quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Eternos pobres, expedientes perpétuos


Foi em 1992. O então ministro do Emprego Silva Peneda assinou diante de todos os sem-abrigos de Lisboa que frequentavam a Sopa dos Pobres a criação - com a ajuda da Igreja - de um Banco Alimentar contra a Fome. Deu verbas avultadas (7,5 milhões de euros aos preços actuais) e prometeu que tudo iam fazer para acabar com aquela realidade.

Veja-se o video de arquivo da RTP. 

Enquanto aprovavam uma política macroeconómica de desprotecção completa da nossa economia, depois vinham invocar as vantagens da fénix renascida que das cinzas industriais viria voar sobre os campos e pobres desempregados do país. Lembrem-se que Cavaco Silva, primeiro-ministro dizia nesse ano que subir a taxa de desemprego de 4% para 6% era "um enorme sucesso" dada o arrefecimento internacional. A taxa subiria para 6,8% em 1994, 7,1% em 1995 e 7,2% em 1996.

Passaram quase 28 anos. Agora, é o Presidente da República que faz os mesmos trajectos pelas instituições que servem este tipo de Caridade, põe um avental e ele próprio serve a Sopa dos Pobres tal como antes de si o faziam os contemporâneos do seu pai. Nessas viagens, Marcelo Rebelo de Sousa quer dizer "hoje, esta noite, sou eu que te sirvo". Na verdade, ele serve-os todas as noites com a mesma realidade, sem se importar muito com o que motivou que, passados 28 anos, tudo esteja na mesma. É que não basta servir jantares: é preciso pensar mais um pouco e atacar as causas desse fenómeno.

Possivelmente, essa realidade tem a ver com a ausência de uma estratégia nacional para o país, porque a nossa estratégia foi entregá-la ao "pelotão da frente" da União Europeia e eles que nos servissem a Sopa dos Pobres, como têm feito. Os nossos salários reais estagnaram ao longo de mais de uma década. E depois queixam-se que os empresários sejam pouco eficientes e eficazes e competentes.     

Quando a ministra Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho - repito, do Trabalho - decidir descer à rua para mais uma missão folclórica de consolação dos pobres, lembre-se que o Banco Alimentar contra a Fome foi criado há 28 anos.

E que continua a existir, porque o seu negócio não é curar a Pobreza, mas viver dela.

7 comentários:

  1. Há apenas um pequeno problema, é que o Portugal dos anos 80, já para não falar do dos anos 70, depois da experiência da 'Economia de Abril' era francamente mais pobre do que é hoje.

    Não havia infraestruturas, não havia Investigação Científica de jeito, havia barracas (Cavaco, com todos os seus defeitos, soube erradicá-las) e por aí a fora. E, surpresa das surpresas, a CEE e depois a UE tiveram alguma coisa que ver com a mudança deste estado de coisas:

    https://www.publico.pt/2019/12/13/politica/opiniao/813-milhoes-esmolas-deputado-cotrim-ajudou-gerir-1897184

    O artigo é dedicado ao Deputado Cotrim de Figueiredo, mas é também leitura útil para os lados do PCP. Bem entendido, os Países Europeus mais ricos não nos deram este 'bodo' por causa dos nossos lindos olhos mas para, entre outras coisas, terem acesso aos nossos mercados.

    Correu tudo bem? Não, mas enquanto o Bloco de Leste ruia de alto a baixo, Portugal desenvolvia-se.

    De cada vez que me vêm com estes queixumes, eu limito-me a dizer, meus senhores, cresçam e apareçam. Felizmente que há pessoas à Esquerda que reconhecem que um programa ideológico falido, se for aplicado mais uma vez, só voltará a dar o mesmo resultado do costume:

    https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/dec/31/decade-european-left-syriza-austerity-europe-progressive

    Aliás, seria preciso que um qualquer programa ideológico, de facto, viesse acompanhado de um programa de Governo sério, que explicasse bem quais as vantagens e riscos de uma saída do Euro, renegociação da dívida, etc, etc.

    Outros há que acham que as coisas só falharam porque não foram implementadas da maneira correta.

    A sério que ainda acreditam nisto?

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  2. Nesta mudança de ano o João decidiu desligar da realidade e entrar a declarar desprezível ou de nenhum efeito tudo o que remedeie a pobreza, presumindo-se, embora ainda não o tenha dito claramente, que todos têm direito a não serem pobres.
    Aguarda-se que venha a dizer-nos que sabe como se elimina a pobreza da face da terra, pelo menos da terra portuguesa, e saberá seguramente também descrever o papel que pessoalmente assumirá nessa missão.
    Provavelmente nesta fase limitar-se-á às denuncias e a coleccionar comentários que formem esse coro de indignação e revolta (socialista, e não caridosa, naturalmente).
    Aguardemos pelo que se seguirá.

