quarta-feira, 30 de novembro de 2011

2008, mas pior?

A dívida alemã foi hoje transaccionada, por momentos, a juros negativos . Os agentes de mercado estão, portanto, dispostos a "pagar" para deter dívida alemã. Em tempos de incerteza radical, os fluxos financeiros afluem aos activos que percebem como tendo menos risco. O mesmo se passou com os títulos de tesouro norte-americanos no auge da turbulência financeira em 2008.

O que também se passou nessa altura foi a dificuldade do capital financeiro europeu conseguir financiamento em dólares. Hoje, um conjunto (estranhamente) vasto de bancos centrais intervieram, concedendo linhas de crédito em dólares, capazes de desbloquear o actual "congelamento" do financiamento. Mais uma vez, escasseiam as análises na imprensa portuguesa. Para quem quiser perceber melhor o que se está a passar, escrevi há uns tempos sobre o assunto. O gráfico abaixo deve ser comparado com o que forneci então. Parece que voltámos a 2008.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

É sistémica

Rui Tavares assinala, na sua crónica de ontem no Público, que as análises «sistémicas» são as que permitem compreender uma crise que foi sempre do euro e que só se começa a superar com a sua reforma profunda, cada dia mais improvável, ou com o seu fim. Nem todos os «sistémicos» são de esquerda, mas não pode haver análise de esquerda sobre esta questão que não seja sistémica. As análises moralistas, nacionalmente autocentradas, só serviram para justificar a austeridade e a a intensificação da neoliberalização das periferias, ou seja, o alastrar da crise. Estas foram acompanhadas por uma sempre medíocre psicologia dos povos, as «preferências» do centro e da periferia de um Vítor Bento, por exemplo, que favorecem intelectualmente a ditadura de Merkozy, de que falou Freitas ontem. Os moralistas olham para um gráfico sobre a posição de investimento, sobre os activos e passivos dos vários países, e concluem pela virtude do centro, face à irresponsabilidade de uma periferia a controlar. Deixo um excerto de um artigo que escrevi recentemente onde enquadro os desequilíbrios, tentando evitar moralismos, ou seja, imoralidades:

Na literatura de economia política crítica há muito que a natureza assimétrica da integração europeia, consolidada com o euro, está identificada, bem como o «neoliberalismo disciplinar» que dela resulta. De facto, os Estados democráticos prescindiram de atributos centrais da sua soberania, como a moeda e a possibilidade de recorrerem ao financiamento por parte do seu Banco Central, transferindo-os para instituições europeias muito menos democráticas e perdendo instrumentos vitais de política orçamental ou industrial nesse processo, até porque à escala da União não foram criados instrumentos adequados de compensação. Apenas existe moeda única sem orçamento, fiscalidade e dívida pública comuns; regras do mercado interno que impedem políticas industriais nacionais de protecção; liberdade dos capitais, que beneficiou em especial o capital financeiro e as fracções mais extrovertidas do capital industrial, que passaram a poder arbitrar entre distintos regimes sociais e laborais, favorecendo a sua erosão. Estas são algumas das expressões da assimetria que as instituições europeias se encarregaram de acentuar.

Os países que participaram neste processo tinham distintos pontos de partida em termos de apetrechamento económico e distintas correlações de forças sociais; distintas variedades de capitalismo, em suma. Não admira que tenham reagido de forma diferenciada a este processo de integração. Vários mecanismos e forças trabalharam assim para a consolidação de uma fractura económico-política: países do «Norte» com superávites permanentes na sua balança corrente a que tinham de corresponder, dadas as relações equilibradas com o exterior da Zona, países do «Sul» com défices estruturais. A integração monetária, com a desaparição do risco cambial e a liberalização financeira associada, favoreceu e alimentou o correspondente afluxo de capitais do «Norte» para o «Sul», sob a forma de financiamento essencialmente privado e intermediado por bancos ainda com imbricações nacionais, até porque as suas actividades são garantidas pelos Estados, como a crise haveria de revelar. A hipótese dos mercados eficientes, segundo a qual os preços dos activos incorporam toda a informação relevante, dominante entre os decisores políticos durante o período, legitimou este processo de endividamento, descrevendo-o como a resposta globalmente racional dos agentes económicos às novas condições criadas por um euro que teria relaxado, ou mesmo eliminado, as restrições que impendiam sobre as balanças de pagamentos nacionais e que assim favoreceria a convergência.

A história encarregar-se-ia de demonstrar a inanidade desta tese e os custos que as periferias europeias teriam de pagar por terem abdicado da capacidade de controlar as suas economias, assim imitando, em novos e mais intensos moldes, o padrão de que tantos países do «Sul Global» já tinham sido vítimas: liberalização financeira, afluxos de capitais, bolhas especulativas oleadas por um endividamento numa moeda que não se controla, sobreapreciação cambial, crise, problemas de financiamento e os tais «rígidos programas de estabilização» impostos pelos credores. Estando os ajustamentos cambiais ausentes por definição, a Zona Euro, como assinalou Yannis Varoufakis, reproduz de forma acentuada um dos problemas da economia mundial: a inexistência de um mecanismo automático decente de «reciclagem dos excedentes» que permita gerir e atenuar os desequilíbrios nas relações económicas internacionais, incluindo através do apoio ao relançamento e apetrechamento dos países deficitários necessitados, já que os mercados financeiros liberalizados sempre se revelaram incapazes de desempenhar essa função, gerando antes uma grande crise, que, tal como a de 1929, tenderá a vitimar os processos de integração monetária internacional que se revelem demasiado rígidos: o padrão-ouro no século anterior, o euro neste.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Influência

A OCDE, um dos think-tanks internacionais mais influentes na formação do consenso neoliberal, que ainda há uns meses andava a exigir subidas das taxas de juro, vejam lá, e a mesma inane austeridade, vem agora rever em baixa as previsões para a Zona Euro. Portugal não escapa por causa, olha a surpresa, dos impactos recessivos da austeridade e da falta de dinamismo da procura externa, obra da austeridade dos outros. De resto, prescreve-se ainda mais austeridade para o país, se tal for preciso. É o círculo vicioso, alimentado a ideologia, em que estão trancados e em que nos trancam. Uma recessão prevista de 3,2% e um desemprego a ultrapassar os 14% não os demovem. As ideias contam para o bem e, no caso das que ainda são hegemónicas, para o mal.

domingo, 27 de novembro de 2011

Fim dos liberalismos?

A The Economist está num daqueles momentos excepcionais, que caracterizam os liberais quando se atrevem, os que se atrevem, a contemplar o desastre das suas prescrições e a promover uma retirada para o terreno mais pragmático de um outro enquadramento político dos mercados, com medidas pensadas para tentar travar os principais encadeamentos depressivos gerados pela acção inconsciente das forças do capital financeiro. Estas forças conduzem ao inevitável fim de um euro que foi pensado para as fomentar. As medidas propostas hoje pela sabedoria convencional passam por: acção decidida do BCE, cortando taxas de juro, injectando liquidez, comprando títulos de dívida pública em larga escala, agindo como credor de último recurso; arremedo de euro-obrigações, já que as verdadeiras teriam de ser emitidas/garantidas por uma instituição europeia como o BCE, tendo como troca do arremedo inviável, porque garantido por Estados sem soberania monetária, um maior controlo alemão dos processos políticos nacionais, formalizando e consolidando relações de dominação. A The Economist tem consciência dos efeitos perversos de uma austeridade que, no fundo, lá reconhece que há que superar. É claro que continua a alinhar pelas reformas ditas estruturais, desenhadas para aumentar as desigualdades e a canibalização dos recursos públicos, embora a revista em que todos os artigos parecem escritos pela mesma pessoa se aperceba das "manias, pânicos e crises" deste sistema financeiro liberalizado. Que querem? Não se muda de ideologia de um dia para o outro. Trata-se tão só de assegurar a estabilidade macroeconómica do processo em curso, mobilizando o Estado bombeiro possível e mudando estruturalmente o menos possível. Esta publicação liberal vê mais longe dos que os antigos e actuais eurocratas do bloco central que escrevem artigos colectivos, mas estamos perante medidas insuficientes e de difícil concretização política. O tempo dos liberalismos pragmáticos, já passou, mesmo que a sabedoria convencional não se aperceba disso.

