Publicado no Arrastão
domingo, 31 de outubro de 2010
Orçamento à Lapa
PS e PSD chegaram a acordo, como se sabia desde sempre. A encenação não enganou ninguém. A austeridade ficou apenas um pouco mais assimétrica. Os 390 milhões de euros para os injustos benefícios fiscais dirigidos às chamadas “classes médias” terão de ser compensados com mais cortes, provavelmente nas despesas sociais. No entanto, isto são detalhes. O mais importante já era conhecido: um orçamento para cortar salários, directos e indirectos, um orçamento gerador de desemprego e de recessão. Uma desgraça. Um orçamento com assinatura na casa de Eduardo Catroga à Lapa, com direito a exibição em telemóvel, vincando, também simbolicamente, a submissão do PS aos interesses que contam.
Na política portuguesa, não há mesmo vida para além do défice
«Ambas as delegações convergiram na necessidade de, a par da sustentabilidade das finanças públicas, reforçar e aprofundar as acções estruturais em curso para a melhoria contínua da produtividade e da competitividade, tendo em vista o aumento do potencial de crescimento da economia, na medida em que consideram ser esta a grande questão estratégica da economia portuguesa.» Termina assim o texto do acordo entre o PS e o PSD para viabilizar o orçamento.
Já nos habituámos a ver os partidos do arco governamental e os economistas do regime jurarem que o problema da economia portuguesa está no seu potencial de crescimento. Esta é a grande questão, dizem, e é aí que devem centrar-se as atenções.
Mas alguém sabe o que pensam os principais partidos sobre o assunto e em que é que divergem? Por exemplo, será que convergem no diagnóstico sobre o peso relativo dos principais constrangimentos que impedem o crescimento da produtividade - qualificações de trabalhadores e empresários, níveis de investimento em inovação tecnológica ou em factores imateriais de competitividade, práticas organizacionais, posicionamento das empresas nacionais nas cadeias internacionais de valor, estrutura e dimensão de empresas, mercado de trabalho, níveis de fiscalidade, custos de bens e serviços intermédios de natureza transversal (e.g., energia, telecomunicações, gás), infraestruturas de transporte e de logística, ordenamento do território, etc.?
E será que concordam nas estratégias a prosseguir para ultrapassar esses constrangimentos - a título de exemplo, privilegiar o desenvolvimento das maiores empresas nacionais (EDP, Galp, PT, construtoras, etc.), mesmo que tal implique custos acrescidos de bens e serviços no tecido económico português? Apostar no desenvolvimento de sectores específicos (e.g., energias alternativas, tecnologias de informação, tecnologias da saúde) ou tentar que a presença do Estado seja tão neutra quanto possível? Continuar a investir no sistema científico e na formação de doutorados, ou fazer depender esse investimento da sua relevância para as empresas? Alargar a base territorial da competitividade da economia portuguesa, ou reforçar as dinâmicas de aglomeração?
E qual o papel que julgam ter os vários instrumentos de política pública na prossecução dos objectivos (e.g., benefícios fiscais, subsídios às empresas, compras públicas, regulação da concorrência)?
PS, PSD e economistas do regime falam do 'problema da produtividade' como se fossem óbvias para todos as origens do problema, as estratégias para o resolver e as medidas concretas a pôr em prática. Não o são. E a incapacidade que revelam na discussão específica destas questões são um dos sinais mais significativos da mediocridade do debate político-económico neste país.
Já nos habituámos a ver os partidos do arco governamental e os economistas do regime jurarem que o problema da economia portuguesa está no seu potencial de crescimento. Esta é a grande questão, dizem, e é aí que devem centrar-se as atenções.
Mas alguém sabe o que pensam os principais partidos sobre o assunto e em que é que divergem? Por exemplo, será que convergem no diagnóstico sobre o peso relativo dos principais constrangimentos que impedem o crescimento da produtividade - qualificações de trabalhadores e empresários, níveis de investimento em inovação tecnológica ou em factores imateriais de competitividade, práticas organizacionais, posicionamento das empresas nacionais nas cadeias internacionais de valor, estrutura e dimensão de empresas, mercado de trabalho, níveis de fiscalidade, custos de bens e serviços intermédios de natureza transversal (e.g., energia, telecomunicações, gás), infraestruturas de transporte e de logística, ordenamento do território, etc.?
E será que concordam nas estratégias a prosseguir para ultrapassar esses constrangimentos - a título de exemplo, privilegiar o desenvolvimento das maiores empresas nacionais (EDP, Galp, PT, construtoras, etc.), mesmo que tal implique custos acrescidos de bens e serviços no tecido económico português? Apostar no desenvolvimento de sectores específicos (e.g., energias alternativas, tecnologias de informação, tecnologias da saúde) ou tentar que a presença do Estado seja tão neutra quanto possível? Continuar a investir no sistema científico e na formação de doutorados, ou fazer depender esse investimento da sua relevância para as empresas? Alargar a base territorial da competitividade da economia portuguesa, ou reforçar as dinâmicas de aglomeração?
E qual o papel que julgam ter os vários instrumentos de política pública na prossecução dos objectivos (e.g., benefícios fiscais, subsídios às empresas, compras públicas, regulação da concorrência)?
PS, PSD e economistas do regime falam do 'problema da produtividade' como se fossem óbvias para todos as origens do problema, as estratégias para o resolver e as medidas concretas a pôr em prática. Não o são. E a incapacidade que revelam na discussão específica destas questões são um dos sinais mais significativos da mediocridade do debate político-económico neste país.
sábado, 30 de outubro de 2010
De Wall Street à periferia de Maputo
Dos protestos populares que tiveram lugar nos bairros da periferia de Maputo no início de Setembro, a opinião pública portuguesa, mesmo a mais informada, ter-se-á apercebido apenas de um reduzido número de elementos: a causa da insatisfação generalizada (o aumento dos preços do arroz, pão e outros bens essenciais); a intensidade dos protestos e a violência da repressão policial subsequente (que causou 13 mortos e centenas de feridos); e o desfecho, desta feita favorável às pretensões dos manifestantes (o anúncio, por parte do governo moçambicano, de 25 medidas visando reduzir o custo de vida, entre as quais o congelamento do preço dos produtos alimentares em causa).
Difíceis ou impossíveis de descortinar por entre a espuma dos dias, tal como habitualmente veiculada pela maior parte da comunicação social, foram os factores estruturais subjacentes a este episódio. E estes foram, e são, de diversa ordem. Paulo Granjo, num excelente artigo na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique (Outubro), chama a atenção para um dos aspectos da questão: o cisma entre a maior parte da população moçambicana e a classe política. Uma crise de representatividade no contexto de uma economia e de uma sociedade crescentemente duais, em que o progressivo desmantelamento das estruturas de solidariedade comunitárias e tradicionais não se tem feito acompanhar pelo preenchimento, por parte do Estado “moderno”, das funções sociais que dele são esperadas.
Porém, o facto da cadeia ter quebrado precisamente pelo elo dos preços dos produtos alimentares, tem, ele próprio, causas estruturais mais amplas. Recuemos no tempo até 2008, àquela que foi uma crise alimentar mundial de proporções inusitadas – por mais que tal possa ter passado em grande medida despercebido nos países do ‘Norte’. Nessa altura, o aumento dos preços dos alimentos reflectiu-se, por exemplo, no facto do índice de preços alimentares da FAO - um índice compósito que incorpora os preços internacionais dos cereais, arroz, açúcar, óleos e gorduras, leite e derivados e carne – ter quase duplicado face ao valor de 2003-2004. Entre as consequências, um acréscimo em mais de 150 milhões no número de pessoas em situação de fome a nível mundial, para além de protestos ou motins em mais de 30 países - como recorda este artigo do The Guardian.
Ora, após um período de relativa acalmia, estamos novamente perante a iminência de uma nova crise mundial dos preços dos alimentos - de que os tumultos de Maputo terão constituído um dos primeiros sintomas. O índice da FAO está já muito próximo do nível de 2008 e são já muitas as vozes que alertam para o perigo iminente e para as suas potenciais consequências.
Tanto em 2008 como agora, quais as causas destes aumentos dos preços dos alimentos? Johnston e Bragawi, do Centre for Development Policy Research de Londres, enumeram-nas neste resumo de um simpósio sobre o tema. Algumas são conjunturais: choques climáticos, como secas ou inundações. Mas as principais são de natureza estrutural. Falarei de algumas delas em próximas postas. Para já, assinalo apenas que, em lugar de destaque, surge a crescente entrada de fundos especulativos no mercado internacional dos produtos alimentares. Muito longe de contribuir para qualquer suposta “eficiência” na determinação dos preços, neste como noutros mercados, a combinação de açambarcamento e especulação associada à penetração do capital financeiro tem, nesta como em muitas outras áreas, consequências sociais e humanas devastadoras. Da ganância bolsista ao desespero nas periferias do Sul, vai apenas um passo: o descontrolo e desregulação dos mercados.
sexta-feira, 29 de outubro de 2010
Começar pelos Fins
A Assembleia aprovou hoje na generalidade um projecto no sentido da elaboração de um Orçamento de Base Zero (OBZ) no ano de 2012. Este projecto terá, tudo indica, um trajecto difícil para chegar à aprovação final, mas representa um sinal positivo nos termos do debate sobre despesa em Portugal.
