Num artigo publicado em novembro, Susana Peralta chamava a atenção para os resultados de um estudo coordenado por João Cancela e Marta Vicente, sobre a abstenção e participação eleitoral em Portugal. Um dos dados mais surpreendentes e perturbadores tem que ver, como sublinha Susana Peralta, com a constatação de que, a partir de 2002, «a participação dos eleitores mais ricos sobe, enquanto a dos mais pobres desce». Ou seja, a composição do Parlamento representa desde então «cada vez mais os privilegiados e cada vez menos os pobres».
Do ponto da representação democrática, e ainda que não resultando neste caso de nenhum entorse do sistema eleitoral, esta realidade vem juntar-se ao problema do «desperdício de votos», decorrente da ausência de um círculo eleitoral único que, à escala do continente, permita recuperar os votos de partidos que estão, na prática, impedidos de assegurar a representação de votos obtidos em muitos dos círculos eleitorais.
Em segundo lugar, como assinala igualmente Susana Peralta no seu artigo, deveremos preocupar-nos seriamente com a «reserva adormecida» que este eleitorado abstencionista representa, e que pode «ser mobilizada por líderes populistas em quem estas pessoas vêem (bem ou mal, isso não vem ao caso) uma possibilidade de se verem representadas». Ou seja, deve preocupar-nos a responsabilidade que as políticas e orientações políticas têm na génese e crescimento do mal-estar social que, um pouco por toda a Europa, tem alimentado em termos globais o aumento da votação na extrema-direita.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2020
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
Em Itália e em Portugal
Más notícias.
Lamento ter de dizer aos meus leitores que todos os dias vejo notícias que confirmam os meus piores receios:
• Na Itália, a Liga de Salvini teve 43% na Emilia Romagna, a região que sempre foi governada pela esquerda e onde teve origem um grande movimento de jovens ("Sardinhas") contra o discurso do ódio; reparem, no pior terreno eleitoral para a Liga... 43%. A nível nacional, as sondagens dão-lhe mais de 30% enquanto o PD (sociais-liberais) tem perto de 20%. Nenhum partido de esquerda com votação relevante. Não é preciso ser vidente para perceber quem vai governar a Itália a partir das próximas legislativas. Lamento, mas a responsabilidade por esta ascensão da extrema-direita é toda da esquerda pró-euro, pró-mundo-sem-fronteiras, pró-causas-identitárias.
• Em Portugal,
(1) André Ventura foi recebido pela Associação Comercial do Porto e, diz o Expresso, terá realizado um jantar com 400 apoiantes do partido; pelo que vejo no Facebook, tudo indica que a progressão do número de apoiantes vai ser rápida.
(2) André Ventura fez uma vergonhosa declaração xenófoba contra a deputada Joacine Katar... e o jornal Público noticia no topo da capa que AV "atacou uma ideia" da deputada; pouco a pouco, vamos assistir à conivência dos media na ascensão do neofascismo. Portugal não será excepção.
(3) André Ventura acaba de receber um reforço para o seu discurso xenófobo: chegaram mais imigrantes ilegais vindos de Marrocos; se as autoridades não têm meios para patrulhar as rotas dos navios que passam ao largo do Algarve, é muito provável que estes episódios se repitam; AV ficará muito agradecido porque isto é gasolina para a fogueira do discurso do ódio ("para eles há dinheiro, para nós não"); tal como em Itália, receber todos os que queiram vir também parece ser o discurso de uma certa esquerda.
(4) Em toda a Europa, corrupção e imigração são fenómenos que fazem subir a votação da extrema-direita; qual é o discurso da esquerda parlamentar para estes casos? São contra a livre circulação de capitais que está ao serviço dos que pilharam Angola, dos que pilham Portugal, e de todos os parasitas do capitalismo? Ainda não ouvi uma única palavra contra esta "liberdade" do capital financeiro circular (sem nada produzir) e creio que sei porquê: está nos tratados da UE que não querem discutir. Com medo de quê? Uma esquerda que não toca neste assunto não toca no essencial; fica-se pelo folclore mediático e pelo moralismo (ver o caso LuandaLeaks).
Conclusão:
O cheiro a neofascismo aumenta e, tenho de dizê-lo, não me sinto representado por uma esquerda que faz algum ruído anti-racista mas não põe em causa o que alimenta o ressentimento dos 'de baixo'. Em Itália e em Portugal.
PS: O "centrão" do sistema atribuiu aos hospitais o estatuto de empresa e, evidentemente, administradores com mordomias; portanto, não compram medicamentos quando o orçamento acaba. É a lógica da gestão empresarial transferida para os serviços de saúde, o New Public Management que degradou gravemente o NHS de Inglaterra. É também a maravilha das "contas certas" no orçamento do país. Depois, não venham as almas piedosas lamentar o sucesso do AV.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020
Outra vez arroz?
Em aparição súbita, na tomada de posse da comissão política de Ponte da Barca, Passos Coelho exortou à união da direita (PSD e CDS-PP) para fazer as reformas de que o país precisa, dada a inexistência no presente, em seu entender, «de qualquer ação reformista importante», que previna «problemas maiores no futuro». Para Passos, «quem está hoje no Governo prima pela ausência de um quadro reformista», não se vislumbrando «nenhum programa económico em que alguma reforma se esteja a fazer na dimensão da produtividade e competitividade da economia».
Como é hábito, a alusão à palavra mágica não prossegue com a explicitação das políticas que a tal «ação reformista» traduziria. Terá Passos em mente o regresso à «austeridade expansionista» e ao «empobrecimento competitivo», com a retração dos serviços públicos, desregulação do mercado de trabalho, aposta nas privatizações e em cortes permanentes nos salários e pensões? Quererá Passos que a direita vá de novo «além da troika»? Não se sabe. O que se sabe é que Passos Coelho se escusou a responder a quaisquer perguntas dos jornalistas, no final da sua declaração.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2020
Amanhã à tarde, em Lisboa
«Considerando tratar-se de um dos maiores défices estruturais do país e de uma das dimensões que registou menos avanços na última legislatura, a Manifesto escolheu a questão da igualdade e das desigualdades como tema do seu Fórum de Inverno, que se realiza no sábado, 25 de janeiro, a partir das 14h00, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, em Lisboa. Pretende-se proceder não só a uma avaliação de avanços e impasses na última legislatura, mas também perspetivar o que deve ser uma política, económica e social, orientada para a igualdade.»
Composto por dois painéis e uma mesa redonda, que encerra o encontro anual da Manifesto, participam nesta edição do Fórum Ana Drago, Cláudia Joaquim, Eugénia Pires, Irina Gomes, João Ferrão, José Castro Caldas, José Reis, Miguel Vale de Almeida, Nuno Ramos de Almeida, Paulo Pedroso e Teresa Barata Salgueiro.
Estão todos convidados, apareçam.
Composto por dois painéis e uma mesa redonda, que encerra o encontro anual da Manifesto, participam nesta edição do Fórum Ana Drago, Cláudia Joaquim, Eugénia Pires, Irina Gomes, João Ferrão, José Castro Caldas, José Reis, Miguel Vale de Almeida, Nuno Ramos de Almeida, Paulo Pedroso e Teresa Barata Salgueiro.
Estão todos convidados, apareçam.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2020
Dos donos e das donas disto tudo
Este processo de interligação entre os capitais portugueses e angolanos não tem qualquer paralelo na história do pós-colonialismo. Nenhuma potência colonial se transformou em suporte direto de um processo de acumulação primitiva na sua ex-colónia e, simultaneamente, num campo de reciclagem de capitais da elite no poder.
Excerto do livro Os Donos Angolanos de Portugal, da autoria de Jorge Costa, Francisco Louçã e João Teixeira Lopes, publicado em 2014. Este livro tem sido lembrado nestes últimos dias.
Sugiro que comparem esta análise com a versão da economia política mais vulgar, sem memória e sem classe, de um Manuel Carvalho em editorial do Público de ontem: “prova-se uma vez mais que um país pobre jamais pode ser exigente”.
Enfim, vale tudo para diluir as cumplicidades de fracções bem ricas e poderosas da burguesia portuguesa na água turva da chamada “bancarrota”, termo de resto pouco rigoroso mesmo para um Estado endividado numa moeda que não controla politicamente.
E Portugal nem sequer é um país pobre e pobre não é gente como a família Amorim, que de resto tem sido muito pouco escrutinada nas suas ligações a Isabel “vendia ovos quando tinha seis anos” Santos e nos seus usos de todas as possibilidades abertas ao capital pela presente forma de economia política. A liberalização financeira, indissociável da integração, dificulta muito a exigência.
E quem é que lhes entregou a Galp, quem foi? Isto tem sido de facto uma nada exigente privataria.
