Sabemos tudo acerca do delicado tecido de normas e reciprocidades sociais dos ilhéus de Trobriand e acerca das energias psíquicas envolvidas nos cultos de carga da Melanésia; mas nas nossas histórias, a determinada altura, esta criatura social infinitamente complexa, o homem da Melanésia, torna-se o mineiro de carvão inglês oitocentista que leva espasmodicamente a sua mão à barriga e reage a estímulos económicos elementares. À perspetiva espasmódica contraporei a minha própria perspetiva. Em quase todas as ações da multidão oitocentista é possível encontrar alguma noção legitimadora.
E. P. Thompson, A economia moral da multidão na Inglaterra do século XVIII, Lisboa, Antígona, 2008 [1971], p. 22.
Esta passagem de um notável historiador e combatente pela paz não me sai da cabeça, vá lá perceber-se porquê.
Experimentei substituir mineiro inglês oitocentista por trabalhador agrícola no Douro ou reformado algures em Beja, em 2025. Nos “estímulos económicos elementares” incluí imigração e sua força, por exemplo; e será que estes resultados eleitorais equivalem a um motim?
Sabemos pouco sobre motivações populares. Supomos, espero que com realismo, que a oferta política reacionária, financiada por grandes capitalistas, condiciona a procura política popular, impondo uma certa “noção legitimadora”.
Sabemos que o Chega tinha um deputado em 2019, quando havia meio milhão de cidadãos estrangeiros em Portugal e tem sessenta deputados meia dúzia de anos mais tarde, quando há mais de um milhão e meio, uma mudança súbita que alcandorou o tema a preocupação central para amplos setores. Sabemos que a velocidade da mudança conta pelo menos tanto quanto a direção na saliência de um tema.
Temos mesmo de pensar em termos de economia moral: consenso popular, consenso comunitário e suas determinações socioeconómicas, moralmente interpretadas, vindas de cima, de baixo e do lado.
Entretanto, qualquer discussão sobre a economia moral, incluindo da imigração, tem de partir do capitalismo realmente existente, como o historiador marxista britânico sabia.
Em 2023, escrevi uma crónica para o setenta e quatro sobre o tema. Deixo-a aqui outra vez, porque temos de continuar a trocar ideias sobre os assuntos.
Não podemos aceitar a globalização neoliberal
Chama-se arbitragem laboral à forma como os capitalistas, num contexto de fronteiras abertas a todos os fluxos pela liberalização, atiram os trabalhadores de diferentes países uns contra os outros, numa corrida laboral para o fundo. Este contexto nunca pode ser perdido de vista, nem naturalizado.
Simplificando, há duas formas de organizar a corrida laboral para o fundo: deslocalizar ou ameaçar deslocalizar o capital para os países onde os trabalhadores são mais pobres, ou trazer os trabalhadores mais pobres para onde o capital precisa deles, tendencialmente com as condições de trabalho dos países de origem. Deslocalizam-se os capitais ou deslocalizam-se os trabalhadores.
Num contexto de globalização neoliberal, a situação laboral piora muito nos países com condições de trabalho mais favoráveis e não melhora nos países mais pobres. Por outras palavras, a convergência nunca se faz por cima.
No caso português, reforçou-se desde a troika uma economia de baixa pressão salarial, demasiado concentrada em sectores como a construção, o agronegócio ou o turismo, onde os patrões exigem uma força de trabalho barata e abundante.
Surge, por isso, o discurso de origem patronal, medíocre e reacionário: “não há quem queira trabalhar”, “os portugueses não querem fazer certos trabalhos” (mal pagos), “estamos em pleno emprego”, entre outras fraudes nada inocentes. Claro, o problema são as remunerações e as ultrajantes condições de trabalho oferecidas por esse mesmo patronato, mas disso quase não se fala. Ou, quando se fala, pelo conhecimento público de uma situação de exploração mais flagrante, não se faz a ligação àquele discurso e à prática correspondente.
