«Sou médica e regressei recentemente do Mediterrâneo Central onde me juntei aos esforços da sociedade civil nas missões de resgate e salvamento. Espero que as minhas perguntas vos sejam de resposta tão fácil como a facilidade com que votaram: Sabem quanto tempo demora um dinghy/bote de borracha a desinsuflar? Uma pessoa a afogar? Um coração a deixar de bater? Sabem quão assustador é assistir à voz a perder-se? O corpo a deixar de lutar? O mar a engolir o que resta? O silêncio a substituir os gritos, a morte a substituir a vida? (...) Sabem quão escuro pode ser o mar à noite? Quão solitário? Quão doloroso o abandono? Quão doloroso o silêncio do mundo que assiste inerte? Sabem qual é a sensação de tirar uma pessoa da água? Salvá-la como se estivesse salva para sempre? Sabem qual é a sensação de fazer isso e haver vozes que te tentam convencer que o que fizeste é um crime, errado, punível? Sabem o que é estar desesperado a tentar retirar da água o maior número de pessoas possível enquanto a milícia (também chamada por alguns de guarda-costeira) líbia aponta armas de fogo na tua direcção? Sabem quem pagou essas armas? Esses barcos? Essa “solução"?»
Ana Paula Cruz, Carta aos eurodeputados Nuno Melo, Álvaro Amaro e José Manuel Fernandes
«Quando se tranca a porta de um contentor frigorífico, as pessoas que lá estejam dentro correm o risco de morrer em poucas horas, de frio se a refrigeração estiver ligada, ou sufocadas se não estiver. Do mesmo modo, quando dezenas de pessoas embarcam num bote de borracha sobrelotado e com pouco combustível, correm sérios riscos de não chegar ao destino ou de acabar atiradas ao mar. (...) O que é incompreensível é a abordagem da Europa ao fenómeno. A UE não adere ao espírito dos protocolos da ONU e não separa claramente o tráfico de seres humanos da ajuda humanitária a pessoas traficadas. A Directiva 2002/90/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2002, usa um conceito que nos envergonha e permite criminalizar não apenas o crime organizado e o tráfico mas até a ação humanitária. (...) Para 24 países da União Europeia (até ao Brexit) salvar uma pessoa da morte no mar e entregá-la em terra por razões humanitárias é um crime equiparável a atirá-la para ganhar dinheiro para um camião ou um barco da morte. Há coisas em que a Europa nos envergonha.»
Paulo Pedroso, Os camiões e os barcos da morte. Há coisas em que a Europa nos envergonha
«Poucas votações me ficaram tão presas na pele como esta que hoje, quinta-feira, decorreu no plenário em Estrasburgo. Tratou-se do voto sobre a criação de mecanismos europeus de protecção de vidas no Mediterrâneo. Foi uma negociação longa que colmatou numa votação também ela longa e muito dividida. Quando todas as emendas ao texto proposto já tinham ido a votos e chegámos ao voto final, aconteceu o impensável na minha cabeça. A proposta de salvar vidas foi chumbada por dois votos, 290 contra 288. Um murro no estômago, um nó na garganta. Pensei para comigo: há mesmo uma maioria de representantes que quer que continuem a morrer pessoas no Mediterrâneo? Ainda não recomposta, a bancada da extrema-direita celebrou e gritou entusiasticamente o resultado final. Do outro lado do hemiciclo, silêncio e impotência. A maioria tinha mesmo decidido que quem se faz ao Mediterrâneo não deve ter acesso a salvamento ou resgate, que nenhuma das vidas perdidas contou.»
Marisa Matias, As vidas dos outros
«É uma atitude muito cristã, esta de deixar morrer pessoas no Mediterrâneo. Nuno Melo acha que se os refugiados fossem pessoas com boas intenções sabiam andar sobre a água. Só falta arranjar um barco do CDS para batizar as pessoas enquanto se afogam. Imagino que o Nuno Melo tenha um esgotamento se vir uma mulher grávida num bote. É contra a interrupção da gravidez, mas não ao ponto de salvar a senhora de morrer afogada. Provavelmente é deixá-la afogar-se e depois levá-la a tribunal. É gente que vai às manifestações pró-vida, mas só de fetos. O embrião é vida; o refugiado é demasiado grande para eles terem pena. Uma coisa é o que se vê numa ecografia; outra o que não vemos porque está lá em alto-mar.»
Bruno Nogueira, Melos aos refugiados
quinta-feira, 31 de outubro de 2019
segunda-feira, 28 de outubro de 2019
Mas não serão verdes
O Público de Domingo até parecia o jornal Acção Socialista, dado o entusiasmo com os anúncios de umas intenções mais ou menos desgarradas do novo governo minoritário do PS. Nestes tempos de diluição ideológica aparente, estas intenções até passam por socialistas. A manchete permite aferir a sua plausibilidade: “pacto para Europa verde será prioridade da presidência portuguesa”.
No interior do jornal nada se dizia sobre o assunto. Percebe-se bem porquê do ponto de vista político. Na realidade, um slogan deve chegar para entreter os europeístas de quase todos os partidos e para fazer esquecer as realidades nada verdes e nada rosas da integração europeia realmente existente: da promoção da fraude especulativa do mercado europeu de emissões até aos constrangimentos austeritários ao investimento público, sem o qual não há economia ecológica que possa emergir, passando pelos tratados tóxicos ditos de comércio livre, como é o caso do projecto de tratado com o Mercosul de Bolsonaro e quejandos.
Já agora, o necessário programa nacional de descarbonização parece incluir pelo menos um truque: descarbonizar pelo lado da quebra de certas produções nacionais, transferindo as emissões para o lado mais invisível e distante do consumo de bens importados. Por exemplo, na área do agora muito badalado consumo de carne de vaca vai ser pelo menos em parte assim. Como disse o Ministro do Ambiente no ano passado: “Tudo isto [incluindo a quebra de 25% a 50% da produção pecuária nacional] vem também no quadro de uma maior liberalização do comércio no mundo, onde a carne de vaca vai chegar a Portugal a preços mais competitivos em muitos casos em relação aquela que conseguimos produzir.”
O estimulo à desflorestação no Brasil do agronegócio será dado por este lado do Atlântico se esta persistente loucura neoliberal não for travado por um sensato proteccionismo, também fundado em razões ambientais. Os países europeus passam por mais verdes do que são, graças à transferência para outros espaços das produções mais poluentes, estendendo as cadeias de valor, o que gera ainda mais poluição por via do transporte. Como a insuspeita The Economist assinalou recentemente, se medirmos as emissões pelo lado da produção, as coisas parecem melhor em 20% do que nos dizem as medições pelo lado do consumo na UE. A propaganda europeísta sobre economia verde pode assim avançar com mais facilidade. E a lógica da globalização neoliberal, indissociável da UE, também.
domingo, 27 de outubro de 2019
Socialismo democrático para o Século XXI
Bernie Sanders apresentou há dias uma proposta pré-eleitoral no sentido de que os trabalhadores das maiores empresas norte-americanas se tornem gradualmente proprietários de uma parte dessas mesmas empresas. Segundo esta proposta, todas as empresas cotadas em bolsa, bem como as empresas não cotadas com lucros ou balanços superiores a 100 milhões de dólares, deverão transferir a cada ano dois por cento do seu capital, ao longo de dez anos, para um fundo detido e controlado coletivamente pelos trabalhadores da empresa. Ao fim destes dez anos, os trabalhadores das grandes corporações passarão assim a deter coletivamente vinte por cento da empresa em que trabalham, participando tanto na distribuição de dividendos como no controlo acionista. A legitimidade do Estado para impor esta transferência de uma pequena parte do capital não é distinta da legitimidade para cobrar impostos sobre os resultados, relativamente aos quais esta é aliás uma proposta complementar e não substituta, mas esta ideia tem vantagens específicas. É relativamente simples do ponto de vista técnico, é relativamente imune às tentativas de neutralização através de estratégias de planeamento fiscal agressivo e tem um alcance mais profundo do que a mera redistribuição do rendimento, contribuindo para aprofundar a democracia nas empresas e na economia.
Esta proposta de Sanders é por isso progressista e inteligente, ainda que não seja verdadeiramente original. No Reino Unido, também Jeremy Corbyn e a sua equipa apresentaram há alguns meses uma proposta semelhante. Na versão britânica, a implementar caso o Labour Party venha a ganhar as eleições, a transferência de capital para os chamados “Fundos de Propriedade Inclusiva” aplica-se às empresas com mais de 250 trabalhadores e abrange até 10% do seu capital. E tanto uma como a outra têm como antecessor e inspiração direta o chamado Plano Meidner, desenvolvido pelos sociais-democratas suecos no final dos anos 1970, que assentava no mesmo princípio de transferência gradual e parcial do controlo acionista sobre as grandes empresas para contrariar a concentração do capital e democratizar a economia. Nunca chegou a ser verdadeiramente posto em prática, mas deixou sementes que parecem estar agora a voltar a germinar. São ideias ousadas mas sensatas e promotoras do interesse geral, que acrescem à caixa de ferramentas para a promoção da igualdade e da democracia na economia. No contexto da atual crise do neoliberalismo, são ideias apropriadas para o ressurgimento e renovação do socialismo democrático.
(publicado no Expresso de 19/10/2019)
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
"Avança connosco"
A impotência geral dos cidadãos para mudar o que está mal, a abstenção geral, devia ter uma voz política de movimento social. E não há muitas forças políticas capazes de a organizar.
Dias depois das eleições, o Partido Comunista Português (PCP) divulgou um vídeo. O João Rodrigues já escreveu sobre ele.
Mesmo sendo propaganda, é uma forma elegante de relativizar o seu resultado eleitoral, a descida lenta mas continuada desde 1980, e de valorizar a importância da generosidade quotidiana dos comunistas, que é por isso mesmo - como já se disse - imprescindível.
Imprescindível, a preserverança - seja ela um sonho acordado, uma utopia ou apenas vontade de mudar o que está mal - de tentar uma outra forma de organizar a sociedade, mais humana e solidária, menos egoísta e desigual, menos predadora e mais desenvolvida, menos escrava e mais emancipada. Foi com essas utopias que o mundo foi avançando. E na sua ausência, recuando.
Essa elegância não pode, contudo, fazer perder de vista as razões da descida de votos que pode reflectir uma redução da influência política do PCP junto da população.