Quem tem ganho com o corte de impostos de Trump (2)
Nos últimos dias, saíram mais notícias sobre quem ganha e quem perde com o corte de impostos de Trump. Os seis maiores bancos dos EUA viram a sua poupança beneficiar do corte - a sua taxa de imposto média efetiva desceu de 20% para 18% - tendo registado poupanças de 18 mil milhões de euros no ano passado. A Bloomberg News calculou o benefício para os bancos comparando com a taxa média de 30% paga pelos bancos antes da lei de Trump. JPMorgan Chase, Bank of America, Citigroup, Wells Fargo, Goldman Sachs Group e Morgan Stanley pouparam, ao todo, 32 mil milhões desde a entrada em vigor da descida de impostos aprovada pelo governo norte-americano.
Ao contrário do que fora previsto pelos defensores da medida, a descida da taxa não estimulou a concessão de crédito para financiar investimento, aumentos salariais e criação de emprego. Na verdade, os empréstimos concedidos cresceram apenas 1% em 2019, desacelerando das taxas de 3% verificadas em 2018 e 2017. Esta tendência parece confirmar que, ao contrário do que afirma a teoria tradicional da moeda, o crédito não cresce automaticamente devido a condições mais favoráveis para a banca. É preciso que haja procura para os empréstimos, o que depende das oportunidades de investimento disponíveis e do retorno esperado.
Os ganhos, no entanto, não são para todos: se, por um lado, estes seis bancos registaram lucros recorde de 120 mil milhões em 2019 e anunciaram aumentos de 21,5 mil milhões nos dividendos para os acionistas, por outro, cortaram em conjunto cerca de 1200 postos de trabalho entre nos últimos dois anos. Não por acaso, o corte de impostos tem sido criticado por favorecer os mais ricos e aumentar as enormes desigualdades nos EUA.
É preciso ter em conta que os ganhos do sistema financeiro têm contornos complexos. A banca comercial (receção de depósitos e conceção de empréstimos) perdeu receitas com as descidas da taxa de juro da Reserva Federal. No entanto, esta perda foi mais do que compensada pelo aumento da receita na banca de investimento (compra e venda de obrigações, ações e derivados). No entanto, não parece haver dúvidas sobre o contributo do corte de impostos para a poupança dos bancos.
Fica cada vez mais claro quem sai beneficiado com esta descida dos impostos sobre o setor empresarial. Trump não faz questão de o esconder: num encontro com empresários para celebrar o acordo comercial com a China, o presidente destacou o auxílio que tem dado ao sistema financeiro. “Tenho feito com que vários banqueiros pareçam muito bem”, foi a frase dita pelo mesmo candidato que, em 2016, prometia "drenar o pântano" de Wall Street e combater o poder das elites. A realidade tem sido outra.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2020
Não é social e também não é verde
Lembram-se da Agenda de Lisboa na viragem do milénio? Lembram-se da intensa colonização de grande parte da social-democracia europeia pelo neoliberalismo, através de uma retórica de investimento social tributária de uma economia da oferta em versão supostamente progressista? E lembram-se do fundo de ajustamento à globalização, essa demonstração de como a integração europeia tanto ajuda o mundo do trabalho, como se viu também com as troikas e quejandos?
Se faço estas perguntas é porque o novo pacto verde europeu e o seu fundo para a transição têm a mesma lógica, destinada agora a cooptar também parte do movimento ecologista. Esperemos que a história não se repita. Não é por acaso que a pós-verdade tem origens europeias: não é verde, de facto.
Jornais como o Público lançaram vários mil milhões para cima dos leitores, papagueando a linha da Comissão. No caso do tal fundo de transição dita justa, estamos a falar de dinheiro fresco, à escala da UE e para meia dúzia de anos, num montante inferior ao orçamento anual do Estado português para a saúde. Rebaptizam-se depois verbas já existentes ao serviço do mais importante: parcerias público-privadas que vão até onde as engenharias financeiras de mercado as levarem para fingir que este sistema pode ser verde. Lembram-se do Plano Juncker?
O mais importante, como sempre acontece na integração europeia realmente existente, é a tentativa de encontrar soluções de mercado para problemas criados pelo mercado, o que é típico do neoliberalismo desde pelo menos Milton Friedman: no caso do ambiente, a obsessão de sempre são os opacos e ineficazes mercados de emissões.
Ao contrário do New Deal original e do Green New Deal proposto pelos social-democratas norte-americanos, o chamado pacto europeu não é proposto para um Estado, mas sim para uma organização supranacional pós-democrática, que constrange, através de regras cada vez mais estúpidas, o investimento público e anula a mobilização de outros instrumentos de política pelos Estados democráticos realmente existentes, obviamente sem os substituir por nada de relevante do ponto de vista macroeconómico.
E ao contrário do New Deal original, que pressupôs naturalmente um contexto histórico desglobalizador, que é hoje de novo necessário também nesta área, a UE é o outro nome da globalização mais intensa, por via dos tratados e dos acordos comerciais sem fim, destinados a estender cada vez mais as cadeias de valor, transferindo os segmentos mais poluentes para longe e favorecendo o poluente transporte de longa distância.
Não há mão de verde que esconda estas realidades. Ou haverá?
Se faço estas perguntas é porque o novo pacto verde europeu e o seu fundo para a transição têm a mesma lógica, destinada agora a cooptar também parte do movimento ecologista. Esperemos que a história não se repita. Não é por acaso que a pós-verdade tem origens europeias: não é verde, de facto.
Jornais como o Público lançaram vários mil milhões para cima dos leitores, papagueando a linha da Comissão. No caso do tal fundo de transição dita justa, estamos a falar de dinheiro fresco, à escala da UE e para meia dúzia de anos, num montante inferior ao orçamento anual do Estado português para a saúde. Rebaptizam-se depois verbas já existentes ao serviço do mais importante: parcerias público-privadas que vão até onde as engenharias financeiras de mercado as levarem para fingir que este sistema pode ser verde. Lembram-se do Plano Juncker?
O mais importante, como sempre acontece na integração europeia realmente existente, é a tentativa de encontrar soluções de mercado para problemas criados pelo mercado, o que é típico do neoliberalismo desde pelo menos Milton Friedman: no caso do ambiente, a obsessão de sempre são os opacos e ineficazes mercados de emissões.
Ao contrário do New Deal original e do Green New Deal proposto pelos social-democratas norte-americanos, o chamado pacto europeu não é proposto para um Estado, mas sim para uma organização supranacional pós-democrática, que constrange, através de regras cada vez mais estúpidas, o investimento público e anula a mobilização de outros instrumentos de política pelos Estados democráticos realmente existentes, obviamente sem os substituir por nada de relevante do ponto de vista macroeconómico.
E ao contrário do New Deal original, que pressupôs naturalmente um contexto histórico desglobalizador, que é hoje de novo necessário também nesta área, a UE é o outro nome da globalização mais intensa, por via dos tratados e dos acordos comerciais sem fim, destinados a estender cada vez mais as cadeias de valor, transferindo os segmentos mais poluentes para longe e favorecendo o poluente transporte de longa distância.
Não há mão de verde que esconda estas realidades. Ou haverá?
domingo, 19 de janeiro de 2020
Dia 25, sábado: Fórum de Inverno da Manifesto
Dedicado às questões da igualdade e da desigualdade, e privilegiando ângulos de análise e reflexão transversais (a economia, o território, e a tensão entre identidade e classe), realiza-se no próximo sábado, dia 25 de janeiro, a partir das 14h00, na FCSH (em Lisboa), o Fórum de Inverno da Manifesto.
Participam nesta edição Paulo Pedroso, Cláudia Joaquim e José Castro Caldas (num primeiro painel, dedicado às interligações entre a economia, o trabalho e a redistribuição), Teresa Barata Salgueiro, José Reis e João Ferrão (que partem do território, nas suas diferentes escalas, para pensar as desigualdades e políticas de igualdade), e Miguel Vale de Almeida e Nuno Ramos de Almeida (que refletem sobre a atual tensão, política e programática, à esquerda, entre identidade e classe). As sessões são moderadas por Eugénia Pires, Irina Gomes e Ana Drago.
A entrada é livre (inscrições aqui). Apareçam.
Participam nesta edição Paulo Pedroso, Cláudia Joaquim e José Castro Caldas (num primeiro painel, dedicado às interligações entre a economia, o trabalho e a redistribuição), Teresa Barata Salgueiro, José Reis e João Ferrão (que partem do território, nas suas diferentes escalas, para pensar as desigualdades e políticas de igualdade), e Miguel Vale de Almeida e Nuno Ramos de Almeida (que refletem sobre a atual tensão, política e programática, à esquerda, entre identidade e classe). As sessões são moderadas por Eugénia Pires, Irina Gomes e Ana Drago.
A entrada é livre (inscrições aqui). Apareçam.
sexta-feira, 17 de janeiro de 2020
A glória de Centeno
Olha, afinal há dinheiro! E paga-se sem se perceber afinal que jogadas estão a ser feitas no Novo Banco, com o diheiro público.
