,

    acho exagerada a apreciação sobre a Argentina. Não é verdade que a Argentina conseguiu “crescer muito acima do seu vizinho [brasileiro] nos últimos anos”. Segundo os dados do Banco Mundial, desde o final de 2007 até ao final de 2014, a Argentina cresceu a uma média anual de 3,5%, enquanto o Brasil cresceu a uma média anual de 3,0%. Não se pode dizer que tenha sido “muito acima”. Detesto manipular a seleção dos períodos, mas deixo só a referência de que se tomarmos os últimos três anos para que há dados disponíveis, desde o final de 2011 ao final de 2014, o Brasil até cresceu mais do que a Argentina (um crescimento total, nesse período de três anos, de 4,7% para o primeiro e de 4,2% para a segunda).

    É certo que o Brasil vai registar uma recessão bem significativa este ano e que a Argentina, provavelmente, ainda se escapa. Não serei eu, que tantas vezes critiquei as projeções do FMI, que argumentarei com elas. Deixo só a referência de que para o ano, 2016, essa instituição prevê uma recessão na Argentina de -0,7%. De qualquer modo, ainda se está para ver o “à tona da água”.

    De todo o meu coração, desejo que assim seja, que consiga evitar a recessão. Mas julgo que é tempo de reconhecer que o modelo argentino (bem como o modelo venezuelano e, em alguma medida, o próprio modelo brasileiro, mais notoriamente no segundo mandato Lula) de “crescimento apoiado na procura interna” esgotou e mostra claramente os seus limites.

    Os limites dos estímulos keynesianos baseados no aumento da procura e a crença ingénua, reproduzindo simetricamente o erro dos neoclássicos, de que a procura gera automaticamente a oferta. Ou seja, a desconsideração dos outros constrangimentos à rentabilidade e, particularmente no caso argentino, da manutenção, no essencial, da estrutura produtiva monopolizada do país, da prevalência da renda agroexportadora (sobretudo na soja), da dependência dos preços internacionais das matérias-primas agrícolas (que, não obstante, no caso da soja e da carne de vaca se mantêm ainda muito superiores à média dos anos anteriores a 2007), da desnacionalização dos recursos mineiros, da degradação da balança energética, da fuga de divisas, de uma fiscalidade que beneficia os oligarcas, as transnacionais e o grande patronato.

    Os estímulos keynesianos são importantes, mas transitórios. Tem que se atuar, simultaneamente, harmoniosamente, do lado da oferta e da procura. Se se quer avançar, têm que ser complementados com o investimento, a destruição dos monopólios, o fortalecimento dos setores públicos, a nacionalização do sistema financeiro, o eficaz controlo dos câmbios, o monopólio (ou ao menos o maior controlo público) do comércio externo, a promoção endógena do crescimento a par das exportações, a substituição de importações, a reorientação industrial para satisfazer as necessidades sociais e produtivas do país.

    (continua a seguir)

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  5. (fim)

    Saída de uma grave recessão, com uma gigantesca capacidade ociosa, altos níveis de desemprego, salários fortemente depreciados, gravíssimas desigualdades na distribuição do rendimento, os estímulos ao consumo, à procura, as concessões que os governos do casal Kirchner tiveram que fazer às camadas populares, impulsionaram o crescimento. Mas a manutenção do modelo agroexportador, cada vez mais centrado na soja, a dependência excessiva do mercado mundial, o domínio crescente das transnacionais sobre a produção energética e a indústria, a falta de controlo sobre a orientação do investimento, a descapitalização do tecido produtivo, desembocaram num beco sem saída, com alta inflação, degradação da balança comercial (que ameaça tornar-se negativa), desvalorizações cambiais forçadas e anuladas pelos aumentos dos preços, desaceleração da queda do desemprego (e eventual aumento para o ano) e dos níveis de pobreza, crescimento anémico, possível recaída recessiva.

    Num certo sentido, a história, neste século, do modelo argentino de “crescimento apoiado na procura interna” fica muito marcada por duas grandes batalhas sociais, de significado de classe simétrico. A luta dos piqueteros, com as conquistas populares, impulsionou o consumo, a procura e o crescimento por ela estimulado, mas a derrota governamental em 2008, no confronto com o agro-negócio pela captura da renda da soja, pôs um ponto final na desejável evolução, e necessária transformação, desse estreito modelo, que se foi exaurindo, ainda mais condicionado com a irrupção da grande crise capitalista mundial, e que dá agora os seus estertores.

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