Em 1979, o PCP - então já com 58 anos de vida - chegou a ter 1,1 milhões de votos, correspondente a 18,8% dos votos. É verdade que tinham passado apenas cinco anos desde o 25 de Abril. O PCP tinha saído do fascismo como a força respeitada que resistira teimosamente a todos os ataques da ditadura. A sensação de poder transformar a sociedade era ainda muito viva, mesmo depois do 25/11/1975, da primeira entrada do FMI (com o seu primeiro programa de austeridade) pela mão do PS de Mário Soares empurrado pela social-democracia alemã (ver da pág. 159 a 207); e de se viver um forte antagonismo de forças conservadoras que tinham criado uma violenta e terrorista rede bombista de direita.
O PCP era uma organização participada, influente, com um forte sector intelectual, plena de quadros em todos os sectores de actividade, criador de um pensamento enriquecido e com um forte peso sindical, agregando a si quadros e cidadãos não comunistas, realizando conferências nacionais alargadas sobre os temas nacionais e sectoriais, como foi o caso da Saúde em que teve forte presença na criação do Serviço Nacional de Saúde. Influenciou de 1976 a 1990 um jornal de circulação nacional - O Diário. Havia uma capacidade de mobilizar ao lado da organização, muito no seguimento da experiência política durante o fascismo.
A unidade era - umas vezes bem outras vezes mal - objecto de trabalho político organizado do PCP. E por isso havia a ousadia do lema importado de França: eu sou comunista, porque não tu?.
Dias depois das eleições, o Partido Comunista Português (PCP) divulgou um vídeo. O João Rodrigues já escreveu sobre ele.
Mesmo sendo propaganda, é uma forma elegante de relativizar o seu resultado eleitoral, a descida lenta mas continuada desde 1980, e de valorizar a importância da generosidade quotidiana dos comunistas, que é por isso mesmo - como já se disse - imprescindível.
Imprescindível, a preserverança - seja ela um sonho acordado, uma utopia ou apenas vontade de mudar o que está mal - de tentar uma outra forma de organizar a sociedade, mais humana e solidária, menos egoísta e desigual, menos predadora e mais desenvolvida, menos escrava e mais emancipada. Foi com essas utopias que o mundo foi avançando. E na sua ausência, recuando.
Essa elegância não pode, contudo, fazer perder de vista as razões da descida de votos que pode reflectir uma redução da influência política do PCP junto da população.
Em 1979, o PCP - então já com 58 anos de vida - chegou a ter 1,1 milhões de votos, correspondente a 18,8% dos votos. É verdade que tinham passado apenas cinco anos desde o 25 de Abril. O PCP tinha saído do fascismo como a força respeitada que resistira teimosamente a todos os ataques da ditadura. A sensação de poder transformar a sociedade era ainda muito viva, mesmo depois do 25/11/1975, da primeira entrada do FMI (com o seu primeiro programa de austeridade) pela mão do PS de Mário Soares empurrado pela social-democracia alemã (ver da pág. 159 a 207); e de se viver um forte antagonismo de forças conservadoras que tinham criado uma violenta e terrorista rede bombista de direita.
Revista da Legião Portuguesa, Fev 1948 |
A unidade era - umas vezes bem outras vezes mal - objecto de trabalho político organizado do PCP. E por isso havia a ousadia do lema importado de França: eu sou comunista, porque não tu?.
Lembrem-se do Chile (quando ouvirem as cantilenas da Iniciativa Liberal)
«Poder-se-á pensar que por causa de um aumento de quatro cêntimos do preço do bilhete do metro na capital chilena destruíram-se estações e incendiaram-se carruagens e lojas e fizeram-se fogueiras com o entulho das ruas, mas isso é ver apenas a superfície do problema.
(...) Lucía Dammert, professora e investigadora na Universidade de Santiago de Chile, explica que "há razões estruturais, relacionadas com as políticas económicas que foram sendo adotadas e que não resolveram os problemas dos mais pobres e da classe média, nem melhoraram a sua qualidade de vida". (...) "A maioria continua a sentir que vive numa sociedade profundamente desigual, em que os privilegiados vêem os seus privilégios ser reforçados e os outros limitam-se a trabalhar para não receber nada de volta".
(...) Cerca de 25% da riqueza do país está concentrada nas mãos de apenas 1% da população e apenas 2,1% em metade das famílias com os rendimentos mais baixos. "No contexto internacional, o Chile é, de longe, o país mais desigual da OCDE", explicou ao mesmo jornal chileno Dante Contreras, docente universitário. (...) Qualquer descrição sobre a vida na capital soa familiar: casas demasiado caras (só na última década o preço da habitação aumentou 150%, tendo os salários aumentado 25%, aponta o “El País”, citando um estudo da Universidade Católica do Chile) e transportes igualmente caros. O salário mínimo é de 301 mil pesos (cerca de 370 euros), mas 70% dos trabalhadores recebem menos do que cerca de 680 euros por mês.
(...) Na opinião de Carlos Huneeus Madge, o atual sistema económico do país, "assente num neoliberalismo extremo que desmantelou o Estado, é incompatível com uma democracia estável". Exemplo disso, diz, são as privatizações, "que abrangeram quase todas as empresas públicas, como as do sector da energia, e estenderam-se depois ao sistema de pensões, educação, saúde e água". (...) As pensões são um tema especialmente fraturante no país, com os seus críticos a afirmarem que o sistema introduzido em 1982, em que os trabalhadores depositam as suas contribuições em contas individuais geridas por entidades privadas, não garante "pensões dignas" e "perpetua as desigualdades".»
Excertos da reportagem de Helena Bento, no Expresso (23 de outubro), a ler na íntegra.
(...) Lucía Dammert, professora e investigadora na Universidade de Santiago de Chile, explica que "há razões estruturais, relacionadas com as políticas económicas que foram sendo adotadas e que não resolveram os problemas dos mais pobres e da classe média, nem melhoraram a sua qualidade de vida". (...) "A maioria continua a sentir que vive numa sociedade profundamente desigual, em que os privilegiados vêem os seus privilégios ser reforçados e os outros limitam-se a trabalhar para não receber nada de volta".
(...) Cerca de 25% da riqueza do país está concentrada nas mãos de apenas 1% da população e apenas 2,1% em metade das famílias com os rendimentos mais baixos. "No contexto internacional, o Chile é, de longe, o país mais desigual da OCDE", explicou ao mesmo jornal chileno Dante Contreras, docente universitário. (...) Qualquer descrição sobre a vida na capital soa familiar: casas demasiado caras (só na última década o preço da habitação aumentou 150%, tendo os salários aumentado 25%, aponta o “El País”, citando um estudo da Universidade Católica do Chile) e transportes igualmente caros. O salário mínimo é de 301 mil pesos (cerca de 370 euros), mas 70% dos trabalhadores recebem menos do que cerca de 680 euros por mês.
(...) Na opinião de Carlos Huneeus Madge, o atual sistema económico do país, "assente num neoliberalismo extremo que desmantelou o Estado, é incompatível com uma democracia estável". Exemplo disso, diz, são as privatizações, "que abrangeram quase todas as empresas públicas, como as do sector da energia, e estenderam-se depois ao sistema de pensões, educação, saúde e água". (...) As pensões são um tema especialmente fraturante no país, com os seus críticos a afirmarem que o sistema introduzido em 1982, em que os trabalhadores depositam as suas contribuições em contas individuais geridas por entidades privadas, não garante "pensões dignas" e "perpetua as desigualdades".»
Excertos da reportagem de Helena Bento, no Expresso (23 de outubro), a ler na íntegra.
quinta-feira, 24 de outubro de 2019
Missão cumprida
O jornal de Negócios traz hoje esta notícia: Entre 2001 e 2016 foram desviados 50 mil milhões pelas famílias mais ricas. Entretanto, salários e pensões já pagam 90% da receita de IRS.
Unindo estes pontos, só se pode resumir uma coisa: Grande sucesso da liberalização dos movimentos de capitais!
Colocar os pobres, assalariados e pensionistas a pagar a redistribuição entre si da relativamente pouca riqueza que ganham, enquanto os mais ricos se queixam da carga fiscal, para contribuírem ainda com menos.
Faz sentido.
Unindo estes pontos, só se pode resumir uma coisa: Grande sucesso da liberalização dos movimentos de capitais!
Colocar os pobres, assalariados e pensionistas a pagar a redistribuição entre si da relativamente pouca riqueza que ganham, enquanto os mais ricos se queixam da carga fiscal, para contribuírem ainda com menos.
Faz sentido.
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
Emergência climática
Confrontados com um enorme risco de sobrevivência da Humanidade, bloqueados pelos interesses instalados que insistem no caminho para o desastre, enfrentando o silêncio cúmplice dos media que anestesiam os cidadãos, só nos restam a mobilização através dos media alternativos, e a realização no espaço público de acções mediáticas que abram caminho a novas iniciativas políticas. Por imperativo moral, o silêncio não é uma opção. A ideologia e o sistema de interesses que comandam as nossas vidas obrigam-nos a escolher: ou o Capitalismo, ou a Humanidade.
Sugestão de leitura: Schroder, E. e Storm, S. (2018), Why “Green Growth” Is an Illusion.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Consulta
Uma pessoa vai ao médico e sai de lá com a tensão arterial alterada.
Ouve queixas sem parar e sente-se impotente para alterar as coisas, ao mesmo tempo ansioso para espalhar a palavra. "Isto não pode continuar assim".
Porque a situação descrita é a de que, por detrás do biombo, tudo está a desarticular-se sem que o Governo queira resolver o problema, manietado que está a defender outras causas que não a colectiva.
Foi mais ou menos assim: Só abrem centros de saúde onde não há serviços privados. Por isso, a situação está resolvida no norte e no centro do país, mas não em Lisboa, ao redor de Lisboa, Setúbal e no sul. Os médicos não querem ir para o interior porque, ao contrário do passado, não há uma carreira que os obrigue a ir para lá, dando-lhes mais pela exclusividade. Ficam com 1200 euros. Estamos a formar pessoal para ir para fora, e isso passa-se inclusivamente no privado. Não aprovam carreiras, não lançam os concursos, bloqueiam as entradas. Nas urgências, o pessoal do quadro tem sobretudo mais de 55 e até 60 anos e depois vêm os de fora, contratados a empresas, a ganhar várias vezes mais. "Chega-se a dizer: 'Se ganhas mais, faz tu'". Cria-se um mau ambiente entre o pessoal. Não pode ser por acaso que isto continua. Nas urgências, não há médicos radiologistas a partir das 20 horas: se for preciso, não há. Tem de ser por ecografia, mas não é a mesma coisa. Não se apanha o que se precisa de apanhar. Ou então é esperar para o dia seguinte. E se for alguma coisa grave? Isto é pensado. De cada vez que juntam hospitais, reduzem serviços. Nas maternidades, de cada vez que falta pessoal para operar, avisam a tutela que vão fechar. E a tutela lá resolve o problema. "Um faz de conta". E as pessoas não sabem. Os administradores chegam-nos a dizer que a culpa é dos médicos, mas depois são promovidos e vão para outro hospital, sabe-se lá por que cambalacho maçónico. Uma corrupção pegada. O Governo tentou arranjar pessoas para a secretaria de Estado porque o Francisco Ramos não podia ficar depois da entrevista que deu ao Expresso a dizer que só não era ministro porque deu uma queda. Mas todos foram recusando porque impuseram condições que não foram aceites. Então vai a Jamila... Este é o ponto a que chegámos!