Centeno ficará sempre associado a este ruinoso contrato, pago pela não atualização dos vencimentos dos fiuncionários públicos e das pensões, pelo fraco investimento público, pela falta de pessoal e de investimento na Saúde, na Educação, etc, etc. Foram já gastos quase 6 mil milhões de euros e tendo se previsto uma almofada financeiora de 4 mil milhões de euros, da qual já só faltam 1,4 mil milhões!
E glória das glórias, a nova injecção de capital - como se diz no artigo - está já a ser vendida à comunicação social como uma... grande poupança de 600 milhões de euros!
Liberdade a sério
«Eu valorizo muito a presença da Iniciativa Liberal no debate político português, porque torna mais claro aquilo que uma grande parte da direita quer mas não tem coragem de dizer. E portanto ainda bem que o senhor tem. Eu peço-lhe é que nós consigamos fazer um debate um bocadinho mais sério do que dizer "o Estado tudo quer controlar e connosco, o liberalismo, as pessoas serão mais livres de decidir". O senhor deputado consegue dizer melhor que isto e nós todos temos capacidade para perceber um bocadinho mais que isto, acredite em nós.
O senhor deputado reduz a liberdade à escolha. À escolha de onde estuda, à escolha de onde se trata. Mas para nós a liberdade é mais que isso, senhor deputado. Para nós a liberdade é um ser humano, homem ou mulher, se poder desenvolver na plenitude. E para se poder desenvolver na plenitude, para ser verdadeiramente livre, o que ele tem que ter é cuidados de saúde com qualidade e garantidos, tem que ter escola com qualidade e garantida. E é isso que o Estado, que somos nós, coletivamente organizados, providencia. Os instrumentos para que o ser humano, independentemente do meio onde nasce, do meio onde cresce, tenha as mesmas condições. E isso é o Estado que, coletivamente, organiza.
Muitos dos senhores deputados passaram o debate de sexta-feira a falar de impostos, e o senhor deputado também, "porque o povo paga impostos, porque o povo paga impostos...". Olhe, senhor deputado, sabe quem é que paga o tratamento de um cancro? É a comunidade toda, que se organizou através do Serviço Nacional de Saúde - que deve ter estado aqui a levar do senhor deputado durante as últimas sete horas. (...) A comunidade organizou-se para que todos nós, independentemente da nossa capacidade financeira, sejamos livres. Livres de ter cuidados de saúde com qualidade, livres de ter escola com qualidade, livres de termos uma casa. Livres, isso é que é liberdade.
Não é a liberdade de ter o Estado português a financiar negócios privados da educação e da saúde, que é o que o senhor deputado quer. Isso não é liberdade. Isso é a liberdade de pôr o Estado, o povo português, a pagar a meia-dúzia de empresários da educação, e a meia-dúzia de empresários da saúde, o negócio deles. Eu valorizo é o negócio dos pequenos e médios empresários que não vivem do Estado e que têm que se bater todos os dias para conseguir vender encomendas. O que o senhor quer, em nome da liberdade, é pôr o Estado, e os portugueses todos, a pagar o negócio dos empresários da saúde e dos empresários da educação.»
Via «Uma Página Numa Rede Social», excertos da resposta de Pedro Nuno Santos ao deputado da Iniciativa Liberal (IL), João Cotrim de Figueiredo, no âmbito do debate em especialidade do Orçamento de Estado de 2020.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2020
Reconstruir
“Reabertura emotiva de oficinas da CP aproximou políticos e operários”, informa-nos o insuspeito Carlos Cipriano no Público. Todos os ingredientes da política que conta estão aqui concentrados em toda a sua potencialidade.
Inspirado por tal ambiente, que muito deve à acção política de Pedro Santos, António Costa até se desviou da sabedoria convencional dominante no seu governo, a que diz que o que conta é aumentar o peso das exportações no PIB, afirmando: “Em vez de importar, estamos a criar emprego e riqueza em Portugal”.
Realmente, é isto que torna o país mais confiante e mais capaz, sendo que o único equilíbrio que conta para a independência nacional é o externo, como sabemos. Mas, para ganhar espaço de política, há todo um velho Estado para reconstruir, toda uma sabedoria para reaproveitar, todo um conjunto de instrumentos de política para reconquistar, reparem.
O que subjaz a esta cerimónia mostra realmente a direcção que deveríamos seguir de forma consistente em múltiplas áreas da vida nacional.
O pai e o seu filho
Foi há pouco mais de 50 anos.
Em Janeiro de 1969, Baltazar Rebelo de Sousa, governador geral de Moçambique, então com 48 anos, visitava as povoações do norte da província nomeadamente Porto Amélia e Ilha do Ibo.
Veja aqui as imagens do arquivo da RTP. E já agora veja aqui também, estas que mostram a passagem do ano em Montepuez, na província de Cabo Delgado. Baltazar foi acompanhado pela sua mulher Maria das Neves Fernandes Duarte e pelo filho único Marcelo. No filme, é possível vê-lo, ao seu filho Marcelo (ao minuto 7º), a dançar com ar comprometido, de quem não quer olhar para a câmara sabendo que ela lá estava. Já nesse tempo.
As imagens têm a frescura e a ingenuidade do olhar, quase próprias de quem pensa que o presente é imutável, coisa que as imagens actuais da televisão foram perdendo ao longo do tempo, homogeneizando-se e uniformizando-se na pressa, à medida que o espaço televisivo se privatizou.
Em Janeiro de 2020, o seu filho Marcelo - já com a idade de quem podia ser pai do seu pai quando visitou Moçambique - voltou ao país independente. Passeia com os jornalistas portugueses à perna, a fazer tudo o que seja folclore para Portugal - vai ao mercado, compra fruta, fala com os comerciantes, engraxa sapatos, etc. - porque nenhuma multidão o segue, como seguiu o seu pai.
Tudo parece um déjá vu perdido, abandonado, decadente.
Em Janeiro de 1969, Baltazar Rebelo de Sousa, governador geral de Moçambique, então com 48 anos, visitava as povoações do norte da província nomeadamente Porto Amélia e Ilha do Ibo.
Veja aqui as imagens do arquivo da RTP. E já agora veja aqui também, estas que mostram a passagem do ano em Montepuez, na província de Cabo Delgado. Baltazar foi acompanhado pela sua mulher Maria das Neves Fernandes Duarte e pelo filho único Marcelo. No filme, é possível vê-lo, ao seu filho Marcelo (ao minuto 7º), a dançar com ar comprometido, de quem não quer olhar para a câmara sabendo que ela lá estava. Já nesse tempo.
As imagens têm a frescura e a ingenuidade do olhar, quase próprias de quem pensa que o presente é imutável, coisa que as imagens actuais da televisão foram perdendo ao longo do tempo, homogeneizando-se e uniformizando-se na pressa, à medida que o espaço televisivo se privatizou.
Em Janeiro de 2020, o seu filho Marcelo - já com a idade de quem podia ser pai do seu pai quando visitou Moçambique - voltou ao país independente. Passeia com os jornalistas portugueses à perna, a fazer tudo o que seja folclore para Portugal - vai ao mercado, compra fruta, fala com os comerciantes, engraxa sapatos, etc. - porque nenhuma multidão o segue, como seguiu o seu pai.
Tudo parece um déjá vu perdido, abandonado, decadente.
quarta-feira, 15 de janeiro de 2020
Sexta-feira, em Sines: apresentação do nº 4 da Manifesto
«Quando este número da Manifesto começou a ser preparado, a atmosfera era já de pré-campanha para as eleições legislativas, com os partidos que integraram a solução política de convergência e compromisso à esquerda a acentuar gradualmente as suas identidades próprias. Prevendo-se já nessa altura que a esquerda, no seu conjunto, saísse vencedora das eleições, sem que o Partido Socialista alcançasse a maioria absoluta – cenário que não deixava de constituir um incentivo adicional para a afirmação da identidade própria e do lugar ideológico de cada candidatura – admitia-se que estariam criadas condições para consolidar e aprofundar a governação à esquerda na próxima legislatura. Tanto mais quanto tinham sido dados passos importantes na tarefa conjunta de recuperar o país das marcas mais violentas deixadas pela austeridade de direita, entre 2011 e 2015. Nesse pressuposto, o cenário de reedição da "geringonça", mesmo que em moldes distintos, passaria pela formulação de políticas públicas nos diferentes domínios e, desse ponto de vista, por uma valorização clara do papel do Estado na transformação e desenvolvimento do país. Isto é, da valorização da centralidade do Estado num combate mais determinado e consistente às desigualdades, na efetiva recuperação, melhoria e expansão dos serviços públicos, e no reforço do seu papel enquanto agente económico. Ou seja, da assunção plena do Estado como parte da economia.»