Ler João Martins Pereira

Depois do colóquio/evocação, que teve lugar sexta e sábado, toda a obra publicada de João Martins Pereira (1932-2008) está a partir de agora disponível no sítio do Centro de Documentação 25 de Abril. Pensar Portugal hoje, título do seu primeiro livro de 1971, implica sempre tentar responder a questões económico-políticas, tendo em atenção a nossa "dupla dependência de Bruxelas e do sistema mundial", de que falava o autor do que é talvez mais importante trabalho sobre economia política do socialismo publicado em Portugal - Sistemas Económicos e Consciência Social, de 1980: "O que são as nossas classes dirigentes? De onde vêm? De onde lhes vêm os 'ideais democráticos'? Como procuram articular o poder político com o económico? De que condições dispõem para conseguir uma efectiva 'hegemonia' (Gramsci)?" Podem ler também o ensaio de Manuela Cruzeiro sobre o livro onde estas questões são colocadas, sobre os tais falsos avestruzes que ainda dominam, mais de 25 anos depois, a nossa vida pública.

sábado, 26 de novembro de 2011

Mitos europeus

João Pinto e Castro contribui para desmontar o mito do "grande estadista europeu" personificado por Delors, um dos arquitectos deste euro disfuncional e uma das figuras que mais contribuiu para o esvaziamento do socialismo europeu, processo com mais de duas décadas, da viragem de 180º na política de Mitterrand, momento a partir do qual a esquerda social-democrata se tornou protagonista principal da liberalização financeira, até ao seu papel no grande salto em frente numa construção europeia assimétrica de matriz neoliberal. Ele e outros grandes estadistas da altura forjaram Maastricht, onde muitos dos actuais problemas europeus têm origem. Ainda recentemente, em artigo no Público, lá vinha Delors, o inevitável advogado de negócios Vitorino e mais uma catrafada de ex-eurocontentes do bloco central europeu, gente que nos dizem que devemos levar muito a sério, com um artigo no Público a apelar ao aprofundamento da lógica do mercado interno, com a extensão da liberalização a novos sectores, acompanhada de austeridade nacional, mitigada por um reforço do Banco Europeu de Investimento para legitimar as outras desgraças. O mesmo de sempre, com mudanças na margem, que estão muito longe do que é necessário.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Ainda a recapitalização da banca

Já por várias vezes se denunciámos a situação de favor de que a banca beneficiou neste pais. Mas aqui chegados, anda muito mal quer a esquerda que apoia o governo nesta capitalização da banca, quer a esquerda que é contra a capitalização sem mais. Ou seja toda a esquerda é infeliz, mas por razões diferentes. A única posição decente é reconhecer que a banca precisa de capital e que só o Estado o pode facultar, via empréstimo externo. E isso é urgente.

O plano de recapitalização está mal desenhado. Dá um prazo de um ano para os bancos poderem, eles próprios, desalavancar os seus balanços e melhorar os seus rácios. O resultado é o previsível, menos crédito num ano em que a economia precisa dele como pão para a boca. A recapitalização por parte do Estado deveria ser, por isso, imediata e obrigatória, de forma a permitir uma concessão mais fluida de crédito.

Por outro lado, segundo o memorando de entendimento com a troika, o papel do Estado estará resumido ao de um accionista silencioso. Pelo contrário, há que garantir que o Estado é um accionista com plenos poderes de gestão desde o primeiro dia. As vantagens de ter o Estado como accionista activo são inúmeras: do maior controlo sobre o crédito e sua direcção ao acesso à informação sob o andamento da economia. Permitiria assim uma melhor regulação deste sector crucial porque o crédito, é preciso não esquecê-lo, é uma relação de informação, poder e confiança.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Richard Wilkinson: o vídeo


A que já fizemos referência aqui e no qual Wilkinson sugere que a prosperidade de um país decorre da existência de uma relação dialética - de mútuo benefício - entre crescimento económico e equidade social, contrariando assim as teses que defendem que o combate às desigualdades apenas pode ter lugar depois de se alcançar uma situação de crescimento da economia (coisa que, em regra, nunca é reconhecida, ficando sempre postergada para as calendas gregas).

(Com um agradecimento à Joana Lopes, pela ajuda na colocação desta versão legendada em português, que a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida produziu).

Depende de nós: greve geral

Elogio da Dialéctica

A injustiça avança hoje a passo firme
Os tiranos fazem planos para dez mil anos
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração;
isto é apenas o meu começo

Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos

Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca
De quem depende que a opressão prossiga? De nós
De quem depende que ela acabe? Também de nós
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.


Bertolt Brecht

Greve geral

«Ontem, foi a luta por uma democracia que representasse o interesse das maiorias sem voz; hoje, é a luta por uma democracia que, depois de parcialmente conquistada, foi esventrada pela corrupção, pela mediocridade e pusilanimidade dos dirigentes e pela tecnocracia em representação do capital financeiro a quem sempre serviu. Ontem, foi a luta por alternativas (socialismo) que as classes dirigentes reconheciam existir e por isso reprimiam brutalmente quem as defendesse; hoje, é a luta contra o senso comum neoliberal, massivamente reproduzido pelos media subservientes, de que não há alternativa ao empobrecimento das maiorias e ao esvaziamento das opções democráticas.
Em geral, podemos dizer que a greve geral na Europa de hoje é mais defensiva que ofensiva, visa menos promover um avanço civilizacional do que impedir um retrocesso civilizacional. É por isso que ela deixa de ser uma questão dos trabalhadores no seu conjunto para ser uma questão dos cidadãos empobrecidos no seu conjunto, tanto dos que trabalham como dos que não encontram trabalho, como ainda dos que trabalharam a vida inteira e vêem hoje as suas pensões ameaçadas. Na rua, a única esfera pública por enquanto não ocupada pelos interesses financeiros, manifestam-se cidadãos que nunca participaram em sindicatos ou movimentos nem imaginaram manifestar-se a favor de causas alheias. De repente, as causas alheias são próprias.»

(Do artigo de Boaventura de Sousa Santos, na Visão de 17 de Novembro. Na imagem, a pintura em serapilheira de Antonio Berni, «Manifestación», de 1934)

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Combater o imperialismo é ser nacionalista?


No contexto do debate em torno da estratégia para a esquerda nos tempos que correm, a posição que defende a saída de Portugal da zona euro (e que tem sido assumida por vários autores deste blogue) tem sido por vezes apelidada de “soberanista” e “nacionalista” – epítetos que, além de estarem carregados de conotações sinistras, pretendem sugerir uma equivocada cedência às ficções do “interesse nacional” em detrimento de uma perspectiva de classe. Quero aqui argumentar que esta adjectivação é enganadora e não beneficia o debate. Sendo certo que a discussão em torno da desejabilidade ou não da saída do Euro por parte das periferias europeias – e de Portugal em particular – é uma questão complexa, na medida em que envolve incerteza a diversos níveis, é também certo que existem bons argumentos de parte a parte que devem ser discutidos seriamente, dispensando-se artifícios retóricos que obnubilem a avaliação das implicações das diversas propostas e opções.

Será evidente para quase todos à esquerda que esta União Europeia tem o neoliberalismo no seu ADN – do défice democrático que a caracteriza à promoção da corrida para o fundo entre estados em matéria de fiscalidade e direitos laborais. O que talvez não seja tão evidente para todos é o carácter intrinsecamente imperialista do euro enquanto projecto político-económico. O euro é uma criação das elites europeias que, mais do que facilitar as trocas comerciais na Europa ou eliminar o risco cambial nas transacções entre agentes nos diferentes estados-membros, visa: i) concorrer com o dólar norte-americano como numerário, forma de reserva de valor e meio de troca a nível mundial; ii) apoiar o processo de expansão do capital europeu para fora da zona euro; e iii) instalar um mecanismo intra-europeu de repressão adicional dos direitos e conquistas dos trabalhadores. Em suma, constitui um mecanismo de promoção da expansão geográfica e social do capital europeu – ou, dito de outra forma ainda, um mecanismo de promoção do imperialismo europeu.

Para que este desígnio original se concretize efectivamente, algumas das características do funcionamento desta moeda e desta zona monetária, que habitualmente são apresentadas como perversidades secundárias ou defeitos conjunturais, são na verdade absolutamente centrais e necessárias – a clara sobrevalorização face ao exterior (a "moeda forte”), por exemplo; ou a tendência estrutural para a emergência e ampliação de défices na periferia e superavites no centro, abrindo a porta ao desenvolvimento do subdesenvolvimento a que essa mesma periferia está a ser sujeita.