E poderia continuar sem fim, se ele não tivesse de dar consulta.
- E não se pode fazer nada? - enquanto media a tensão.
- Devia, mas como? Os mais velhos só querem sair. Os mais novos têm medo de que a sua carreira seja afectada caso se manifestem. Isto não tem saída.
Mas alguma coisa tem de ser feita. Foi com este espírito que as gerações jovens, nos anos 70, começaram a pensar na sua vida. "40 anos e tal de fascismo?! Não pode ser mais!" E foram para a rua contra o regime.
Ouve queixas sem parar e sente-se impotente para alterar as coisas, ao mesmo tempo ansioso para espalhar a palavra. "Isto não pode continuar assim".
Porque a situação descrita é a de que, por detrás do biombo, tudo está a desarticular-se sem que o Governo queira resolver o problema, manietado que está a defender outras causas que não a colectiva.
Foi mais ou menos assim: Só abrem centros de saúde onde não há serviços privados. Por isso, a situação está resolvida no norte e no centro do país, mas não em Lisboa, ao redor de Lisboa, Setúbal e no sul. Os médicos não querem ir para o interior porque, ao contrário do passado, não há uma carreira que os obrigue a ir para lá, dando-lhes mais pela exclusividade. Ficam com 1200 euros. Estamos a formar pessoal para ir para fora, e isso passa-se inclusivamente no privado. Não aprovam carreiras, não lançam os concursos, bloqueiam as entradas. Nas urgências, o pessoal do quadro tem sobretudo mais de 55 e até 60 anos e depois vêm os de fora, contratados a empresas, a ganhar várias vezes mais. "Chega-se a dizer: 'Se ganhas mais, faz tu'". Cria-se um mau ambiente entre o pessoal. Não pode ser por acaso que isto continua. Nas urgências, não há médicos radiologistas a partir das 20 horas: se for preciso, não há. Tem de ser por ecografia, mas não é a mesma coisa. Não se apanha o que se precisa de apanhar. Ou então é esperar para o dia seguinte. E se for alguma coisa grave? Isto é pensado. De cada vez que juntam hospitais, reduzem serviços. Nas maternidades, de cada vez que falta pessoal para operar, avisam a tutela que vão fechar. E a tutela lá resolve o problema. "Um faz de conta". E as pessoas não sabem. Os administradores chegam-nos a dizer que a culpa é dos médicos, mas depois são promovidos e vão para outro hospital, sabe-se lá por que cambalacho maçónico. Uma corrupção pegada. O Governo tentou arranjar pessoas para a secretaria de Estado porque o Francisco Ramos não podia ficar depois da entrevista que deu ao Expresso a dizer que só não era ministro porque deu uma queda. Mas todos foram recusando porque impuseram condições que não foram aceites. Então vai a Jamila... Este é o ponto a que chegámos!
E poderia continuar sem fim, se ele não tivesse de dar consulta.
- E não se pode fazer nada? - enquanto media a tensão.
- Devia, mas como? Os mais velhos só querem sair. Os mais novos têm medo de que a sua carreira seja afectada caso se manifestem. Isto não tem saída.
Mas alguma coisa tem de ser feita. Foi com este espírito que as gerações jovens, nos anos 70, começaram a pensar na sua vida. "40 anos e tal de fascismo?! Não pode ser mais!" E foram para a rua contra o regime.
Unir os pontos.
Cansado de fazer capas com a política patronal, o Negócios informa-nos hoje de uma das consequências do predomínio desta linha: Portugal é dos países que mais milionários vai criar nos próximos anos. É por estes e por outros padrões perversos, até do ponto de vista ambiental, que se forjou o termo porno-riquismo. Entretanto, no passado fim-de-semana, o Expresso informava-nos que Portugal é uma das quatro economias ‘doentes’ da zona euro. É só unir os pontos para vermos toda uma economia política.
segunda-feira, 21 de outubro de 2019
Ainda a questão da habitação
Sucessivas rondas de liberalização do arrendamento desde o final da década de oitenta e o deliberado enredamento da habitação no voraz nexo finança-turismo alteraram a relação de forças entre proprietários e inquilinos. O resultado é este: Rendas levam metade do rendimento das famílias na Grande Lisboa.
Como defende Ana Cordeiro Santos no livro A Nova Questão da Habitação, os inquilinos são o elo mais fraco deste sistema de provisão, onde o papel do Estado se tem limitado a promover quem vive de rendas. É altura de valorizar a provisão pública a preços controlados, caso contrário a Lei de Bases não passará de um declaração de boas intenções. E também o inferno da especulação está cheio delas...
domingo, 20 de outubro de 2019
Entre a independência e a reinvenção
«Não é realista pensar que o problema catalão se resolve fingindo que não há apoio popular suficiente às teses independentistas. Pode bem ser que a maioria dos catalães nem queiram a independência. Mas há pelo menos uma minoria suficientemente larga que se expressa votando em forças que fazem dela a sua causa principal. (...) Visto de fora, o caminho mais adequado seria baixar a tensão desde já, admitir a possibilidade de perdão de penas para os condenados e abrir novas portas de diálogo, que permitam encontrar vias institucionais para o aprofundamento da autonomia e aceitar discutir a evolução para uma Espanha federal. Mas isso implicará o PSOE afastar-se claramente do PP, dos Ciudadanos e do Vox e que o rei seja mantido em silêncio sobre uma questão em que até agora fez estragos sempre que interveio. Nesta questão, ele não é símbolo de unidade, mas de poder imposto.»
Paulo Pedroso, Na Catalunha joga-se Espanha
«É bem conhecido que em finais de 1640 a monarquia hispânica teve de tomar uma decisão complicada: segurar Portugal ou segurar a Catalunha. (...) Com Portugal a Espanha poderia perder um reino e metade de um império; mas com a Catalunha arriscava-se a uma invasão francesa e a perder-se a si mesma. Claro que Madrid não desejava perder nem Portugal nem Catalunha (...), mas naquele ano de 1640 foi preciso ter uma só prioridade, a Catalunha, e essa folga foi a suficiente para Portugal hoje poder olhar a situação catalã com uma certa sobranceria. (...) Podemos lamentar, compreender ou não, antipatizar ou não. Mas imaginemos que 1640 tinha saído ao contrário e rapidamente nos aperceberemos de uma coisa: pode demorar, mas isto só se resolve de duas formas: ou com a independência catalã, ou com a Espanha a aceitar reinventar-se de outra forma. Como está, não dá.»
Rui Tavares, E se 1640 tivesse saído ao contrário?
«São todos muito liberais, todos muito preocupados pelas liberdades (económicas), todos muito tradicionais, alguns muito revoltados com a repressão (na Venezuela ou em Cuba), e chega-se à Catalunha e ficam todos muito indignados com a “violência” na rua, todos muito legalistas, todos indiferentes a um processo político persecutório, todos olhando para o lado para não verem as multidões na rua, e acima de tudo para não verem as faces dessa multidão. (...) E só por ironia é que se vê ficarem muito ofendidos com a comparação entre Hong Kong e Barcelona, eles que não mexeram uma palha sobre Hong Kong porque o seu anticomunismo pára na EDP e na REN, e não têm muita autoridade para fazer essa distinção. O mesmo com a “progressiva” e de “referência” comunicação social espanhola cuja agressividade anti-catalã é repulsiva. E o mesmo para a portuguesa. E repetem-se argumentos absurdos. O argumento contra o referendo então é o de máxima hipocrisia. O referendo não valeu porque correu sem qualquer controlo. Não é inteiramente verdade, mas é natural que não tenha ocorrido em condições ideais com a polícia a roubar as urnas, a ocupar lugares de votação e a bater nos que queriam votar. Mas, se o problema foram as condições do referendo, então que se faça outro em condições de liberdade e paz civil. Resposta: não, não, nunca, jamais em tempo algum.»
José Pacheco Pereira, A Espanha nem una nem grande nem livre
Paulo Pedroso, Na Catalunha joga-se Espanha
«É bem conhecido que em finais de 1640 a monarquia hispânica teve de tomar uma decisão complicada: segurar Portugal ou segurar a Catalunha. (...) Com Portugal a Espanha poderia perder um reino e metade de um império; mas com a Catalunha arriscava-se a uma invasão francesa e a perder-se a si mesma. Claro que Madrid não desejava perder nem Portugal nem Catalunha (...), mas naquele ano de 1640 foi preciso ter uma só prioridade, a Catalunha, e essa folga foi a suficiente para Portugal hoje poder olhar a situação catalã com uma certa sobranceria. (...) Podemos lamentar, compreender ou não, antipatizar ou não. Mas imaginemos que 1640 tinha saído ao contrário e rapidamente nos aperceberemos de uma coisa: pode demorar, mas isto só se resolve de duas formas: ou com a independência catalã, ou com a Espanha a aceitar reinventar-se de outra forma. Como está, não dá.»
Rui Tavares, E se 1640 tivesse saído ao contrário?
«São todos muito liberais, todos muito preocupados pelas liberdades (económicas), todos muito tradicionais, alguns muito revoltados com a repressão (na Venezuela ou em Cuba), e chega-se à Catalunha e ficam todos muito indignados com a “violência” na rua, todos muito legalistas, todos indiferentes a um processo político persecutório, todos olhando para o lado para não verem as multidões na rua, e acima de tudo para não verem as faces dessa multidão. (...) E só por ironia é que se vê ficarem muito ofendidos com a comparação entre Hong Kong e Barcelona, eles que não mexeram uma palha sobre Hong Kong porque o seu anticomunismo pára na EDP e na REN, e não têm muita autoridade para fazer essa distinção. O mesmo com a “progressiva” e de “referência” comunicação social espanhola cuja agressividade anti-catalã é repulsiva. E o mesmo para a portuguesa. E repetem-se argumentos absurdos. O argumento contra o referendo então é o de máxima hipocrisia. O referendo não valeu porque correu sem qualquer controlo. Não é inteiramente verdade, mas é natural que não tenha ocorrido em condições ideais com a polícia a roubar as urnas, a ocupar lugares de votação e a bater nos que queriam votar. Mas, se o problema foram as condições do referendo, então que se faça outro em condições de liberdade e paz civil. Resposta: não, não, nunca, jamais em tempo algum.»