Do editorial do nº 4 da Revista Manifesto, que será apresentado em Sines na próxima sexta-feira, dia 17 de janeiro, a partir das 18h00 (na na Livraria «A das Artes»), por Isabel do Carmo e Manuel Coelho. Apareçam.
terça-feira, 14 de janeiro de 2020
Ligeireza, moralismo e preconceito
Ano após ano, a tendência de declínio consolida-se, atingindo-se em 2018 o valor mais baixo de interrupções voluntárias da gravidez (IVG) desde 2008, cerca de menos 5 mil que em 2011, ano em que o número de IVG mais se aproximou das 20 mil, o patamar médio estimado para período que antecedeu a despenalização da interrupção voluntária da gravidez (a pedido da mulher e até às 10 semanas). Mas mais significativa ainda é a queda da incidência da IVG em jovens e adolescentes (menos de 20 anos): no mesmo período (2011-2018), a redução é de -43%, quase o dobro do valor global, a rondar os -28%.
Ano após ano, a realidade contraria assim quem defendeu, no referendo, que a despenalização da IVG iria traduzir-se no seu aumento exponencial, ao ser removido o alegado instrumento dissuasor dessa opção: a prisão ou o risco de prisão para as mulheres que decidissem abortar. A ligeireza cruel do julgamento fácil e a imposição moralista, a terceiros, de legítimas convicções próprias, é apenas isso mesmo: ligeireza, moralismo e preconceito.
Ano após ano, a realidade contraria assim quem defendeu, no referendo, que a despenalização da IVG iria traduzir-se no seu aumento exponencial, ao ser removido o alegado instrumento dissuasor dessa opção: a prisão ou o risco de prisão para as mulheres que decidissem abortar. A ligeireza cruel do julgamento fácil e a imposição moralista, a terceiros, de legítimas convicções próprias, é apenas isso mesmo: ligeireza, moralismo e preconceito.
segunda-feira, 13 de janeiro de 2020
Um jornal com múltiplas escalas
A política externa nacional é talvez a área onde é maior o conformismo intelectual e político, sendo raras as vozes dissonantes. O chamado extremo-centro nacional é aí absolutamente dominante, imaginando-se algures entre Washington e Bruxelas. A situação em termos de debate público parece ser ainda pior do que na área da política económica, onde de resto as relacionadas determinações externas parecem ser igualmente avassaladoras. Enfim, numa área destas, Augusto Santos Silva está como peixe em águas mais ou menos profundas. Os resultados do que, apesar de tudo, não podem deixar de ser escolhas de política externa são embaraçosos e emergem nas redes sociais e tudo. Não deixem de ler o editorial, da autoria de Sandra Monteiro, no Le Monde diplomatique - edição portuguesa:
“Estas escolhas, apresentadas como «naturais», e portanto pouco questionadas, estão na origem de um debate demasiado pobre, e subalternizado, sobre as modalidades actuais de inserção no projecto europeu, nas suas instituições e na sua moeda única, responsáveis por crises de repetição. Mas ajudam também a explicar por que quase não existe debate sobre os vários tipos de embaraços externos a que expõem o país em terrenos como a América Latina ou o Médio Oriente – justamente pela transformação do «laço transatlântico» em «desígnio nacional».”
Entretanto, neste número de Janeiro do jornal podem ler, entre outros, um artigo de José Reis sobre um modelo de regionalização, tomando por referência o recente Relatório Cravinho. Trata-se de evitar uma crise territorial eminente, para a qual este economista político tem vindo a alertar nas páginas deste jornal, produto de um perigoso crescimento dito unipolar, cada vez mais concentrado na Área Metropolitana de Lisboa.
A economia política dominante gera vulnerabilidades em múltiplas escalas. E, sim, isto está mesmo tudo ligado.
domingo, 12 de janeiro de 2020
Quem tem ganho com o corte de impostos de Trump?
Quando, em Novembro de 2017, Trump assinou a lei "Tax Cuts and Jobs Act" que reduziu a taxa de imposto sobre as empresas de 35% para 21%, o enorme benefício para o setor empresarial foi justificado pelo que ia trazer em investimento e criação de emprego nos EUA. A ideia não é nova e costuma ser defendida à direita como estratégia de desenvolvimento. A história, no entanto, tem sido outra, como argumentam os economistas William Lazonick, Mustafa Sakinç e Matt Hopkins num artigo publicado esta semana na Harvard Business Review.
Ao contrário do reinvestimento dos lucros prometido, os autores apontam que as empresas têm gasto o dinheiro noutros lados: "Só em 2018, num ano em que os lucros empresariais foram impulsionados pelo Tax Cuts and Jobs Act de 2017, o conjunto das empresas representadas no Índice S&P 500 foram responsáveis por 806 mil milhões de dólares em recompra de ações, cerca de 200 mil milhões acima do recorde anterior, registado em 2007. Os 370 mil milhões em recompra de ações que estas empresas fizeram na primeira metade de 2019 mantém-nas a caminho de um total anual que apenas é superado pelo de 2018."
A compra das próprias ações (buybacks) é uma forma das empresas aumentaram artificialmente o seu valor bolsista e distribuir o lucro pelos acionistas. A manipulação do preço beneficia gestores de topo cuja remuneração depende do desempenho da empresa. O problema é que, ao fazê-lo, não só reduzem a liquidez disponível na empresa para investir ou fazer face a choques como aumentam a instabilidade financeira, ao contribuírem para uma bolha no mercado de ações. Pior, o FMI alertou recentemente que uma parte importante das recompras têm sido financiadas com recurso a dívida - o endividamento das empresas norte-americanas tem batido recordes nos últimos tempos, o que as deixa ainda mais vulneráveis face à próxima recessão.
Em vez de serem reinvestidos no desenvolvimento da capacidade produtiva, na aquisição de novos equipamentos ou no reforço dos salários, os lucros das empresas têm sido canalizados para buybacks. De facto, como é notado no artigo, mais de metade destas empresas não registou qualquer investimento em investigação e desenvolvimento (I&D) em 2018. Mas o problema adensa-se: esta redistribuição do lucro pelos acionistas, num contexto de fraco crescimento dos salários, implica que as desigualdades não pararam de aumentar nos últimos anos.
É aqui que entra o corte de impostos de Trump, que explica o salto nos buybacks observado em 2018. A margem dada às empresas permitiu-lhes aumentar o volume de recompras sem recorrer a crédito. É o que explica casos como o da FedEx: em 2017, a empresa pagou 1,5 mil milhões em impostos; com o corte de impostos de Trump, pagou 0$ em 2018. O reinvestimento dos lucros foi diminuto, mas a poupança fiscal permitiu à empresa gastar este ano mais de 2 mil milhões na compra das próprias ações e em aumentos de dividendos para os acionistas.
A conclusão é clara: o Estado perde receita fiscal e capacidade de financiar os serviços públicos, enquanto os acionistas recebem a fatia de leão dos ganhos. Os rendimentos de capital aumentam, as desigualdades acentuam-se e cresce a vulnerabilidade financeira das empresas. É a racionalidade do mercado a funcionar.
Ao contrário do reinvestimento dos lucros prometido, os autores apontam que as empresas têm gasto o dinheiro noutros lados: "Só em 2018, num ano em que os lucros empresariais foram impulsionados pelo Tax Cuts and Jobs Act de 2017, o conjunto das empresas representadas no Índice S&P 500 foram responsáveis por 806 mil milhões de dólares em recompra de ações, cerca de 200 mil milhões acima do recorde anterior, registado em 2007. Os 370 mil milhões em recompra de ações que estas empresas fizeram na primeira metade de 2019 mantém-nas a caminho de um total anual que apenas é superado pelo de 2018."
A compra das próprias ações (buybacks) é uma forma das empresas aumentaram artificialmente o seu valor bolsista e distribuir o lucro pelos acionistas. A manipulação do preço beneficia gestores de topo cuja remuneração depende do desempenho da empresa. O problema é que, ao fazê-lo, não só reduzem a liquidez disponível na empresa para investir ou fazer face a choques como aumentam a instabilidade financeira, ao contribuírem para uma bolha no mercado de ações. Pior, o FMI alertou recentemente que uma parte importante das recompras têm sido financiadas com recurso a dívida - o endividamento das empresas norte-americanas tem batido recordes nos últimos tempos, o que as deixa ainda mais vulneráveis face à próxima recessão.
Em vez de serem reinvestidos no desenvolvimento da capacidade produtiva, na aquisição de novos equipamentos ou no reforço dos salários, os lucros das empresas têm sido canalizados para buybacks. De facto, como é notado no artigo, mais de metade destas empresas não registou qualquer investimento em investigação e desenvolvimento (I&D) em 2018. Mas o problema adensa-se: esta redistribuição do lucro pelos acionistas, num contexto de fraco crescimento dos salários, implica que as desigualdades não pararam de aumentar nos últimos anos.