Repensar desta forma aquilo que é a natureza da moeda única europeia permite sublinhar que a defesa da saída do euro como opção política à esquerda não tem como objectivo único, ou sequer principal, permitir uma desvalorização cambial que permita reequilibrar a balança de transacções correntes - por mais que esse reequilíbrio seja legítimo e necessário. Muito mais importante do que isso, visa combater – e idealmente contribuir para desmantelar - um dos principais mecanismos de expansão e dominação do capital centro-europeu. Não se pretende alcançar ganhos de importância marginal para a “economia portuguesa” à custa dos trabalhadores de outros países, mas sim começar a libertar os trabalhadores e classes populares portugueses e dos outros países do jugo de uma armadilha político-económica que é profundamente iníqua e que está institucionalmente blindada.

O verdadeiro debate que aqui está em causa não é, por isso, entre nacionalismo e internacionalismo, mas sim ao nível de qual deverá ser a arena preferível, do ponto de vista da eficácia e das implicações, para as esquerdas europeias desenvolverem a sua acção e a sua luta. O internacionalismo é um princípio geral fundamental, mas não é um dogma táctico ou estratégico. O argumento de quem defende a saída do euro é que o caminho para o internacionalismo deverá passar, nas circunstâncias presentes, por rejeitar o euro enquanto projecto imperial e por privilegiar a luta na arena de cada um dos estados nacionais. Não por nacionalismo, mas por opção estratégica no combate ao euro-imperialismo.

A emissão falhada da dívida alemã

Os "mercados" financeiros podem não conseguir influenciar o preço (juro) da dívida alemã por falta de músculo. Mas podem simplesmente abandonar os activos denominados em euros, mesmo aqueles que parecem mais seguros. Hoje, a Alemanha só conseguiu colocar 65% da dívida que foi a leilão. Tal não quer dizer que Alemanha vá entrar numa crise da dívida, mas é um sinal grave para a restante zona euro. Os acontecimentos precipitam-se.

Trabalho


[A] redução dos subsídios e do período por eles coberto redunda apenas no abaixamento da capacidade contratual dos "empregáveis" e poderá levar muitos deles a aceitar postos de trabalho com salários degradados (...) Por um lado, alinham-se estímulos à criação de desemprego, e portanto ao aumento do contingente já imenso dos sem trabalho. É o embaratecimento dos despedimentos; é o aligeiramento das exigências relativas ao despedimento por inadaptação (…) Por outro, impõem-se medidas cujo efeito necessário é a redução das oportunidades de emprego: embaratecimento do trabalho suplementar; incremento da utilização de regimes de flexibilidade de horários, banco de horas, etc. E, sempre nessa direcção, surgiu ainda mais tarde o aumento dos períodos normais de trabalho. Resumindo: mais desempregados, menos oportunidades de emprego (…) Finalmente, a política salarial: congelamento do salário mínimo, retoma da fixação de normas salariais gerais por concertação social, encurtamento da sobrevigência das convenções colectivas. O salário mínimo português é, em paridade de poder de compra, o mais baixo da zona euro e ainda inferior ao da Eslovénia e de Malta (números do Eurostat) (…) [S]e tomarmos, como amostra, a evolução real média dos salários convencionais nos anos 2004-2008 - anos de "regabofe", de "despesismo", etc. –, encontraremos Portugal em 21.º lugar entre os países da União Europeia, com 0,3% ao ano (…) O conjunto das medidas alinhadas na parte "laboral" do "memorando" assenta na ideia de que em Portugal se trabalha de menos e se ganha demais. Pouco interessa se a relativamente baixa produtividade do trabalho se deve às opções produtivas e aos critérios de gestão das empresas.

Excerto do importante artigo do especialista em direito laboral da área socialista António Monteiro Fernandes – A austeridade laboral segundo a troika – que saiu ontem no Público. Falta apenas dar um pequeno passo e dizer que o desemprego é um problema de procura e do seus atrofiamentos permanentes pela estagnação, crise e resposta austeritária, fundamentalmente associadas à nossa inserção dependente nesta economia global e neste euro disfuncionais, e que não pode haver ninguém de esquerda, ninguém civilizado, que aceite a intensificação da mercadorização do trabalho, que aceite esta chantagem. A greve geral é, no fundo, a resposta de um país que não aceita o desenvolvimento do subdesenvolvimento. É que o fundamental da economia política de um país é decidido no mundo das relações laborais: quem se apropria do quê e porquê?

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Em Defesa da Dignidade, do Trabalho e do Estado Social, Apoiamos a Greve Geral



O último ano tem sido marcado por uma catadupa de decisões políticas atentatórias das condições de vida dos cidadãos e dos serviços e apoios sociais arduamente conquistados ao longo da história, criando uma situação que é tão mais gravosa quanto ocorre num quadro de progressivo desemprego e recessão económica.

É o caso dos cortes unilaterais nos salários dos trabalhadores do Estado, da apropriação fiscal de grande parte do subsídio de Natal dos trabalhadores e pensionistas, do corte dos subsídios de Natal e de férias dos trabalhadores do sector público e dos pensionistas que, tal como o aumento do horário laboral no sector privado, estão previstos para o próximo ano, da substancial diminuição do financiamento ao Serviço Nacional de Saúde e à educação pública, ou da restrição do acesso ao subsídio de desemprego e a outras prestações sociais.

No entanto, estas opções políticas não se limitam a agravar as condições de vida dos trabalhadores, pensionistas e suas famílias, fazendo até perigar a própria subsistência de muitos deles em condições minimamente dignas.

Essas decisões são tomadas em nome do reequilíbrio das contas públicas e da necessidade de servir a dívida. No entanto, devido à recessão que já provocam e irão aprofundar, não permitirão sequer atingir esses objectivos. Dessa forma, ao sofrimento imposto a milhões de pessoas e à injustiça na repartição dos custos, vem somar-se a consciência da inutilidade de tais sacrifícios.

Mais ainda, as medidas tomadas no âmbito das políticas de “ajustamento” constituem uma brutal subversão do contrato social que permitiu à Europa libertar-se, após a II Guerra Mundial, da endémica incerteza e insegurança de vida dos seus cidadãos e, com base nisso, assegurar vivências mais dignas, uma maior equidade e níveis de paz social e segurança colectiva sem paralelo na sua história.

Ao subverterem a credibilidade e a segurança jurídica da contratação laboral e sua negociação, ao esvaziarem e restringirem os elementos de Estado Social implementados no país (pondo com isso em causa o acesso dos cidadãos à saúde, à educação e a um grau razoável e expectável de segurança no emprego, na doença, no desemprego e na velhice), essas opções políticas, apresentadas como se de inevitabilidades se tratasse, reforçam as desigualdades e injustiças sociais, abandonam os cidadãos mais directamente atingidos pela crise, e criam as condições para que a dignidade humana, os direitos de cidadania e a segurança colectiva sejam ameaçados pela generalização da incerteza, do desespero e da ausência de alternativas.

Por essas razões, os cientistas sociais signatários reafirmam que os princípios e garantias do Estado Social e da negociação consequente dos termos de trabalho não são luxos apenas viáveis em conjunturas de crescimento económico, mas sim condições básicas da dignidade e da existência colectiva, que se torna ainda mais imprescindível salvaguardar em tempos de crise. São, para além disso, elementos essenciais de qualquer estratégia credível para ultrapassar a crise e relançar o crescimento económico.

Num quadro de fortes limitações orçamentais, esse imperativo societal requer a reversão das crescentes assimetrias na distribuição de riqueza entre capital e trabalho, designadamente através da utilização de uma substancial e mais equitativa tributação dos lucros e mais-valias como fonte do reforço de financiamento dos serviços e prestações sociais.

Sendo as opções governativas em curso (e em particular a proposta de OGE 2012) contrárias a estas necessidades e atentatórias da dignidade humana e da segurança colectiva, os cientistas sociais signatários apoiam a Greve Geral convocada pela CGTP-IN e a UGT para o próximo dia 24 de Novembro, apelando aos seus concidadãos para que a ela adiram.

Tratando-se embora de uma acção a nível nacional, os signatários saúdam também esta Greve Geral como um momento do combate europeu contra as políticas de austeridade e de regressão social, a favor de mudanças na política europeia que coloquem no centro os cidadãos, o crescimento económico, o desenvolvimento e a defesa da Europa Social e da democracia.

(Apelo à adesão à Greve Geral de 24 de Novembro, subscrito por 128 cientistas sociais portugueses ou a trabalhar em e sobre Portugal.)