Infelizmente, o debate sobre despesa tem sido, desde sempre, marcado por um discurso que trata todos os gastos do Estado como sendo basicamente dinheiro deitado à rua e atrás do qual se escondem as mais várias agendas. Assim, despesa social, investimento público, contratos ruinosos, os salários da função pública ou as redes clientelares dos partidos, tudo é corrido pela mesma grelha de análise do "Estado gordo".
A opacidade dos orçamentos, obviamente, não ajuda. Muitas das dotações dos quadros orçamentais não têm nenhuma desagregação ou descrição que as torne inteligíveis. Por exemplo, só no conjunto das rubricas "outros" dos vários Ministérios, somam-se quase mil milhões de euros. Até pode ser despesa muito importante, mas o que sabemos é que não sabemos.
Talvez a primeira explicação sobre o OBZ deva incidir sobre o que o OBZ não é. O OBZ não resolve o problema das escolhas sobre políticas orçamentais. Nem deve. O OBZ não exime quem apresenta um Orçamento de fazer toda a despesa que decorre da aplicação da lei ou de obrigações contratuais. Nem pode. O OBZ permite apenas uma maior clareza nas escolhas, uma melhor adequação dos recursos às políticas e uma maior transparência na execução.
O método actual (o que alguns chamam o orçamento incremental) consiste na prática na definição de grande parte das áreas da despesa a partir dos dados da execução orçamental do exercício anterior. Até parece fazer sentido. Mas tem um problema. Como não temos garantias de que a execução do ano anterior foi eficiente, este método tende a reproduzir, eternizar, e até promover os factores de ineficiência.
Nos últimos anos, têm-se multiplicado os exemplos de serviços que, no final do ano, aumentam a despesa de forma a esgotar a verba de que dispunham. A lógica é, portanto, a do Benefício ao Infractor. Se os serviços que poupam e conseguem uma redução da despesa em relação ao orçamentado são penalizados no orçamento posterior e os cortes, quando a coisa aperta, tocam a todos, independentemente do seu desempenho, que incentivo existe para promover a eficiência na administração pública?
Esta metodologia existe porque é mais simples, mas também porque dá ao Governo mais margem de manobra para gerir dotações misteriosas. O OBZ, pelo contrário, é mais complicado e até dispendioso (o que desaconselha a sua utilização contínua) mas permite fazer um reset da estrutura da despesa, fora dos compromissos legais e contratuais.
O levantamento de necessidades, a especificação e justificação detalhada das despesas não nos garante, obviamente, que serão feitas as melhores escolhas de política económica. Basta ver o discurso dos liberais, que dizem que em tempo de crise, com contracção do investimento privado, também não pode haver investimento público.
Mas tem o mérito de obrigar o Governo (e toda a oposição) a explicar do que falam quando falam de despesa. E, se todos compreendermos isso, talvez possamos ter um debate mais inteligente e menos populista sobre o que é a despesa pública e qual o seu papel na retoma económica.
Infelizmente, o debate sobre despesa tem sido, desde sempre, marcado por um discurso que trata todos os gastos do Estado como sendo basicamente dinheiro deitado à rua e atrás do qual se escondem as mais várias agendas. Assim, despesa social, investimento público, contratos ruinosos, os salários da função pública ou as redes clientelares dos partidos, tudo é corrido pela mesma grelha de análise do "Estado gordo".
A opacidade dos orçamentos, obviamente, não ajuda. Muitas das dotações dos quadros orçamentais não têm nenhuma desagregação ou descrição que as torne inteligíveis. Por exemplo, só no conjunto das rubricas "outros" dos vários Ministérios, somam-se quase mil milhões de euros. Até pode ser despesa muito importante, mas o que sabemos é que não sabemos.
Talvez a primeira explicação sobre o OBZ deva incidir sobre o que o OBZ não é. O OBZ não resolve o problema das escolhas sobre políticas orçamentais. Nem deve. O OBZ não exime quem apresenta um Orçamento de fazer toda a despesa que decorre da aplicação da lei ou de obrigações contratuais. Nem pode. O OBZ permite apenas uma maior clareza nas escolhas, uma melhor adequação dos recursos às políticas e uma maior transparência na execução.
O método actual (o que alguns chamam o orçamento incremental) consiste na prática na definição de grande parte das áreas da despesa a partir dos dados da execução orçamental do exercício anterior. Até parece fazer sentido. Mas tem um problema. Como não temos garantias de que a execução do ano anterior foi eficiente, este método tende a reproduzir, eternizar, e até promover os factores de ineficiência.
Nos últimos anos, têm-se multiplicado os exemplos de serviços que, no final do ano, aumentam a despesa de forma a esgotar a verba de que dispunham. A lógica é, portanto, a do Benefício ao Infractor. Se os serviços que poupam e conseguem uma redução da despesa em relação ao orçamentado são penalizados no orçamento posterior e os cortes, quando a coisa aperta, tocam a todos, independentemente do seu desempenho, que incentivo existe para promover a eficiência na administração pública?
Esta metodologia existe porque é mais simples, mas também porque dá ao Governo mais margem de manobra para gerir dotações misteriosas. O OBZ, pelo contrário, é mais complicado e até dispendioso (o que desaconselha a sua utilização contínua) mas permite fazer um reset da estrutura da despesa, fora dos compromissos legais e contratuais.
O levantamento de necessidades, a especificação e justificação detalhada das despesas não nos garante, obviamente, que serão feitas as melhores escolhas de política económica. Basta ver o discurso dos liberais, que dizem que em tempo de crise, com contracção do investimento privado, também não pode haver investimento público.
Mas tem o mérito de obrigar o Governo (e toda a oposição) a explicar do que falam quando falam de despesa. E, se todos compreendermos isso, talvez possamos ter um debate mais inteligente e menos populista sobre o que é a despesa pública e qual o seu papel na retoma económica.
Isto não se vê na TV
Mark Blyth é um dos meus economistas políticos preferidos ou não fosse ele um dos principais autores neo-polanyianos. A economia não vem com uma ficha de instruções em anexo, como costuma dizer. Este vídeo explica a crise com uma clareza impar, começando com os balanços financeiros, como eu aqui tenho tentado fazer, sem moralismos, e termina com uma crítica à austeridade assimétrica e à loucura económica em que entrámos. Tudo em pouco mais de cinco minutos. É pena não ter legendas porque isto não se vê na TV. Quem se oferece para as colocar?
Mais algumas notas sobre política industrial
No Vias de Facto, através do Zé Neves e do Miguel Madeira, a discussão à volta da política industrial tem continuado. Uma discussão bem oportuna nos tempos que correm. De forma esquemática, queria responder a alguns dos seus pontos.
1- O Miguel Madeira chama a atenção para a forma como a política industrial foi conduzida na Coreia do Sul e no Japão, beneficiando grandes conglomerados industriais, os chaebols e keiretsu, respectivamente. É verdade que assim foi, mas parece-me muito limitado olhar só para estes dois casos de sucesso. A política industrial continua a ser seguida por muitos países, dos EUA à Dinamarca. As suas configurações são muito diversificadas e plásticas, no que toca à propriedade e aos arranjos de classe que lhe são subjacentes. Através do que aqui escrevi antes, penso ser bem claro o modelo que favoreço: por um lado, empresas públicas, onde a participação dos trabalhadores não seja um mero simulacro e onde a avaliação de projectos e resultados possa ser escrutinado por todos; por outro, políticas públicas (por exemplo, de crédito) que favoreçam determinadas “associação dos produtores”, como nas cooperativas. Estas opções não são puramente ideológicas. Penso ser a melhor forma de alcançar o sucesso, devido aos canais de informação que se desenvolvem e à pressão democrática para a escolha de projectos socialmente mais rentáveis.
2- Tem razão o Miguel quando afirma que na economia neoclássica há exemplos de trabalhos que têm em conta economias com rendimentos crescentes à escala, nomeadamente o do Krugman, como aliás eu e o João Rodrigues mostrámos num dos capítulos deste livro. No entanto, a negligência da teoria neoclássica em relação a esta realidade não se deve somente a uma questão de formalização matemática. É toda a teoria do equilíbrio geral e de defesa cega do comércio livre que é colocada em causa.
O Zé Neves levanta outro tipo que questões, que se desviam da nossa discussão inicial à volta da política industrial, mas que me merecem três breves notas:
1- Se bem percebi, o Zé acusa-me de ter dois pesos e duas medidas quando crítico a economia neoclássica no campo das “diferenças políticas e morais”, mas de o não fazer no que eu próprio defendo. Não tem razão. A discussão política e moral deve estar sempre presente, mas ela não exclui a análise científica. A realidade existe e as teorias e análises devem ser testáveis, admitindo a falibilidade. Aliás, é neste campo que a economia neoclássica mais redondamente falha. É também neste ponto que eu e o Zé talvez diverjamos.