É aqui que entra o corte de impostos de Trump, que explica o salto nos buybacks observado em 2018. A margem dada às empresas permitiu-lhes aumentar o volume de recompras sem recorrer a crédito. É o que explica casos como o da FedEx: em 2017, a empresa pagou 1,5 mil milhões em impostos; com o corte de impostos de Trump, pagou 0$ em 2018. O reinvestimento dos lucros foi diminuto, mas a poupança fiscal permitiu à empresa gastar este ano mais de 2 mil milhões na compra das próprias ações e em aumentos de dividendos para os acionistas.
A conclusão é clara: o Estado perde receita fiscal e capacidade de financiar os serviços públicos, enquanto os acionistas recebem a fatia de leão dos ganhos. Os rendimentos de capital aumentam, as desigualdades acentuam-se e cresce a vulnerabilidade financeira das empresas. É a racionalidade do mercado a funcionar.
sábado, 11 de janeiro de 2020
Lembra-se disto, senhor ex-ministro?
Ainda sobre os resultados do PISA 2018, divulgados em dezembro, vale a pena lembrar a reação de Nuno Crato, em artigo recente no Público. Começando com uma citação de «Alice no País das Maravilhas», e aludindo ao dito popular sobre copos meio-cheios e meio-vazios, Crato defende que «se o ano de 2015 obteve os melhores resultados de sempre, o ano de 2018 revelou uma estagnação, acompanhada do aumento das desigualdades». De caminho, acrescenta que «durante mais de uma década, sobretudo a partir de 2002, o país fez um esforço consciente para dar atenção aos resultados (...) e para os melhorar, elevando os conhecimentos e a formação dos alunos». E ainda, noutro contexto, também a propósito do PISA, que «a exigência é amiga dos mais desfavorecidos», pois «se tivermos um ensino mais exigente, com metas cognitivas mais claras, os mais desfavorecidos lucram, porque os outros têm vários apoios».
1. Depois de reduzir a pó a política de educação em Portugal, com referências insistentes à «década perdida» e apelidando os seus antecessores de «sociólogos ideólogos, fanáticos de um certo tipo de ensino», de «pessoas que não olham para a realidade», que se «agarraram ao poder dos corredores do ministério» e que «não sabem de educação» e «nem sequer percebem que a educação em Portugal está mal» (ver vídeo), é preciso ter muita lata - que não falta a Crato - para agora dizer, sem dar a mão à palmatória, que a melhoria progressiva nos testes do PISA resulta do «esforço consciente», feito «durante mais de uma década», para «dar atenção aos resultados (...) e para os melhorar, elevando os conhecimentos e a formação dos alunos».
2. É notável, por outro lado, que o ex-ministro não tenha pejo em insistir na aldrabice de que se devem ao seu mandato (2011-2015) os resultados de Portugal no PISA 2015, «os melhores de sempre», quando os alunos abrangidos pela introdução dos exames no 4º e 6º ano e das metas curriculares não participaram, pela própria cronologia do seu percurso escolar, nessa edição do PISA. Aliás, é essa mesma lógica - de associar os resultados de cada PISA aos quatro anos que antecedem a sua realização (quando o que se avalia são as competências adquiridas por alunos com 15 anos ao longo de todo o seu percurso escolar) - que lhe permite tentar colar a estagnação e ligeira descida no PISA 2018 às políticas da maioria de esquerda, na anterior legislatura (2015-2018).
3. Como se não bastasse, o Nuno Crato que manifesta hoje a sua preocupação com os alunos mais desfavorecidos («porque os outros têm vários apoios»), é o mesmo Nuno Crato que cortou 700M€ no orçamento da Educação entre 2011 e 2015, que aumentou o número de alunos por turma e reduziu o número de docentes, que impulsionou mega-agrupamentos de escolas, afunilou o currículo e criou exames precoces (pedagogicamente contraproducentes e socialmente penalizadores dos alunos com menor estatuto socioeconómico). Preferindo, ainda, quase não mexer no desperdício com Contratos de Associação para poupar mais nas verbas em Ação Social Escolar (em tempos de crise, desemprego e empobrecimento). Ou seja, medidas que beneficiam, como está bem de ver, a aprendizagem e aquisição de competências por parte dos «alunos mais desfavorecidos», pelos quais verte agora uma lágrima.
4. É sintomático, por último, que o ex-ministro em nenhum momento considere a hipótese de os «seus alunos» (que, agora sim, integraram a amostra do PISA 2018) transportarem consigo não só as marcas da sua política educativa mas também o impacto da austeridade imposta pelo governo a que pertenceu. Isto é, ignorando que os alunos tenham sido afetados, no seu percurso e desempenho escolar, pela perda de rendimentos dos pais e por situações de desemprego e empobrecimento, pela angústia e incerteza em que mergulharam milhares de famílias naqueles anos. As taxas de retenção, por exemplo, que aumentaram durante o consulado de Nuno Crato, podem muito bem resultar do efeito combinado da sua política e da degradação das condições de vida de muitos alunos e suas famílias.
Adenda 1: O lastro deixado pelos «anos de chumbo», que não desaparece de um dia para o outro, quase não foi tido em conta na análise da estagnação e ligeira queda de Portugal no PISA 2018. Contudo, com a chegada dos «alunos de Crato» a esta avaliação, faz pouco sentido ignorar o significado desses anos quando se procura interpretar, em 2018, o desempenho escolar dos alunos. É que há mais mundo para lá da escola (mas que não se desliga dela).
Adenda 2: Causa alguma impressão ver a Fundação Francisco Manuel dos Santos, que promoveu o Projeto Aqeduto, responsável pelos melhores estudos que se fizeram nos últimos anos sobre a importância da origem social e económica dos alunos no desempenho escolar (dimensão normalmente desprezada pela direita), nomear Nuno Crato para a Iniciativa Educação, o novo projeto da FFMS para o setor.
sexta-feira, 10 de janeiro de 2020
A economia política que diz chega
O ideólogo e autor do programa do Chega não é aparentemente André Ventura, vindo do Partido Social Democrata (PSD), mas sim o seu vice-presidente, Diogo Pacheco Amorim: antes de ter passado pelo CDS – Partido Popular, foi membro da «rede armada de extrema-direita» logo a seguir ao 25 de Abril de 1974. Esta é a designação complacente do Expresso para um mortífero terrorismo com objectivos antidemocráticos, num perfil onde se dá a palavra a Manuel Monteiro, que descreve Amorim, autor do programa da extinta Nova Democracia, como «um liberal puro, liberal total no plano económico e conservador nos costumes». Na página do Chega, este liberal puro e duro, alinhado com o racismo que marcou uma parte deste feixe de ideias, defende o programa do Chega de «apertado controlo dos movimentos migratórios»: «Bem vindos os de todas as raças desde que respeitem a nossa raça (…) Não queremos os qualquer-coisa-Khan que um dia perto do nosso Natal puxam de uma faca e desatam a assassinar pacíficos transeuntes». Por cá, a historiadora Maria de Fátima Bonifácio, que não enjeitaria a caracterização de Monteiro, concordaria, pelo que já escreveu, com esta forma racista de enquadrar a questão.
Contrariamente a uma certa visão elitista, segundo a qual o racismo seria atributo quase natural das classes populares, a verdade é que ele é deliberadamente cultivado por uma certa intelectualidade das direitas.
Trata-se no fundo de procurar enraizar o autoritarismo neoliberal, através de um estilo populista dito triádico. Este alimenta uma clivagem, sobretudo cultural, entre povo e certa elite, sendo que esta última é acusada de proteger um terceiro grupo, minoritário, que serve então de bode expiatório para problemas reais. A imigração em crescimento, num país causticado pela desigualdade e pela austeridade, vem mesmo a calhar.
Excerto do meu artigo, com referências omitidas, publicado no Le Monde diplomatique - edição portuguesa que esta semana chegou às bancas.
quinta-feira, 9 de janeiro de 2020
Um jantar com prioridades
Falta só dizer que ainda há lugares e que Luís Bernardo, do Conselho Editorial do jornal, será o moderador.
Quem aumentou os impostos sobre quem?
A direita e ultra-direita têm uma campanha montada há já alguns anos sobre o aumento dos impostos, que tem contado com o apoio de alguma comunicação social, poucas verdades, muitas mentiras e toda a manipulação. Há vários debates dentro dessa questão, que têm de ser feitos com dados fidedignos. Todos os dados que aqui utilizarei são da Comissão
Europeia e podem ser confirmados aqui. Vamos, então, por partes:
1. O que é a carga fiscal?
A carga fiscal é um indicador relativo que resulta da rácio entre receita fiscal/contributiva e PIB. Este esclarecimento é importante porque a direita frequentemente utiliza a receita fiscal nominal para inflacionar (literalmente) o indicador. A relação com o PIB é fundamental porque a receita fiscal tem de ser obviamente relacionada com a dimensão da economia.