José Pacheco Pereira, A Espanha nem una nem grande nem livre
sábado, 19 de outubro de 2019
sexta-feira, 18 de outubro de 2019
Leviandade
Foto retirada da página do Facebook da ministra e publicado pelo Observador |
Se a promoção da companhia já era abusiva, a coincidência pode revelar muita coisa da actual... ministra do Trabalho. É, pois, enorme a expectativa para ouvir as primeiras intervenções da detentora de uma pasta que devia ser basilar num governo que diz querer o apoio à esquerda, embora ao mesmo tempo também queira a tranquilidade patronal.
Vai a ministra relembrar-se mais das suas antigas funções (página 15) de inspectora do Trabalho e Directora dos Serviços de Apoio à Inspecção do Trabalho entre 2012 e 2015 - período em que o número de inspectores caiu 20% (ver página 17) e o número de visitas se reduziu para metade (ver página 49) - ou da forma como desempenhou as funções na área do Turismo querendo dar toda a força ao sector privado da hotelaria e actividades turísticas onde se aplicam as más práticas da precariedade e baixos salários?
Há uns meses dizia a actual ministra:
“O Turismo é uma arma de transformação, que consegue mobilizar vários players e que tem a capacidade de abrir o mapa de Portugal, alargando-o a todas as regiões e transformando assim o território”. Ou "é essencial não diabolizar o alojamento local".
A ministra esteve representada pela chefe de gabinete, por estarna Rússia |
Será esta ministra sensível aos efeitos da pressão turística, por exemplo na habitação e, por conseguinte, nos rendimentos disponíveis dos trabalhadores, na sua expulsão para periferias, nos tempos de transportes, na conciliação trabalho/família, enfim, na demografia?
Por que razão António Costa escolheu Ana Mendes Godinho para coordenar a área do Trabalho?
Mais rostos
Bem sei que são as políticas, e não os rostos, que contam. Mas há rostos que nos dizem muito sobre políticas, uma vez mais. Como já aqui João Ramos de Almeida detalhou, “Pedro Siza Vieira não é um advogado qualquer”. E hoje também não é um político qualquer. No contexto do capitalismo realmente existente e dos projectos políticos que o suportam, as duas actividades de facilitação, uma certa política e uma certa advocacia, não são separáveis.
Reparem como, dado o furto pela UE de instrumentos de política dignos desse nome, capazes de dotar os Estados de maior autonomia face às fracções dominantes do capital, pouco mais parece restar do que fazer negócios público-privados, com duvidosas engenharias financeiras e jurídicas à mistura, enquanto se faz florescer a fraude do empreendedorismo.
Entretanto, o Jornal de Negócios, ainda mais atreito depois das eleições a dar apenas destaque à política patronal, fazia ontem precisamente manchete com a compreensível satisfação dos representantes de certos patrões pela promoção de Siza Vieira a número dois do governo.
quinta-feira, 17 de outubro de 2019
A convergência por um canudo
A expectativa criada foi grande, mas o resultado é o esperado. O instrumento orçamental para a convergência na zona euro, anunciado por Centeno no Eurogrupo, é de 17 mil milhões para os anos de 2021-2027: pouco mais de 2400 milhões por ano para dividir por 19 países.
Mais uma prova de que, na zona euro, a convergência continua a não passar de uma miragem.
Mais uma prova de que, na zona euro, a convergência continua a não passar de uma miragem.
Eleitores de primeira e de segunda
O contingente de «votos desperdiçados», isto é, de votos em partidos que não elegem à escala do círculo eleitoral distrital e que se tornam na prática «inúteis» para efeitos de distribuição de assentos no Parlamento - em virtude de não existir um círculo de compensação nacional - constitui uma perversão do princípio «um cidadão, um voto» e configura uma distorção da proporcionalidade que se espera resulte de um processo realmente democrático.
Ao contrário do que se possa supor, este não é um problema novo nem recente: em todas as eleições legislativas realizadas em democracia regista-se um volume não despiciendo de escolhas de eleitores «deitadas ao lixo», que variam entre 5 a 10% do total de votos válidos até 2015 e que, em termos absolutos, oscilam entre cerca de 280 a 470 mil votos depositados nas urnas. O que é novo, hoje, é o facto de este entorse democrático atingir, nas legislativas de 2019, um valor acima dos 620 mil votos, que corresponde a 13,4% dos votos válidos, o valor mais elevado de sempre.
Este défice de representação democrática em geral é agravado pelas variações a nível distrital, com casos em que, na média de «votos desperdiçados» entre 1975 e 2019, se chegam a atingir valores superiores a 20% (Portalegre) ou acima de 15% (como sucede, por exemplo, em Beja, Castelo Branco, Bragança ou Viana do Castelo), num claro contraste entre litoral e interior. Trata-se, aliás, de um duplo enviesamento, na medida em que são mais poupados a este entorse os distritos do litoral (sobretudo Lisboa e Porto, com um «desperdício» médio de votos de apenas 4%) e os maiores partidos (PS e PSD, os únicos que acabam por eleger na maior parte dos círculos eleitorais do interior).
No fundo, é como se duas pessoas fossem ao mesmo restaurante e tivessem acesso ao mesmo menu, mas em que apenas uma delas acaba por poder escolher - e ser servida - entre as várias opções disponíveis, ficando a outra limitada, na prática, a duas opções, mesmo que possa em teoria fazer outras escolhas. Por isso, quando se diz que é preciso «aproximar os eleitos dos eleitores» (nomeadamente para defender a adoção de círculos uninominais), talvez seja melhor começar por «aproximar os eleitores de votos com valor democrático efetivo», através da criação de um círculo de compensação nacional que recupere as perdas de votos registadas a nível distrital.
Ao contrário do que se possa supor, este não é um problema novo nem recente: em todas as eleições legislativas realizadas em democracia regista-se um volume não despiciendo de escolhas de eleitores «deitadas ao lixo», que variam entre 5 a 10% do total de votos válidos até 2015 e que, em termos absolutos, oscilam entre cerca de 280 a 470 mil votos depositados nas urnas. O que é novo, hoje, é o facto de este entorse democrático atingir, nas legislativas de 2019, um valor acima dos 620 mil votos, que corresponde a 13,4% dos votos válidos, o valor mais elevado de sempre.
Este défice de representação democrática em geral é agravado pelas variações a nível distrital, com casos em que, na média de «votos desperdiçados» entre 1975 e 2019, se chegam a atingir valores superiores a 20% (Portalegre) ou acima de 15% (como sucede, por exemplo, em Beja, Castelo Branco, Bragança ou Viana do Castelo), num claro contraste entre litoral e interior. Trata-se, aliás, de um duplo enviesamento, na medida em que são mais poupados a este entorse os distritos do litoral (sobretudo Lisboa e Porto, com um «desperdício» médio de votos de apenas 4%) e os maiores partidos (PS e PSD, os únicos que acabam por eleger na maior parte dos círculos eleitorais do interior).
No fundo, é como se duas pessoas fossem ao mesmo restaurante e tivessem acesso ao mesmo menu, mas em que apenas uma delas acaba por poder escolher - e ser servida - entre as várias opções disponíveis, ficando a outra limitada, na prática, a duas opções, mesmo que possa em teoria fazer outras escolhas. Por isso, quando se diz que é preciso «aproximar os eleitos dos eleitores» (nomeadamente para defender a adoção de círculos uninominais), talvez seja melhor começar por «aproximar os eleitores de votos com valor democrático efetivo», através da criação de um círculo de compensação nacional que recupere as perdas de votos registadas a nível distrital.
quarta-feira, 16 de outubro de 2019
Rostos
Bem sei que são as políticas, e não os rostos, que contam. Mas há rostos que nos dizem muito sobre políticas. Lembrem-se que, em plena greve na Ryanair, Ana Godinho decidiu ir a Dublin tirar uma fotografia com a encarnação multinacional da selvajaria laboral. Agora, passa de Secretária de Estado do Turismo, onde dirigiu a triste claque de um sector conhecido pelos baixos salários e pela precariedade, a Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Será Ministra do trabalho low cost (a baixo custo) e da insegurança social? Se depender desta gente, a pesada herança da troika é para continuar na área mais importante da economia política.
terça-feira, 15 de outubro de 2019
A geringonça morreu. Viva a geringonça!
"O BE diz que a geringonça morreu porque o PS a matou. O PS diz que a geringonça está viva e continua tudo como dantes. O PCP diz que a geringonça nunca existiu. Nenhum dos três tem razão. A geringonça existiu, sim, e não existe mais. Mas morreu de morte natural.
(...)
A geringonça acabou porque deixou de ser necessária e porque o seu fim interessa a todos os participantes. Não há motivo para lamentar a sua morte, mas há razões para celebrar a sua existência.
(...)
A geringonça representou várias rupturas com a prática de 40 anos de democracia. Primeiro, o PS aceitou tratar o PCP e o BE como interlocutores políticos válidos, acolhendo diversas propostas em vários domínios. Segundo, PCP e BE aceitaram não fazer do PS o seu principal inimigo, mesmo sabendo que alguns dos traços que sempre criticaram nos socialistas iriam persistir. Terceiro, o Parlamento português passou a funcionar num regime de negociação quotidiana - um padrão comum em várias democracias europeias, mas quase ausente na prática parlamentar portuguesa. Por fim e não menos importante, difundiu-se na sociedade a convicção de que é possível e desejável um projecto de desenvolvimento para Portugal baseado no combate às desigualdades, na justiça social, em serviços públicos universais e na protecção dos direitos sociais e laborais.
A geringonça acabou, mas deixa no sistema político uma experiência de negociação que não se esquece. E deixa na sociedade portuguesa a convicção de que o retrocesso dos direitos não é inevitável nem desejável. Não é pouco. É o critério pelo qual os partidos em causa serão julgados no futuro pelos seus eleitores."
Excertos do meu texto de hoje no DN.
(...)
A geringonça acabou porque deixou de ser necessária e porque o seu fim interessa a todos os participantes. Não há motivo para lamentar a sua morte, mas há razões para celebrar a sua existência.
(...)
A geringonça representou várias rupturas com a prática de 40 anos de democracia. Primeiro, o PS aceitou tratar o PCP e o BE como interlocutores políticos válidos, acolhendo diversas propostas em vários domínios. Segundo, PCP e BE aceitaram não fazer do PS o seu principal inimigo, mesmo sabendo que alguns dos traços que sempre criticaram nos socialistas iriam persistir. Terceiro, o Parlamento português passou a funcionar num regime de negociação quotidiana - um padrão comum em várias democracias europeias, mas quase ausente na prática parlamentar portuguesa. Por fim e não menos importante, difundiu-se na sociedade a convicção de que é possível e desejável um projecto de desenvolvimento para Portugal baseado no combate às desigualdades, na justiça social, em serviços públicos universais e na protecção dos direitos sociais e laborais.