Ponto de situação

Os juros de curto prazo da dívida espanhola atingiram hoje novos recordes (5%) na emissão de dívida a três meses. Espanha é aquele país com uma dívida pública em percentagem do PIB inferior à Alemanha, que, até 2008, tinha consecutivos superávites orçamentais, indicando como a posição orçamental está dependente do ciclo económico.

A narrativa da irresponsabilidade orçamental para a crise na periferia já não cola. Espanha junta-se assim à Itália, cujos juros nos títulos a 10 anos estão agora nos 6,6% (6,55% para Espanha) no mercado secundário. No entanto, tudo parece diferente entre estes dois países. Espanha tem uma dívida pública relativa ao PIB que é quase metade do tamanho da italiana. Espanha cresceu na passada década, à conta de uma bolha no sector imobiliário é certo, enquanto Itália estagnou. Como podem estes dois países enfrentar os mercados financeiros em igualdade de circunstâncias? O que Espanha e Itália têm em comum (e que, já agora, partilham com Portugal e Grécia) é a perda de competitividade externa desde que entraram no euro, traduzida em constante degradação das suas contas externas (défices cada vez maiores). E aqui os papéis invertem-se: graças à sua capacidade industrial instalada, Itália tem sofrido um agravamento do défice externo mais lento do que o da restante periferia. Concluindo, será que agora podemos abandonar o moralismo das contas públicas e começar a perceber que esta crise é uma crise do euro?

Por mais que se queira ignorar esta realidade, se ela não entra pela porta, entra pela janela. Assim, o que se tornou agora evidente é a incapacidade institucional europeia para conseguir lidar com esta crise. O fundo europeu não tem capacidade para acorrer a estes países, enquanto o BCE parece apostado na defesa da sua linha Maginot (a inflação), não se dando conta que, dentro em breve, estará a defender o valor de uma moeda que não existe (esta expressão é do Paul Krugman, que eu, qual diletante, roubei). Fala-se, entretanto, de uma intervenção musculada do FMI, financiada pelo BCE. A seguir com atenção.

Olhar

Christine Lagarde foi, enquanto Ministra das Finanças francesa, uma das inspiradoras da austeridade europeia generalizada, mas com muito especial incidência nas periferias, os novos laboratórios para experiências neoliberais de desvalorização social. A consolidação orçamental expansionista para aplacar mercados e entreter elites subalternas era uma das ficções liberais em 2010. Agora é a realidade da austeridade recessiva, o mundo dos efeitos keynesianos: uma recessão como a de 2008 "está a desenvolver-se perante os nossos olhos", diz Lagarde. Em Portugal, será bem pior do que em 2008-2009 (a recessão prevista para 2012 já vai nos 3%, para uma irrealista taxa de desemprego de 13,5%, tudo destinado a ser revisto na mesma direcção de sempre), graças aos olhos bem fechados de elites europeias e nacionais para os problemas do desenvolvimento do subdesenvolvimento que este euro e as políticas económicas nele inscritas estão a gerar. Os olhos estão apenas bem abertos para todas as oportunidades que o enfraquecimento das capacidades colectivas gera para uma minoria.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

João Martins Pereira

Para um grande número de leitores fiéis, de colegas de profissão e de companheiros das muitas causas com as quais se foi envolvendo ao longo da vida, João Martins Pereira (1932-2008) permanece como uma referência da oposição de esquerda ao Estado Novo durante os anos 60 e 70. Pensador inconformista de uma intervenção política que entendia como igualitária e democrática, engenheiro de formação e de profissão, ensaísta atento, governante efémero, jornalista acidental, escritor de causas, estudioso da história do capitalismo português e de economia industrial, fez parte do grupo de fundadores do Movimento de Esquerda Socialista (MES) e independente obstinado, marxista heterodoxo e não dogmático e ainda, no que repetia ser a sua convicção mais funda, um sartreano radical.

O objectivo deste Colóquio, ao qual se encontra associada uma Exposição evocativa de JMP concebida por Susana Paiva a partir do espólio pessoal que a sua família depositou no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, tem uma dimensão tríplice. Pretende, em primeiro lugar, funcionar como um espaço de divulgação e de discussão da obra extensa, complexa e multifacetada de João Martins Pereira; visa depois debater, numa perspectiva histórica, política e filosófica, os temas que mais o interessaram e as décadas de grandes transformações da sociedade portuguesa das quais foi empenhado intérprete e comentador; e finalmente procura prestar, no momento em que passam três anos sobre o seu desaparecimento, uma homenagem ao homem e ao intelectual, brilhante e corajoso, que como poucos soube no seu tempo conjugar a cidadania activa com uma reflexão serena e prospectiva.


O programa do colóquio/evocação, que tem lugar na sexta-feira e no sábado em Lisboa, está aqui.

Não resulta

O novo governo espanhol, eleito ontem, pede aos mercados que lhe concedam "ao menos meia hora" para dar início à austeridade com que espera tornar o país mais competitivo, diminuindo as suas importações e aumentando as suas exportações. Mas há um problema: o principal destino para as exportações espanholas é a França, cujo governo quer importar menos. E o terceiro destino das exportações espanholas é Portugal, cujo governo quer, além de "empobrecer o país", importar menos e exportar mais. Ora, o primeiro destino das exportações portuguesas é Espanha, cujo governo quer importar menos e exportar mais. Expliquem-me como é suposto que isto dê resultado.

Rui Tavares, Público de hoje

domingo, 20 de novembro de 2011

Portas abertas e por abrir

O ritmo deste governo é sobretudo marcado por duas vocações que a história revelará estarem articuladas: a ideologia e os negócios. Relvas deputado terá ajudado a abrir portas no Brasil para negócios do BPN. Agora, há portas por abrir em Portugal: privatizações, ou seja, acumulação transnacional por apropriação de recursos públicos a preços de saldo. Quem quiser compreender a econonomia política da neoliberalização realmente existente, para lá das ficções dos ideólogos, tem de seguir as portas que se vão abrindo por aí fora. Este é o tempo em que tudo vende e tudo se compra. É também o tempo da captura geral. É por isto que a exigência da auditoria cidadã é importante para o país, mas insuportável para o poder dominante.

A desvalorização cambial é um ataque ao salário?

Devido aos crónicos défices externos (não confundir com défices públicos) portugueses, que estão na origem da actual crise, e cujo peso no PIB se torna imperativo reduzir, tem havido alguma confusão sobre a forma como os debelar. Sem o instrumento da desvalorização cambial, a estratégia do Governo (e da troika) é clara: reduzem-se salários de forma a tornar as nossas exportações mais baratas e reduzir o consumo de importações. Abstraindo-me da formidável redistribuição regressiva que tal significa, os resultados são conhecidos: deflação, recessão, desemprego, destruição de capacidade produtiva e manutenção do défice externo em relação ao PIB (o défice diminui, mas o PIB também). Contudo, quiçá devido à forma como o debate económico tem sido enquadrado em Portugal, a discussão de uma desvalorização cambial, num cenário de saída do euro, é demasiadas vezes apresentada como uma forma diferente de se atingir a mesma coisa: cortar salários. Não é.

Vou abstrair-me de todas as implicações que uma política monetária autónoma, articulada com política orçamental e industrial, pode ter na promoção do crescimento económico social e ambientalmente progressista, amiúde convenientemente ignorada. Não pretendo aqui discutir as vantagens e desvantagens de uma saída do euro, mas apenas cingir-me ao estreito campo do debate cambial, que está longe de esgotar o debate monetário, onde uma desvalorização cambial é entendida como puro ataque ao salário.

1- Este ponto devia ser desnecessário, no entanto não o é... Se observamos uma desvalorização cambial de, por exemplo, 30%, as importações ficam 30% mais caras. Contudo, como é evidente, isso não significa um crescimento da inflação em 30%, porque felizmente não consumimos só importações. Um país fortemente dependente de importações como a Islândia, depois de a sua moeda desvalorizar quase 50%, registou uma inflação média anual de 12%. Fazer uma identidade entre a dimensão da desvalorização cambial e a desvalorização salarial não faz sentido. O debate sobre o salário deve portanto ser feito no campo da inflação e não na desvalorização (a não ser que se ganhe na moeda nacional e se viva no estrangeiro).