2. De resto, ter conta em conta que parte da realidade económica é nacional e que temos aí um esfera autónoma de acção é bem diferente do que dizer que devo “confinar” a minha análise à esfera nacional, ou que me preocupo mais com os trabalhadores portugueses do que com os trabalhadores moçambicanos. Obviamente, a minha acção, como a do Zé, está constrangida pelo que me é próximo (se vivo em Alvalade é mais fácil organizar os precários em Lisboa do que em Estocolmo). Aqui acho que o Zé está a ser deliberadamente incorrecto e a criar divisões artificiais.
3. As perguntas finais do Zé sobre relação entre consumo e produção, “pueris q.b.”, são provocações, às quais o Zé sabe bem como responderia. Fica só a recomendação de um excelente livro que responde a muitas delas.
1- O Miguel Madeira chama a atenção para a forma como a política industrial foi conduzida na Coreia do Sul e no Japão, beneficiando grandes conglomerados industriais, os chaebols e keiretsu, respectivamente. É verdade que assim foi, mas parece-me muito limitado olhar só para estes dois casos de sucesso. A política industrial continua a ser seguida por muitos países, dos EUA à Dinamarca. As suas configurações são muito diversificadas e plásticas, no que toca à propriedade e aos arranjos de classe que lhe são subjacentes. Através do que aqui escrevi antes, penso ser bem claro o modelo que favoreço: por um lado, empresas públicas, onde a participação dos trabalhadores não seja um mero simulacro e onde a avaliação de projectos e resultados possa ser escrutinado por todos; por outro, políticas públicas (por exemplo, de crédito) que favoreçam determinadas “associação dos produtores”, como nas cooperativas. Estas opções não são puramente ideológicas. Penso ser a melhor forma de alcançar o sucesso, devido aos canais de informação que se desenvolvem e à pressão democrática para a escolha de projectos socialmente mais rentáveis.
2- Tem razão o Miguel quando afirma que na economia neoclássica há exemplos de trabalhos que têm em conta economias com rendimentos crescentes à escala, nomeadamente o do Krugman, como aliás eu e o João Rodrigues mostrámos num dos capítulos deste livro. No entanto, a negligência da teoria neoclássica em relação a esta realidade não se deve somente a uma questão de formalização matemática. É toda a teoria do equilíbrio geral e de defesa cega do comércio livre que é colocada em causa.
O Zé Neves levanta outro tipo que questões, que se desviam da nossa discussão inicial à volta da política industrial, mas que me merecem três breves notas:
1- Se bem percebi, o Zé acusa-me de ter dois pesos e duas medidas quando crítico a economia neoclássica no campo das “diferenças políticas e morais”, mas de o não fazer no que eu próprio defendo. Não tem razão. A discussão política e moral deve estar sempre presente, mas ela não exclui a análise científica. A realidade existe e as teorias e análises devem ser testáveis, admitindo a falibilidade. Aliás, é neste campo que a economia neoclássica mais redondamente falha. É também neste ponto que eu e o Zé talvez diverjamos.
2. De resto, ter conta em conta que parte da realidade económica é nacional e que temos aí um esfera autónoma de acção é bem diferente do que dizer que devo “confinar” a minha análise à esfera nacional, ou que me preocupo mais com os trabalhadores portugueses do que com os trabalhadores moçambicanos. Obviamente, a minha acção, como a do Zé, está constrangida pelo que me é próximo (se vivo em Alvalade é mais fácil organizar os precários em Lisboa do que em Estocolmo). Aqui acho que o Zé está a ser deliberadamente incorrecto e a criar divisões artificiais.
3. As perguntas finais do Zé sobre relação entre consumo e produção, “pueris q.b.”, são provocações, às quais o Zé sabe bem como responderia. Fica só a recomendação de um excelente livro que responde a muitas delas.
quinta-feira, 28 de outubro de 2010
Se querem alterar o Tratado, vão à raíz dos problemas
Segundo consta, o governo Merkel quer alterar o Tratado da UE. O objectivo é ultrapassar as reservas do Tribunal Constitucional alemão ao fundo europeu criado para socorrer a Grécia (e os outros 'problemas' que hão de vir). É que o Tratado da UE, desde Maastricht, proíbe que uns Estados assumam as dívidas dos outros - o que, em boa medida, é o que está a acontecer. Desde o início que essa cláusula de 'no bailout' foi criticada pelo seu irrealismo (ver, por exemplo os trabalhos de Paul de Grauwe) - quando a coisa doesse, já se sabia, ninguém iria aceitar que um Estado membro da zona euro entrasse em bancarrota, pondo em causa o valor internacional da moeda única. Mas a cláusula ficou lá na mesma, com o argumento de que seria necessária para sossegar os eleitores alemães.
Agora que o governo alemão é confrontado com a realidade dos factos e manda à fava o 'no bailout', inventa-se uma nova forma de sossegar os eleitores germânicos. Desta feita trata-se de introduzir no Tratado a possibilidade de os Estados reestruturarem a dívida (na prática, dizerem aos credores que, enfim, não podem pagar o que era suposto nos prazos previstos). O objectivo declarado é comprometer os investidores privados com as 'práticas orçamentais irresponsáveis' dos Estados a quem emprestam dinheiro. Por outras palavras: se os privados souberem que as dívidas podem ser reestruturadas, irão impôr custos superiores aos Estados 'prevaricadores', o que aumenta para estes os custos da 'irresponsabilidade', tonando-os 'mais bem-comportados'.
Esta retórica da responsabilidade e da punição assenta bem no clima de histeria e preconceito que hoje domina o debate público na Alemanha - e, por imitação básica, em países como Portugal - alimentado pelos sectores mais conservadores das sociedades respectivas. Acontece que estas medidas não vão ter resultados que não sejam acentuar a frequência e intensidade das crises e dificultar a resposta aos problemas quando eles surgem - tal como aconteceu com a cláusula do 'no bail-out'.
Já várias vezes discutimos aqui porque motivo a arquitectura de gestão macroeconómica europeia está condenada a falhar (ver, por exemplo, aqui). Sumariamente: o euro implicou colocar sob a mesma política monetária economias com estruturas muito distintas e sistemas político-sociais com prioridades e constrangimentos diversos; esta diversidade de estruturas e sistemas sócio-económicos implica que os seus ciclos estejam frequentemente desalinhados; no entanto, os países deixaram de controlar a política monetária e cambial, instrumentos utilizados com utilidade por economias com moeda propria; noutros casos de unificação monetária foram criados mecanismos alternativos para compensar os desalinhamentos (e.g., uma política orçamental federal de dimensões significativas, como nos EUA); na UE não existem mecanismos que atenuem os desalinhamentos de ciclo económico; e como os sistemas económicos não se tornam idênticos só porque se cria uma moeda única, a UE estará sujeita a estes problemas até que se decida introduzir mecanismos orçamentais que permitam fazer face a desempenhos conjunturais desalinhados entre os Estados Membros.
Assim, se o Tratado de Lisboa vai ser revisto, aproveite-se a oportunidade para fazer o que está certo - crie-se uma união económica a sério, acompanhada de mecanismos de controlo democrático das decisões tomadas em Bruxelas. Mais do mesmo é que não vale a pena.
Agora que o governo alemão é confrontado com a realidade dos factos e manda à fava o 'no bailout', inventa-se uma nova forma de sossegar os eleitores germânicos. Desta feita trata-se de introduzir no Tratado a possibilidade de os Estados reestruturarem a dívida (na prática, dizerem aos credores que, enfim, não podem pagar o que era suposto nos prazos previstos). O objectivo declarado é comprometer os investidores privados com as 'práticas orçamentais irresponsáveis' dos Estados a quem emprestam dinheiro. Por outras palavras: se os privados souberem que as dívidas podem ser reestruturadas, irão impôr custos superiores aos Estados 'prevaricadores', o que aumenta para estes os custos da 'irresponsabilidade', tonando-os 'mais bem-comportados'.
Esta retórica da responsabilidade e da punição assenta bem no clima de histeria e preconceito que hoje domina o debate público na Alemanha - e, por imitação básica, em países como Portugal - alimentado pelos sectores mais conservadores das sociedades respectivas. Acontece que estas medidas não vão ter resultados que não sejam acentuar a frequência e intensidade das crises e dificultar a resposta aos problemas quando eles surgem - tal como aconteceu com a cláusula do 'no bail-out'.
Já várias vezes discutimos aqui porque motivo a arquitectura de gestão macroeconómica europeia está condenada a falhar (ver, por exemplo, aqui). Sumariamente: o euro implicou colocar sob a mesma política monetária economias com estruturas muito distintas e sistemas político-sociais com prioridades e constrangimentos diversos; esta diversidade de estruturas e sistemas sócio-económicos implica que os seus ciclos estejam frequentemente desalinhados; no entanto, os países deixaram de controlar a política monetária e cambial, instrumentos utilizados com utilidade por economias com moeda propria; noutros casos de unificação monetária foram criados mecanismos alternativos para compensar os desalinhamentos (e.g., uma política orçamental federal de dimensões significativas, como nos EUA); na UE não existem mecanismos que atenuem os desalinhamentos de ciclo económico; e como os sistemas económicos não se tornam idênticos só porque se cria uma moeda única, a UE estará sujeita a estes problemas até que se decida introduzir mecanismos orçamentais que permitam fazer face a desempenhos conjunturais desalinhados entre os Estados Membros.