A geringonça acabou, mas deixa no sistema político uma experiência de negociação que não se esquece. E deixa na sociedade portuguesa a convicção de que o retrocesso dos direitos não é inevitável nem desejável. Não é pouco. É o critério pelo qual os partidos em causa serão julgados no futuro pelos seus eleitores."
Excertos do meu texto de hoje no DN.
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
O 'Nobel' de 2019
Todos os anos há uma pequena comoção em torno do ‘Nobel’ da Economia atribuído pelo Banco Central da Suécia, comummente confundido com os Nobel concedidos pela Academia Sueca.
Este ano, os laureados são Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer. Sublinha-se, e bem, que é apenas a segunda vez em 51 anos que o galardão é atribuído a uma mulher. Mas importa também notar que, como frequentemente acontece, todos os premiados são provenientes de universidades norte-americanas.
Mas atentemos à economia política do prémio de 2019.
Este ano distingue-se trabalho no campo da economia do desenvolvimento. Parece politicamente progressista. Desta vez não temos o elogio à abstracção formal e matemática da ciência económica. Pelo contrário, enaltece-se “uma nova abordagem ... ao combate à pobreza global”, que consiste, por um lado, na “divisão” deste tremendo problema em pequenas questões, como a melhoria do desempenho escolar das crianças e a saúde infantil, e, por outro lado, no teste experimental de medidas de política.
O que discuto aqui não é o mérito destas medidas, consideradas isoladamente e nos seus próprios termos. Mais educação e melhor saúde infantil são objectivos meritórios, mesmo que sejam prosseguidos através de medidas de natureza micro e não tanto de alterações ao nível dos sistemas de provisão. E nem sequer vou agora questionar a utilização do método experimental junto de populações pobres, mesmo que tal seja discutível do ponto de vista ético. Ou sequer a eficácia destas medidas no médio e longo prazos, quando os incentivos são descontinuados.
Como já tivemos oportunidade de argumentar, aqui e aqui, o principal problema destas iniciativas é que se apresentam como alternativas a outras de carácter mais macro-estrutural e que visam, como era prática na boa tradição da economia do desenvolvimento, as causas dos círculos viciosos de pobreza. A nova abordagem que agora se enaltece lida, pelo contrário, com os efeitos da pobreza, através de paliativos dirigidos e demasiado centrados na lógica dos incentivos, deixando o quadro institucional intacto. Por outras palavras, esta abordagem não faz mais do que ajudar os pobres a viver na sua mais ou menos irremediável condição.
É por isso que o ‘Nobel’ não é progressista e que as abordagens e as políticas capazes de lidar com a pobreza noutros termos não chegarão, pelos menos nos próximos tempos, a ‘Nobel’.
Como foi?
Atenção: não clicar na foto, ver ao lado |
Se vier, perceberá quais foram as influências externas e internas como foi que os seus defensores se organizaram de forma a formatar um consenso social que presentemente tornam essas ideias isoladas no debate político e público, afunilando e empobrecendo a discussão de soluções para o nosso país.
Mas isto não é nada.
Bem sei que este convite é como pedir figurantes sem contrato nem pagamento, ainda por cima a um sábado de manhã. E em parte é verdade. Mas é por uma boa causa.
E fica a promessa de que, quem vier, receberá em Fevereiro próximo (se os prazos não derraparem), uma cópia do documentário. Bastará inscrever-se aqui: Inscrições
Mensagens do futuro
O projecto de um Green New Deal para os EUA tem sido politicamente defendido por socialistas norte-americanas como a extraordinária congressista Alexandria Ocasio-Cortez. Do ponto de vista intelectual, nos EUA, economistas políticos como Robert Pollin são incontornáveis no robustecimento deste ponto de partida, que hoje parece radical, para enfrentar a ameaça verdadeiramente radical das alterações climáticas em sociedades desiguais.
Num excelente vídeo de popularização desta economia política da esperança, Ocasio-Cortez imagina-se daqui a uns anos, já com cabelos brancos, a viver um presente em que o impossível se tornou inevitável, incluindo no plano ferroviário. E, já se sabe, a expansão da ferrovia é também o símbolo maior da valorização do comum, de um reaprender a viver colectivamente.
Os globalistas de quase todos os partidos devem notar que ela é a narradora de uma história do futuro em que a nação é o espaço fundamental para uma revolução democrática que teve a economia como objecto, apelando a uma certa ideia de comunidade de destino. Continua a não haver nada mais poderoso do que uma comunidade política que pode ser imaginada de formas radicalmente distintas. A retórica dos socialistas norte-americanos é fiel à promessa da música já clássica: “esta terra é a nossa terra, esta terra foi feita para ti e para mim”.
Para os europeístas de quase todos os partidos neste rectângulo, reparem como a UE é um obstáculo de monta para qualquer ideia nesta senda: do investimento público maciço à desglobalização dos circuitos económicos, passando pelo controlo público do crédito, tudo o que é necessário fazer exige uma confrontação nacional com a UE realmente existente.
A UE é sinónimo de globalização cada vez mais intensa e ambientalmente insustentável, agora acompanhada de uma retórica ambiental fraudulenta, de supostas soluções de mercado para os problemas criados pelas forças de mercado, incluindo a insistência nas taras especulativas ineficazes dos mercados de direitos de poluir, e, claro, sinónimo de austeridade permanente, de ataque permanente ao Estado social de base nacional. E sem este, não há transição que nos valha, porque o medo e a insegurança atingem as classes populares. E sem a sua mobilização esperançosa jamais existirá algo que se assemelhe a uma economia ecológica.
Por cá, também na questão ambiental, precisamos de uma sagaz articulação de patriotismo, até para promover politicamente a desglobalização económica, e de internacionalismo genuíno.
domingo, 13 de outubro de 2019
Quando as bruxas andam à caça
Exposição de José Luís Neto, Vigiar, Esconder e Punir |
Dizem eles:
Os membros eleitos pela Lista B para o Conselho Deontológico (São José Almeida, João Paulo Meneses, Margarida Neves de Sousa e Miguel Marujo) reiteram que, respeitando os direitos de cidadania de todos os jornalistas, há uma manifesta incompatibilidade entre o exercício de funções neste órgão e a prática partidária. Não é apenas uma questão - para nós importante - da promiscuidade entre jornalismo e política, mas sobretudo uma questão de separação clara de funções. Dissemo-lo publicamente na última campanha eleitoral para os órgãos sociais do Sindicato e sublinhamos de novo, perante o facto de Alfredo Maia ter sido candidato em lugar elegível por uma lista partidária no seu círculo eleitoral. Se na altura entendíamos como importante que o camarada Alfredo Maia renunciasse ao seu mandato na Assembleia Municipal da Maia, caso fosse eleito para o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, agora reiteramos que consideramos incompatível o exercício desta função com a atividade partidária e com o desempenho de mandatos políticos de nomeação ou de eleição.
Os membros da lista B no CD poderão pensar o que quiserem, mas não há nada na Constituição, no Estatuto do Jornalista (EJ) ou na Lei de imprensa que o impeça. O EJ cria um conjunto de incompatibilidades, mas nenhuma inclui ser deputado ou membro de uma assembleia municipal. Veja-se o artigo 3º da lei 64/2007 que remete para as alíneas a), b), c), e) e g) do artigo 1º da Lei 64/93. E nessa lista, as questões comerciais surgem bem à frente da participação em cargos públicos!
E sobre este último caso, o CD teria muito que fazer. Teriam de extirpar da comunicação social todas as estranhas funções indirectas "de angariação, concepção ou apresentação, através de texto, voz ou imagem, de mensagens publicitárias" ou "de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais" ou "é igualmente considerada actividade publicitária incompatível com o exercício do jornalismo a participação em iniciativas que visem divulgar produtos, serviços ou entidades através da notoriedade pessoal ou institucional do jornalista, quando aquelas não sejam determinadas por critérios exclusivamente editoriais" (artigo 3º), como são as de vendedores de carros, viagens, hotéis, restaurantes, telemóveis, computadores, aspiradores, clínicas privadas, etc., etc., dependentes de agendas comerciais, incentivadas por agências de comunicação, levadas a cabo por jornalistas num suposto apoio ao consumidor. Mas aí nada se diz.
Na verdade, muitos jornalistas acham que ser membro de um partido é o obstáculo à independência do jornalista. E nalguns casos - que convém evitar - pode efectivamente prejudicar. Mas e se o jornalista não for militante de um partido, embora seja um diligente seguidor de um partido, de uma ala política da sociedade, de um credo, um defensor férreo de uma ideologia, ou apenas daquilo que as autoridades sustentam? É-se mais independente? Claro que não. "Mas no caso dos membros dos partidos pelo menos estão identificados", parecem dizer os empenhados membros do CD. É ridículo.
Mas se é assim, de onde vem esta ideia de que basta ser militante comunista para deixar de ser independente?
Apenas de um exacerbamento das funções de CD, pois nenhuma sua decisão ou parecer se sobrepõem à lei. A sua exigência é idiota, destrambolhada e inquinada de um maniquismo difícil de entender. Até custa a crer que os quatro membros da lista B tenham escrito o que foi escrito. Ou que a Direcção do Sindicato pense isso. Ser humano é ter ideias. Ter ideias é ser independente.
Mas caso quisessem olhar para a falta de independência política dos jornalistas, aí também teriam muito a deliberar. E nada se fez porque se considerou que fazia parte do seu direito de opinião como jornalistas.
Exemplos:
sexta-feira, 11 de outubro de 2019
Chamem-lhes ultraliberais, é o que eles são
Os ultraliberais portugueses ficam incomodados quando os tratamos por esse nome. Dizem que são apenas liberais. Mas não são. Uns sabem disso, outros não.
A julgar pelo que dizem e escrevem, a maioria deles nunca leu John Stuart Mill, nem outras referências maiores do liberalismo clássico. Não lhes passa pela cabeça que a doutrina liberal foi usada para justificar a educação pública, universal e gratuita. Para defender impostos progressivos, ou a reforma do direito sucessório (leia-se, impostos sobre as heranças), ou a reforma da propriedade fundiária (leia-se, reforma agrária), ou a protecção do ambiente.
Também não sabem que Beveridge e Keynes foram apoiantes de sempre da causa liberal, defendendo por isso (e não apesar disso) a protecção social universal, a expansão do investimento e do emprego público, a repressão dos especuladores financeiros ou um Estado interventivo no combate aos ciclos económicos.