2. Quem aumentou a carga fiscal?
A carga fiscal aumentou continuamente entre 2010 e 2019 (gráfico 1), com excepção dos anos de 2012 (PSD-CDS) e 2016 (Geringonça), mas os ritmos e as causas foram muito diferentes. Em 2011, o orçamento retificativo apresentado por Passos Coelho representou o primeiro grande aumento de impostos, que veio a ser superado pelo famoso "enorme aumento de impostos" aprovado por Vítor Gaspar para 2013. Comparando os balanços gerais dos dois governos (gráfico 2), verificamos que o governo das direitas aumentou a carga fiscal em 4 pontos percentuais do PIB enquanto o governo do PS, suportado pela esquerda, aumentou em 0,5 pontos percentuais, ou seja, 8 vezes menos.
3. Quem aumentou os impostos?
O truque retórico da direita é triplo. A primeira é argumentar que a carga fiscal atual é a mais alta de sempre, ocultando a forma como lá se chegou e, em particular, o seu próprio contributo, de longe o mais importante. A segunda dimensão é a de fingir que ignoram que num sistema de tributação progressiva dos rendimentos (com taxas marginais e médias que crescem com os escalões de rendimento), a receita fiscal aumenta mais do que proporcionalmente em relação ao PIB, mesmo sem alterações fiscais. No caso do IRS, essas alterações existiram, mas foram no sentido descendente.
4. Para quem aumentaram os impostos?
A terceira dimensão tem a ver com a forma como a carga fiscal é distribuída. A direita foge como o diabo da cruz desse debate. É que o governo da direita, que presidiu a um aumento sem precedentes da tributação direta e indireta sobre os rendimentos do trabalho, promoveu, ao mesmo tempo, a maior borla fiscal de sempre aos rendimentos do capital, lamentavelmente, com o apoio do PS. Pelo contrário, com a geringonça, essa borla foi travada (infelizmente, não invertida) e uma parte do aumento de impostos foi revertida com medidas como o IRS familiar, o aumento do mínimo de existência, o aumento da progressividade e redução de imposto através da introdução de dois escalões adicionais, a eliminação da sobretaxa, etc. Em sentido contrário, predominou o aumento do ISP, uma medida sem dúvida problemática mas com outras justificações.
A direita opôs-se a toda esta política, mas montou a maior das suas guerra fiscais contra a introdução do adicional do IMI, um imposto sobre fortunas imobiliárias superiores a 600 milhões (avaliados pelo VPT, 1200 milhões para casados ou unidos de facto com tributação conjunta), uma medida modestíssima num dos países Europeus em que a tributação do património é mais baixa.
5. E depois dos impostos as pessoas ficaram com mais ou menos dinheiro?
Do ponto de vista das famílias, é importante saber se o rendimento depois de cumpridas as obrigações fiscais e contributivas aumenta ou diminui. O indicador relevante para esse efeito é o rendimento disponível (gráfico 3). Os números são eloquentes e mostram bem a dimensão da perda de rendimento das famílias durante o período da troika e da direita e a recuperação que ocorreu com a Geringonça.
6. Para lá da demagogia fiscal
Outra questão é, finalmente, a de saber o que é uma carga fiscal leve ou pesada e sobre quem é a que a mesma incide. E para que serve. A verdade é que a carga fiscal em Portugal, mesmo com o aumento que foi conduzido pela direita, continua bem abaixo (menos 4 pontos percentuais) da que se verifica na média dos países da União Europeia (Gráfico 4). E menos 5 pontos percentuais da média da Zona Euro. Por outro lado, se olharmos para os países no topo e no fundo desta classificação, duvido que a maior parte dos portugueses preferisse imigrar para os países com menor carga fiscal.
A cruzada da direita contra os impostos é direcionada sobretudo para os impostos sobre os rendimentos do capital ou património, o que é uma escolha reveladora, mas também configura um ataque aos serviços públicos que garantem direitos essenciais e qualidade de vida ao conjunto da população, incluindo, por exemplo, os cerca de 50% que não pagam IRS. Melhorar o carácter redistributivo do nosso sistema fiscal pode significar reduzir alguns impostos a algumas pessoas, mas uma política generalizada de redução dos impostos teria impactos profundamente desiguais e seria um caminho para o subdesenvolvimento.
Não tenho qualquer expectativa de que alguém da nossa direita extremada tenha interesse em promover um debate sério sobre a matéria, ocupados que estão com fake-news e discurso de ódio. Fica, no entanto, o contributo para todos os que, independentemente das perspetivas sobre política fiscal, queiram fazer um debate baseado em factos reais.
1. O que é a carga fiscal?
A carga fiscal é um indicador relativo que resulta da rácio entre receita fiscal/contributiva e PIB. Este esclarecimento é importante porque a direita frequentemente utiliza a receita fiscal nominal para inflacionar (literalmente) o indicador. A relação com o PIB é fundamental porque a receita fiscal tem de ser obviamente relacionada com a dimensão da economia.
2. Quem aumentou a carga fiscal?
A carga fiscal aumentou continuamente entre 2010 e 2019 (gráfico 1), com excepção dos anos de 2012 (PSD-CDS) e 2016 (Geringonça), mas os ritmos e as causas foram muito diferentes. Em 2011, o orçamento retificativo apresentado por Passos Coelho representou o primeiro grande aumento de impostos, que veio a ser superado pelo famoso "enorme aumento de impostos" aprovado por Vítor Gaspar para 2013. Comparando os balanços gerais dos dois governos (gráfico 2), verificamos que o governo das direitas aumentou a carga fiscal em 4 pontos percentuais do PIB enquanto o governo do PS, suportado pela esquerda, aumentou em 0,5 pontos percentuais, ou seja, 8 vezes menos.
3. Quem aumentou os impostos?
O truque retórico da direita é triplo. A primeira é argumentar que a carga fiscal atual é a mais alta de sempre, ocultando a forma como lá se chegou e, em particular, o seu próprio contributo, de longe o mais importante. A segunda dimensão é a de fingir que ignoram que num sistema de tributação progressiva dos rendimentos (com taxas marginais e médias que crescem com os escalões de rendimento), a receita fiscal aumenta mais do que proporcionalmente em relação ao PIB, mesmo sem alterações fiscais. No caso do IRS, essas alterações existiram, mas foram no sentido descendente.
4. Para quem aumentaram os impostos?
A terceira dimensão tem a ver com a forma como a carga fiscal é distribuída. A direita foge como o diabo da cruz desse debate. É que o governo da direita, que presidiu a um aumento sem precedentes da tributação direta e indireta sobre os rendimentos do trabalho, promoveu, ao mesmo tempo, a maior borla fiscal de sempre aos rendimentos do capital, lamentavelmente, com o apoio do PS. Pelo contrário, com a geringonça, essa borla foi travada (infelizmente, não invertida) e uma parte do aumento de impostos foi revertida com medidas como o IRS familiar, o aumento do mínimo de existência, o aumento da progressividade e redução de imposto através da introdução de dois escalões adicionais, a eliminação da sobretaxa, etc. Em sentido contrário, predominou o aumento do ISP, uma medida sem dúvida problemática mas com outras justificações.
A direita opôs-se a toda esta política, mas montou a maior das suas guerra fiscais contra a introdução do adicional do IMI, um imposto sobre fortunas imobiliárias superiores a 600 milhões (avaliados pelo VPT, 1200 milhões para casados ou unidos de facto com tributação conjunta), uma medida modestíssima num dos países Europeus em que a tributação do património é mais baixa.
5. E depois dos impostos as pessoas ficaram com mais ou menos dinheiro?
Do ponto de vista das famílias, é importante saber se o rendimento depois de cumpridas as obrigações fiscais e contributivas aumenta ou diminui. O indicador relevante para esse efeito é o rendimento disponível (gráfico 3). Os números são eloquentes e mostram bem a dimensão da perda de rendimento das famílias durante o período da troika e da direita e a recuperação que ocorreu com a Geringonça.
6. Para lá da demagogia fiscal
Outra questão é, finalmente, a de saber o que é uma carga fiscal leve ou pesada e sobre quem é a que a mesma incide. E para que serve. A verdade é que a carga fiscal em Portugal, mesmo com o aumento que foi conduzido pela direita, continua bem abaixo (menos 4 pontos percentuais) da que se verifica na média dos países da União Europeia (Gráfico 4). E menos 5 pontos percentuais da média da Zona Euro. Por outro lado, se olharmos para os países no topo e no fundo desta classificação, duvido que a maior parte dos portugueses preferisse imigrar para os países com menor carga fiscal.