2- Muitas das empresas que produzem em Portugal estão fortemente dependentes de importações para a sua produção. No entanto, um aumento de 30% do preço destas não significa um aumento dos seus custos em 30%, a ser transferidos para o preço final. Existem outros custos: trabalho e capital. Imaginemos que o custo do trabalho está indexado à inflação (como acontece em vários países europeus) e que, portanto, não existe qualquer perda de poder de compra. A inflação cresceria e os custos de trabalho aumentariam na mesma proporção. Contudo, como já expliquei, este aumento será sempre consideravelmente inferior ao da desvalorização cambial. Finalmente, qualquer empresa tem um stock de capital (máquinas, computadores, etc.) que não precisa de ser imediatamente renovado e que, portanto, não tem nenhum custo acrescido. A empresa terá assim custos maiores, mas a sua ponderação, mesmo sem qualquer perda salarial para os seus trabalhadores, permite-lhe ter uma estrutura de custos sempre inferior ao ganho de preço que consegue nos mercados internacionais (30%).

3- Ainda que os salários possam estar indexados à inflação, muitos bens importados tornar-se-iam mais caros em relação à média. Aqui há que distinguir dois tipos de bens importados: bens que podemos ou não produzir na mesma zona cambial. Por exemplo, como muito do que comemos é importado, o preço da alimentação aumentaria imediatamente, com impactos de classe assimétricos que não devem ser negligenciados. No entanto, o incentivo à produção agrícola local seria maior, procedendo-se assim a substituição de importações (com impactos evidentes no PIB e no emprego). Outros bens (por exemplo, automóveis ou papaias) dificilmente podem ser substituídos por produção nacional. O seu preço seria assim sempre muito mais alto do que o anterior à desvalorização. É o custo de uma desvalorização cambial com impactos não tanto no poder de compra do salário como um todo, mas sim no acesso mais custoso a determinados bens. Resta saber quais são os seus impactos redistributivos de forma a corrigi-los.

Conclusão: ao contrário do ataque directo aos salários, uma desvalorização cambial tem efeitos redistributivos indeterminados. Tudo depende sempre da correlação das forças sociais na determinação salarial. Com a desvalorização cambial diminui a tentação para se mexer naquilo que determina a prazo a correlação de forças: a legislação laboral, o nível de emprego, o Estado social, etc. É aqui que tudo se joga.

Economia política da desfaçatez

A desfaçatez das elites políticas dominantes não tem limites. Cavaco, o da “reforma do factor trabalho”, que nomeou um dos principais ideólogos da desvalorização salarial generalizada, Vítor Bento, como Conselheiro de Estado, rejeita a ideia de baixar salários no sector privado, embora a austeridade e as reformas ditas estruturais que apoia não façam outra coisa. O ex-super-ministro Álvaro, por sua vez, diz que o Estado não deve “interferir” nas negociações no privado. Isto está também em linha com as melhores ficções do liberalismo económico. Na realidade, o liberalismo é sempre um activismo político, por vezes mascarado por uma retórica naturalista de “deixar que as coisas sigam o seu curso nos mercados livres”, que é apenas a expressão de uma preferência pelo statu quo, mas apenas depois de alcançadas as vitórias políticas e as transformações institucionais desejadas, ou seja, depois das novas regras que enquadram os mercados dotarem as forças sociais dominantes de novos meios para o exercício do poder económico, facilitando assim a transferência de custos sociais para as classes trabalhadores, sob a forma de salários mais baixos ou de condições de trabalho mais inseguras. Enfim, a hipocrisia é a marca de um liberalismo dominante, mas inseguro. É que ainda vivemos em democracia, mesmo que limitada, e o esforço para instituir as ficções liberais prejudica muito os interesses e as aspirações da maioria.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Quem tem medo de uma auditoria à dívida?

A ofensiva austeritária tem sido protegida por um conjunto de cortinas de fumo, ardilosamente tecidas, que não só dificultam uma percepção clara e generalizada das evidências do seu fracasso como impedem uma discussão séria, aberta e democrática das alternativas para sair da crise.

Uma dessas cortinas é ideológica e materializa-se na capacidade de influência, nos espaços de decisão, de um pensamento económico que continua a sacralizar os mercados e que tem no neoliberalismo a sua mais eficaz e contundente expressão política. Uma segunda cortina de fumo, decisiva para assegurar a persistência da narrativa austeritária, forma-se no espaço comunicacional e traduz-se na sua colonização pelo discurso da inevitabilidade dos sacrifícios, que um coro disciplinado e monolítico de economistas se encarrega de repetir sem cessar, protegido do confronto de ideias e do pluralismo de opinião. Assegurado o domínio do espaço mediático, a terceira cortina ergue o muro da desinformação, transportando consigo a ofensiva contra o Estado, a protecção social e os serviços públicos de educação, saúde e transportes.

É este denso manto de ocultação e bloqueio que permitiu converter a crise financeira resultante da desregulamentação dos mercados numa crise das dívidas soberanas, criando a ilusão de que reside no Estado e na despesa pública a responsabilidade pela situação económica e social em que as periferias europeias se encontram. É no colo desta retórica que os cidadãos têm sido embalados, com a melodia inquinada do «viver acima das possibilidades», das «gorduras do Estado» e da engenhosa falácia de que este «consome» em demasia o que a economia produz. Como se as infraestrutruras e equipamentos públicos, a saúde, a educação, a segurança e a justiça não fossem igualmente economia e não beneficiassem, decisivamente, as condições necessárias ao funcionamento do sector privado. Como se o crescimento anémico da última década não fosse uma das causas centrais de um modelo económico assente no endividamento, enquadrado por uma moeda única que é interessante para a Europa desenvolvida, mas catastrófica para as economias do sul.

A auditoria cidadã à dívida é por isso um passo crucial para rasgar uma brecha de luz na atmosfera carregada das deturpações, encobrimentos, mitos e mentiras de que a narrativa austeritária necessita para se conseguir impor e sobreviver. Por imperativo elementar numa sociedade democrática, mas também por exigência basilar de transparência, há perguntas que não podem ficar sem resposta. Porque devemos e porque nos endividámos? A quem e quanto devemos? Que juros comportam as abnegadas «ajudas» que nos prometem a salvação? Quanto representam no total da dívida? Que parte deve afinal ser imputada aos serviços públicos, tomados de assalto pelos selváticos cortes orçamentais?

Quando o desconhecimento deliberado é a principal força do embuste austeritário, a exigência de verdade e transparência é a primeira arma para devolver à democracia o seu mais pleno sentido.

(Publicado originalmente na página da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida)

Leituras

A tradução não é famosa, mas é melhor do que nada: podem ler o sumário em português do último relatório do Research on Money and Finance, de que o Nuno Teles e a Eugénia Pires são co-autores, no resistir.info. Entretanto, vale a pena ler a crónica de Octávio Teixeira no Negócios sobre uma geometria monetária alternativa - "Sejamos realistas: ou há refundação do euro ou este implodirá."

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Significados

Passos demarca-se da recomendação da troika de cortar salários no privado. Aldrabice é o signifcado político de Passos. O significado de todas as políticas na área laboral e orçamental da correia de transmissão de Merkozy é o mesmo, ou seja, desvalorização salarial: cortes dos salários no sector público, uma referência para o sector privado, despedimentos mais fáceis e menos onerosos, aumentos gratuitos do horário de trabalho em meia hora por dia, promoção da precariedade, reduções dos montantes e da duração do subsídio de desemprego numa altura em que, graças às políticas de austeridade, o desemprego não cessa de aumentar. No novo dicionário de termos europeus este é também um dos principais significados deste euro.

Devedores e credores são co-responsáveis


Não deveria ser difícil perceber que para haver um devedor tem de haver um credor. Acontece que esta relação entre devedores e credores, interna e necessária, é sistematicamente ignorada por Merkel, pelos restantes líderes europeus e também pela esmagadora maioria dos jornalistas e comentadores que dominam o espaço mediático em Portugal.

Ocultar a relação umbilical entre os devedores e os credores da zona euro é condição essencial para que o discurso da culpabilização seja eficaz. Acontece que os saldos comerciais das economias da zona euro são determinados pelas estruturas produtivas que cada país desenvolveu, pela produtividade que as suas empresas conseguem alcançar, pela inflação estrutural que os caracteriza, pelas instituições e pela cultura que a sua história gerou.

Dito de uma forma abreviada, Grécia, Itália, Espanha e Portugal (a Irlanda é um caso muito específico) não têm economias que aguentem a concorrência dos produtos alemães e a abertura comercial desregulada aos produtos chineses. Consequentemente, as economias mais débeis da zona euro endividaram-se junto dos bancos das economias mais fortes. E estes promoveram activamente esse endividamento.
...

