sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Encontremo-nos por aí


No Portugal de hoje, quem são os Neros e quem são os cristãos primitivos? Quem tem por si a superioridade moral que dá o desinteresse da riqueza, o espírito de abnegação e de sacrifício? Quem, no fim de contas, é animado pelo amor do próximo e capaz de sacrificar a esse amor a própria vida? Estamos certos que qualquer pessoa de sentimentos honrados encontra resposta fácil a estas questões. 
Álvaro Cunhal, 1965

São os comunistas que pensam como os cristãos. Cristo falou de uma sociedade em que os pobres, os débeis e os excluídos é que decidem. Não os demagogos, os Barrabás, mas o povo, os pobres, tenham fé em Deus ou não, mas são eles que temos de ajudar a obter a igualdade e a liberdade. 
Francisco, 2016.

No final deste ano, vá lá perceber-se porquê, decidi ir para lá da tradição da nossa Constituição: Bom Ano de 2022.
 

A TAP é mais que uma companhia aérea, a TAP é economia

Em parceria com a AbbVie, a insuspeita Information Management School, da Nova (IMS-Nova) publica regularmente o Índice de Saúde Sustentável. Um dos indicadores analisado diz respeito ao impacto económico resultante da prestação de cuidados de saúde pelo SNS, medido tanto pela redução do absentismo como pelo valor económico, em termos de trabalho, dos dias não faltados por doença, graças ao nosso serviço público e universal de saúde.

No exercício relativo a 2020, a IMS-Nova estima que o investimento no SNS permitiu, nos termos acima descritos, um «retorno para a economia» de 6,8 mil milhões € (mais 1,4 mil M€ que em 2019). Valor cujo significado é ainda mais expressivo se considerarmos que a despesa total com o SNS, nesse ano, foi de cerca de 11,5 mil M€. Ou seja, o dito retorno, decorrente da prestação de cuidados, equivale a quase 60% do orçamento do SNS. Para lá, claro, do valor incomensurável - e que é o mais importante - de cuidar e proteger a saúde de todos os cidadãos.

Vem isto a propósito da TAP. Tratando-se de setores muito diferentes, o exercício acima descrito ajuda a compreender devidamente o esforço que o Estado está a fazer para recuperar a TAP e essegurar a sua sustentabilidade, mantendo o valor estratégico da companhia para o país e para a economia nacional. Não se pode, de facto, à semelhança do SNS, encarar esse esforço como mera despesa, ignorando os impactos relevantes da TAP na economia, como demonstram os indicadores (pré-pandemia) assinalados pelo ministro Pedro Nuno Santos em artigo recente no Negócios.


Note-se, aliás, que não se trata apenas da capacidade exportadora da TAP (equiparável à de empresas como a Navigator e a Autoeuropa), nem do seu contributo para o emprego (cerca de 110 mil postos de trabalho diretos e indiretos), ou das compras a mais de mil empresas nacionais, «espalhadas por todo o país», numa invulgar «capilaridade na localização geográfica dos fornecedores». A estes fatores, a ter em conta no sopesar do apoio público de 3,2 mil M€ à companhia entre 2020 e 2022, junta-se a importância da TAP para assegurar as ligações intercontinentais, o turismo ou a manutenção do hub de Lisboa (que passaria para Madrid, se a TAP caísse).

À semelhança do investimento no SNS, e do retorno que este permite, a compreensão ampla do significado do investimento público na TAP torna evidente a miopia e incapacidade das análises económicas pobres, que reduzem a despesa pública em diferentes setores a meros «encargos», passando a ideia de que a «economia produz» e o «Estado gasta». Ou, na mesma linha e com o mesmo viés, que «primeiro se cria riqueza e só depois se distribui».

Para os combates de 2022

Homem, 
abre os olhos e verás 
em cada outro homem um irmão.

Homem, as paixões que te consomem 
não são boas nem más. 
São a tua condição. 

A paz, 
porém, só a terás 
quando o pão que os outros comem, 
homem, 
for igual ao teu pão. 



proteção?, não sei o significado 
mas em compensação sei o que é diferenciado 
e o silêncio que se faz tira-me o sono e a paz 
desde quando temporário é sinónimo de otário? 


quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Indignações muito seletivas


O segundo problema desta capa é ser apenas composta por homens brancos e não contar com nenhuma mulher. O primeiro e mais premente problema desta capa é o só integrar pessoas que, no essencial, defendem o mesmo e são de direita.

São dois problemas sérios. Mas antevejo que uma certa fação que se reclama do progressismo nacional se irá apressar a denunciar o segundo problema e gritar #MulherNãoEntra, mas se esquecerá convenientemente do primeiro.

Porque a classe, meus bens, a classe é sempre onde lhes dói. E aí estão alinhados. Não era por se adicionar ali a Ana Rita Bessa ou a Vera Gouveia Barros que esta capa seria menos escandalosa.

Indignemo-nos, pois, mas na sua totalidade. Com a indecorosa falta de pluralidade no comentário económico nacional e com a falta de sensibilidade para com a igualdade de género.

(Poucas horas depois de ter escrito este texto, originalmente no Facebook, Susana Peralta fez o comentário que se reproduz na imagem abaixo. Como esperado, a indignação com a falta de pluralidade está ausente. O pseudo-progressismo nacional é mais previsível do que um relógio suiço).



Encontros, cumplicidades


O socialismo é, essencialmente, a tendência imanente a uma civilização industrial no sentido de superar o mercado autorregulado, subordinando-o conscientemente a uma sociedade democrática (...) Do ponto de vista da comunidade no seu conjunto, o socialismo é simplesmente a continuação desse esforço para tornar a sociedade um conjunto de relações propriamente humanas entre pessoas, que, na Europa, sempre esteve associado às tradições cristãs. 

Karl Polanyi, A Grande Transformação, Edições 70, Lisboa, 2012 [1944], p. 340. 

Não creio que haja contradição entre valorizar as obras de Francisco e avaliar criticamente o fim da URSS, mas, se houver, qual é o problema? 

Sinceramente, não creio que haja muito melhor do que a tradição de encontro, partilha e até fusão entre comunistas e socialistas, de um lado, e cristãos, do outro. As mãos devem sempre estar estendidas e um ateísmo militante serve, francamente, para muito pouco.

O melhor da tradição cristã corrige, aliás, um certo “cientismo”, presente nas “correntes frias” do marxismo, dando-lhe uma noção mais clara dos fins ético-políticos que aquecem a alma e impelem a agir aqui e agora, com fé ou com esperança. 

O melhor do marxismo dá ao pensamento cristão um realismo político, a tal análise concreta da situação concreta, partindo de uma formação social concreta, com vista à organização consequente dos últimos, os que podem e devem ser os primeiros também nesta terra. 

O resultado tem sido um humanismo radical, presente, por exemplo, na teologia da libertação, que inspirou e inspira tantos do outro lado do Atlântico e deste também. Pela minha parte, não conheço, mas o meu conhecimento é mesmo muito insuficiente, quem tenha articulado melhor isto do que Karl Polanyi, que andou pelas bandas do socialismo cristão, escrevendo aliás um texto luminoso sobre o fascismo nesse contexto: e o trabalho não é uma mercadoria. 

No nosso país, devemos muito a estes encontros intelectuais e políticos. Por exemplo, e isto está bem documentado por que tem investigado esta história, devemos também o maior e melhor movimento social, a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses, a Intersindical Nacional. 

Devemos-lhes a ideia de uma república democrática fundada nos valores do trabalho, hipótese já presente noutro momento de convergência com consequências apesar de tudo duradouras, um quarto de século antes: a constituição anti-fascista italiana a seguir à Segunda Guerra Mundial. Sim, com todos os conflitos, democratas-cristãos e comunistas chegaram a um compromisso constitucional em 1947. 