Assim, se o Tratado de Lisboa vai ser revisto, aproveite-se a oportunidade para fazer o que está certo - crie-se uma união económica a sério, acompanhada de mecanismos de controlo democrático das decisões tomadas em Bruxelas. Mais do mesmo é que não vale a pena.
«os economistas»
RTP1, Telejornal, 20.37h. Depois de dissecar a não consumação do acordo entre o Governo e o PSD relativamente ao Orçamento de Estado, José Rodrigues dos Santos (minuto 37 do vídeo) refere que “a ruptura entre o PSD e o governo foi mal recebida pelos economistas”, anunciando assim uma peça com entrevistas a Ferraz da Costa (antigo presidente da CIP), João Salgueiro (ex-presidente da Associação Portuguesa de Bancos), Fernando Ulrich (Presidente do BPI) e Mira Amaral (ministro nos governos de Cavaco Silva).
Estava dada, nos termos em que José Rodrigues dos Santos apresentou o conjunto de entrevistas, a opinião de «os economistas», que o jornalista sintetizaria – perante as questões colocadas – no facto de estes acharem ser “preferível um orçamento adequado e eficaz do que um documento aprovado a qualquer custo”.
Com outro painel, a síntese obtida poderia ser eventualmente a mesma. O ponto não é esse. O ponto é o de se pressupor que, ouvindo estas quatro individualidades, se torna possível conhecer, à partida, a opinião de «os economistas» sobre as mais diversas matérias.
Faça-se o exercício de tentar posicionar estes comentadores no espectro político-partidário, no campo de perspectivas do pensamento económico e nas tendências de parecer face a questões concretas. E ter-se-á uma noção clara sobre a estreiteza do conceito de pluralismo de opinião que o serviço público de televisão recorrentemente tem, em matéria de debate económico.
Estava dada, nos termos em que José Rodrigues dos Santos apresentou o conjunto de entrevistas, a opinião de «os economistas», que o jornalista sintetizaria – perante as questões colocadas – no facto de estes acharem ser “preferível um orçamento adequado e eficaz do que um documento aprovado a qualquer custo”.
Com outro painel, a síntese obtida poderia ser eventualmente a mesma. O ponto não é esse. O ponto é o de se pressupor que, ouvindo estas quatro individualidades, se torna possível conhecer, à partida, a opinião de «os economistas» sobre as mais diversas matérias.
Faça-se o exercício de tentar posicionar estes comentadores no espectro político-partidário, no campo de perspectivas do pensamento económico e nas tendências de parecer face a questões concretas. E ter-se-á uma noção clara sobre a estreiteza do conceito de pluralismo de opinião que o serviço público de televisão recorrentemente tem, em matéria de debate económico.
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Kirchner
O ex-Presidente argentino Néstor Kirchner morreu hoje, aos 60 anos, anunciaram fontes médicas. Um presidente que teve a coragem de romper com a ortodoxia económica: renegociou a dívida, defendendo os interesses do país, e pôs em marcha políticas de estimulo económico e de protecção social. A economia argentina saiu do buraco para onde tinha sido levada pelas utopias neoliberais. Um exemplo a não esquecer.
Adenda. Ler o artigo de Mike Weisbrot sobre "o herói da independência argentina" no The Guardian. Obrigado José M. Sousa.
Da raposa no galinheiro...
António Borges nomeado director do Departamento Europeu do FMI. O lobbyista dos fundos especulativos chega ao FMI. Está na natureza da coisa. Ferreira Leite perdeu as eleições, mas as suas ideias estão nos poderes e nas políticas que contam. A democracia está em processo de suspensão...
Keynes 2.1
Enquanto que na Europa estamos condenados a uma política económica inspirada na teoria económica que presidiu à Grande Depressão dos anos trinta, no resto do mundo há vontade para aprender com a crise financeira. Bom exemplo disso é a forma como os controlos de capitais estão a ser reinstituídos em vários países, da Islândia ao Brasil, passando pela Tailândia, como bem aponta este artigo de opinião de Ilene Grabel e Ha Joon Chang, hoje publicado no Financial Times. Os controlos de capitais não são nenhuma panaceia para o desenvolvimento. No entanto, se bem desenhados e implementados, eles permitem a estabilização financeira e, assim, sólidas fundações para o crescimento económico, como, aliás, aconteceu no período que precedeu os últimos trinta anos de política neoliberal.
Como bem apontam Grabel e Chang, estas políticas devem ser acompanhadas pela refundação do sistema financeiro internacional, por forma a garantir soluções concertadas para a instabilidade económica e para o desemprego. Existem já alguns esforços meritórios para o conseguir. Um deles é inspirado directamente na proposta de keynes para a criação de uma moeda “internacional”, sem existência real, o Bancor, que servisse de meio de pagamento internacional e que, aliado a um fundo internacional, fosse um instrumento para a correcção dos desequilíbrios externos dos diferentes países. Chama-se “SUCRE” e envolve os países da Alba (Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba e Nicarágua). Este sistema foi desenhado como unidade conta gerida por uma entidade regional, onde todos os países têm os mesmos direitos de voto. Pretende-se promover o comércio regional nas moedas locais, ganhando assim autonomia face ao dólar, ao mesmo tempo que prevê o uso dos excedentes comerciais “excessivos” em investimento produtivo, direccionado para as exportações, nos países deficitários. Política industrial, lembram-se? O sistema é embrionário e depara-se como inúmeros problemas, já que os diferentes países têm políticas cambiais e de capitais muito diversas, dificultando a concertação. Contudo, é certamente um exemplo a seguir de perto.
Como bem apontam Grabel e Chang, estas políticas devem ser acompanhadas pela refundação do sistema financeiro internacional, por forma a garantir soluções concertadas para a instabilidade económica e para o desemprego. Existem já alguns esforços meritórios para o conseguir. Um deles é inspirado directamente na proposta de keynes para a criação de uma moeda “internacional”, sem existência real, o Bancor, que servisse de meio de pagamento internacional e que, aliado a um fundo internacional, fosse um instrumento para a correcção dos desequilíbrios externos dos diferentes países. Chama-se “SUCRE” e envolve os países da Alba (Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba e Nicarágua). Este sistema foi desenhado como unidade conta gerida por uma entidade regional, onde todos os países têm os mesmos direitos de voto. Pretende-se promover o comércio regional nas moedas locais, ganhando assim autonomia face ao dólar, ao mesmo tempo que prevê o uso dos excedentes comerciais “excessivos” em investimento produtivo, direccionado para as exportações, nos países deficitários. Política industrial, lembram-se? O sistema é embrionário e depara-se como inúmeros problemas, já que os diferentes países têm políticas cambiais e de capitais muito diversas, dificultando a concertação. Contudo, é certamente um exemplo a seguir de perto.
A autodestruição da globalização neoliberal?
“Face à depressão da procura agregada na Europa e nos Estados Unidos, os governos viram-se naturalmente para os mercados exportadores para aliviar o desemprego interno. Mas os países não podem ter todos, simultaneamente, excedentes comerciais. A tentativa de os alcançar levará a uma depreciação competitiva da moeda e ao proteccionismo.
Como Keynes, inteligentemente, observou, ‘se as nações aprenderam a alcançar o pleno emprego como políticas domésticas… não existiria um motivo para que um país precisasse de impor os seus produtos a outros ou rejeitar as ofertas dos seus vizinhos’. O comércio entre países ‘deixaria de ser o que é, um recurso desesperado para manter o emprego em casa forçando as vendas nos mercados estrangeiros e restringindo as compras’. Em vez disso, passaria a ser um ‘intercâmbio voluntário e sem impedimentos de bens e serviços em condições de vantagem mútua’.
Por outras palavras, a actual turbulência relacionada com as moedas e o comércio é o resultado directo do nosso falhanço em resolver os nossos problemas de emprego.”
Robert Skidelsky no Negócios. É um dos mais lúcidos economistas ou não fosse ele o principal estudioso do pensamento de Keynes. Isto permite-me sublinhar um ponto: a actual configuração da globalização pode bem estar em processo de autodestruição devido à austeridade generalizada, que alimenta o desemprego e erode o Estado Social. Acontece que um Estado social robusto, segundo indica alguma investigação empírica, é uma condição para a legitimidade da abertura comercial. Os neoliberais têm de ter cuidado com o que desejam.
A liberalização financeira e a abertura comercial desregrada são o problema. A refragmentação da economia global poderá ser necessária para que possam emergir modelos com maior enfâse na procura e na criação de emprego. Não resisto a invocar Keynes:
“Simpatizo com aqueles que querem minimizar, em vez de maximizar, as interdependências económicas entre as nações [ou os blocos regionais…]. Ideias, conhecimento, ciência, hospitalidade, viagens – estas são as coisas que, pela sua natureza, devem ser internacionais. Mas deixemos que os bens sejam produzidos localmente sempre que seja razoável e conveniente, e, sobretudo, asseguremos que a finança seja nacional. No entanto, aquele que querem reduzir as interdependências devem ser lentos e cautelosos. Não se trata de arrancar a planta pela raiz, mas de orientá-la lentamente para que cresça noutra direcção.”
