quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Encontros, cumplicidades


O socialismo é, essencialmente, a tendência imanente a uma civilização industrial no sentido de superar o mercado autorregulado, subordinando-o conscientemente a uma sociedade democrática (...) Do ponto de vista da comunidade no seu conjunto, o socialismo é simplesmente a continuação desse esforço para tornar a sociedade um conjunto de relações propriamente humanas entre pessoas, que, na Europa, sempre esteve associado às tradições cristãs. 

Karl Polanyi, A Grande Transformação, Edições 70, Lisboa, 2012 [1944], p. 340. 

Não creio que haja contradição entre valorizar as obras de Francisco e avaliar criticamente o fim da URSS, mas, se houver, qual é o problema? 

Sinceramente, não creio que haja muito melhor do que a tradição de encontro, partilha e até fusão entre comunistas e socialistas, de um lado, e cristãos, do outro. As mãos devem sempre estar estendidas e um ateísmo militante serve, francamente, para muito pouco.

O melhor da tradição cristã corrige, aliás, um certo “cientismo”, presente nas “correntes frias” do marxismo, dando-lhe uma noção mais clara dos fins ético-políticos que aquecem a alma e impelem a agir aqui e agora, com fé ou com esperança. 

O melhor do marxismo dá ao pensamento cristão um realismo político, a tal análise concreta da situação concreta, partindo de uma formação social concreta, com vista à organização consequente dos últimos, os que podem e devem ser os primeiros também nesta terra. 

O resultado tem sido um humanismo radical, presente, por exemplo, na teologia da libertação, que inspirou e inspira tantos do outro lado do Atlântico e deste também. Pela minha parte, não conheço, mas o meu conhecimento é mesmo muito insuficiente, quem tenha articulado melhor isto do que Karl Polanyi, que andou pelas bandas do socialismo cristão, escrevendo aliás um texto luminoso sobre o fascismo nesse contexto: e o trabalho não é uma mercadoria. 

No nosso país, devemos muito a estes encontros intelectuais e políticos. Por exemplo, e isto está bem documentado por que tem investigado esta história, devemos também o maior e melhor movimento social, a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses, a Intersindical Nacional. 

Devemos-lhes a ideia de uma república democrática fundada nos valores do trabalho, hipótese já presente noutro momento de convergência com consequências apesar de tudo duradouras, um quarto de século antes: a constituição anti-fascista italiana a seguir à Segunda Guerra Mundial. Sim, com todos os conflitos, democratas-cristãos e comunistas chegaram a um compromisso constitucional em 1947. 

Os neoliberais reacionários, aliás, sempre viram com imensa preocupação este tipo de encontros e daí o seu investimento, em modo Opus Dei, num catolicismo tão severo quanto promotor da luxuria, hoje com cursos e tudo na Universidade Católica Portuguesa. Um espírito, que, visto de fora, mas valorizando genuinamente quem está lá dentro a lutar, é contrário, mas mesmo contrário, à mensagem tão realista quanto esperançosa de Francisco.

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