O que eles conhecem do liberalismo baseia-se em leituras ocasionais dos divulgadores de Hayek, do que ouviram nos encontros do Instituto Von Mises (uma organização doutrinária internacional, activa em Portugal) e noutros círculos, onde também aprendem as técnicas de assédio nas redes sociais.
Entre os ultraliberais portugueses há também quem conheça na perfeição a diferença entre uma coisa e outra. Mas preferem manter o equívoco, por razões óbvias: o que na verdade defendem não atrairia mais votos do que o PURP e faria corar de vergonha muitos dos que neles votaram.
Tal como os racistas e xenófobos gostariam de ser chamados de populistas, os ultraliberais gostariam que os tratássemos por nomes mais civilizados. Não lhes façamos esse favor. Numa sociedade democrática têm direito a defender o que entendem, no respeito pela Constituição. Nada mais do que isso.
A julgar pelo que dizem e escrevem, a maioria deles nunca leu John Stuart Mill, nem outras referências maiores do liberalismo clássico. Não lhes passa pela cabeça que a doutrina liberal foi usada para justificar a educação pública, universal e gratuita. Para defender impostos progressivos, ou a reforma do direito sucessório (leia-se, impostos sobre as heranças), ou a reforma da propriedade fundiária (leia-se, reforma agrária), ou a protecção do ambiente.
Também não sabem que Beveridge e Keynes foram apoiantes de sempre da causa liberal, defendendo por isso (e não apesar disso) a protecção social universal, a expansão do investimento e do emprego público, a repressão dos especuladores financeiros ou um Estado interventivo no combate aos ciclos económicos.
O que eles conhecem do liberalismo baseia-se em leituras ocasionais dos divulgadores de Hayek, do que ouviram nos encontros do Instituto Von Mises (uma organização doutrinária internacional, activa em Portugal) e noutros círculos, onde também aprendem as técnicas de assédio nas redes sociais.
Entre os ultraliberais portugueses há também quem conheça na perfeição a diferença entre uma coisa e outra. Mas preferem manter o equívoco, por razões óbvias: o que na verdade defendem não atrairia mais votos do que o PURP e faria corar de vergonha muitos dos que neles votaram.
Tal como os racistas e xenófobos gostariam de ser chamados de populistas, os ultraliberais gostariam que os tratássemos por nomes mais civilizados. Não lhes façamos esse favor. Numa sociedade democrática têm direito a defender o que entendem, no respeito pela Constituição. Nada mais do que isso.
O Salário Mínimo como alavanca do crescimento salarial
Foi ontem publicado o estudo “Quando a Decisão Pública Molda o Mercado: Salário Mínimo em Tempos de Estagnação Salarial”, que escrevi no âmbito do Observatório das Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
No espírito das publicações do Observatório, procura-se encontrar um compromisso entre um exercício analiticamente rigoroso e uma linguagem clara e expurgada de termos técnicos, que permita a sua leitura e difusão por um vasto conjunto de cidadãos interessados. Espero que esse objetivo tenha sido alcançado.
O estudo pode ser lido integralmente aqui.
Abaixo, reproduzo as principais conclusões:
"Este caderno analisou a importância da subida do salário mínimo, ocorrida no período 2014-2017, na explicação das diferenças intersetoriais do crescimento dos salários médios nominais. Procedeu-se a uma análise em diferentes planos, começando-se por uma análise bivariada entre as variáveis de interesse, evoluindo-se numa fase subsequente para uma análise em dados de painel.
Dos resultados alcançados, é possível concluir que:
• A atualização do salário mínimo nacional foi determinante para explicar as diferentes evoluções salariais em cada setor de atividade. Todos os planos de análise considerados revelam que o crescimento nominal dos salários médios variou positivamente em relação à percentagem de trabalhadores que auferiam o salário mínimo num determinado setor. Sabendo que em todos os anos considerados houve atualizações nominais do salário mínimo significativamente superiores à média do crescimento salarial do período, este resultado evidencia que a atualização do salário mínimo foi determinante para explicar o maior crescimento salarial dos setores com maior percentagem de trabalhadores a auferir o salário mínimo. A análise em dados de painel permitiu observar que este resultado se mantém válido, mesmo que considerando variáveis de controlo para o lado da procura (taxa de crescimento do emprego) e da oferta (taxa de crescimento da produtividade).
• Embora globalmente determinante, o efeito do salário mínimo na evolução intersetorial dos salários é melhor avaliado se considerado de forma descontínua. Setores com uma percentagem de trabalhadores a auferir o salário mínimo superior a 20% apresentam uma taxa de crescimento dos seus salários médios nominais consistentemente superiores àqueles que se encontram abaixo desta barreira. Este resultado está de acordo com a intuição, já que se espera que para percentagens menos elevadas do salário mínimo existam outros fatores mais preponderantes. O poder explicativo do salário mínimo como fator de diferenciação setorial da evolução dos salários é mais efetivo se considerado em termos do seu impacto categórico – impacto de estar abaixo ou acima de um determinado valor de cobertura – do que do impacto marginal dentro de cada categoria.
• A ausência da decisão política de aumentar o salário mínimo nacional teria determinado um crescimento nominal dos salários mais anémico do que o verificado. Como se mostrou na introdução, o salário médio nominal agregado foi pouco sensível à evolução positiva do ciclo económico. Esse facto, aliado à evidência de que o crescimento do salário mínimo foi determinante para o crescimento salarial mais pronunciado dos salários nos setores com maior proporção de trabalhadores abrangidos por este, permite afirmar que a decisão de aumentar o salário mínimo foi essencial para que o crescimento dos salários não fosse mais anémico do que o verificado.
• A capacidade do salário mínimo impulsionar o crescimento dos salários nominais revela a importância da intervenção pública tendente à revalorização salarial num contexto de baixa elasticidade dos salários em relação ao ciclo económico. A definição do salário mínimo é tradicionalmente encarada como uma intervenção do poder público no sentido de garantir que a remuneração do trabalho não se coloca abaixo de um nível mínimo de dignidade, prevenindo que distorções no mercado de trabalho sejam utilizadas para fixar salários anormalmente baixos num contexto de poder de mercado assimétrico entre as partes. Contudo, no contexto atípico de crescimento acompanhado de estagnação salarial que caracterizou o período da recuperação económica portuguesa, o papel dos decisores públicos pode ir além dessa função tradicional. Na verdade, o que os resultados deste estudo demonstram é que, neste enquadramento, a decisão política pode ser uma importante alavanca do crescimento salarial, impulsionando ganhos salariais com impacto agregado que dificilmente teriam ocorrido na ausência da sua ação. Nesta circunstância, o salário mínimo é tanto um instrumento de política social à disposição dos decisores públicos como de política macroeconómica."
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
Vivemos num regime socialista, dizem eles
Quando ouvirem dizer que vivemos num regime socialista, que o Estado tem um peso excessivo em Portugal e que é por isso que o país não avança, mostrem-lhes este gráfico e expliquem-lhes três coisas:
1º) o valor das receitas do Estado em percentagem do PIB em Portugal é menor do que a média da UE;
2º) metade dos países da UE têm um Estado que gere uma parcela maior dos recursos disponíveis do que o português;
3º) a julgar pelo nível de vida desses países, se isso é viver em socialismo, talvez não seja uma ideia assim tão má.
PS: e se eles insistirem em falar da Irlanda, mandem-nos ler o que a OCDE diz sobre isso aqui.
1º) o valor das receitas do Estado em percentagem do PIB em Portugal é menor do que a média da UE;
2º) metade dos países da UE têm um Estado que gere uma parcela maior dos recursos disponíveis do que o português;
3º) a julgar pelo nível de vida desses países, se isso é viver em socialismo, talvez não seja uma ideia assim tão má.
PS: e se eles insistirem em falar da Irlanda, mandem-nos ler o que a OCDE diz sobre isso aqui.
Houston, we really have a problem
Com a maior dispersão de votos nas eleições do passado domingo (a par das alterações na distribuição do número de deputados nos círculos do continente) e continuando a não existir um círculo nacional de compensação, o número de boletins depositados nas urnas, mas que não contam rigorosamente nada para eleger deputados, aumentou de forma significativa face a 2015. De facto, passou-se de cerca de 470 mil votos «inúteis» (9,4% dos votos válidos, a rondar os 5 milhões), para 626 mil (que representam 13,4% dos cerca de 4,7 milhões de votos válidos).
Estando o sistema eleitoral desenhado para favorecer os maiores partidos, este défice de representação atinge hoje patamares inaceitáveis em vários círculos, onde ir votar e não votar PS ou PSD significa, na prática e de antemão, um voto deitado ao lixo. Com efeito, o peso da votação em partidos que não elegem à escala do círculo (e que não é recuperada através de um círculo de compensação), chega a superar os 30% em casos como o de Beja, Évora e Portalegre (onde a maioria dos votos não contam para eleger), registando-se ao mesmo tempo um aumento da proporção de votos «desperdiçados» em praticamente todos os círculos (com a exceção de Lisboa, cujo valor desce para 4%, e do Porto, que se mantém nos 7%).
Dada a distribuição de votos por partidos de menor dimensão nos círculos mais pequenos (onde se elegem apenas entre 2 a 3 deputados), é de admitir que uma parte significativa do eleitorado ainda não se tenha apercebido que o seu voto (quando não «entregue» aos maiores partidos) é um voto inútil para a distribuição de assentos no Parlamento. Constatar esse facto será contudo apenas uma questão de tempo, pelo que importa dar prioridade máxima à criação de um círculo de compensação nacional, que reconheça o efetivo valor democrático de cada voto e que ajude a travar, também por esta via, o aumento da abstenção.
Estando o sistema eleitoral desenhado para favorecer os maiores partidos, este défice de representação atinge hoje patamares inaceitáveis em vários círculos, onde ir votar e não votar PS ou PSD significa, na prática e de antemão, um voto deitado ao lixo. Com efeito, o peso da votação em partidos que não elegem à escala do círculo (e que não é recuperada através de um círculo de compensação), chega a superar os 30% em casos como o de Beja, Évora e Portalegre (onde a maioria dos votos não contam para eleger), registando-se ao mesmo tempo um aumento da proporção de votos «desperdiçados» em praticamente todos os círculos (com a exceção de Lisboa, cujo valor desce para 4%, e do Porto, que se mantém nos 7%).