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  3. Os pobres que os ricos gostam são animais dóceis, os que não aceitam a sua condição não são dignos de gosto, respeito ou empatia, tradições reaccionárias que não envergonham não são defeitos são virtudes.

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  4. Caro Jaime,

    Tem razão. Portugal era bem mais pobre.
    Mas a questão mais interessante é saber se, qualquer que fosse o governo e sua ideologia, com os mesmos fundos, o que poderia ter feito de diferente. O que dá para pensar: até que ponto a aceitação do papel dos fundos estruturais não implicou a aceitação da sua inerente lógica interna. E até que ponto o "desenvolvimento" havido - que faz coincidir com maior riqueza - não o poderia ter sido de outra forma, e se - noutra lógica - não teria gerado outro tipo de consequências, bem mais "desenvolvimentistas". Porque há-de concordar que estamos bem mais dependentes do que éramos.

    E é nesse capítulo que cabe o "não correu tudo bem" de que fala. Mas o problemas é que esse "não correr bem" continua a verificar-se, numa subserviência de projectos de desenvolvimento ou de ausência deles. A mesma lógica que aceitou a lógica interna dos fundos, aceita neste momento - até por percepção de impotência - a lógica interna de uma União Europeia cada vez mais desequilibrada, desfuncional, e até antidemocrática.

    Apenas um alerta. Como vê, apesar de - se calhar - estarmos em pontos diametralmente opostos. Conseguimos estar de acordo. Até nalguns aspectos das experiências a Leste.

    E tem razão: a esquerda deveria ter a ousadia de tudo questionar e ser mais inventiva do ponto de vista de pensamento e alternativas, e menos subjugada a lógica do curto prazo. Porque se perde hoje, poderá ganhar amanhã. Mas somos todos vítimas da acumulação da forma como gerimos acumuladamente o curto prazo.

    Caro José,
    Veja lá, que até consigo estar de acordo consigo. Deve ser o espírito do Ano Novo :-) De facto, eu tanbém me apercebi da concentração de posts sobre a pobreza.

    Não, não desliguei da realidade: quem pretende desligar da realidade é quem chama a atenção da pobreza sem ter uma visão de Estado e apenas trabalhando para a sua campanha eleitoral. Pobreza de espírito, pobreza de pensamento. Lógicas de curto prazo.

    Quando ao enfoque na pobreza destes dias, foi um mero acaso: começou em reacção aos passos do PR e do Governo, mas depois detive-me - por outras razões que não tem de conhecer para já - e dei de caras com aquelas imagens. Eu sei que lhe custam ver e ouvir - como me custa a mim - mas essa foi - e é - a realidade. Se calhar, muito pouco mudou neste Portugal: as classes possidentes acham-se sempre que os pequenos gestos resolvem os problemas, quando o problema está - como diria um homem do norte - no sistema e na sua lógica de funcionamento. E na lógica ideológica que o comandou nas últimas décadas, ao acentuar as desigualdades em prol de uma competitividade que não chegou. Ou por que é que acha que o Chega cresce, mesmo depois de décadas de política de direita neoliberal, levada a cabo por PSD/CDS e PS?

    Quanto ao meu papel, temo frustrá-lo. Não tenho esse tipo de metas, apesar de achar que devemos todos contribuir - na medida das nossas possibilidades - para aquilo que for necessário ser feito. E nesse campo, junto-me a todas pessoas e almas de boa vontade, que as há nos mais diversos sítios e capelas.

    Sobre as formas alternativas de combater a pobreza: é uma boa provocação. Vou pensar em si nos próximos dias.

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  5. os nossos salários reais teriam uma melhor garantia com o escudo? em desvalorização constante

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  6. Recordar nunca é demasiado, acho eu... Bela posta

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  7. Caro João,
    Na sua reflexão peço-lhe que considere abordar o que referi: "...presumindo-se, embora ainda não o tenha dito claramente, que todos têm direito a não serem pobres."

    E isto porque espero que possamos concordar que, sendo dever da sociedade promover que pobreza não seja indignidade, sempre haverá relativa pobreza, e sempre a pobreza será adequada ao azar ou mérito de alguns.

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