Os neoliberais reacionários, aliás, sempre viram com imensa preocupação este tipo de encontros e daí o seu investimento, em modo Opus Dei, num catolicismo tão severo quanto promotor da luxuria, hoje com cursos e tudo na Universidade Católica Portuguesa. Um espírito, que, visto de fora, mas valorizando genuinamente quem está lá dentro a lutar, é contrário, mas mesmo contrário, à mensagem tão realista quanto esperançosa de Francisco.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A produtividade do trabalho e os equívocos da direita


A divulgação do relatório da OCDE sobre a economia portuguesa deu azo a várias leituras. Se houve quem tenha apontado as recomendações progressistas (e mais ou menos surpreendentes) da instituição para Portugal, entre as quais o reforço do investimento na Saúde, a melhoria do acesso a prestações sociais e o aumento dos impostos sobre os mais ricos, também houve quem tenha aproveitado para insistir em ideias erradas sobre o desempenho económico do país. Na sua página de Facebook, Camilo Lourenço, impassível defensor das medidas da austeridade durante o período da Troika, partilhou um dos gráficos sobre a produtividade do trabalho e destacou o facto de esta ter tido um ritmo de crescimento superior durante o governo de Passos Coelho. Entretanto, a imagem tem sido difundida nas redes sociais como prova dos méritos da governação de PSD e CDS.

Os argumentos sobre a "produtividade do trabalho" são mais um exemplo do tipo de discurso económico simplista a que a direita nos tem habituado, no qual usa erradamente alguns indicadores para justificar argumentos que estes não refletem. No entanto, o equívoco é facilmente desmontável: a "produtividade do trabalho" é o rácio entre o valor acrescentado gerado numa economia e o número de trabalhadores (ou horas trabalhadas) envolvidos nessa produção. Ou seja, este indicador dá-nos uma ideia do valor de mercado do que é produzido num país face à sua dimensão.

É certo que Portugal tem um problema de baixa produtividade. Mas os motivos não são os que a direita aponta. Na verdade, já foram apontados por diversas vezes neste blog (aqui, aqui ou aqui): são o facto de termos uma economia assente em setores de baixo valor acrescentado (turismo, restauração, imobiliário, etc.), um atraso histórico na qualificação da população, equipamentos e máquinas de qualidade inferior a outros países, gestores com fracas competências, ou custos elevados em setores como a energia. São estes fatores que têm determinado o fraco desempenho do país ao nível da produtividade.

E algum destes fatores se alterou com a Troika? Não. O que explica o "aumento" da produtividade do trabalho nesse período é o facto de ter havido um enorme aumento do desemprego, especialmente em setores intensivos em trabalho e pouco produtivos. Ou seja, foi um mero efeito estatístico com pouca importância. E, apesar disso, a direita escolheu festejá-lo. Seria o equivalente a aplaudir a subida do salário médio durante a pandemia, quando sabemos que este apenas cresceu porque o desemprego afetou sobretudo os trabalhos mal pagos.

À semelhança do que tem feito com a carga fiscal, a direita utiliza indicadores cuja fórmula de cálculo nem sempre é conhecida para justificar ideias erradas sobre o país. Como a desinformação económica só vai aumentar durante a campanha eleitoral, fica o contributo para um debate informado sobre este assunto.

Repetir, repetir, repetir sempre


A originalidade recorrente não é virtuosa, até porque não é verdadeira. Há uma fórmula pessimista dum estratego republicano, citado pela The Economist há uns anos atrás, no tempo de Bush, que convém não ser esquecida: “Dizes a coisa uma vez, repete-la vezes sem conta e quando estás mesmo, mas mesmo, farto de a repetir, então as pessoas começam a reparar pela primeira vez.” 

O Paulo Coimbra e eu estamos a escrever um artigo sobre o possível regresso da economia da idade das trevas, que vai sair no próximo Le Monde diplomatique - edição portuguesa. Estamos mesmo convencidos que vamos ter de repetir coisas destas até nos fartarmos nos próximos tempos: 

A taxa de juro pode e deve ser controlada diretamente pelas autoridades: o seu valor pode e deve ser o mesmo da taxa de desemprego que se deve almejar, ou seja, tendencial e duradouramente nulo. Os credores não gostam de tal política, mas não há melhor para os devedores, os que investem e enfrentam a incerteza. 

Para resolver os eventuais problemas reais subjacentes à inflação, a política monetária não tem qualquer serventia directa. Aliás, a política monetária só serve eventualmente para jugular de forma rude algumas formas de que os processos inflacionários se revestem, através de mecanismos tão reais quanto evitáveis, dados os grupos sociais atingidos: quebra do investimento e da procura em geral e aumento do desemprego. Pode até acontecer que a elevação do custo do crédito, um dos principais fardos para as empresas e que estas podem eventualmente passar para jusante, tenha efeitos perversos ao nível da inflação. 

Hoje em dia, no campo da procura, a questão é mais de mudança do seu perfil do que de qualquer pressão macroeconómica, até porque estamos longe de ter recuperado da crise pandémica e dos correspondentes efeitos negativos na capacidade produtiva instalada que está a ser utilizada em demasiados setores. As respostas têm de ser mais finas e delicadas, setoriais, de resto como a pressão nos preços. 

Assim, se queremos atenuar a especulação e os seus impactos deletérios em tantos setores, instituamos mecanismos regulatórios e fiscais adequados: dos controlos de capitais à direcção do crédito, passando por uma fiscalidade mais assertiva, por exemplo em relação a mais-valias mobiliárias e imobiliárias ou ao consumo conspícuo. E construamos habitação pública a sério, a preços controlados. 

Se queremos ter menos perturbações nas cadeias de valor, então desglobalizemos, confiando em cadeias mais curtas e territorialmente mais ancoradas, através de uma política industrial adequada. 

Se queremos ter energia mais barata, então controlemos publicamente este sistema de provisão e os preços e invistamos maciçamente nas energias renováveis.

Coitadinhos dos pelicanos da Iniciativa Liberal


A fauna da Iniciativa Liberal, que se conseguiu afirmar no espaço público a partir de projetos de imprensa que nunca deram lucro, verdadeiras aventuras de mecenato ideológico como o Observador ou o ECO, está indignada pela RTP emitir um documentário sobre boas práticas em cidades europeias que tem financiamento parcial da LeftEu, grupo político do Bloco de Esquerda e do PCP no Parlamento Europeu. Sendo que algumas das cidades europeias que são retratadas como exemplos positivos têm gestão de partidos liberais. De facto, isto é uma Ditadura Socialista.

Tão velha que é a nova direita

Salazar antes de votar no plebiscito da Nova Constituição de 1933 (foto retirada deste link)

 

"Contra todas as claras lições da experiência, entendem muitos que há-de o Estado alargar as suas funções económicas, organizando ele próprio a produção e com esta a repartição da riqueza. Por este caminho se tem chamado à actividade do Estado, a organização e distribuição da produção do crédito, os meios de transporte, a construção, a exploração das riquezas do  subsolo, os povoamentos florestais, vários ramos da produção agrícola e industrial, o comércio de certos géneros, quando não todo o comércio externo. Mas, exceptuados os momentos em que se hajam de salvar do melhor modo possível os maiores valores da economia nacional, arrastados pelo encadeamento dos desequilíbrios que as crises provocam, as funções do Estado devem ser muito mais limitadas e essencialmente diferentes. 

Não há nesta socialização crescente nem interesse económico - maior produção de riqueza em  melhores condições de custo -, nem interesse social - mais justa distribuição de rendimentos, melhor atmosfera para valorização  dos indivíduos -. nem interesse político - maior independência o Estado, mais asseguradas liberdades públicas, mais eficaz defesa os interesses colectivos. 