Dada a distribuição de votos por partidos de menor dimensão nos círculos mais pequenos (onde se elegem apenas entre 2 a 3 deputados), é de admitir que uma parte significativa do eleitorado ainda não se tenha apercebido que o seu voto (quando não «entregue» aos maiores partidos) é um voto inútil para a distribuição de assentos no Parlamento. Constatar esse facto será contudo apenas uma questão de tempo, pelo que importa dar prioridade máxima à criação de um círculo de compensação nacional, que reconheça o efetivo valor democrático de cada voto e que ajude a travar, também por esta via, o aumento da abstenção.
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
Isto não é propaganda
Para quem é simpatizante do PCP, os resultados eleitorais foram amargos. Este vídeo é uma resposta política pronta e que adoça um pouco. Contrasta com o estilo de propaganda durante a campanha e indica, com genuinidade e proximidade, como o grau de enraizamento social, de classe, é, para lá de questões de identidade, o elemento central da maior ou menor força do partido, tendo em conta, por exemplo, que comunista praticamente não entra na comunicação social.
Este enraizamento é associativismo, movimento sindical, poder local democrático, intelectual colectivo, hegemonia. É organização confiante dos subalternos, quando hoje quase tudo conspira para a sua desorganização desconfiada, para a sua invisibilização.
Este enraizamento é análise do capitalismo semi-periférico em Portugal e das suas contradições específicas, é proposta pragmática, capaz de dar os toques de política com impactos estratégicos neste contexto histórico, mas também é slogan apropriado e propaganda eficaz por essas velhas e novas redes afora; é imaginação de um outro país, de uma ideia de comunidade soberana, capaz de fazer mover gente comum. É cultura no sentido mais amplo e profundo da palavra.
E é, claro, avaliação da relação de forças em cada momento, filosofia da conjuntura, para usar uma expressão famosa. É autonomia estratégica, o que não se confunde com auto-suficiência. É recusa de geringonças, de modismos, respeitando as palavras e os seus significados. Mas também é capacidade de identificar novas forças, temas, contradições, sendo fiel a uma certa ideia de unidade democrática que mergulha na história e que tem de ser permanentemente reinventada: MUD, CDE, governo de esquerda.
É talvez disto, que é complexo e logo é mais do que adição, que se há-de fazer o partido mais forte. E haverá mais. Como estou convencido que o PCP é condição necessária para qualquer alternativa digna desse nome para este país, espero que consigam definir a melhor estratégia para estes tempos. A história por cá não terminou, até porque o PCP também não.
Este enraizamento é associativismo, movimento sindical, poder local democrático, intelectual colectivo, hegemonia. É organização confiante dos subalternos, quando hoje quase tudo conspira para a sua desorganização desconfiada, para a sua invisibilização.
Este enraizamento é análise do capitalismo semi-periférico em Portugal e das suas contradições específicas, é proposta pragmática, capaz de dar os toques de política com impactos estratégicos neste contexto histórico, mas também é slogan apropriado e propaganda eficaz por essas velhas e novas redes afora; é imaginação de um outro país, de uma ideia de comunidade soberana, capaz de fazer mover gente comum. É cultura no sentido mais amplo e profundo da palavra.
E é, claro, avaliação da relação de forças em cada momento, filosofia da conjuntura, para usar uma expressão famosa. É autonomia estratégica, o que não se confunde com auto-suficiência. É recusa de geringonças, de modismos, respeitando as palavras e os seus significados. Mas também é capacidade de identificar novas forças, temas, contradições, sendo fiel a uma certa ideia de unidade democrática que mergulha na história e que tem de ser permanentemente reinventada: MUD, CDE, governo de esquerda.
É talvez disto, que é complexo e logo é mais do que adição, que se há-de fazer o partido mais forte. E haverá mais. Como estou convencido que o PCP é condição necessária para qualquer alternativa digna desse nome para este país, espero que consigam definir a melhor estratégia para estes tempos. A história por cá não terminou, até porque o PCP também não.
A culpa é da falta de "liberdade económica". A sério?
Desde a década de noventa privatizaram quase tudo o que havia para privatizar - empresas industriais, bancos, seguradoras, empresas de transportes e de energia, até o tratamento de resíduos.
Liberalizaram o sistema financeiro e a circulação de capitais, resultando no aumento explosivo do endividamento privado.
Desregulamentaram por três vezes as leis do trabalho, facilitando os despedimentos, os horários flexíveis e os contratos atípicos.
Escancararam as portas aos privados na saúde e na educação.
Abdicaram de uma moeda própria, deixando o financiamento do Estado nas mãos de especuladores internacionais.
Agora vêm dizer que o mau desempenho da economia portuguesa nas últimas décadas se deve a falta de "liberdade económica" e ao excesso de intervenção do Estado. A sério?
Liberalizaram o sistema financeiro e a circulação de capitais, resultando no aumento explosivo do endividamento privado.
Desregulamentaram por três vezes as leis do trabalho, facilitando os despedimentos, os horários flexíveis e os contratos atípicos.
Escancararam as portas aos privados na saúde e na educação.
Abdicaram de uma moeda própria, deixando o financiamento do Estado nas mãos de especuladores internacionais.
Agora vêm dizer que o mau desempenho da economia portuguesa nas últimas décadas se deve a falta de "liberdade económica" e ao excesso de intervenção do Estado. A sério?
terça-feira, 8 de outubro de 2019
Manuela Silva
Faleceu a economista Manuela Silva. Faleceu uma notabilíssima economista política e moral. Este blogue curva-se perante a memória de uma economista cidadã de planos ousados e rigorosos, encarnando sempre, mas sempre, a opção pelos mais pobres, prática infelizmente rara numa disciplina cada vez mais ao serviço dos mais ricos.
O ISEG, onde ensinou, publicou uma nota biográfica, escrita por Carlos Farinha Rodrigues, um dos discípulos desta pioneira dos estudos sobre pobreza e desigualdade no nosso país:
“O legado da intervenção de Manuela Silva, como economista, como professora Universitária e como católica profundamente marcada pela doutrina social da igreja, marcou profundamente o ISEG, os seus alunos e os colegas com quem trabalhou. A sua visão de uma economia ao serviço das pessoas, a necessidade de um desenvolvimento socioeconómico sustentado e inclusivo permanece como um dos pilares da missão do ISEG e, em particular, do ensino aqui ministrado”.
Adenda. A Associação Portuguesa de Economia Política emitiu um comunicado, lembrando, entre outros aspectos da vida rica de Manuela Silva, o facto de ter sido Presidente do 2º Encontro de Economia Política que teve lugar em Coimbra a 1 e 2 de Fevereiro de 2019.
O ISEG, onde ensinou, publicou uma nota biográfica, escrita por Carlos Farinha Rodrigues, um dos discípulos desta pioneira dos estudos sobre pobreza e desigualdade no nosso país:
“O legado da intervenção de Manuela Silva, como economista, como professora Universitária e como católica profundamente marcada pela doutrina social da igreja, marcou profundamente o ISEG, os seus alunos e os colegas com quem trabalhou. A sua visão de uma economia ao serviço das pessoas, a necessidade de um desenvolvimento socioeconómico sustentado e inclusivo permanece como um dos pilares da missão do ISEG e, em particular, do ensino aqui ministrado”.
Adenda. A Associação Portuguesa de Economia Política emitiu um comunicado, lembrando, entre outros aspectos da vida rica de Manuela Silva, o facto de ter sido Presidente do 2º Encontro de Economia Política que teve lugar em Coimbra a 1 e 2 de Fevereiro de 2019.
Arrogância e desplante
O novo deputado da Iniciativa Liberal João Cotrim de Figueiredo (JCF), formado pela London School of Economics e com um MBA na Universidade Nova de Lisboa, ex-dirigente do Turismo de Portugal convidado pelo então secretário de Estado do CDS Adolfo Mesquita Nunes, foi ao programa da RTP Prós & Contras com a arrogância dos novos partidos.
E afirmou que Portugal tem estado a crescer a um nível medíocre e que ninguém explica porquê.
Disse ele:
E afirmou que Portugal tem estado a crescer a um nível medíocre e que ninguém explica porquê.
Disse ele:
JCF: O mundo mudou nestes 45 anos não tem qualquer tipo de paralelo porque os partidos não mudaram nestes 45 anos. Portanto estão a deixar passar ao lado...
Fátima Campos Ferreira: E o que é que os novos partidos vão trazer de novo?
JCF: Desde logo este desassombro de dizer "não há com certeza grandes sancionamentos e grandes vitórias da Geringonça nestas eleições". Depois, dentro da nossa dimensão (...) pôr as ideias liberais na agenda política e fazer com que, à nossa pequena escala, os portugueses tenham menos medo da mudança e vontade de segurar aquilo que têm hoje. Porque aquilo que têm hoje - podem não ter noção disso - mas é medíocre. Nos últimos 20 anos, Portugal cresceu menos de 1% em termos reais, foi ultrapassado por 8 ou 9 países no PIB per capita da zona euro, somos o antepenúltimo país mais pobre. Eu não percebo por que não se faz mais a pergunta e por que é que não é respondida: os outros são melhores em quê? (...) os portugueses são tão bons como os melhores, mas têm um sistema que os abafa e que os impede de ser tão bons como deviam e mereciam ser.E ele nem percebe - ou não sabe - que desde a década de 80 se estão a aplicar as ideias que ele diz defender. E que foram essas ideias que, precisamente, nos fizeram estar onde estamos, a crescer de forma medíocre e sendo um dos países mais pobres. Em que país é que João Cotrim de Figueiredo viveu?
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
Portugal já não é excepção
Portugal já não é excepção. A extrema-direita populista (Chega, IL) entrou na Assembleia da República.
Com a legitimidade política adquirida, a extrema-direita alcança uma acrescida visibilidade que lhe permitirá crescer mais. A TVI e a TVCorreio da Manhã vão certamente promovê-la e, para não perderem audiência, o resto das TVs irá atrás. Afinal, a comunicação social é hoje um negócio e a RTP também não anda longe desta lógica mercantil.
A extrema-direita continuará a crescer se não a atacarmos na raiz, secando o húmus que a alimenta, e isso faz-se eliminando as causas do mal-estar que lhe dá votos.
Para mim, era evidente que isto ia acontecer porque o governo da 'geringonça' foi apenas um paliativo para uma degradação sócio-económica e moral que, vinda lá de trás, foi dramaticamente aprofundada com a troika.
Na comemoração dos 45 anos do 25 de Abril, fiz um discurso que identifica as causas desta crise da democracia. Leiam o texto todo (aqui).
sábado, 5 de outubro de 2019
sexta-feira, 4 de outubro de 2019
Convergências à esquerda e revitalização da democracia parlamentar
A solução política encontrada em 2015 - com a celebração dos acordos entre o PS, BE, PCP e PEV - traduziu-se não só no fim da ideia do «arco de governação», associada à impossibilidade de uma «solução governativa suportada pelo conjunto da esquerda», mas também numa revalorização da instituição parlamentar e, nesse sentido, da própria democracia e do debate democrático.