Os acordos de Bretton Woods, que fixaram o quadro do pós-guerra, parcialmente inspirados pelas ideias de Keynes, previam mecanismos de controlo de capitais (a finança nacional) e criaram condições para que os países definissem o seu espaço de desenvolvimento através de uma abertura comercial gerida (orientar a planta). Só faltou o crucial bancor, parte de um projecto de gestão politica supranacional que evitasse a acumulação de défices e de superávites comerciais persistentes.
Temos de imaginar soluções razoáveis e convenientes para o trilema da economia política internacional e para a insustentável acumulação de brutais desequilíbrios, expressão da perversa configuração da globalização. A planta europeia também deveria poder crescer noutra direcção, antes que alguém a arranque. O proteccionismo pragmático é um bom antídoto contra a emergência da xenofobia e do nacionalismo agressivo, filhos das utopias (neo)liberais…
Como Keynes, inteligentemente, observou, ‘se as nações aprenderam a alcançar o pleno emprego como políticas domésticas… não existiria um motivo para que um país precisasse de impor os seus produtos a outros ou rejeitar as ofertas dos seus vizinhos’. O comércio entre países ‘deixaria de ser o que é, um recurso desesperado para manter o emprego em casa forçando as vendas nos mercados estrangeiros e restringindo as compras’. Em vez disso, passaria a ser um ‘intercâmbio voluntário e sem impedimentos de bens e serviços em condições de vantagem mútua’.
Por outras palavras, a actual turbulência relacionada com as moedas e o comércio é o resultado directo do nosso falhanço em resolver os nossos problemas de emprego.”
Robert Skidelsky no Negócios. É um dos mais lúcidos economistas ou não fosse ele o principal estudioso do pensamento de Keynes. Isto permite-me sublinhar um ponto: a actual configuração da globalização pode bem estar em processo de autodestruição devido à austeridade generalizada, que alimenta o desemprego e erode o Estado Social. Acontece que um Estado social robusto, segundo indica alguma investigação empírica, é uma condição para a legitimidade da abertura comercial. Os neoliberais têm de ter cuidado com o que desejam.
A liberalização financeira e a abertura comercial desregrada são o problema. A refragmentação da economia global poderá ser necessária para que possam emergir modelos com maior enfâse na procura e na criação de emprego. Não resisto a invocar Keynes:
“Simpatizo com aqueles que querem minimizar, em vez de maximizar, as interdependências económicas entre as nações [ou os blocos regionais…]. Ideias, conhecimento, ciência, hospitalidade, viagens – estas são as coisas que, pela sua natureza, devem ser internacionais. Mas deixemos que os bens sejam produzidos localmente sempre que seja razoável e conveniente, e, sobretudo, asseguremos que a finança seja nacional. No entanto, aquele que querem reduzir as interdependências devem ser lentos e cautelosos. Não se trata de arrancar a planta pela raiz, mas de orientá-la lentamente para que cresça noutra direcção.”
Os acordos de Bretton Woods, que fixaram o quadro do pós-guerra, parcialmente inspirados pelas ideias de Keynes, previam mecanismos de controlo de capitais (a finança nacional) e criaram condições para que os países definissem o seu espaço de desenvolvimento através de uma abertura comercial gerida (orientar a planta). Só faltou o crucial bancor, parte de um projecto de gestão politica supranacional que evitasse a acumulação de défices e de superávites comerciais persistentes.
Temos de imaginar soluções razoáveis e convenientes para o trilema da economia política internacional e para a insustentável acumulação de brutais desequilíbrios, expressão da perversa configuração da globalização. A planta europeia também deveria poder crescer noutra direcção, antes que alguém a arranque. O proteccionismo pragmático é um bom antídoto contra a emergência da xenofobia e do nacionalismo agressivo, filhos das utopias (neo)liberais…
Há alternativa à austeridade
O cartaz é de Pedro Vieira. A resposta à pergunta vai ser dada por José Reis em Lisboa no próximo Sábado. A organização é da associação política Fórum Manifesto. José Reis deverá desenvolver a análise que fez no Público, indicando um conjunto de alternativas de política económica a estas escolhas orçamentais que nos levam para a recessão.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
Ensaio sobre a desfaçatez
Num debate ontem realizado na Universidade Católica, Daniel Bessa admite poderem “ser precisos outros PEC”, uma vez que Portugal vai “entrar num período profundo de recessão, durante muitos anos”. Isto é, um dos grandes arautos das políticas recessivas (cortes salariais, privatização dos serviços públicos e redução da receita proveniente do IRC, entre outras), considera que a cura para a recessão é somar-lhe mais recessão, através do reforço de medidas que estiolam ainda mais o consumo.
No silêncio da argumentação ficam quaisquer referências ao papel da dinâmica especulativa dos mercados na situação actual, aos impactos da crise financeira nos orçamentos públicos, ou um apontamento que fosse sobre as disfuncionalidades assumidas do actual modelo de governação económica europeia.
A desfaçatez deste economista do regime, que não se detém um segundo que seja na análise da coerência e sustentação do que defende, faz lembrar aquele notável momento de Marcelo Rebelo de Sousa por ocasião do referendo sobre a despenalização do aborto. "Os PEC têm em vista a saída da crise?", "Sim" - "Podemos então esperar que eles invertam a recessão?", "Não" - "Mas se necessário deverão ser adoptados novos PEC...", "Sim" - "Não vê problema em que eles agravem a situação...", "Não".
No silêncio da argumentação ficam quaisquer referências ao papel da dinâmica especulativa dos mercados na situação actual, aos impactos da crise financeira nos orçamentos públicos, ou um apontamento que fosse sobre as disfuncionalidades assumidas do actual modelo de governação económica europeia.
A desfaçatez deste economista do regime, que não se detém um segundo que seja na análise da coerência e sustentação do que defende, faz lembrar aquele notável momento de Marcelo Rebelo de Sousa por ocasião do referendo sobre a despenalização do aborto. "Os PEC têm em vista a saída da crise?", "Sim" - "Podemos então esperar que eles invertam a recessão?", "Não" - "Mas se necessário deverão ser adoptados novos PEC...", "Sim" - "Não vê problema em que eles agravem a situação...", "Não".
Internacionalismos
Face a todos os que pretendem, a todo custo, interpretar a onda maciça de contestação francesa como anacronismo do Maio de 68 ou das revoltas de há cinco anos, recorrendo ao argumentário sarkoziano, a melhor resposta está aí. Hoje, os trabalhadores belgas da TOTAL decidiram solidarizar-se com os trabalhadores franceses e bloquearam os depósitos de combustível belgas utilizados pelas petrolíferas francesas. Parabéns!
Foice em Seara Alheia
Vai na blogoesfera uma animada polémica entre dois economistas, Ricardo Reis, professor em Nova Iorque e João Galamba, deputado independente pelo PS. Boa parte da discussão é dedicada ao que se disse ou não disse no colóquio da Assembleia da República, com recurso a argumentos de autoridade pelo meio. Não me interessa, até porque não estive presente. Todavia, este post de Ricardo Reis merece uns breves comentários. Para este economista não é nada claro que os actuais cortes orçamentais tenham efeitos recessivos na economia. Há muitos estudos e teorias de sinal contrário em relação ao assunto, argumenta. Nomeadamente um trabalho de Alesina e Ardagna e o, já mencionado aqui, estudo do FMI. E assim o economista se mostra agnóstico quanto aos efeitos do actual orçamento. Cautela e modéstia intelectual? Nem por isso. Quando se argumenta que isto pode dar para os dois lados (crescimento ou recessão) está a defender-se a actual política de austeridade, que aliás vai de encontro às preferências de Reis: corte-se nos salários e na despesa social para mostrar credibilidade.
De qualquer forma, Reis parece, pelo menos, estar inclinado para os efeitos positivos da austeridade. Se este artigo não bastasse, comecei a ficar desconfiado da honestidade da posição de Reis na forma como argumenta que o efeito expansionista da austeridade orçamental foi “bem estudado e inspeccionado empiricamente”. Os dois estudos não são completamente independentes. O FMI é muito crítico nas escolhas metodológicas de Alesina e Ardagna. E fiquei ainda mais perplexo ao ler a forma como estes últimos prescindem de estudar os efeitos das taxas de juro e de câmbio (controlados no seu modelo, é certo, mas nem à forma de o fazer temos acesso), dois factores que também Reis prefere ignorar.
De qualquer forma, Reis parece, pelo menos, estar inclinado para os efeitos positivos da austeridade. Se este artigo não bastasse, comecei a ficar desconfiado da honestidade da posição de Reis na forma como argumenta que o efeito expansionista da austeridade orçamental foi “bem estudado e inspeccionado empiricamente”. Os dois estudos não são completamente independentes. O FMI é muito crítico nas escolhas metodológicas de Alesina e Ardagna. E fiquei ainda mais perplexo ao ler a forma como estes últimos prescindem de estudar os efeitos das taxas de juro e de câmbio (controlados no seu modelo, é certo, mas nem à forma de o fazer temos acesso), dois factores que também Reis prefere ignorar.