A cruzada da direita contra os impostos é direcionada sobretudo para os impostos sobre os rendimentos do capital ou património, o que é uma escolha reveladora, mas também configura um ataque aos serviços públicos que garantem direitos essenciais e qualidade de vida ao conjunto da população, incluindo, por exemplo, os cerca de 50% que não pagam IRS. Melhorar o carácter redistributivo do nosso sistema fiscal pode significar reduzir alguns impostos a algumas pessoas, mas uma política generalizada de redução dos impostos teria impactos profundamente desiguais e seria um caminho para o subdesenvolvimento.
Não tenho qualquer expectativa de que alguém da nossa direita extremada tenha interesse em promover um debate sério sobre a matéria, ocupados que estão com fake-news e discurso de ódio. Fica, no entanto, o contributo para todos os que, independentemente das perspetivas sobre política fiscal, queiram fazer um debate baseado em factos reais.
terça-feira, 7 de janeiro de 2020
Mal-estar e extrema direita, numa Europa em negação
Desengane-se quem pensa que a subida da extrema-direita é, em termos eleitorais, um fenómeno essencialmente circunscrito às eleições para o Parlamento Europeu, cuja importância os cidadãos tendem a desvalorizar, aproveitando para expressar, nesse contexto, a sua revolta e descontentamento. Ou que essa subida se verifica apenas em alguns países, e portanto sem significado relevante, em termos globais, à escala da UE.
De facto, e mesmo não assumindo valores idênticos, o aumento da votação em partidos de extrema-direita nas legislativas realizadas nos 28 Estados membros não é menos expressivo que o registado nas europeias (que atingiu, no sufrágio de 2019, os 19%, ou seja quase 1 em cada 5 cidadãos europeus). Desde 2016, a percentagem de votos válidos na extrema-direita em eleições nacionais aumenta a um ritmo que contrasta com o verificado até então, passando-se de 8% para 14% dos votos válidos em apenas 5 anos (de 2014 a 2019).
É curioso constatar, aliás, que os níveis de votação na extrema-direita são idênticos em eleições legislativas e nas eleições para o Parlamento Europeu até 2009, ocorrendo um primeiro impulso de subida nas europeias de 2014 (quando se atingem os 11%) e um aumento expressivo do conjunto de partidos de extrema-direita em legislativas em 2017, ano em que começam a registar-se valores acima de 10%. Ou seja, como se a insatisfação e o mal-estar começassem a repercutir-se à escala dos Estados membros dois ou três anos mais tarde, em resultado do impacto, a essa escala, das orientações e políticas da UE.
Não sendo simples, a discussão sobre as causas do crescimento recente da extrema-direita é indissociável da estagnação económica e da degradação generalizada das condições de vida no continente europeu, decorrente por sua vez da persistência de políticas de austeridade, mesmo que hoje mais contidas ou aplicadas sob novas formas. De facto, se o emprego recuperou à escala europeia a partir de 2013, o mesmo não se pode dizer dos rendimentos do trabalho, que continuam em queda, num quadro de manifesta tendência para o agravamento das desigualdades e para o aumento da pobreza e do risco de pobreza.
De pouco adianta, portanto, apontar o dedo à extrema-direita e aos seus movimentos, se nada de substantivo for feito para esvaziar o mal-estar que a alimenta. O que implica, evidentemente, uma efetiva mudança de políticas, desde logo à escala europeia. Antes que seja tarde demais.
Adenda: Nem de propósito, realiza-se amanhã, na FEUC, a partir das 16h00, um debate sobre «A ascensão da extrema-direita e a economia política da União Europeia», contando com intervenções de Boaventura de Sousa Santos e João Rodrigues. Se puderem assistir, não percam.
De facto, e mesmo não assumindo valores idênticos, o aumento da votação em partidos de extrema-direita nas legislativas realizadas nos 28 Estados membros não é menos expressivo que o registado nas europeias (que atingiu, no sufrágio de 2019, os 19%, ou seja quase 1 em cada 5 cidadãos europeus). Desde 2016, a percentagem de votos válidos na extrema-direita em eleições nacionais aumenta a um ritmo que contrasta com o verificado até então, passando-se de 8% para 14% dos votos válidos em apenas 5 anos (de 2014 a 2019).
É curioso constatar, aliás, que os níveis de votação na extrema-direita são idênticos em eleições legislativas e nas eleições para o Parlamento Europeu até 2009, ocorrendo um primeiro impulso de subida nas europeias de 2014 (quando se atingem os 11%) e um aumento expressivo do conjunto de partidos de extrema-direita em legislativas em 2017, ano em que começam a registar-se valores acima de 10%. Ou seja, como se a insatisfação e o mal-estar começassem a repercutir-se à escala dos Estados membros dois ou três anos mais tarde, em resultado do impacto, a essa escala, das orientações e políticas da UE.
Não sendo simples, a discussão sobre as causas do crescimento recente da extrema-direita é indissociável da estagnação económica e da degradação generalizada das condições de vida no continente europeu, decorrente por sua vez da persistência de políticas de austeridade, mesmo que hoje mais contidas ou aplicadas sob novas formas. De facto, se o emprego recuperou à escala europeia a partir de 2013, o mesmo não se pode dizer dos rendimentos do trabalho, que continuam em queda, num quadro de manifesta tendência para o agravamento das desigualdades e para o aumento da pobreza e do risco de pobreza.
De pouco adianta, portanto, apontar o dedo à extrema-direita e aos seus movimentos, se nada de substantivo for feito para esvaziar o mal-estar que a alimenta. O que implica, evidentemente, uma efetiva mudança de políticas, desde logo à escala europeia. Antes que seja tarde demais.
Adenda: Nem de propósito, realiza-se amanhã, na FEUC, a partir das 16h00, um debate sobre «A ascensão da extrema-direita e a economia política da União Europeia», contando com intervenções de Boaventura de Sousa Santos e João Rodrigues. Se puderem assistir, não percam.
domingo, 5 de janeiro de 2020
Começar o ano a debater
Mais informações podem ser obtidas nos sítios da Associação Portuguesa de Economia Política e do Centro de Estudos Sociais, as duas instituições que organizam o debate. A entrada é livre.
Leituras
«Em 2011, Donald Trump fez um vídeo onde afirmou o seguinte: "O nosso presidente vai começar uma guerra contra o Irão, porque não tem capacidade de negociar. Ele é fraco e ineficiente (...) Temos um problema na Casa Branca. Assim sendo, eu acredito que ele vai atacar o Irão, algures antes das eleições, porque acredita que é a única forma de garantir a reeleição. Quão patético é ele?"
Entretanto, Obama não só não atacou o Irão como assinou um acordo histórico com aquele país e um conjunto de países europeus, que permitiu controlar os avanços nucleares de Teerão e aproximar antigos rivais, acordo esse que Trump tratou de rasgar mal se sentou na Sala Oval.
Contudo, nove anos depois destas declarações, eis que Trump se coloca no papel por ele próprio descrito, ordenando o assassinato do general Soleimani, sem consultar o congresso, sem aprovação do Senado e em total desrespeito pelo direito internacional. Uma provocação que pode dar origem um conflito em larga escala no Médio Oriente, que fará a guerra na Síria parecer uma brincadeira de crianças. E, se isso acontecer, quando novas vagas de refugiados começarem a dar à costa na Europa, os palermas da extrema-direita cá estarão para agitar o papão conspirativo da invasão árabe. E nós cá estaremos para lhes recordar que tal não seria possível sem o alto patrocinio do habitual terrorismo de Estado norte-americano e do lobby do armamento. Preparem-se, a próxima crise financeira internacional vai chegar mais cedo do que o previsto.»
João Mendes (facebook)
«A resposta a Trump é débil para o grau da sua perigosidade. É débil nos democratas nos EUA, é débil nos fracos que o compreendem, mas são cobardes para o defrontar, e é débil nos que o acham que o podem conter mantendo-o à distância. Mas, acima de tudo, é débil em todos os que ainda não perceberam duas coisas básicas: Trump não sai de lá com eleições e, numa esquina qualquer dos dias, na sua política errática, deita mais gasolina para a fogueira para se vingar, ou mostrar poder, ou gabar-se, e a fogueira pode não ser contida a tempo. (...) Face a este homem perigoso, deviam olhar para Churchill na Segunda Guerra e não para Chamberlain, porque é a falta de uma reacção forte e decidida das democracias que permite a Trump fazer o que quer. Um dia acordam com o fogo à porta e vão ler sobre o “estado do mundo” num tweet matinal com erros de ortografia.»
José Pacheco Pereira, Este homem não vai sair de lá sem duas guerras: uma civil e outra (espera-se) regional
Entretanto, Obama não só não atacou o Irão como assinou um acordo histórico com aquele país e um conjunto de países europeus, que permitiu controlar os avanços nucleares de Teerão e aproximar antigos rivais, acordo esse que Trump tratou de rasgar mal se sentou na Sala Oval.