O euroliberalismo não reconhece que para haver um devedor tem de haver um credor e que ambos são responsáveis pelos desequilíbrios na zona euro. Por isso, mesmo que a Alemanha consiga pôr o BCE a financiar a Itália, a Espanha e os restantes países da zona euro, os desequilíbrios económicos estruturais que estão na raiz da presente crise permanecem. Como permanece o empobrecimento imposto aos devedores através de uma política económica errada e punitiva. Por quanto tempo, não sabemos, mas o golpe de misericórdia na ignorância e na crueldade institucionalizada acabará por chegar. Quanto mais cedo melhor.

(Do meu artigo no jornal i)

Faz-se tudo

A troika proclama, como a exploração no poema de Brecht, que isto é apenas o meu começo: “é desejável que os salários no sector privado sejam sustentadamente reduzidos, em linha com os cortes decididos para o sector público, recomenda a UE e o FMI.” Esta é a lógica implacável da austeridade e das alterações na legislação laboral associadas, das chamadas reformas estruturais, como temos vindo a defender há mais de um ano, e anda muito mal quem ainda não percebeu que não há outra lógica, equitativa, digna ou outro moralismo que queiram inventar para enfeitar uma austeridade intrinsecamente destrutiva dos rendimentos do trabalho e da economia. Parece que a troika ignorou um dos principais indicadores para avaliar do sucesso de uma política - o emprego. Na realidade, a troika promove o aumento do desemprego, já que este é um dos mecanismos principais para diminuir os salários. É o desenvolvimento do subdesenvolvimento que se organiza, sob tutela externa e com a correia de transmissão interna conhecida, ou seja, o governo e as forças sociais que este tem de servir: depois de uma reunião pela noite fora entre banqueiros e Passos, “Gaspar promete interferir ‘tão pouco quanto possível’ na gestão dos bancos intervencionados”. Faz-se de tudo para descansar o susceptível poder financeiro privado, que tão laboriosamente o poder politico reconstruiu e alimentou, com os lindos resultados conhecidos, nas últimas duas décadas; no fundo desde o ciclo de privatizações bancárias e de liberalização financeira iniciado por um Cavaco que sempre fez dos 12 mil milhões iniciais para a banca o foco da sua preocupação, procurando manter o sector financeiro nas mesmas mãos. Faz-se tudo. Até quando?

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Mau, mau...

Será que Passos Coelho foi de vez para Angola e a troica vai nomear um novo governador para a sub-sub-região portuguesa?

Como a desigualdade económica ameaça as sociedades


O João Rodrigues já fez referência neste blogue aos trabalhos de Richard Wilkinson e Kate Pickett (aqui e aqui, por exemplo), que têm vindo a reunir e relacionar um vasto conjunto de dados que demonstram - de modo muito impressivo - como as desigualdades na distribuição dos rendimentos têm profundos impactos sociais negativos, afectando transversalmente as sociedades do mundo desenvolvido.

Encontra-se agora disponível na página da TED (Technology, Entertainment, Design - Ideas worth spreading) um vídeo recente, absolutamente imperdível, de Richard Wilkinson, com legendas em português (que podem ser activadas na barra inferior), do qual foi extraído o gráfico que acima se reproduz (clicar para ampliar).

Demonstrando a existência de fortes correlações (e explorando a sua causalidade) entre os desníveis de distribuição do rendimento e o grau de intensidade com que se manifestam diferentes problemas e questões sociais (abandono escolar, violência, esperança de vida, peso percentual da população prisional, capacidade de mobilidade social e níveis de confiança, entre outras), Richard Wilkinson adianta uma conclusão que arrasa os fundamentos daqueles que sugerem - nos tempos negros que atravessamos - a necessidade de desmantelar o Estado e as políticas sociais públicas.

Diz Wilkinson: «O bem-estar médio das sociedades já não depende do rendimento nacional e do crescimento económico. Isso é muito importante em países mais pobres, mas não no mundo rico e desenvolvido», sustentando que o que verdadeiramente conta para minorar a intensidade e amplitude de disfunções sociais é a contenção das diferenças de rendimento e a existência de mecanismos eficazes de redistribuição de riqueza.

Auditoria cidadã

A Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública foi ontem apresentada em Lisboa. O José Maria Castro Caldas colocou a pergunta certa na apresentação: "Se o Estado incumpre com os pensionistas e os trabalhadores, por que deve cumprir escrupulosamente e até à exaustão todos os compromissos com os credores?"

Como se lê no sítio da iniciativa, trata-se de convocar uma “Convenção a ter lugar em Lisboa a 17 de Dezembro de 2011 que institua um processo de Auditoria Cidadã à Dívida Pública.” 274 cidadãos, entre as quais os autores deste blogue, subscrevem esta convocatória.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Em cima das possibilidades

Através de João Pinto e Castro, tomei conhecimento desta base de dados com os rendimentos no topo em vários países, incluindo Portugal. É o resultado do trabalho de um grupo de economistas – Facundo Alvaredo, Tony Atkinson, Thomas Piketty e Emmanuel Saez – que se tem destacado internacionalmente pelos estudos sobre as desigualdades. Bom, em Portugal, a avaliar pela evolução dos rendimentos dos tais 1%, agora com todo o poder, aplica-se a fórmula do bilionário norte-americano Warren Buffett, mas com adaptações – a luta de classes existe e a minha classe está a ganhá-la, embora tenha apanhado uns sustos a seguir ao 25 de Abril: é que as fases de democracia de alta intensidade não são boas para os rendimentos de quem está no topo…

Amarrar os pacientes

O federalismo não é, por natureza, uma coisa necessariamente boa nem necessariamente má. Tudo depende do significado, finalidade e substância que se lhe quiser conferir.

Quando Angela Merkel defende que «a missão da nossa geração é fazer sempre evoluir a Europa como união económica e transformá-la, passo a passo, numa real união política», não são com certeza as necessárias alterações na governação económica europeia que tem em mente (como a possibilidade de o Banco Central Europeu passar a emitir moeda ou a criação das condições para a existência de um verdadeiro orçamento europeu).

E também não estará decerto a pensar, pelo modo despudoradamente autocrático e impositivo com que tem gerido politicamente a crise, numa devolução da democracia europeia às suas próprias instituições e aos Estados membros.

Perante o avolumar do fracasso do moralismo austeritário, que se recusa a encarar, o que Merkel certamente pretende é consagrar nos tratados o aprofundamento dos desfalques iníquos na soberania dos Estados e ter mão, ainda mais firme e directa, sobre as democracias europeias. Como um médico que não aceita reconhecer o efeito contraproducente do tratamento que estipulou, a chanceler pretende agora amarrar os pacientes às suas camas, para lhes administrar sempre que for preciso - sem resistências nem contratempos - doses reforçadas do remédio que os está a matar.

Rankings, escolas e contextos (II)

No post anterior, procurei demonstrar como uma análise dos rankings que não esteja centrada nas escolas, mas sim nos contextos em que as mesmas se inserem, permite perceber a importância que estes assumem para explicar os resultados obtidos. Isto é, a tendência para que se atinjam melhores níveis de sucesso educativo em territórios com indicadores de desenvolvimento económico, social e cultural mais elevados.

O que se passa a nível concelhio verifica-se igualmente quando agregamos e ponderamos os dados à escala das NUTS III (clicar no mapa para ampliar). Mais uma vez, é a faixa do litoral Norte e Centro (da Grande Lisboa ao Minho Lima) que se destaca, estabelecendo um padrão espacial contínuo com os melhores resultados dos exames nacionais. Em contraste, portanto, com os valores registados na quase totalidade das NUTS do interior Norte e Centro e nas NUTS a Sul do Tejo (em média, o Norte e Centro litoral obtêm um resultado nos exames nacionais de 53,6%, registado as restantes NUTS III do país um valor médio de 49,7%).

A circunstância de os contextos sócio-espaciais determinarem em larga medida os resultados escolares permite-nos ainda assinalar uma razão incontornável (para além da selecção de alunos que a generalidade das escolas privadas pratica), para explicar as diferenças entre as classificações médias obtidas pelos estabelecimentos da rede pública (51,2%) e do ensino privado (59,4%).

De facto, se mapearmos a distribuição das escolas privadas e das escolas públicas pelas NUTS III do continente (clicar no mapa para ampliar), verificamos que o ensino privado se concentra justamente na faixa litoral Norte e Centro (onde se situam 80% dos colégios e escolas privadas). Ou seja, num conjunto de NUTS que oferece à partida, do ponto de vista dos contextos sócio-económicos de proveniência dos alunos, condições mais favoráveis para a obtenção de elevados níveis de sucesso escolar. Aliás, é na Grande Lisboa e no Grande Porto que se localiza quase metade (45%) do universo de escolas privadas. A rede de ensino público, por sua vez, apresenta uma distribuição territorial mais equilibrada, com apenas cerca de 56% dos seus estabelecimentos a localizar-se na faixa Norte e Centro litoral e somente 26% a situar-se na Grande Lisboa e no Grande Porto.