Finalmente, "pasmei" em saber que economistas que defendem uma redução salarial entre 10% e 20% em Portugal, como Blanchard, são de esquerda. Para Reis, o FMI deve ser uma instituição ao serviço dos trabalhadores. Pelo menos temos a vantagem de saber que, para Ricardo Reis, há economistas de esquerda e de direita, por mais desnorteado que ele pareça. Aliás pelo tom da sua posta ele deve afirmar-se nem carne, nem peixe. Um mero técnico do tofu.
A minha posição metodológica está longe dos debates entre o FMI e o Alesina. Só através estudo cuidado da realidade da economia portuguesa nos últimos anos e, recusando amálgamas estatísticas, podemos ter um melhor conhecimento do que o futuro nos reserva. Exemplo disso é este trabalho histórico do Instituto Roosevelt, analisando todas as variáveis onde, embora (ou se calhar, por isso) sem modelos econométricos, se conclui que austeridade em tempos de crise, sobretudo num contexto de impossibilidade de desvalorização cambial, só tem um efeito: recessão. Mais, como mostrámos aqui, pelo efeito dos balanços financeiros em que famílias, empresas e estado tornam remota, ao procurar aliviar simultaneamente o peso do fardo dívida, uma recuperação da economia portuguesa. Diagnósticos diferentes dão prescrições diferentes, como esta do CEPR, que argumenta bem pela necessidade actual de estímulo nas economias periféricas (no caso Espanha). Li no jornal que Reis falou da necessidade de se pensar na reestruturação da dívida. Ainda bem. Convém é que o processo seja liderado pelos devedores e não pelos credores.
A minha posição metodológica está longe dos debates entre o FMI e o Alesina. Só através estudo cuidado da realidade da economia portuguesa nos últimos anos e, recusando amálgamas estatísticas, podemos ter um melhor conhecimento do que o futuro nos reserva. Exemplo disso é este trabalho histórico do Instituto Roosevelt, analisando todas as variáveis onde, embora (ou se calhar, por isso) sem modelos econométricos, se conclui que austeridade em tempos de crise, sobretudo num contexto de impossibilidade de desvalorização cambial, só tem um efeito: recessão. Mais, como mostrámos aqui, pelo efeito dos balanços financeiros em que famílias, empresas e estado tornam remota, ao procurar aliviar simultaneamente o peso do fardo dívida, uma recuperação da economia portuguesa. Diagnósticos diferentes dão prescrições diferentes, como esta do CEPR, que argumenta bem pela necessidade actual de estímulo nas economias periféricas (no caso Espanha). Li no jornal que Reis falou da necessidade de se pensar na reestruturação da dívida. Ainda bem. Convém é que o processo seja liderado pelos devedores e não pelos credores.
segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Mais Ladrões de Bicicletas
Debater sempre
“Dizem que os portugueses vivem acima das suas possibilidades, mas quem é que vive acima das suas possibilidades? Os desempregados? Os 57 por cento de portugueses que vivem com 900 euros por mês? É preciso dizer quem é que vive acima das suas possibilidades. Nós temos um programa de endividamento que nos tira autonomia de decisão, sobretudo no estado em que se encontra a Europa. Nós aderimos a uma Europa de crescimento, de prosperidade social partilhada. Neste momento temos uma Europa em que a Alemanha ditou políticas de austeridade. Isso leva à recessão.”
Manuel Alegre
Amanhã (dia 26) estarei no Porto a debater a crise económica e as alternativas com António Figueiredo e José Carlos Ferraz. O debate começa às 21h30m e terá lugar na sede candidatura de Manuel Alegre (largo Tito Fontes, metro Trindade). Uma iniciativa da Comissão de apoio da candidatura de Manuel Alegre. Apareçam.
Manuel Alegre
Amanhã (dia 26) estarei no Porto a debater a crise económica e as alternativas com António Figueiredo e José Carlos Ferraz. O debate começa às 21h30m e terá lugar na sede candidatura de Manuel Alegre (largo Tito Fontes, metro Trindade). Uma iniciativa da Comissão de apoio da candidatura de Manuel Alegre. Apareçam.
Federalismo neoliberal
Anteontem, no Expresso, Daniel Bessa (DB) deu-nos a conhecer a sua visão federalista da União Europeia:
“O Estado federal europeu está em construção. Lentamente, com alguns momentos de aceleração. A pauta exterior comum. As regras de concorrência. O euro. O Tratado de Lisboa. O que foi decidido, em maio último, no célebre jantar em que 'o mundo mudou'”.
DB mudou muito desde 25 de Abril de 1974. Hoje não lhe repugna uma União Europeia que manda repetir referendos quando algum Estado-Membro diz não. Vê com bons olhos os jantares em que os líderes dos estados mais poderosos tomam decisões nas costas do plenário do Conselho Europeu. E louva a caminhada gloriosa para o “Estado federal europeu” sem se lembrar de eleições para esse nível de decisão federal.
Nem as eleições presidenciais que actualmente se disputam no Brasil – um estado federal como a Alemanha – fizeram recordar a DB que essa é a maior fragilidade da UE que temos. As decisões de âmbito federal na UE são sistematicamente arrastadas numa negociação intergovernamental em que os Estados mais fortes acabam por impor os seus interesses aos mais fracos.
Confesso que não me espanta esta indiferença pela qualidade da democracia europeia. É típica de um economista neoliberal para quem o poder político deve estar ao serviço do funcionamento dos mercados. Ao contrário de muitos que apenas viram uma gafe na célebre frase de Manuela Ferreira Leite (“se for preciso, suspenda-se por seis meses a democracia”), eu acho que estes economistas vêm a democracia como um estorvo ao funcionamento dos mercados. Os mercados financeiros, e outros, ditam as políticas aos países e os economistas neoliberais acham isso “natural”. Sim, um dado da Natureza.
Aliás, DB não vê qualquer problema em que sejam adoptadas sanções que não estão previstas no Tratado para punir os estados que não cumpram os “critérios de Maastricht”. Como diz DB, “Mandarão, como sempre, os credores … Os textos fundamentais serão adaptados em conformidade.” Pouco lhe importa como.
A DB que no Expresso vende a ideia simplista (mas perversa) de que o problema da UE reside no facto de haver países despesistas, deixo esta pergunta: não deverá a Alemanha ser também punida pelos défices de Portugal?
É que, como DB muito bem sabe, não há devedor sem o correspondente credor e, pelo que diz “a imprensa de referência internacional”, entre os principais credores de Portugal, Espanha e Grécia estão os maiores bancos alemães. Aliás, quando se quis saber os resultados dos testes de solvabilidade destes bancos, a Alemanha não deixou que a informação fosse desagregada até ao nível de cada banco.
Com uma visão teleológica da História, é esta a Europa federal que DB louva.
Não é a minha.
“O Estado federal europeu está em construção. Lentamente, com alguns momentos de aceleração. A pauta exterior comum. As regras de concorrência. O euro. O Tratado de Lisboa. O que foi decidido, em maio último, no célebre jantar em que 'o mundo mudou'”.
DB mudou muito desde 25 de Abril de 1974. Hoje não lhe repugna uma União Europeia que manda repetir referendos quando algum Estado-Membro diz não. Vê com bons olhos os jantares em que os líderes dos estados mais poderosos tomam decisões nas costas do plenário do Conselho Europeu. E louva a caminhada gloriosa para o “Estado federal europeu” sem se lembrar de eleições para esse nível de decisão federal.
Nem as eleições presidenciais que actualmente se disputam no Brasil – um estado federal como a Alemanha – fizeram recordar a DB que essa é a maior fragilidade da UE que temos. As decisões de âmbito federal na UE são sistematicamente arrastadas numa negociação intergovernamental em que os Estados mais fortes acabam por impor os seus interesses aos mais fracos.
Confesso que não me espanta esta indiferença pela qualidade da democracia europeia. É típica de um economista neoliberal para quem o poder político deve estar ao serviço do funcionamento dos mercados. Ao contrário de muitos que apenas viram uma gafe na célebre frase de Manuela Ferreira Leite (“se for preciso, suspenda-se por seis meses a democracia”), eu acho que estes economistas vêm a democracia como um estorvo ao funcionamento dos mercados. Os mercados financeiros, e outros, ditam as políticas aos países e os economistas neoliberais acham isso “natural”. Sim, um dado da Natureza.
Aliás, DB não vê qualquer problema em que sejam adoptadas sanções que não estão previstas no Tratado para punir os estados que não cumpram os “critérios de Maastricht”. Como diz DB, “Mandarão, como sempre, os credores … Os textos fundamentais serão adaptados em conformidade.” Pouco lhe importa como.
A DB que no Expresso vende a ideia simplista (mas perversa) de que o problema da UE reside no facto de haver países despesistas, deixo esta pergunta: não deverá a Alemanha ser também punida pelos défices de Portugal?
É que, como DB muito bem sabe, não há devedor sem o correspondente credor e, pelo que diz “a imprensa de referência internacional”, entre os principais credores de Portugal, Espanha e Grécia estão os maiores bancos alemães. Aliás, quando se quis saber os resultados dos testes de solvabilidade destes bancos, a Alemanha não deixou que a informação fosse desagregada até ao nível de cada banco.