O Estado deve manter-se superior ao mundo da produção, igualmente longe da absorção monopolista e da intervenção da concorrência. Quando pelos seus orgãos a sua acção tem decisiva influência económica, o Estado ameaça corromper-se. Há perigo para a independência do Poder, para a justiça, para a liberdade e igualmente dos cidadãos, para o interesse geral em que da vontade do Estado dependa a organização da produção e a repartição das riquezas, como o há em que ele se tenha constituído presa da plutocracia dum país. O Estado não deve ser o senhor da riqueza nacional nem colocar-se em condições de ser corrompido por ela. Para ser árbitro superior entre todos os interesses, é preciso não estar manietado por alguns."

(António de Oliveira Salazar, Conceitos Económicos da Nova Constituição, 16/3/1933, Discursos 1928-1934, Coimbra Editora, Lds, pag.206/207)

 

Já cansa todo este peso da História que se repete sempre da mesma maneira, como se bastasse, a quem o repete - para passar despercebido, claro - ser mais jovem, mais viçoso ou simplesmente mais bem vestido... 

É assim tão difícil ver a repetição e ainda por cima a perder densidade a cada década que passa? É que já lá vão quase cem anos... 


segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Querido diário - A espiral da terapia de choque

Jornal Público, 27/12/2011
 

A recessão foi o pano de fundo ideal para a aplicação de uma terapia de choque. Tanto cá como em Espanha.  

Pouco importava que as medidas adoptadas pela direita no poder fossem ainda mais recessivas que a própria recessão, causassem desemprego, pobreza e expulsassem os pobres do centro das cidades. O importante era mudar o paradigma económico, concentrar a propriedade e pressionar uma baixa forçada dos salários médios, como receita anunciada de competitividade. Mas agora, com a "falta de mão-de-obra", já não se lembram que esse foi o programa. E culpam a esquerda pelo desastre do seu próprio programa.

O corte dos apoios sociais tinha igualmente essa componente: forçar os pobres a aceitar baixos salários. Mas tinha igualmente aquilo que agora tanto se condena à extrema-direita: estigmatizar. 

Não era necessariamente os ciganos, embora a direita dita moderada criticasse igualmente a subsidio-dependência dos beneficiários do RSI e quem não fosse trabalhar (não se lembram? Veja-se aqui ou aqui ou aqui... E mais recentemente, Rio também o fez). O que se queria mesmo - a par da privatização protecção social - era estigmatizar toda uma outra visão, a intervenção pública, tudo o que mostrasse que a pobreza não nasce debaixo das pedras, nem é fruto da preguiça ou da imprevidência (como tanto se defende pelo menos desde o século XIX); mas sim que é o resultado de uma absurda concentração da riqueza e da desigual distribuição da riqueza produzida, que deixa de lado cada vez mais filhos do país. Em Portugal, dois milhões de portugueses, algo que não se resolve com sacos de plástico dados pelo Presidente Marcelo, tal como se dava antes de 25 de Abril o bodo aos pobres.

Na verdade, a direita sempre se marimbou na pobreza. Sempre quis foi transformar o seu descontentamento em agradecimento. 

O  problema da terapia de choque é que tem um enorme respaldo internacional e que forçou até a social-democracia socialista a manter esse novo paradigma em nome da estabilidade. O problema é que a terapia de choque gera pobreza e descontentamento e esse pântano alimenta o regresso da mesma direita, agora com novos rostos, a qual quer - claro! - aplicar uma nova terapia de choque, embora sem nunca concretizar como será porque sabe que, se o fizer, perde o voto dos  pobres. E então engana-os com um programa que nunca aplicará (como fez em 2011).

O círculo fecha-se e repete-se, até que a social-democracia socialista acorde. Ou se acorde os pobres. 


Laurinda e os sem-abrigo


Se há fenómeno de exclusão social particularmente complexo, e por isso incompatível com soluções simples, voluntaristas e lineares, é o das pessoas em situação de sem-abrigo. Com causas, motivações, processos e trajetórias de vida muito diversos, até do ponto de vista da origem social, esta é uma das áreas onde a recorrente noção de que «cada caso é um caso» faz bastante sentido.

Causa pois uma certa perplexidade que Laurinda Alves, a nova vereadora do município de Lisboa para os Direitos Sociais, Cidadania, Saúde e Juventude - na sequência do encerramento de unidades de acolhimento de sem-abrigo, por alegada falta de condições - anuncie que vai ser pensado, nos próximos seis meses, o «modelo» de prevenção, para perceber «como é que nós podemos prevenir e o que é que podemos fazer (...) para que não haja mais pessoas nem famílias em situação de sem-abrigo».

Oxalá descubra a pólvora, claro. E se aperceba também, nesse tempo, do trabalho que já é feito, nomeadamente no âmbito da ENIPSSA, mas não só. E, sobretudo, que interiorize a noção de que a sinalização atempada de potenciais situações de sem-abrigo requer, na melhor das hipóteses, um acompanhamento social geral robusto e de qualidade, em que convirá não desinvestir.

A TAP, o HUB de Lisboa e a relevância da nacionalidade do capital


O ministro Pedro Nuno Santos tem assinalado que a única forma de garantir o HUB de aviação em Lisboa passava por assegurar a propriedade pública da TAP. E tem toda a razão. Quem pensa o contrário tem uma visão ingénua e desajustada da realidade.

Porque, sobre a relevância da nacionalidade do capital para o desenvolvimento de uma economia soberana, existem, lato senso, duas perspetivas.

A primeira é a das elites convertidas ao pensamento neoliberal nos países periféricos, ingenuamente convencidas que a nacionalidade do capital é invariante ao potencial das estratégias de desenvolviemnto. Tudo se resume a alocar o capital de forma mais eficiente à escala internacional e a constranger ao máximo a ação do Estado dentro de portas.

A segunda é a da realidade. A que explica, por exemplo, parte relevante das tendências nas relações internacionais. Como o motivo pelo qual existem tensões crescentes entre as empresas tecnológicas norte-americanas e chinesas (não, não tem só a ver com espionagem) ou o motivo pelo qual a Alemanha (e, por extensão, a União Europeia) é um dos países que mais se opõe à quebra das patente das vacinas contra a COVID-19 - porque viu a Biontech, uma empresa farmacéutica alemã, passar de uma pequena empresa em ascensão, para uma empresa com uma faturação de dezenas de biliões de dólares).

A mesma realidade que deixa ainda claro que, nas atuais cadeias de valor global, a nacionalidade da empresa conta no que respeita à maior apropriação do valor acrescentado. E, finalmente, pequeno detalhe, a maioria dos processos de desenvolvimento nacional com sucesso no último século implicaram a criação de empresas nacionais com capacidade de afirmação à escala internacional.

Nem tudo o que é bom para o desenvolvimento tem de ser lucrativo no curto-prazo. Na maioria das vezes, não é. É exatamente essa disponibilidade de "capital paciente" que o Estado pode injetar até que a TAP ganhe competitividade à escala internacional que torna esta uma estratégia de desenvolvimento decisiva.

Isto não significa advogar que toda a gestão pública é boa. É consensual obsevar que parte da gestão passada da TAP sob controlo público teve decisões erradas. O que se pretende aqui argumentar é que a gestão privada não é garantia de correção desses erros. E ainda que, o aspeto mais relevante, o controlo nacional e público tem um potencial de delineamento estratégico e centralidade nacional  que a gestão privada não assegura. Cabe a todos nós, a partir daqui, exigir que a gestão do que é todos se paute pelos mais criteriosos parâmetros de gestão do setor, onde a transparência na decisão sobre os recursos que são comuns é uma componente necessária e essencial.

Um ano, um dia

Ontem recebemos a seguinte mensagem: “Vacinação começa amanhã. Vacina facultativa mas recomendada e gratuita. Aguarde contacto do SNS”. Hoje tivemos a felicidade de ver António Sarmento a ser vacinado no Serviço Nacional de Saúde pela enfermeira Isabel Ribeiro. O primeiro de muitos. 