No quadro europeu, e sobretudo nos países do sul (bastante mais afetados pela crise financeira e sujeitos, em grau diferenciado, a programas de austeridade), Portugal é o que melhor recupera a confiança no seu Parlamento. De facto, após uma quebra do peso relativo dos que afirmam confiar na instituição parlamentar (de 40% para 15%, entre finais de 2009 e meados de 2013), atingem-se a partir de 2016 (e sobretudo até 2018), valores de confiança a rondar os 38%. Ou seja, bem acima dos valores registados em Itália (20%), Espanha (17%) e Grécia (14%). Aliás, Portugal chega a superar, neste período, o valor médio registado à escala da UE, na ordem dos 35%. Isto é, a uma escala em que quase não são percetíveis os efeitos das políticas de austeridade na confiança dos cidadãos face à instituição parlamentar.
A solução política encontrada em 2015, de um governo do Partido Socialista com apoio parlamentar da maioria de esquerda formada pelo PS, BE, PCP e PEV, criou de facto as condições para uma partilha inédita da ação governativa, no âmbito da qual se intensificou e qualificou o debate político e a procura de consensos e convergências, no respeito pela identidade política de cada um. Ou seja, um processo que seguramente não é alheio à melhoria da imagem, e da confiança dos cidadãos, na Casa da Democracia.
No quadro europeu, e sobretudo nos países do sul (bastante mais afetados pela crise financeira e sujeitos, em grau diferenciado, a programas de austeridade), Portugal é o que melhor recupera a confiança no seu Parlamento. De facto, após uma quebra do peso relativo dos que afirmam confiar na instituição parlamentar (de 40% para 15%, entre finais de 2009 e meados de 2013), atingem-se a partir de 2016 (e sobretudo até 2018), valores de confiança a rondar os 38%. Ou seja, bem acima dos valores registados em Itália (20%), Espanha (17%) e Grécia (14%). Aliás, Portugal chega a superar, neste período, o valor médio registado à escala da UE, na ordem dos 35%. Isto é, a uma escala em que quase não são percetíveis os efeitos das políticas de austeridade na confiança dos cidadãos face à instituição parlamentar.
A solução política encontrada em 2015, de um governo do Partido Socialista com apoio parlamentar da maioria de esquerda formada pelo PS, BE, PCP e PEV, criou de facto as condições para uma partilha inédita da ação governativa, no âmbito da qual se intensificou e qualificou o debate político e a procura de consensos e convergências, no respeito pela identidade política de cada um. Ou seja, um processo que seguramente não é alheio à melhoria da imagem, e da confiança dos cidadãos, na Casa da Democracia.
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Para lá da jardinagem
Chico Mendes, sindicalista-ambientalista brasileiro, assassinado em 1988, terá dito um dia que “ambientalismo sem luta de classes é jardinagem”.
Na acção de massas da passada sexta-feira, surgiu com força a ideia de que a luta ecológica tem de colocar a questão da superação do capitalismo, um sistema fossilizado. Como bem sublinhou Vítor Dias, o Público teve dificuldades ideológicas em lidar editorialmente com estes insolentes “aprendizes de Lenine”, para retomar a expressão do seu assustado director, substituindo o contestado capitalismo por um potencialmente anódino consumismo na sua primeira página (em contradicção com o título da notícia no sítio do jornal e, já agora, com o título da página interior do jornal em papel no sábado, onde a palavra maldita aparecia).
Realmente, precisamos de uma política ecológica anti-capitalista, centrada na classe trabalhadora e, pelo menos, em reformas radicais, em modo de um Green New Deal visto como parte de uma transição sistémica. Embora tenha por referência os EUA, Matt Huber dá-nos boas indicações gerais sobre os contornos de tal política de crítica e de proposta num artigo que merece ser traduzido.
Em primeiro lugar, esta abordagem enfatiza a “responsabilidade de classe pela crise ecológica”, dada a crucial lógica de controlo sobre o processo produtivo capitalista, por oposição a uma narrativa em que todos somos responsáveis enquanto meros consumidores mais ou menos nivelados, ofuscando as razões pelas quais poucos têm muito mais do que necessitam e muitos têm muito menos.
Abordar a questão pelo decrescimento genérico é um beco ideológico e político. O decrescimento está para as questões ambientais como o RBI está para as sociais. O que tem de ser deliberadamente expandido e o que tem de ser contraído em termos de sectores económicos, quem deve poder melhorar e quem tem de regredir materialmente?
Em segundo lugar, como sublinha, Huber, a abordagem que tem de ser favorecida centra-se nos sistemas de provisão vitais para vida de classes trabalhadoras – alimentação, habitação, energia, saúde ou transportes – defendendo a soberania alimentar, parte de desglobalização mais vasta dos circuitos económicos, ou a socialização dos sistemas de provisão cruciais. Sem segurança social, não há transição que nos valha.
No fundo, só com alterações profundas nas relações sociais de propriedade e nas formas de coordenação económica, é possível enfrentar a questão climática.Para já não falar da crucial questão da moeda que é crédito e do seu controlo e direcção.
Tudo isto exige uma mobilização social que não pode ser hegemonizada por sectores burgueses mais ou menos esclarecidos e bem-intencionados. Neste contexto, é bom saber que a nossa CGTP não anda a jardinar.
quarta-feira, 2 de outubro de 2019
Obsessão por números, má análise política e ditadura da novidade
Vamos mesmo continuar a discutir o efeito dinâmico da sondagem diária do JN, obtida apenas com uma renovação de 150 inquiridos por dia numa amostra total de 600 pessoas? As preferências dos eleitores podem ser mas voláteis durante o período da campanha eleitoral, mas é impossível que apresentem flutuações tão grandes de dia para dia.
Ao longo do tempo, a variação dos números de uma sondagem é sempre resultado da convergência de dois efeitos: o efeito da margem de erro e o efeito da evolução efetiva das preferências eleitorais. Por se tratar de um período de tempo tão curto, a evolução diária é provavelmente mais fruto da margem de erro da sondagem (que, já agora, é a maior de todas as sondagens, ultrapassando os 4%) do que da mudança do padrão eleitoral. Dito de outra forma: para distinguirmos uma mudança do padrão eleitoral do efeito da margem de erro temos de aguardar alguns dias. Dizer que um partido "caiu 0,5% nas eleições de voto" de um dia para o outro não significa nada.
Analisar flutuações diárias é um exercício espúrio. De tudo isto só se pode retirar uma conclusão: a análise política relevante não se compagina com a ditadura da novidade e da "última hora" imposta pelas televisões e pelos jornais online. Se querem dizer alguma coisa a partir das sondagens diárias, digam isto.
Ao longo do tempo, a variação dos números de uma sondagem é sempre resultado da convergência de dois efeitos: o efeito da margem de erro e o efeito da evolução efetiva das preferências eleitorais. Por se tratar de um período de tempo tão curto, a evolução diária é provavelmente mais fruto da margem de erro da sondagem (que, já agora, é a maior de todas as sondagens, ultrapassando os 4%) do que da mudança do padrão eleitoral. Dito de outra forma: para distinguirmos uma mudança do padrão eleitoral do efeito da margem de erro temos de aguardar alguns dias. Dizer que um partido "caiu 0,5% nas eleições de voto" de um dia para o outro não significa nada.
Analisar flutuações diárias é um exercício espúrio. De tudo isto só se pode retirar uma conclusão: a análise política relevante não se compagina com a ditadura da novidade e da "última hora" imposta pelas televisões e pelos jornais online. Se querem dizer alguma coisa a partir das sondagens diárias, digam isto.
Da representação democrática (IV)
À semelhança do exercício para as Legislativas de 2011, a conversão em lugares dos «votos desperdiçados» traduz-se, para as Legislativas de 2015, numa composição parlamentar distinta da que resulta do atual sistema eleitoral, mais limitado em termos de uma efetiva representação democrática. Isto é, adotando para o continente uma aproximação à lógica do círculo único (e não de circunscrições eleitorais distritais), e mantendo os critérios de representação nos círculos regionais (Açores e Madeira) e da Europa e de Fora da Europa, obtém-se uma representatividade partidária bem mais próxima da votação expressa nas urnas.
De facto, e tal como em 2011, a tendência é a de que os dois maiores partidos percam deputados (5 no caso do PS e 9 no caso do PSD, com o CDS-PP a perder 2 deputados pela circunstância de concorrer pela PAF), verificando-se um reforço do PCP-PEV (em 3 deputados), do Bloco de Esquerda (em 6 deputados) e do PAN (em 2 deputados). Ao que acresce a entrada de 3 deputados do PDR e de 2 deputados do PCTP/MRPP.
Em termos mais gerais, e para se ter uma melhor noção dos entorses democráticos que resultam do atual sistema eleitoral, assente em círculos distritais e gerador de um número muito significativo de votos que não contribuem para a eleição de deputados (quase 500 mil, em 2015, para um universo de votos válidos a rondar os 5 milhões), refira-se ainda que o bloco central (PS e PSD) perderia 14 deputados e a direita parlamentar 11 assentos, para além do reforço do PCP-PEV, BE e PAN, e da entrada de 5 deputados de partidos que não conseguiram representação parlamentar. Mantendo-se o sistema eleitoral como está, veremos no próximo dia 6 que contornos assumem estes enviesamentos.
De facto, e tal como em 2011, a tendência é a de que os dois maiores partidos percam deputados (5 no caso do PS e 9 no caso do PSD, com o CDS-PP a perder 2 deputados pela circunstância de concorrer pela PAF), verificando-se um reforço do PCP-PEV (em 3 deputados), do Bloco de Esquerda (em 6 deputados) e do PAN (em 2 deputados). Ao que acresce a entrada de 3 deputados do PDR e de 2 deputados do PCTP/MRPP.
Em termos mais gerais, e para se ter uma melhor noção dos entorses democráticos que resultam do atual sistema eleitoral, assente em círculos distritais e gerador de um número muito significativo de votos que não contribuem para a eleição de deputados (quase 500 mil, em 2015, para um universo de votos válidos a rondar os 5 milhões), refira-se ainda que o bloco central (PS e PSD) perderia 14 deputados e a direita parlamentar 11 assentos, para além do reforço do PCP-PEV, BE e PAN, e da entrada de 5 deputados de partidos que não conseguiram representação parlamentar. Mantendo-se o sistema eleitoral como está, veremos no próximo dia 6 que contornos assumem estes enviesamentos.