Com uma visão teleológica da História, é esta a Europa federal que DB louva.
Não é a minha.
domingo, 24 de outubro de 2010
"Ditamole"
“Se nada fizermos para corrigir o curso das coisas, dentro de alguns anos se dirá que a sociedade portuguesa viveu, entre o final do século XX e começo do século XXI, um luminoso mas breve interregno democrático. Durou menos de 40 anos, entre 1974 e 2010. Nos 48 anos que precederam a revolução de 25 de abril de 1974, viveu sob uma ditadura civil nacionalista, personalizada na figura de Oliveira Salazar. A partir de 2010, entrou num outro período de ditadura civil, desta vez internacionalista e despersonalizada, conduzida por uma entidade abstrata chamada ‘mercados’."
O resto da crónica de Boaventura de Sousa Santos pode ser lido na Visão. A não perder.
O resto da crónica de Boaventura de Sousa Santos pode ser lido na Visão. A não perder.
Ladrões de Bicicletas
Damos as boas-vindas ao Nuno Serra. O Nuno é investigador de economia e um cidadão empenhado. Foi, juntamente com Miguel Cardina, dinamizador da petição a favor do pluralismo no debate económico. Tem trabalhado sobre questões do território, das cidades e da educação. Leiam o seu artigo no último número do Le Monde diplomatique - edição portuguesa: desfaz os mitos neoliberais sobre a liberdade de escolha na educação à pala do financiamento público da educação privada. Boas pedaladas!
sábado, 23 de outubro de 2010
Factos e valores
Recupero dois artigos de George Monbiot no The Guardian. O primeiro indica-nos que Portugal não está sozinho: a austeridade é a expressão do capitalismo de desastre por toda a Europa. A crise é sempre uma oportunidade, já dizia Milton Friedman. Uma oportunidade para aprofundar a captura do Estado e colocá-lo ainda mais ao serviço da acumulação por expropriação de bens comuns. Os factos são mesmo muito importantes, mas sem os valores a esquerda está perdida, como bem argumenta George Monbiot no segundo artigo. Monbiot parte de uma distinção importante entre valores intrínsecos e valores extrínsecos. É claro que Hillary Putnam, um dos mais importantes filósofos da ciência, há já algum tempo que alertou para o colapso da dicotomia factos/valores. Isto está tudo entrelaçado na realidade...
Adenda: a tradução do primeiro artigo de Monbiot está disponível no blogue As minhas leituras graças à generosidade de José Luiz Sarmento.
sexta-feira, 22 de outubro de 2010
Arcade Fire - Ready to Start
O concerto é dia 18 de Novembro, no Pavilhão Atlântico, se a NATO deixar.
Política Industrial - o exemplo da energia eólica
Para terminar as minhas notas sobre política industrial, forneço um exemplo do que é a actual tímida política industrial portuguesa e algumas pistas de como ela podia e devia ser. O governo de Sócrates fez uma forte aposta na área das energias renováveis, sobretudo na energia eólica. Ao ler o plano nacional de acção para as energias renováveis, constatamos as linhas gerais desta política: liberalização do mercado energético, subsidiação das tarifas pagas aos fornecedores, apoios financeiros através de subsídios e vantagens fiscais a aquisição de equipamento. O resultado foi uma explosão de produção de energia eólica, como qualquer pessoa pode testemunhar se andar pelo país. Os resultados são positivos: menor dependência energética externa e produção de electricidade pouco poluente.
Porreiro, pá? Não tanto. Face à liberalização de um mercado recentemente criado (sim, os mercados são construídos…), a sua estrutura é bastante atomizada, com muitas empresas. Ao procurar os accionistas das empresas da “associação de energias renováveis” encontramos todas as grandes empresas energéticas europeias, sozinhas ou em parcerias (E.on, EDF, GDF-SUEZ, Endesa) com algumas empresas nacionais (caso da EDP e da Martifer). Não é difícil perceber que ganhamos mais com a Martifer do que com a EDF, com os seus centros de investigação e produção localizados em França, pois não? No entanto, como a The Economist referia há umas semanas, este mercado prepara-se para ser tomado por uma vaga de aquisições e fusões devido aos cortes nos apoios públicos a este sector. Martifer vs EDF e imaginem quem compra quem. Mais, uma breve pesquisa nos sites destes produtores mostra-nos como a parte mais sensível da tecnologia das turbinas é, nos casos em que consegui chegar à informação (Gerneg, Martifer e EDP Renováveis), alemã e dinamarquesa. Não consegui encontrar nos sites destas empresas quaisquer esforços para desenvolver esta tecnologia. Provavelmente, não é rentável.
Agora imaginemos uma política industrial a sério, onde o Estado, evitando problemas de assimetria de informação, direccionasse o seu investimento científico para o desenvolvimento tecnológico no sector, mobilizasse a participação democrática das populações e trabalhadores neste projecto, optimizando os canais de informação, e privilegiasse o investimento com efeitos de arrastamento no resto da economia nacional em detrimento da pressão de rentabilidade de curto prazo. Beneficiaríamos do recém criado mercado nacional para construirmos capacidades e produtos que, mais cedo ou mais tarde, estarão por todo o mundo.
Enfim, não estou a descobrir a pólvora, nem no modelo de política industrial a seguir, nem na energia eólica em particular. Um dos casos de estudo mais citados neste sector é o de como um pequeno país, a Dinamarca, venceu a concorrência californiana nos anos oitenta. Enquanto os americanos se decidiram por uma abordagem “amiga do mercado” à portuguesa, com as empresas obcecadas com a rentabilidade de curto prazo e muito vulneráveis às mudanças de política de subsidiação de energia, os dinamarqueses apostaram no longo prazo, envolveram a sua investigação académica (antes direccionada para a energia nuclear) e contaram com a participação das populações (através de cooperativas de produtores). Hoje, o modelo eólico mais comum é conhecido como “modelo dinamarquês”…
Finalmente, podem sempre utilizar o contra-argumento que já temos um “campeão nacional”, a EDP Renováveis. Certo, mas sendo uma das maiores produtoras mundiais de energia eólica, a sua estratégia foi baseada no crescimento horizontal, via endividamento e compra de outras empresas e, pelo que vi pelo seu site, não há qualquer esforço em desenvolver a tecnologia mais avançada presente neste mercado, a das turbinas. Essa é fornecida pelos dinamarqueses… Ou seja, embora seja melhor ter a EDP do que a EDF, os ganhos são pequenos (em emprego, capacidade produtiva, investigação e desenvolvimento), quando comparados com uma estratégia alternativa ao serviço da economia e não da rentabilidade míope.
A propriedade é importante neste campo. A política industrial é o melhor argumento para existência de empresas públicas em determinados sectores. Com empresas públicas todo este esforço de promoção e articulação tornar-se-ia mais fácil, evidente e susceptível de avaliação. Esta tem sido claramente uma falha dos partidos mais à esquerda, cuja defesa das nacionalizações assenta unicamente na socialização de lucros monopolistas. As nacionalizações não são um fim, mas sim um meio…
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
Crise no Trabalho Doméstico
Muitos dos efeitos da actual crise e suas assimetrias, são quase invisíveis no espaço público. Por isso, pedi umas breves notas à Vanessa Blétière, investigadora na área do trabalho doméstico assalariado e activista do Grupo de Apoio à Mulher Imigrante. Muito obrigado.
"Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, em 2008, existiam cerca de 100 milhões de trabalhadoras(es) domésticas(os) a nível mundial. Número considerável sobretudo quando estão em causa questões como a precariedade e a invisibilidade, típica de uma ausência de reconhecimento social, e que se traduz na violação constante dos direitos das empregadas domesticas; número, igualmente, considerável para que se perceba a importância que esta actividade adquiriu no seio do trabalho assalariado. O elevado número de trabalhadoras(es), numa área de trabalho maioritariamente feminino, sem perspectiva alguma de carreira nem processo de profissionalização e onde a protecção social é claramente insuficiente constitui os ingredientes de um cenário dramático.
Ao mesmo tempo que o crescimento da procura e da oferta de empregadas domésticas sublinha a importância que esta actividade ganhou junto das famílias, em momentos de crise como esta será uma das primeiras a ser dispensada. Os vestígios estão à vista: já em Junho de 2010, o DN publicava uma notícia que denuncia a crise no trabalho domestico.
Preciso é reconhecer que estas mulheres, que um dia trataram dos nossos lares, continuam a lutar por um trabalho digno, por maior protecção; muitas delas poderão não ter acesso ao subsídio de desemprego; reconhecer que uma grande parte destas mulheres, sobretudo as imigrantes, que sentem já violados os seus direitos, verão piorar a sua situação; lembrar que algumas foram antigas criadas internas que nunca conheceram outro tipo de trabalho nem... outra casa e poderão ser forçadas a abrir mão de um salário; lembrar que menos horas de serviço, por um preço mais baixo, diminui o poder de compra deste exército de mulheres. Reconhecer que a crise afecta a todos e sobretudo os mais desprotegidos (ou, neste caso, as mais desprotegidas).