A decência de uma comunidade avalia-se pela justiça na distribuição dos bens, pelo reconhecimento de que há bens que têm de ser distribuídos por critérios não-mercantis, da necessidade ao merecimento. Estes bens requerem um certo tipo de instituição, dependente de certas virtudes, de uma ética do cuidado. Não há nada que se lhe compare. 

Pelos seus actos e pelas suas palavras, simples e poderosas, porque verdadeiras, pelos seus mais de quarenta anos de serviço, António Sarmento encarnou e visibilizou o que mais importa na vida colectiva: confiança, trabalho, conhecimento, experiência, dever cívico, ajuda, necessidade, merecimento, numa palavra, talvez, felicidade. Disse que “os cidadãos merecem a melhor informação” e por isso achou que tinha o dever de falar, de se expor, declarando-se um pouco nervoso com isso, mas não com a vacina. 

Obrigado.

Texto escrito neste blogue no dia 27 de Dezembro de 2020.

Ontem, 26 de Dezembro de 2021, tive o prazer de ver de novo Sarmento no jornal da tarde da RTP 1, recordando esse momento feliz, avaliando os dias que estão à nossa frente e que podem ser de transformação da pandemia em endemia. Fê-lo com a simplicidade da melhor informação científica disponível, verbalizando uma confiança no povo português tão salutar quanto infelizmente rara entre as elites; uma confiança no encontro da curva do “cuidado espontâneo” com a curva do cuidado planificado por quem sabe, aspectos subjacentes a toda uma intervenção geradora de esperança fundada. Não há melhor do que este encontro, que não é mediado pelos preços, em tantas áreas da vida, lembrem-se. Uma lição.

domingo, 26 de dezembro de 2021

O dia em que uma jornalista do Público pôs Miranda Sarmento a chorar


Saiu hoje uma notícia no Público (aqui), da autoria de Margarida Gomes, sobre eventuais nomes ministeriáveis no PSD. Para a pasta das Finanças, o nome óbvio que surgiu na notícia foi o de Miranda Sarmento (ou mini-cavaquinho, como eu prefiro chamar-lhe), a quem Rui Rio designava em 2019 de "o seu Centeno". Mesmo que o nome não lhe diga nada, bastará que saiba que se trata de um anti-comunista primário, daqueles que leu O Livro Negro do Comunismo e acha que pode, por conseguinte, afastar todo o pensamento de esquerda com base no jargão moral do "vocês não são democratas". Esteve também em tudo o que foram más previsões, do crescimento da economia portuguesa ao impacto do salário mínimo. E tem ainda ainda o tique muito irritante de puxar do argumento de autoridade do seu volume de publicações científicas sempre que se encontra numa discussão no espaço público, mesmo que os temas nem sequer estejam relacionados.

Pois bem, na notícia, além de ter levado uma resposta evasiva de Rui Rio sobre a possibilidade de vir a ser ministro, a jornalista remata assim: "No entanto, não é garantido que essa seja a escolha do líder. É provável que para uma pasta tão importante a opção passasse por ir buscar alguém com "provas dadas" à universidade".

Autch! Nem eu era capaz de escrever isto. Até eu acho que é demasiado mauzinho. Prevejo dois efeitos: 1) Miranda Sarmento vai chorar agachado num canto do chuveiro; 2) vai reagir com uma lista exaustiva das suas publicações científicas, para mostrar as suas provas dadas. O nosso cavaquinho não é de se ficar na ostentação do currículo.

Fins, recomeços


A minha educação política juvenil foi marcada por uma catástrofe distante, com efeitos por todo o lado, da katastroika na saúde dos antigos cidadãos soviéticos, e não só, à perigosa expansão da anacrónica OTAN até à fronteira russa, violando compromissos assumidos nesses anos. Falo obviamente do fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Fez ontem trinta anos que a bandeira vermelha deixou de flutuar no Kremlin. Tal acontecimento, tão brutal quanto total, obrigou a uma redefinição do socialismo possível para tempos em que os ricos não só deixaram de ter medo, como passaram, com excepções que confirmaram a regra, a ganhar todas as lutas de classes em todos os tabuleiros.

Até parecia que a História tinha acabado, mas era só uma das perigosas ilusões liberais, com efeitos deletérios bem reais. Com freios e contrapesos enfraquecidos nos sistemas de relações sociais e internacionais, o capitalismo revelou a sua essência com mais facilidade e alarde.

Neste fim de ano, deixo por aqui outra vez um breve texto que escrevi para um jornal de estudantes de relações internacionais da minha faculdade, o Mundus, no centenário da revolução derrotada pelo menos há trinta anos:

O que é que a Revolução de Outubro fez por nós?

A 25 de outubro de 1917, se seguirmos o calendário juliano então em vigor na Rússia, a 7 de novembro de 1917, se seguirmos o calendário gregoriano, em vigor a ocidente e que foi adotado pela Rússia Soviética em 1918, o chamado Partido Bolchevique, posteriormente Partido Comunista, lidera a tomada do poder em Petrogrado (nome de São Petersburgo desde 1914), capital de um vasto país farto da barbárie imperialista da Primeira Guerra Mundial. O governo provisório, desde o derrube do Czarismo, em fevereiro/março de 1917, insistia em prosseguir a guerra. O início da experiência comunista é incompreensível sem a dupla rejeição da guerra imperialista entre as grandes potências e do socialmente injusto e predador capitalismo, que, segundo Lenine, era a sua base material. Um dos primeiros decretos do novo poder dos sovietes, o da paz, apela, em simultâneo, ao fim das hostilidades, à autodeterminação dos povos e à revolução social.

O historiador Eric Hobsbawm argumentou certeiramente que o século XX é incompreensível sem os efeitos internacionais desta experiência revolucionária: “Até porque ela se revelou a salvadora do capitalismo liberal, tanto ao possibilitar ao Ocidente ganhar a Segunda Guerra Mundial contra a Alemanha de Hitler como ao fornecer o incentivo para o capitalismo se reformar”. O medo do comunismo foi de facto um “incentivo” para que as elites se conformassem temporariamente com o mal menor da reforma social-democrata do capitalismo, em particular na Europa Ocidental, sobretudo quando o expediente autoritário do nazi-fascismo, que muitas apoiaram, foi derrotado. Num certo sentido, o keynesianismo é filho do medo do colapso, tanto económico quanto político, do capitalismo.

Querido diário - disco riscado


Foi o anúncio de Natal... de 2011.

Foi há dez anos, mas poderia ter sido dito por qualquer candidato de direita. Agitam-se as mesmas bandeiras e as mesmas palavras que nada querem dizer se não uma fúria de acabar com um esforço colectivo personificado no papel do Estado na sociedade:
"São estas estruturas que muitas vezes não permitem aos portugueses realizar o seu potencial, que reprimem as suas oportunidades", mas que também protegem núcleos de privilégio injustificado, que preservam injustiças e iniquidades,que não recompensam o esforço, a criatividade, o trabalho e a dedicação" e que por isso "são estruturas que têm de ser mudadas".
Anunciava-se uma autêntica revolução. Falava-se de "democratização da economia" E isso seria:
"colocar as pessoas, as pessoas comuns com as suas acticvidades, comos seus projectos, com os seus sonhos no centro da transformação do país", e que "o crescimento, a inovação social e a renovação da sociedade portuguesa venha de todas as pessoas e não só de quem tem acesso privilegiado ao poder ou de quem teve a boa fortuna de nascer na protecção do conforto económico"
Passados uns meses, não muitos (oito), o mesmo Passos Coelho e Paulo Portas estavam a anunciar um pacote laboral que iria "democratizar" a sociedade: transformaram dias feriados e tempo de lazer em tempos de produção, cortaram salários, cortaram remunerações, cortaram compensações por despedimento, cortaram subsídios de desemprego. Passado nove meses, estavam a anunciar o aumento da TSU dos trabalhadores e a reduzir a das empresas.