Contudo, nove anos depois destas declarações, eis que Trump se coloca no papel por ele próprio descrito, ordenando o assassinato do general Soleimani, sem consultar o congresso, sem aprovação do Senado e em total desrespeito pelo direito internacional. Uma provocação que pode dar origem um conflito em larga escala no Médio Oriente, que fará a guerra na Síria parecer uma brincadeira de crianças. E, se isso acontecer, quando novas vagas de refugiados começarem a dar à costa na Europa, os palermas da extrema-direita cá estarão para agitar o papão conspirativo da invasão árabe. E nós cá estaremos para lhes recordar que tal não seria possível sem o alto patrocinio do habitual terrorismo de Estado norte-americano e do lobby do armamento. Preparem-se, a próxima crise financeira internacional vai chegar mais cedo do que o previsto.»
João Mendes (facebook)
«A resposta a Trump é débil para o grau da sua perigosidade. É débil nos democratas nos EUA, é débil nos fracos que o compreendem, mas são cobardes para o defrontar, e é débil nos que o acham que o podem conter mantendo-o à distância. Mas, acima de tudo, é débil em todos os que ainda não perceberam duas coisas básicas: Trump não sai de lá com eleições e, numa esquina qualquer dos dias, na sua política errática, deita mais gasolina para a fogueira para se vingar, ou mostrar poder, ou gabar-se, e a fogueira pode não ser contida a tempo. (...) Face a este homem perigoso, deviam olhar para Churchill na Segunda Guerra e não para Chamberlain, porque é a falta de uma reacção forte e decidida das democracias que permite a Trump fazer o que quer. Um dia acordam com o fogo à porta e vão ler sobre o “estado do mundo” num tweet matinal com erros de ortografia.»
José Pacheco Pereira, Este homem não vai sair de lá sem duas guerras: uma civil e outra (espera-se) regional
sábado, 4 de janeiro de 2020
Treze anos de Ladrões
sexta-feira, 3 de janeiro de 2020
A pobreza e os fundos
Ainda a pobreza.
Apenas mais um discurso de 1993 quando o então líder socialista, António Guterres, na oposição ao governo PSD, lembrava que existiam dois milhões de portugueses que recebiam abaixo das suas necessidades de alimentação.
"É um problema incompreensível num país que recebe mil contos por minuto, 1,5 milhões de contos por dia a fundo perdido das comunidades europeias que inteiramente bem aplicados poderiam minorar a crise económica e resolver tantos e tantos problemas sociais", disse Guterres numa intervenção centrada nos escândalos financeiros relacionados com fundos estruturais. A resposta do PSD esteve a cargo do responsável da bancada social-democrata, Duarte Lima, hoje com diversos processos na Justiça.
Na verdade, a abusiva aplicação dos fundos comunitários ficou por julgar em Portugal devido a uma desconexão entre o Código Penal e o Código do Processo Penal, relativo a prazos de prescrição. Na origem, esteve uma acção interposta por um jornalista que acusou o então primeiro-ministro Cavaco Silva do crime de difamação, cujo desfecho acabou no Supremo Tribunal de Justiça que consolidou jurisprudência, a favor de Cavaco Silva. E com essa decisão, fez prescrever os mega-processos judiciais, como o Fundo Social Europeu, Partex, UGT, Grupo Amorim, etc. Em 1993, era desta forma que Cavaco Silva respondia às queixas sobre usos fraudulentos desses fundos. De referir que, em 1987, Cavaco Silva recebeu da Ordem dos Médicos um dossier sobre o caso Costa Freire e a empresa PA. Nada fez.
Cavaco Silva acabou por fugir do Governo. Depois disso, Guterres não resolveu o problema dos pobres. E acabou por fugir, primeiro, do Governo e, depois, de Portugal. O primeiro-ministro seguinte acabou por fugir de Portugal (ele disse que pensou muito nos portugueses...). Os outros não fugiram de Portugal, mas contribuíram para que os portugueses fugissem do país. E os portugueses fogem do país quando se vêem sem perspectivas.
Passados 27 anos, lá estão os mesmo dois milhões de portugueses a viver na pobreza - serão os mesmos de 1993? E Portugal deverá receber uma quantia semelhante de fundos comunitários, num país que é já mais rico.
A pobreza não é um fenómeno isolado de tudo.
P.S. - As minhas desculpas aos mais sensíveis, por insistir no tema nos últimos dias. A culpa é que há demasiados videos de arquivo sobre o tema, nos arquivos da RTP.
Apenas mais um discurso de 1993 quando o então líder socialista, António Guterres, na oposição ao governo PSD, lembrava que existiam dois milhões de portugueses que recebiam abaixo das suas necessidades de alimentação.
"É um problema incompreensível num país que recebe mil contos por minuto, 1,5 milhões de contos por dia a fundo perdido das comunidades europeias que inteiramente bem aplicados poderiam minorar a crise económica e resolver tantos e tantos problemas sociais", disse Guterres numa intervenção centrada nos escândalos financeiros relacionados com fundos estruturais. A resposta do PSD esteve a cargo do responsável da bancada social-democrata, Duarte Lima, hoje com diversos processos na Justiça.
Na verdade, a abusiva aplicação dos fundos comunitários ficou por julgar em Portugal devido a uma desconexão entre o Código Penal e o Código do Processo Penal, relativo a prazos de prescrição. Na origem, esteve uma acção interposta por um jornalista que acusou o então primeiro-ministro Cavaco Silva do crime de difamação, cujo desfecho acabou no Supremo Tribunal de Justiça que consolidou jurisprudência, a favor de Cavaco Silva. E com essa decisão, fez prescrever os mega-processos judiciais, como o Fundo Social Europeu, Partex, UGT, Grupo Amorim, etc. Em 1993, era desta forma que Cavaco Silva respondia às queixas sobre usos fraudulentos desses fundos. De referir que, em 1987, Cavaco Silva recebeu da Ordem dos Médicos um dossier sobre o caso Costa Freire e a empresa PA. Nada fez.
Cavaco Silva acabou por fugir do Governo. Depois disso, Guterres não resolveu o problema dos pobres. E acabou por fugir, primeiro, do Governo e, depois, de Portugal. O primeiro-ministro seguinte acabou por fugir de Portugal (ele disse que pensou muito nos portugueses...). Os outros não fugiram de Portugal, mas contribuíram para que os portugueses fugissem do país. E os portugueses fogem do país quando se vêem sem perspectivas.
Passados 27 anos, lá estão os mesmo dois milhões de portugueses a viver na pobreza - serão os mesmos de 1993? E Portugal deverá receber uma quantia semelhante de fundos comunitários, num país que é já mais rico.
A pobreza não é um fenómeno isolado de tudo.
P.S. - As minhas desculpas aos mais sensíveis, por insistir no tema nos últimos dias. A culpa é que há demasiados videos de arquivo sobre o tema, nos arquivos da RTP.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2020
Eternos pobres, expedientes perpétuos
Veja-se o video de arquivo da RTP.
Enquanto aprovavam uma política macroeconómica de desprotecção completa da nossa economia, depois vinham invocar as vantagens da fénix renascida que das cinzas industriais viria voar sobre os campos e pobres desempregados do país. Lembrem-se que Cavaco Silva, primeiro-ministro dizia nesse ano que subir a taxa de desemprego de 4% para 6% era "um enorme sucesso" dada o arrefecimento internacional. A taxa subiria para 6,8% em 1994, 7,1% em 1995 e 7,2% em 1996.
Passaram quase 28 anos. Agora, é o Presidente da República que faz os mesmos trajectos pelas instituições que servem este tipo de Caridade, põe um avental e ele próprio serve a Sopa dos Pobres tal como antes de si o faziam os contemporâneos do seu pai. Nessas viagens, Marcelo Rebelo de Sousa quer dizer "hoje, esta noite, sou eu que te sirvo". Na verdade, ele serve-os todas as noites com a mesma realidade, sem se importar muito com o que motivou que, passados 28 anos, tudo esteja na mesma. É que não basta servir jantares: é preciso pensar mais um pouco e atacar as causas desse fenómeno.
Possivelmente, essa realidade tem a ver com a ausência de uma estratégia nacional para o país, porque a nossa estratégia foi entregá-la ao "pelotão da frente" da União Europeia e eles que nos servissem a Sopa dos Pobres, como têm feito. Os nossos salários reais estagnaram ao longo de mais de uma década. E depois queixam-se que os empresários sejam pouco eficientes e eficazes e competentes.
Quando a ministra Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho - repito, do Trabalho - decidir descer à rua para mais uma missão folclórica de consolação dos pobres, lembre-se que o Banco Alimentar contra a Fome foi criado há 28 anos.
E que continua a existir, porque o seu negócio não é curar a Pobreza, mas viver dela.