Para uma certa procura, seria mesmo bom que não houvesse oferta, de modo a obrigar quem precisa de força de trabalho a garantir salários e condições de trabalho decentes, incentivando, no processo, investimentos geradores de aumentos de produtividade. Caso contrário, estamos a perpetuar a selvajaria laboral, trancados num modelo económico medíocre.
Isto requer regras laborais exigentes para os patrões, que são quem tem mais poder, rigorosamente cumpridas. Mas também exige regulação dos fluxos migratórios por uma dupla razão: para defender quem cá está e quem quer vir para cá trabalhar, de modo que ninguém fique vulnerável perante o patronato. A dignidade do trabalho é para todos.
Do ponto de vista social e político, os que estão em profissões com barreiras à entrada, da língua à regulação – e que, por isso, atenuam a concorrência internacional de todos contra todos –, por exemplo, professores universitários, advogados, médicos, jornalistas, gestores, deveriam estar mais atentos aos que estão mais expostos às consequências da abertura irrestrita de fronteiras a todos os níveis.
Sem fronteira económica, não há responsabilização política, nem democracia ou Estado social para todos. Por isso, os neoliberais sempre quiseram tornar a fronteira política economicamente irrelevante.
A fórmula de Dani Rodrik, um economista político social-democrata, é justa neste contexto: os países subdesenvolvidos devem poder copiar as práticas desenvolvimentistas dos países hoje ricos, incluindo o protecionismo; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus padrões laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas.
E, sim, claro: um certo discurso pretensamente cosmopolita, mas complacente com a globalização neoliberal, também alimenta a extrema-direita.
8 comentários:
A pergunta que se impõe é: como é que esta perspetiva, já de 2023, ancorada na defesa e valorização dos trabalhadores, que é concreta e que não apela ao ressentimento entre trabalhadores, não teve qualquer eco nem no discurso nem no programa do PCP, o partido onde tal seria mais natural, nem agora nem em 2024?
Não teve eco no programa do PCP?
Tens de ler: https://www.pcp.pt/compromisso-eleitoral-do-pcp-legislativas-2025
Se achas que é preciso distinguir entre indígenas e imigrantes é porque não percebes nada!
Vai directo ao ponto 2.1 (não vá a preguiça levar a melhor)!
Caro Anónimo, se se refere ao parágrafo:
"O PCP preconiza uma política humanista de integração dos imigran-
tes, que valorize o seu contributo para a economia nacional, garanta
condições de acolhimento, combata o racismo e a xenofobia. Isso faz-
-se, tendo em conta as capacidades de acolhimento do País e de cada
região e garantindo regras claras e procedimentos viáveis para a sua
entrada e regularização definitiva, sob pena de se alimentarem as re-
des clandestinas e a imigração ilegal e sem direitos. É indispensável o
reforço dos meios dos organismos públicos de intervenção nesta área,
designadamente da AIMA e da ACT, bem como para o combate às re-
des de tráfico humano e de exploração de mão de obra sem direitos."
Creio que isto, está mesmo muitoo, mas mesmo muito longe de ecoar aquilo que é a principal posição do texto do João Rodrigues, nomeadamente: "Deslocalizam-se os capitais ou deslocalizam-se os trabalhadores(...) Para uma certa procura, seria mesmo bom que não houvesse oferta, de modo a obrigar quem precisa de força de trabalho a garantir salários e condições de trabalho decentes "
A crítica à globalização e à hegemonia neoliberal é estéril se for apenas feita em relação ao livre fluxo de capitais e não ao livre fluxo de trabalhadores.
Isso é tudo verdade, mas mais que isso, é preciso explicar aos trabalhadores que a sua vida não está pior devido ao trabalhador emigrante ao seu lado, mas devido às políticas neoliberais que desmantelaram o Estado Social e implementaram uma economia de baixa pressão salarial. Na minha opinião, falhar esta tarefa implica capitular perante a extrema-direita e os seus sucedâneos.
Clica no link e procura o ponto 2.1!
Tens de perceber: o "livre fluxo de capitais" é a causa, o (não tão)"livre fluxo de trabalhadores" é a consequência.
Enviar um comentário