Cuidado, pois, quando se ouvir à direita falar de "democratização" e de "liberdade": geralmente querem mais tarde ou mais cedo colocar o povo a pagar a liberdade das empresas.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Bom Natal


«Abrir-se ao mundo» é uma expressão de que, hoje, se apropriaram a economia e as finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses estrangeiros ou à liberdade dos poderes económicos para investir sem entraves nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque «a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos». Encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência. Em contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes económicos transnacionais que aplicam o lema «divide e reinarás» (...) A melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores (...) Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos de nos constituirmos como um «nós» que habita a casa comum. Um tal cuidado não interessa aos poderes económicos que necessitam dum ganho rápido. Frequentemente as vozes que se levantam em defesa do ambiente são silenciadas ou ridicularizadas, disfarçando de racionalidade o que não passa de interesses particulares. Nesta cultura que estamos a desenvolver, vazia, fixada no imediato e sem um projeto comum, «é previsível que, perante o esgotamento de alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas sob nobres reivindicações».

Como já é hábito nesta quadra, excertos de uma Carta Encíclica de Francisco, desta vez a Fratelli tutti

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Da perversa competitividade fiscal

"Se se mudam para Portugal porque gostam de fado ou vinho verde ou porque adoram o clima, então devem poder fazê-lo. Mas se se mudam só para evitar o pagamento de impostos, então acho que devem olhar ao espelho e pensar sobre se querem mesmo tomar essa decisão", disse a então ministra das finanças suecas, Magdalena Andersson, em 2017.


Geralmente, quando se fala em competitividade fiscal, o que está em causa é tornar a economia atraente para multinacionais. Isto passa pela concessão de benefícios fiscais a empresas ou pela redução da sua taxa de tributação com a pretensão de atrair Investimento Direto Estrangeiro (IDE). As consequências destas escolhas estão bem documentadas, verificando-se o que se chama a “corrida para o fundo” das taxas de IRC e perda de receita fiscal. No entanto, a discussão internacional sobre os danos associados a práticas de competitividade fiscal entre países começa a olhar também para outro campo da tributação - o rendimento pessoal. Recentemente, o Observatório Fiscal da União Europeia lançou um estudo em que analisa as novas formas de concorrência fiscal. Regista que o número de regimes especiais de tributação sobre o rendimento de pessoas singulares aumentou substancialmente: em 1995 eram apenas 5 e atualmente contam-se 28.

O caso português, conhecido na Europa como o “El dorado” dos reformados, merece ser discutido. Foi criado em 2009 o regime especial para residentes não habituais (RNH) em sede de IRS, visto na altura como inovador no sistema fiscal português e bastante competitivo face ao que se fazia no resto da Europa. Foi ainda reformulado em 2012 para que se simplificasse o processo burocrático, passando em 2014 a ter um aumento na sua adesão. O regime abrange dois tipos de beneficiários: trabalhadores de elevado valor acrescentado, aos quais se aplica uma taxa de IRS de 20% para os rendimentos obtidos em Portugal, independentemente do seu nível salarial; e pensionistas que recebam pensões no estrangeiro, as quais são tributadas desde 2020 a 10% por pressão externa, sendo antes a 0%.

Para além do custo que lhe está associado – em 2019, estimava-se corresponder a cerca de 620 milhões de euros e contavam-se 27 mil beneficiários –, este regime tem de ser discutido e pensado pelo menos por três motivos. Primeiro, gera atritos sociais que não são negligenciáveis. A atual desigualdade no acesso à habitação é também explicada por este tipo de benefícios fiscais. A Ana Cordeiro Santos explica muito bem como a atual crise na habitação em Portugal foi potenciada por um boom no crédito nos anos 90, e mais tarde pela atração de investimento imobiliário estrangeiro. Entre 2013 e 2020, os preços reais da habitação cresceram 51%, enquanto os salários cresceram apenas 4%. Para além disso, é difícil justificar porque é que um pensionista estrangeiro tem uma situação tributária mais leve do que um pensionista português. Por exemplo, uma pensão anual de 15 mil euros de um residente é tributada a 11,3%, enquanto uma pensão de 48 mil euros de um residente não habitual o é a 10%. Este tipo de tratamento diferenciado tem o potencial de alimentar sentimentos xenófobos.

Segundo, e especialmente tendo em conta o primeiro ponto, a racionalidade económica subjacente a este tipo de regimes é discutível. O argumento de baixar impostos a empresas para atrair IDE, ou seja, investimento que seja produtivo, é aliciante, embora empiricamente discutível. A ideia é que se aumente a produção, ou pelo menos que haja uma especialização num determinado segmento de maior valor acrescentado, que se crie emprego, que se promova desenvolvimento tecnológico, etc. No entanto, quanto se tenta atrair indivíduos estrangeiros, seja pelo seu maior poder de compra ou por terem elevadas qualificações, o objetivo é bem mais modesto. Primeiro, argumentar que se dinamiza a economia pelo consumo mais ou menos ostentatório de um grupo restrito de pessoas que estão em Portugal durante um período limitado, para além de pouco realista, é potencialmente perigoso porque não há um investimento que aumente a capacidade produtiva, mas antes uma aposta em serviços assentes no turismo, geralmente mal remunerados e estruturalmente pouco produtivos. A pandemia mostrou o quão frágil é uma economia assim organizada. Depois, não é claro que o que eventualmente seja arrecadado em receitas de IVA, IMT e IMI cubra os custos associados, nem que casos de potencial abuso sejam travados. Por último, a atração de trabalho qualificado estrangeiro, para além de paradoxal face à emigração de jovens portugueses, mostrou-se ineficiente - em 2019 apenas 8% dos beneficiários caíam nesta categoria.

E daqui parto para o meu terceiro e último ponto. Quando se lê o estudo do Observatório Fiscal da UE há outro padrão que salta à vista – são os países do Sul europeu que têm os regimes fiscais mais agressivos na área da tributação pessoal. Se o sol e a boa comida podem ser pontos de atração em comum, será a carência de outro tipo de fatores estruturais que explica esta escolha. Os países europeus que ficaram conhecidos como paraísos fiscais capazes de atrair multinacionais – como a Irlanda, a Holanda ou o Luxemburgo – tinham à partida padrões de migração que davam primazia à língua inglesa, bons níveis de formação profissional, boas ligações por redes de transportes, entre outros fatores. Arrisco-me a dizer que a escolha de competir por indivíduos avulso em vez de empresas revela também a falácia da competitividade fiscal – o investimento produtivo não é atraído simplesmente por uma redução dos impostos.

Um rio de águas turvas (e sem foz)


«Tudo mau, pior era impossível. É má a solução de fechar a TAP, depois das avultadas verbas que lá foram enterradas. É má a solução de a manter, porque ainda falta lá meter muito mais dinheiro. E será má a situação do nosso país se a Comissão Europeia vier a reprovar o plano que lhe foi apresentado pelo Governo».

Rui Rio (discurso de encerramento do 39º Congresso do PSD)

Em vez de uma declaração convenientemente poliédrica e evasiva, que de clareza e compromisso nada tem, Rui Rio deveria levar a sério as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, que quer ver os candidatos às legislativas a «clarificar posições sobre a TAP e o aeroporto», pedindo que «aqueles que se propõem governar o país digam o que pensam sobre o futuro da TAP». «Estão a ver as virtualidades dos atos eleitorais?», servem para «explicitar questões que não ficaram explicitadas», acrescentou o presidente.