Além de desmontar o mito de uma suposta supremacia «genética» do ensino privado, esta análise permite assinalar um outro aspecto crucial, relativo à importância do princípio de cobertura territorial inerente aos serviços públicos e que desaconselha experimentalismos como o cheque-ensino. O direito à educação, que o Estado consagra e assegura através de uma rede territorial de estabelecimentos de ensino, não pode nem deve tornar-se dependente da existência de escolas cujo princípio de localização decorre demonstradamente mais do conforto que as «facilidades de contexto» para obter bons resultados propiciam do que da garantia de acesso à escola a todas as crianças e jovens do país.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A estupidez europeia já vem de trás


Desenvolvimento tecnológico, globalização económica, concepção do salário como um custo de produção, perspectiva microeconómica do desemprego, processo de liberalização e de financeirização da economia, todos estes factores são considerados determinantes na redução do peso dos salários no rendimento total que se verifica desde o início dos anos 80 e que constitui um aspecto marcante do modelo económico presente. Esta desvalorização relativa dos salários, pelo condicionamento do consumo privado que provoca, tem sido um elemento limitador na formação de expectativas económicas necessárias a níveis mais satisfatórios de investimento inovadores e de procura de trabalho qualificado. A Estratégia de Lisboa, pela arquitectura de políticas económicas escolhida, mostra precisamente como se gere e se assegura a desvalorização relativa dos rendimentos do trabalho e como esta constitui então um elemento limitador no desenvolvimento dos efeitos económicos esperados, e não alcançados, com políticas centradas no lado da oferta da economia.

Há lógica nesta estupidez

Hugo Mendes comenta assim a defesa, feita por Passo Coelho, do statu quo monetário que está a destruir a Europa: “Já sabíamos que temos um governo masoquista, que internaliza a narrativa da crise produzida pelos credores. Mas isto já não é masoquismo, é estupidez.” Há lógica em tudo isto: a crise é uma oportunidade e quanto mais intensa, mais essa oportunidade aumenta devido ao enquadramento europeu existente. Por isso, tudo o que diminua a pressão tem de ser recusado. Não se pode diminuir a oportunidade de ouro para destruir tudo o que resta, e já não é assim tanto, de progressista na economia política nacional. O acentuar da crise dá um ar de plausibilidade à narrativa sobre a insustentabilidade da segurança social; com o enquadramento certo, com os estudos certos por encomenda, até se pode dizer que o aumento do desemprego se deve ao aumento do salário mínimo ou à “rigidez” da legislação laboral. E por aí fora. Não se esqueçam: os instrumentos nacionais, que os governos controlam neste contexto europeu, são os que impendem sobre o trabalho, sobre o salário directo e indirecto, que assim é reduzido a um custo a conter, a uma mercadoria descartável. Há lógica, e com classe, nesta estupidez.

domingo, 13 de novembro de 2011

Golpes

As declarações de Otelo sobre golpes militares são uma farsa lamentável. Os golpes financeiros em curso em muitos países europeus, transformados em regiões na sua relação com a finança, e a correspondente subversão das ordens democráticas nacionais são a verdadeira tragédia. O apelo do intelectual do Pingo Doce, António Barreto, a um governo de unidade nacional para desmantelar em definitivo o Estado social, um dos pilares da democracia, perante o agudizar da crise insere-se nesta corrente: a crise é uma oportunidade que não se pode desperdiçar. Da segurança social ao salário mínimo, tudo pode ser posto em causa se se enquadrar bem a coisa. Entretanto, é claro para muitos que a democracia, já muito erodida, é incompatível com o chamado neoliberalismo disciplinar, com escala europeia e global, reforçado pela austeridade e esta incompatibilidade está a fazer-nos entrar, na ausência de contramovimentos, numa era pós-democrática que, no entanto, continua também a requerer investimentos intelectuais.

Papademos e Monti, dois membros da classe capitalista transnacional europeia, são então as últimas figuras políticas produzidas pelo golpe financeiro em curso. Chamam-lhes governos de “tecnocratas”. Esta expressão aparece associada a competência e eficácia, à ciência dos meios, mas quem fixa os fins não são os cidadãos. Aliás, fins e meios estão sempre de tal forma entrelaçados que não se sabe onde acabam uns e começam outros. Seja como for, são estes crentes no neoliberalismo, onde Gaspar e tantos outros se incluem, que, ironia da história, fragilizarão irreversivelmente a Zona Euro, a sua utópica construção, agora que é claro que a incompetente engenharia financeira que montaram e a sua escolha de política económica, feita em 2010, mas há muito inscrita na lógica das instituições europeias, só agravam a crise que conta e que não estava prevista nos seus manuais. Entretanto, esperam aproveitar para conseguir destruir tudo o que civilizou minimamente a economia nas últimas décadas. Uma utopia perigosa com poder gera sempre tempos perigosos.

sábado, 12 de novembro de 2011

À mesa

Vítor Bento – ministro-sombra das finanças, presidente da Sociedade Interbancária de Serviços (SIBS), conselheiro de Cavaco, quadro ausente, mas com mérito, do Banco de Portugal – declarou do alto da sua autoridade malthusiana que “não vai haver lugar para todos à mesa no novo contrato social”.

Algumas fracções do capital terão sempre lugar garantido no tal contrato que rompe o laço social, claro. Os pobres podem esperar migalhas da mesa, já que as selectivas políticas para pobres são sempre pobres políticas, políticas residuais desenhadas para perpetuar as desigualdades, a pobreza, a punição e todos os preconceitos de classe, ao contrário das políticas universais, que são as únicas decentes porque com potencial político redistributivo. De resto, reparem na consistência global de um dos ideólogos da vitoriosa estratégia de redução dos salários. Pouco interessa que o diagnóstico seja inválido. O que interessa é alcançar a hegemonia. Esta é facilitada por um dualismo que procuro descrever em artigo publicado no Le Monde diplomatique – edição portuguesa:

Registou-se um dualismo cada dia mais insustentável: a liberalização e a privatização foram acompanhadas e legitimadas por uma desigual modernização dos padrões de consumo, oleada pelo endividamento entre os grupos mais desafogados, e pela manutenção do Estado social, mesmo que ainda longe dos padrões europeus. A variedade medíocre de capitalismo que se consolidou, puxada pelo euro, é incompatível com o Estado social e são agora poderosas as forças sociais nacionais e europeias que querem resolver esta incompatibilidade através da destruição do último, em vez de se modernizar a economia, o que requereria outro enquadramento europeu.

A conclusão é clara: este euro é o outro nome da derrota histórica de um projecto de desenvolvimento inclusivo, da derrota do mundo do trabalho organizado, da derrota da esquerda.

Economia com futuro?

No futuro, os historiadores serão por certo severos em relação ao papel desempenhado pela Economia nos acontecimentos que estamos a viver.

Refiro-me não à Economia no seu melhor, plural e aberta ao debate e à reflexão crítica, mas à Economia monolítica que se separou da ética e da política para se transformar numa “ciência dos meios” ao serviço de finalidades que são tomadas como inevitáveis e, por isso, não são discutidas. Refiro-me à Economia que para ser “ciência” se tornou afinal uma aritmética desumana, cujos teoremas tendem a favorecer invariavelmente políticas convenientes a minorias privilegiadas.

Os historiadores analisarão em detalhe esta estranha “ciência”. Olharão para a inverosímil “teoria dos mercados eficientes” nascida em Chicago nos anos 60 do século passado para servir de fundamento à Nova Arquitectura Financeira – desregulada e tóxica - que levou o mundo à beira do abismo; deter-se-ão nas utopias do fim da história e da geografia e na liberdade dos capitais sem contrapartida na liberdade das pessoas; espantar-se-ão com a insistência nas terapias de austeridade como solução em contextos recessivos e verificarão que essas terapias aprofundaram a crise no preciso momento em que ela dava sinais de abrandamento. Falarão, em suma, da estranha sobrevivência de teorias estranhas, contra todas as evidências, e da responsabilidade das ideias preconceituosas na produção de acontecimentos adversos.