Uma sugestão


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A TAP e o maravilhoso contraste da ordem jurídica neoliberal

Como melhor representante supranacional da ordem jurídica neoliberal, a Comissão Europeia obrigou o Estado português a passar pela condição vexatória de submeter o seu plano de recuperação para a TAP, uma empresa em que o Estado detém a maioria do capital, à aprovação de Bruxelas. E deixou bem claro o contragosto com que aprovou o plano: fez o Estado esperar um ano pela aprovação, alimentando as tensões e o descrédito face à decisão do Governo português, e impôs ainda a cedência de 18 slots no Aeroporto de Lisboa, pretensão antiga do CEO da Ryanair, figura que nos últimos meses insultou várias vezes representantes de um governo demcraticamente eleito. 

O fundamento para esta lei da concorrência europeia é que a possibilidade de capitalização de empresas públicas sem autorização prévia pode distorcer as normas concorrenciais, já que os Estados teriam a capacidade de fazer injeções de capital sucessivas para suportar normas empresariais que não estivessem de acordo com os fundamentos da concorrência (por exemplo, práticas de dumping, ao fixar preços abaixos dos custos). Por este motivo, os Estados são obrigados a demonstrar a excecionalidade e imperativa necessidade do seu programa de capitalização. 

No entanto, num magnífico contraste, a mesma lei da concorrência que tanto se preocupa com a ação distorcedora das empresas públicas é a mesma que não age perante óbvias distorções concorrenciais desempenhadas por empresas privadas. A UBER opere no território europeu, apesar de durante mais de de uma década esta empresa não ter apresentado lucros e praticar normas laborais que não estiveram tipificadas legalmente durante vários anos. O motivo pelo qual a UBER conseguiu prosseguir a sua operação com um modelo de preços não alinhado com os seus custos foi por ter angariado fundos em bolsa, de investidores que especularam que o seu modelo predatório de negócio viria a ser lucrativo anos mais tarde. Claro que, neste ponto, a lei da concorrência europeia não vê nenhum problema na sua operação. Com a distorção concorrencial dos mercados financeiros, a lei da concorrência europeia não se mete. 

No maravilhoso mundo neoliberal, todos os agentes que detêm títulos de propriedade devem ter ilimitada soberania sobre os seus ativos. Todos, menos os Estados. Porque esses, mesmo tendo a maioria do capital, têm de pedir autorização para a sua operação. O mercado, todo poderoso na produção e alocação de recursos, recusa-se a consentir que unidades soberanas participem da sua esfera. 

A ideia de que um Estado não pode dispor livremente dos seus ativos é uma anormalidade pós-democrática. Aliás, como quase todo o aparato supra-nacional europeu. Mas, para nossa tragédia coletiva, continuaremos a ouvir os papagaios da "Europa connosco" e da "europa social", slogans cada vez mais ocos para pôr na lapela de uma certa esquerda que um dia ainda terá de fazer um pedido de desculpas histórico pelo bloqueio de desenvolvimento em que o seu apego a Maastricht nos mergulhou. 

A história os julgará.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Centeno: vai passear ao Japão

A Reuters noticiou ontem que o Parlamento japonês aprovou um orçamento suplementar de valor recorde para assegurar o crescimento pós-pandémico. 

“O orçamento de 36 triliões de ienes (317 mil milhões de dólares) destina fundos para combater a COVID-19, incluindo para assegurar vacinas e medicamentos, ao mesmo tempo que também inclui pagamentos em dinheiro para famílias com crianças e fundos para a promoção do turismo”. 

Como o João Rodrigues já assinalou, o Japão incorre sistematicamente, há pelo menos 20 anos, em défices no setor público de valor médio acima dos 5 % do PIB, acumulou uma dívida pública bruta de 270% do PIB e está a pagar 0% de juros pelo refinanciamento de dívida antiga e pela emissão de nova. 


Neste contexto, lendo acerca desta opção de política orçamental e monetária de orientação fortemente expansionista, uma pessoa é levada a pensar que o parlamento japonês não recebeu, ou ignorou, o memorando acerca da ausência de espaço orçamental. 

Memorando que não pode ter falhado a Centeno dado que este, enquanto Governador do Banco que não é de Portugal, mas de Frankfurt, defendendo a (alegada) independência do BCE enquanto continua a interferir nas políticas públicas nacionais, veio recentemente sentenciar que Portugal não tem mais de dois a três anos para "reduzir o endividamento para um nível sustentável". E concretiza: "Prevemos que a dívida pública em 2024 esteja em níveis semelhantes a 2019", ou seja, na casa dos 116,6% do PIB. E considerou que essa é uma "condição sine qua non para que a dívida pública permaneça sustentável". 

O reputado economista fez as contas: - quais 270%, quais quê! 116,6% é condição sine qua non e a partir daqui é a insustentabilidade, garante-nos. Pelo menos, o patamar subiu face à conversa fraudulenta dos 90%, a partir dos quais se deixava de crescer. 

Já o Estado japonês parece pautar o conjunto de políticas orçamentais e monetárias por um princípio mais prosaico, o princípio das Finanças Funcionais: o défice orçamental é o que tiver de ser para assegurar que o setor privado está permanentemente em situação de superávite, que existe na economia procura agregada suficiente para assegurar pleno emprego e estabilidade de preços e, para concretizar este programa, usando a sua prerrogativa de soberano, no que a taxas de juro diz respeito, ao invés de se sujeitar à disciplina dos mercados, o Estado sujeita os mercados à sua disciplina

Querido diário - o que nunca foi dito na campanha eleitoral

Jornal Publico, 22/12/2011

Foi há dez anos. 

O Governo Passos Coelho/Paulo Portas agravava o preço das consultas no SNS público, como forma de o aproximar cada vez mais dos preços praticados pelo sector privado da Saúde (ou seja, tornando-o o SNS menos competitivo...). Uma consulta de medicina familiar num centro de saúde passou para cinco euros (quando eram 2,25 euros) e um atendimento numa urgência polivalente subiu para 20 euros (eram 9,60 euros). Apesar do agravamento substancial que os utentes do SNS sofreram, o custo de uma consulta num centro de saúde ainda ficou abaixo dos preços dos hospitais geridos pela Espírito Santo Saúde (ESS) e José de Mello Saúde ( JMS).

Ao mesmo tempo, oGoverno Passos Coelho/Paulo Portas punha os portugueses a dar mais tempo de vida às empresas. Ao todo, era mais 23 dias trabalho por ano. Escrevia-se então: 

 

Inovação, impostos e equívocos

Na edição do Expresso da semana passada, Ricardo Reis assinou um artigo sobre a promoção da inovação. O economista lamentou o facto de que "a próxima década de investimento público terá como prioridade inovar no combate às alterações climáticas e inovar na economia digital" e criticou os governos da União Europeia pelo seu "impulso imediato" para "gastar dinheiro público" nesta área, atribuindo a esse fator o fraco desempenho da UE face aos EUA. Para Reis, a solução está em baixar os impostos sobre as empresas e sobre o rendimento pessoal, reduzindo as taxas de IRC e IRS.

O raciocínio subjacente é relativamente simples: se reduzirmos o montante que as empresas e as pessoas pagam em impostos, aumentam os fundos disponíveis para investirem em Investigação e Desenvolvimento (I&D). Desta forma, um corte de impostos teria efeitos positivos para o conjunto da economia e traduzir-se-ia em maior crescimento económico. Foi essa, aliás, a justificação do atual governo do PS para propor um aumento da isenção de IRC para rendimentos provenientes de patentes e propriedade industrial. No entanto, a realidade é bem mais complexa.

Como argumentei aqui, estes benefícios fiscais têm pouco impacto na inovação: os estudos sobre o impacto destes regimes nos diversos países da União Europeia concluem que não são um instrumento eficaz para promover as despesas em I&D. O motivo apresentado pelos autores destes estudos é o de que o principal entrave às despesas em I&D é a elevada incerteza associada aos projetos, pelo que estes benefícios não resolvem o problema, uma vez que apenas premeiam as empresas que já tenham obtido resultados positivos com os seus investimentos. Além de não contribuírem para a inovação, os benefícios fiscais à inovação em Portugal têm estado associados a práticas de planeamento fiscal agressivo (ou mesmo fraude) por parte das empresas.

Por outro lado, em junho deste ano, Sebastian Gechert e Philipp Heimberger publicaram o estudo "Os cortes de impostos para as empresas estimulam o crescimento económico?", em que analisam a literatura relevante e mostram que os economistas não têm encontrado dados que suportem esta relação. Estes dados apoiam a ideia de que o investimento privado (em I&D e não só) não é apenas influenciado pelos impostos e depende fundamentalmente de outros fatores, como a fase do ciclo económico e as expetativas dos investidores em relação à procura pelos seus produtos.

Quando olhamos para os dados sobre o investimento público em Portugal, é difícil encontrar o "impulso imediato [para] gastar dinheiro público" identificado por Reis. Na verdade, o investimento público em I&D no país sofreu uma quebra assinalável na última década e ficou sempre abaixo da média da UE, que por sua vez foi quase sempre ultrapassada pelos EUA (os dados são do Eurostat e da AAAS).

É importante ter em conta que, como já aqui foi escrito pelo Ricardo Paes Mamede, o nível de despesas em I&D num país está fortemente correlacionado com a sua estrutura produtiva e com o peso de setores intensivos em conhecimento e tecnologia (como a indústria informática ou a farmacêutica). Por outras palavras, o fraco desempenho de Portugal é explicado pelo facto de ter uma economia assente em setores pouco produtivos e pouco intensivos em I&D, como o turismo, a restauração, a construção e o imobiliário, onde o investimento privado se tem concentrado desde o início da integração europeia devido aos lucros que oferecem. Como se percebe, reduzir as taxas de imposto sobre as empresas e famílias não vai alterar este padrão.

É precisamente por isso que o Estado tem um papel decisivo: o investimento público é o que permite promover mudanças estruturais na economia, através de uma política industrial orientada para o desenvolvimento de setores com maior potencial produtivo, a substituição de importações e a transição energética. Depois de ter deixado o padrão de especialização da economia nas mãos do mercado, o país precisa de recuperar instrumentos de política e reforçar a capacidade de atuação do setor público. Baixar os impostos pode ser uma "resposta mais simples", como escreve Ricardo Reis. Mas isso não a torna mais acertada.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A vitória da esquerda no Chile interpela a nossa esquerda


Viva o Chile! Foi a vitória das esquerdas que conseguiram ultrapassar divisões e amarras do passado; foi a vitória das esquerdas que se transcenderam.

Combinando contestação e negociação, combinando a rua com as instituições, esta adaptação estratégica das esquerdas (sempre difícil) permitiu a emergência de novos protagonistas políticos e a construção de um programa de justiça social que devolveu a esperança ao povo. Não é o fim do capitalismo, bem sei, mas é a promessa do fim do capitalismo neoliberal no país que teve a versão mais selvagem, assassina em grande escala.

Nota para os meus amigos à esquerda. Num tempo de crise profunda deste capitalismo selvagem, em vez de as esquerdas continuarem a estender a mão ao PS centrista, na expectativa de lhe arrancar meia dúzia de medidas pontuais que deixam intacto o sistema (algumas nem sequer cumpre quando executa o Orçamento), que meditem sobre o que aconteceu no Chile.

Assumam o discurso anti-sistema, a partir da realidade concreta dos nossos dias, façam trabalho militante nos locais onde o povo sofre, criem raízes locais, deixem emergir os novos protagonistas dos movimentos sociais. Em vez de martelarem os nossos ouvidos com medidas sectoriais que elegeram como bandeiras, subalternizem o marketing eleitoral e, com paixão autêntica, proponham um novo modelo de sociedade democrática em ruptura com este capitalismo selvagem, proponham uma visão do país que dê esperança aos que já nada esperam.

Em Portugal, depois de esgotadas todas as alternâncias e combinações centristas no governo deste sistema, algum dia a população dirá "basta!". Virá o dia em que a política do "mal menor" se tornará insuportável. Como no Chile, o centrismo neoliberal será contestado. E esse é o melhor cenário a que podemos aspirar; aliás é o cenário que o povo das esquerdas deve promover porque é daí que virá a transformação política de que carecemos (incluindo uma reconfiguração partidária) para que se possa avançar na transformação do capitalismo no século XXI. A vitória da esquerda no Chile significa que o futuro está na contestação ao sistema neoliberal tendo em vista a obtenção de uma maioria que dependerá, crucialmente, dos que já desistiram de votar, dos desesperançados.

Em 1944, o economista-político Karl Polanyi, reflectindo sobre a natureza e evolução do capitalismo que levou à Segunda Grande Guerra, mostrou que, na ausência de uma saída à esquerda, o desespero das populações em sofrimento vira-se para uma (pseudo) saída à direita, o fascismo. Nos anos 30 do século XX, enquanto alternativa democrática, a esquerda falhou estrondosamente nos maiores países do continente europeu. Infelizmente, pelo menos desde os anos 80 do século XX, traiu os seus ideais ao aceitar como inevitável a globalização neoliberal. No século XXI, a esquerda europeia continua a falhar porque não se apresenta como alternativa ao sistema neoliberal instituído na UE.

Se em Portugal as esquerdas não perceberem a lição do Chile e não se reinventarem, muitos dos que têm vindo a desistir de votar acabarão por entregar o seu voto às direitas que fazem discurso anti-sistema. Hoje, as esquerdas estão confrontadas com a necessidade de uma revisão crítica da sua estratégia política. Os resultados da votação no dia 30 de janeiro de 2022 devem ser lidos neste registo, muito para lá da retórica que os media nos vão servir.

Querido diário - Um Cavaco holandês

Jornal Público 21/12/2011

Nota-se! 

Há duas décadas que Portugal não cresce acima da UE e os portugueses com a sua vida estagnada, como o mesmo Cavaco frisou num artigo recente no jornal Expresso (9/10/2021).

Só que há dez anos, em plena intervenção da troica e em conversa com os holandeses (curiosa osmose com o sentimento de alguns políticos do país), a culpa era dos portugueses que gostam de ser cigarras e tinham sido "negligentes"... Mas dez anos depois, a culpa - e sempre a culpa - passou a ser... dos governos socialistas! Cavaco esquece-se, contudo, que os dirigentes do PSD e PS venderam o euro aos portugueses por ser precisamente uma dádiva dos céus que, graças ao risco-país protegido pela Europa, baixaria as taxas de juro e promoveria o consumo e investimento. Só que, na ausência de um plano estratégico nacional, com uma moeda forte e sem capacidade de emissão monetária, os investimentos privados não solveram o problema português - a forte dependência externa - que impossibilita o crescimento sem degradar as contas externas.

Ser liberal é isto


Um Estado soberano está impedido de adoptar todas as medidas que achar necessárias para melhorar a vida dos seus cidadãos porque, segundo os primados liberais dominantes na União Europeia, isso não é possível. Porquê? Porque nalguns casos é considerado uma "ajuda do Estado", que, supostamente, deturpa a concorrência empresarial... com os privados e a concorrência entre Estados.

E quem é que decide sobre isso?

"Bruxelas" é a designação simplista, com poucas letras para caber num título, mas que designa o poder não eleito de um conjunto de serviços da Comissão Europeia, repletos de burocratas que já nem sabem por que razão actuam impregnados de uma lógica liberal irracional, mas que se sentem emanados de um poder divino desproporcionado, capaz de intervir como querem, sem margem de apelo - qual troica cega - junto de Estados soberanos e sobre a vontade de povos de países inteiros.