Se tivermos sorte, os historiadores do futuro reservarão uma nota de pé de página para os economistas e outros cientistas sociais que antes e depois destes acontecimentos exprimiram a sua divergência com esta Economia e que procuraram, muitas vezes sem sucesso, preservar o pluralismo e as condições de debate quer na academia quer no espaço público; que defenderam e praticaram uma ciência económica aberta tanto à consideração das finalidades e valores que vale a pena prosseguir quanto à descoberta dos melhores meios para os realizar.

Excerto da intervenção do José Maria Castro Caldas na abertura da Conferência Economia com Futuro. Foi publicada, em versão alargada, no Le Monde diplomatique - edição portuguesa deste mês.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Respostas

Nuno Teles, economista da RMF (Research on Money and Finance), pensa que a única instituição para resgatar a Itália é o BCE, actuando como credor de último recurso na compra ilimitada de obrigações italianas. Pensa que isso poderá acabar por acontecer, mas não exclui um cenário de desagregação do euro.

Podem ler as respostas do Nuno às três perguntas que Sérgio Anibal do Público lhe fez aqui.

É o que dá os estados serem unidos...


Esta é a evolução da taxa de juro das obrigações do tesouro dos EUA a 10 anos nos últimos anos (via Paul Krugman). É o que dá ter tudo o que a Zona Euro não tem: poder político federal, orçamento federal com peso, dívida pública da federação, um banco central mais próximo do que deve ser esta instituição central a uma economia monetária de produção. A integração assimétrica europeia é inviável porque os estados vão sendo reduzidos ao estatuto de regiões, tendo perdido instrumentos de política soberana sem que esses instrumentos tivessem sido reconquistas à escala relevante, que é a da moeda. Como afirmou recentemente Yanis Varoufakis, as crises põem em causa as engenharias monetárias liberais mais extremas: padrão-ouro no século anterior, euro neste...

Leituras

«Na narrativa neoliberal as coisas são simples: gastámos de mais, a culpa é nossa e é preciso pagar em dinheiro e contrição. Quem nos empresta é nosso amo e devemos-lhe a nossa alma, uma libra de carne viva e a suspensão da democracia. Precisamos de menos serviços públicos para gastar menos, de privatizações porque o Estado precisa de dinheiro e não sabe gerir, de mais desemprego para poder baixar salários e de reduzir as regalias dos pobres porque incentivam a preguiça. Depois, se fizermos isso tudo, os deuses apiedam-se de nós, as empresas começam a ganhar dinheiro a sério e recomeçam a contratar trabalhadores e podemos viver um bocadinho melhor - mas não tão bem como antes, nem com tanta educação e saúde pública porque era um desperdício. No fim, os serviços públicos ficam reduzidos à sua ínfima expressão e os ricos podem viver felizes para sempre. E não há nenhuma injustiça social nisto porque se um pobre quiser ser rico só tem de trabalhar muito e pronto.»

 José Vítor Malheiros

«Uma frase curta com a qual nos têm martelado os ouvidos, como afirmação supostamente mordaz para justificar tudo aquilo que de mau nos está a acontecer, declara que «é preciso acabar com o regabofe». A frase é incómoda e perigosa porque tem sempre um sentido unívoco. Com ela se pretende indicar que ao longo das últimas décadas as pessoas comuns tiveram direitos a mais, uma qualidade de vida que não se justificava, educação e saúde exageradamente acessíveis, transportes ao preço da uva mijona, férias preocupantemente longas, uma estabilidade no trabalho que só lhes fez mal à inteligência e aos músculos. Que passaram demasiado tempo a passear, a comer refeições completas, a tomar banhos de mar, a ler romances, a namorar, a programar futuros melhores para si e para os seus filhos. Porém, aquilo que pretende significar quem se serve da expressão não é que tais práticas fossem intrinsecamente más, indubitavelmente escusadas e fonte incontornável do pecado. É que não foram as pessoas certas a fruí-las.»

Rui Bebiano

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Euro letal

Uma Zona Euro mais pequena “seria mortal para a Alemanha”, declarou hoje o porta-voz do partido de Angela Merkel, Michael Meister. Parece-me que este é um alemão como uma boa percepção do seu próprio interesse.

O problema é que uma zona euro grande, boa para a Alemanha exportadora, isto é, a zona euro tal como existe, é mortal para nós e para mais meia Europa.

Temos então aqui um problema. Gente sensata sentava-se para negociar antes que fosse tudo pelos ares. Mas para que houvesse negociação era preciso que aqueles para quem esta zona euro é mortal recusassem a submissão à outra parte e se articulassem em propostas comuns de refundação da zona euro.

No entanto, aqueles para quem esta zona euro é mortal – a começar pelos portugueses - não têm quem os represente nesta negociação. Na prática, somos todos governados já, pela “outra parte”.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Aldrabices dos donos

A lata dos banqueiros não tem fim. Depois de terem contribuído para provocar a intervenção externa com a sua aberta pressão política, tratam agora de escrever à Comissão Europeia a fazer queixinhas das tímidas condições que o governo quer propor para a capitalização da banca, comparando-a a nacionalizações de boa memória, que puseram fim ao esteio económico do fascismo. Não há comparação possível até porque o Estado troikista terá de ser um parceiro silencioso nos três próximos anos, ou seja, para sempre, prometendo não exercer direitos de voto e fazendo apenas vagas exigências de fiscalização, através de um representante em órgãos de administração ou de fiscalização, de concessão de crédito e de limitação de alguns dos abusos remuneratórios entretanto registados, mas sem mexer nos abusos da distribuição de dividendos. Continua a ser muito pouco para tanto dinheiro público que será canalizado para um sector tão especial.

Dizem os bancos que as suas dificuldades são devidas à dívida soberana, ao malvado Estado. Quem é que os obrigou a comprar dívida soberana, beneficiando das diferenças de juros face ao BCE? Mas isto nem sequer é rigoroso: a sua muito recente fragilidade financeira deve-se sobretudo à fragilidade das famílias e empresas geradas por uma austeridade que os banqueiros exigiram, mas que só gera aumentos do crédito mal parado, insolvências. Isto para não falar da forma, cada vez mais clara, como os bancos usaram e abusaram da assimetria de poder e de “literacia financeira” na sua relação com quem se dirige aos seus balcões, perante a complacência de reguladores. Entretanto, sigamos os conselhos dos Bessas desta vida – cortar ainda mais nos rendimentos – e veremos o que acontece.

Mas as aldrabices de financeiros pouco recomendáveis não têm fim: ontem Ricardo Salgado, em entrevista a Pedro Santos Guerreiro do Negócios, declarava, entre outros dislates interesseiros, que a banca estava a ajudar o Estado com as transferências dos fundos de pensões para a segurança social, que assim contribuem para diminuir o défice. A banca alivia-se das suas responsabilidades futuras, mostrando como a gestão privada das pensões não é a solução de que precisamos, transferindo-as para o Estado e ainda chama a esta transferência de custos ajuda ao Estado. Estamos perante os mais eficazes operacionais políticos da economia portuguesa, um sector que sabe bem como capturar o Estado e monopolizar o debate para fazer valer os seus interesses.

Por isso, não sei se hei-de rir ou chorar quando Pedro Santos Guerreiro associa a tímida presença do Estado à entrada da porca da política na banca. Isto num sector económico intrinsecamente político, um sector que tem comandado a economia política nacional e que continuará a comandar se depender deste governo. Esta suposta tensão com o governo só serve para fazer passar a socialização dos prejuízos em curso. Pedro Santos Guerreiro usa Vara, um personagem quase irrelevante, como metáfora do Estado, só para distrair, como se a cortina de fumo não fosse já densa. Por cada Vara, eu tenho um Oliveira e Costa para a troca. E conhecerá Pedro Santos Guerreiro actores políticos mais relevantes do que Ulrich ou Salgado? E se o público fosse constituído só por Varas, por que é os accionistas do BCP os foram buscar à Caixa? E como poderia funcionar uma banca que acaba sempre por depender do Estado, se este fosse composto só por Varas? E, já agora, os problemas principais da Caixa não terão o nome BPN e a sua captura parcial por interesses privados, isto para não falar da crise geral? E não é isto que é precisamente de evitar, através de um aumento do controlo político democrático sobre este sector tão crucial, nacionalizando de facto, nomeando gestores competentes e que respondam perante o poder político, perante a ideia de uma banca mais parecida com um serviço público de crédito? O que haverá melhor do que descobrir como aplicar a seguinte fórmula: nem um só tostão sem controlo e gestão, a bem do interesse cidadão? Sim, a banca é uma questão de toda a economia e, por isso, de cidadania.