Ser liberal também é isto. Mas se perguntarem a qualquer um deles, dir-vos-ão que não é isso. Mas acrescentarão logo que o Estado é que não deve deter este tipo de serviços. Porque - no seu entendimento - não é vocação dos Estados poder servir os seus cidadãos por igual. Esquecem-se que a lógica da intervenção da Comissão Europeia é essa mesmo: dificultar os Estados ou as entidades públicas para que se sintam compelidas a vender os seus instrumentos políticos a privados que - qual mister Smith neste Matrix - transformarão uma lógica colectiva de serviço público em instrumentos da lógica privada, marcada pela maximização do lucro de alguns - neste caso, os concorrentes das linhas férreas ou os interessados em detê-las - às custas do bem das populações que, mais tarde ou mais cedo, pagarão preços mais caros ou com ausência de serviços entretanto desactivados por não serem lucrativos.

O pesadelo da sociedade de proprietários


Vivemos numa sociedade de proprietários. O sonho neoliberal de Margaret Thatcher foi realizado, os seus efeitos desastrosos também.

A sociedade de proprietários contemporânea é o resultado do esforço para desmantelar o Estado Providência (welfare state) e da emergência do chamado «bem-estar patrimonial» (asset-based welfare), um modo de provisão cada vez mais assente na acumulação individual de activos financeiros e imobiliários e que é indissociável do avanço do neoliberalismo e da financeirização da vida económica e social.

A habitação assume um papel central nesta transformação. Parte constitutiva dos Estados Providência mais avançados, a habitação tem sido instrumental no seu desmantelamento, em vários contextos sociopolíticos, apesar dos diferentes regimes de provisão residencial e das diferentes combinações entre provisão pública e privada.

O resto do meu artigo pode ser lido no Le Monde diplomatique - edição portuguesa, em papel ou no digital. Com o novo sítio, temos ainda mais razões para assinar este jornal.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Os imigrantes, esses malandros, continuam a contribuir mais para a Segurança Social do que aquilo que recebem

Começa finalmente a assentar entre nós a ideia de que os imigrantes não constituem uma sobrecarga para a Segurança Social, ao contrário do que defendem oportunistas sem escrúpulos como Ventura (que num encontro com Le Pen, em janeiro, rejeitou a seu lado a Europa dos que «só vêm beneficiar do sistema económico e de Segurança Social»).

De acordo com dados do European Values Study (2017-2019), citado no mais recente relatório do Observatório das Migrações, essa noção é, porém, ainda ténue. Numa escala de 1 a 10 (em que 1 corresponde à concordância com a frase «os imigrantes são uma sobrecarga para a Segurança Social» e 10 à frase «os imigrantes não são uma sobrecarga para a Segurança Social», Portugal regista um valor de 5,3 (sendo um dos 5 países europeus, num total de 24, com notação acima de 5, numa média global de 4,5).

A realidade dos factos é, todavia, indisputável. Tal como em 2019 e nos anos anteriores (desde sempre, aliás), o volume de contribuições dos imigrantes para a Segurança Social em 2020 superou largamente o valor que estes receberam em prestações sociais. Ou seja, confirma-se, uma vez mais, que os imigrantes são contribuintes líquidos do sistema e não uma espécie de «fardo», como alguns pretendem fazer crer, apostando em perceções erradas do senso comum.


De facto, mesmo em ano de pandemia, que obrigou a um reforço generalizado dos apoios sociais, que abrangeu também os imigrantes (muitos deles a trabalhar em setores de risco, como o da agricultura, vitais no confinamento), esse saldo é claramente positivo, com um volume de contribuições a rodar os 1.075M€ (o valor mais elevado de sempre), tendo estes recebido apenas, em prestações sociais, cerca de 273M€. Uma diferença de valores que resulta num saldo líquido a rondar os 800M€. Ou seja, em média, cada imigrante contribuiu com cerca de 1.600€ para a Segurança Social em 2020, tendo recebido apenas 412€, nesse ano, em apoios sociais.

Tem por isso toda a razão Manuel Carvalho da Silva que, em artigo publicado no passado sábado no JN, chama à atenção para a importância de, cada vez mais, se assegurar condições de acolhimento e de trabalho digno, garantindo «regulação, negociação coletiva e fiscalização das condições de trabalho», para que a imigração, com os benefícios que comporta para o pais em vários planos (desde logo no plano demográfico), não se transforme num instrumento «de desvalorização salarial de todos os trabalhadores que laboram no nosso país».

Sigan ustedes sabiendo

 

Como sublinhou CamilaVergara, a imprensa dita internacional, viciada numa versão requentada do liberalismo de guerra fria, insistiu que as eleições de ontem no Chile foram um confronto entre candidatos ditos populistas dos dois extremos. 

Na realidade, de um lado tivemos um assumido cultor do “fascismo capitalista”, memorável expressão de Paul Samuelson para caracterizar o Chile de Pinochet a partir de 1973, e do outro lado tivemos um candidato com um programa social-democrata moderado, liderando uma frente anti-fascista que foi dos comunistas aos democratas-cristãos. 

Felizmente, um antigo líder estudantil, saído de um grande movimento social, é o novo Presidente de uma grande nação de cantos gerais. Gabriel Boric é o novo Presidente da República do Chile. 

Neste dia, apetece recordar as últimas palavras de Salvador Allende: 

“Sigan ustedes sabiendo que, mucho más temprano que tarde, de nuevo se abrirán las grandes alamedas por donde pase el hombre libre, para construir una sociedad mejor.”

domingo, 19 de dezembro de 2021

Todo um programa para calar os madraços!

"Não é racional manter apoios sociais a quem os usa para se furtar ao trabalho e dessa forma condicionar a própria expansão empresarial que cada vez mais se lamenta da falta de mão-de-obra disponível para trabalhar (palmas prolongadas). Os apoios sociais são socialmente indispensáveis mas apenas para quem deles necessita e não para quem os recebe indevidamente. Tem de haver uma fiscalização adequada para possamos garantir simultaneamente justiça social e progresso económico"

(Rui Rio, no discurso de encerramento do 39º Congresso do PSD, um partido ao centro... como o CDS e outros)


É muito bonito ter um discurso contra os baixos salários médios que estão próximos dos mínimos. Mas depois - por obrigação de captar votos à direita e junto dos empresários - lá vem o discurso troglodita. Só que um e outro são contraditórios.

O corte nos apoios sociais, levado a cabo pelo Governo PSD/CDS de Passos Coelho, pela mão do ministro do CDS Pedro Mota Soares e com um discurso semelhante, tinha uma lógica. Criar os direitos mais líquidos para que aumentasse o exército de desempregados ou pobres, dispostos a aceitar o trabalho ao salário que for. E assim se baixava salários como forma de - dizia-se - promover a competitividade das empresas e, com elas, da economia nacional.

Os pobres - à la século XIX - eram uns madraços, preguiçosos e ciganos que não queriam trabalhar... por tão pouco. Por isso, o discurso à direita coloca-os sempre como um exemplo evidente de serem quem está a abusar do Estado Social. Mas esquecem-se de dizer que, se isso acontece, talvez sejam porque os tais salários médios se aproximam dos mínimos. E que parte significativa de quem trabalha é pobre, apesar de trabalhar...

Rui Rio revela-se sempre um político troca-tintas, compondo um discurso-ramalhete a agradar a todos, sem consistência nem projecto que não o mesmo de sempre, que já revelou redundar em... estagnação.

Querido diário - profecias desenhadas... em 2011

 
Jornal Público, 19/12/2011

 Passada uma década, eis que o problema se está a colocar efectivamente. Na verdade, Passos Coelho e o PSD - em completa sintomia com a troica - não se aperceberam (?) daquilo que tinham começado a incentivar: a exportação para os países do centro europeu e países desenvolvidos de trabalhadores qualificados, cuja formação profissional foi paga... pela população portuguesa.