Vanessa Blétière"
Terapia de choque - ou os ratinhos da gaiola
Eliminação de 500 mil empregos públicos, uma quebra de despesa de 95 mil milhões de euros, 1/3 dos quais por redução de apoios sociais. Entretanto, os bancos vão continuar a beneficiar de isenções fiscais na ordem dos 22 mil milhões de euros. Este é o plano de austeridade anunciado ontem no Reino Unido.
O governo britânico diz que o país se afasta do precipício. A mim estes anúncios sucessivos de medidas de austeridade (que não vão ficar por aqui) lembram os ratinhos que correm nas rodas das gaiolas para não caírem, mas quanto mais cada um corre mais todos têm de correr. No fim caem todos - e a roda pára.
O governo britânico diz que o país se afasta do precipício. A mim estes anúncios sucessivos de medidas de austeridade (que não vão ficar por aqui) lembram os ratinhos que correm nas rodas das gaiolas para não caírem, mas quanto mais cada um corre mais todos têm de correr. No fim caem todos - e a roda pára.
Diário do Orçamento I - Se fosse o Zandinga, era mais científico...
Um dos aspectos mais enigmáticos do Orçamento do Estado que foi apresentado pelo Governo é o seu cenário macroeconómico, que parece desafiar a imaginação dos mais cépticos. O Governo avança com números ousados, para dizer o mínimo, do ponto de vista do crescimento. Sobretudo quando os comparamos com os de outras variáveis.
O Governo prevê que o consumo privado passe de um crescimento de 2,0% em 2010 para uma contração de 0,5% em 2011. O consumo público, de 1,9 para -8,8%. O Investimento Privado, que contraiu -2,0 vai continuar a diminuir, mas de forma mais acelerada (-2,7%) e agora acompanhado de um corte de 20% no Investimento Público. O cenário de crescimento das exportações, sendo bem mais optimista que o do Banco de Portugal (7,3 contra 4,1%), prevê mesmo assim uma desaceleração em relação a 2010.
Mesmo assim, o Governo prevê que a economia cresça em 2011. Crescimento marginal, mas crescimento. E que o desemprego apenas cresça apenas 0,2%. O grande argumento parece ser o de que no ano passado as previsões de crescimento falharam (portanto, agora é à confiança) e que as exportações irão carregar a economia.
Mas será razoável esta expectativa? O Governo tem feito muitas referências à evolução económica da Alemanha e o seu efeito de arrastamento. Mas a Alemanha representa 13% das nossas exportações. A Espanha que representa 27%, ou seja, mais do dobro, acabou de aprovar um plano de austeridade que visa reduzir o défice de 11 para 3% em 3 anos, avançou já com corte de salários e facilitou os despedimentos. Numa Europa marcada por Planos de Austeridade cada vez mais severos e que incidem fortemente no consumo privado de vários dos nossos parceiros comerciais privilegiados, será razoável esperar que a Alemanha compre a toda a gente?
Neste contexto, é de registar que o Governo fala muito dos erros de previsão sobre o crescimento (acima das previsões em 2010) mas não se alonga tanto sobre os erros de previsão sobre o desemprego (revisto em alta em 0,8% para 2010, pelo próprio Governo em relação às suas estimativas).
Sendo compreensível que o Governo se centre nas boas novidades, começa a ser irritante a sua tendência para tomar as pessoas por parvas. Mesmo que o Governo acredite que vai ter 0,2% de crescimento (o que seria preocupante), pensar que, depois de um ano com 1,3% de crescimento e mais 1,1% de desemprego, vai ter no ano seguinte 0,2% de crescimento mas apenas mais 0,2% de desemprego, é abusar da credulidade mesmo dos mais ingénuos.
Sendo compreensível que o Governo se centre nas boas novidades, começa a ser irritante a sua tendência para tomar as pessoas por parvas. Mesmo que o Governo acredite que vai ter 0,2% de crescimento (o que seria preocupante), pensar que, depois de um ano com 1,3% de crescimento e mais 1,1% de desemprego, vai ter no ano seguinte 0,2% de crescimento mas apenas mais 0,2% de desemprego, é abusar da credulidade mesmo dos mais ingénuos.
A toda esta tragédia, o PSD resolveu acrescentar um pequeno apontamento de farsa. Pedro Passos Coelho mostrou-se preocupado com os efeitos recessivos destas medidas e as suas consequências no desemprego (Deve ter ouvido na televisão e como discurso da despesa já não cola...). E propôs uma solução para o carácter recessivo deste orçamento. Congelar todas as obras públicas! É da sensatez e sentido de responsabilidade destas pessoas que depende o futuro do país. Tenham medo.
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
Antropologia elementar aplicada à Economia
“Os bancos provocam uma crise. Os governos atiram milhares de milhões para os bancos e para toda a economia criando enormes défices e dívidas. Os bancos emprestam aos estados e cobram as dívidas que eles próprios criaram com língua de palmo. O estado remete para nós a factura”.
Contada a história desta forma ninguém pode de estar de acordo com esta escandaleira.
Mas, o que acontece se for contada de outra maneira?
“As pessoas e o Estado entraram numa orgia desregrada. O país todo consome e gasta mais do que produz. As pessoas e o Estado acumularam dívidas insustentáveis a ponto de ninguém mais lhes querer emprestar nada. As pessoas e o Estado caem em si finalmente. Agora todos fazem sacrifícios, pois claro. E se todos forem sinceros nos sacrifícios que prometem os mercados vão mostrar compreensão e não fecharão a torneira do crédito”.
Bom, assim o caso é outro. Se calhar até é preciso fazer sacrifícios.
Parece-me que um antropólogo explicaria melhor do que um economista a diferença entre as duas histórias e a capacidade de persuasão da segunda. O segredo parece-me que está na mobilização de linguagem bíblica na segunda mensagem: pecámos, fomos castigados, temos de fazer sacrifícios para que o deus “mercados” se condoa de nós. Se formos sinceros Ele vai ter piedade de nós.
Economia da depressão?
Vale a pena ler o artigo de Ana Matos Pires sobre saúde mental e sobre os meios ou sobre a falta deles em plena austeridade assimétrica. Enfim, ainda há quem, como Pacheco Pereira no Público, consiga escrever que “os ricos terão depressões e os pobres desespero” (cito de memória). O que é que isto quererá dizer? Que as depressões são uma espécie de bem de luxo? O “desespero” não será depressivo? Realmente, o que afirma Pereira pouco interessa.
Portugal é o maior consumidor de antidepressivos da União. Será que, como parece indicar alguma investigação internacional sobre os determinantes sociais da saúde, isto pode ter alguma relação com o impacto da crise socioeconómica permanente num país tão abismalmente desigual, num país com tão cavadas divisões de classe, num país com estruturas tão propensas à geração de sofrimento social, por exemplo, na esfera laboral, que se crava nos corpos e nas mentes dos indivíduos e se calhar até mais nos que ocupam posições subalternas? Um sistema que gera sofrimento no trabalho, um país com horários intermináveis e más condições de trabalho para muitos, relações laborais autoritárias e muita insegurança laboral; fora do trabalho nem se fala: o desemprego corrói a auto-estima.
Estes custos sociais do capitalismo medíocre estão estudados? Há alguma tradição de investigação que se debruce sobre o contributo da estrutura socioeconómica para os problemas de saúde mental em Portugal? Sabemos que somos dos países onde as pessoas se sentem mais infelizes e menos confiam umas nas outras, uma armadilha social típica de sociedades desiguais. Isto está tudo ligado? É tudo infinitamente mais complicado, tão complicado que é impossível identificar padrões e mecanismos com alguma segurança? Alguns psiquiatras têm aflorado estas questões nos jornais, mas de forma muito impressionista.
Estes custos sociais do capitalismo medíocre estão estudados? Há alguma tradição de investigação que se debruce sobre o contributo da estrutura socioeconómica para os problemas de saúde mental em Portugal? Sabemos que somos dos países onde as pessoas se sentem mais infelizes e menos confiam umas nas outras, uma armadilha social típica de sociedades desiguais. Isto está tudo ligado? É tudo infinitamente mais complicado, tão complicado que é impossível identificar padrões e mecanismos com alguma segurança? Alguns psiquiatras têm aflorado estas questões nos jornais, mas de forma muito impressionista.
Bem-vindos à utopia (neo)liberal
"Confio que, enfim governados por sábios insensíveis aos clamores da rua, nos aguarda um futuro risonho. O mundo é hoje demasiado complexo para admitirmos que as sociedades estejam dependentes dos caprichos de eleitorados ignorantes em grande medida parasitas do Estado Social. Talvez não haja emprego para todos, mas a verdade é que nem todos querem trabalhar. Talvez alguns se escandalizem com as desigualdades económicas, mas é preciso premiar o mérito. Os que estão a mais, tarde ou cedo serão forçados a aceitar que, como lapidarmente proclamou o Reverendo Malthus: 'Não há lugar para eles no banquete da Natureza.'"
João Pinto e Castro. Entretanto, João Galamba faz uma breve história de uma fraude que deu origem a uma arquitectura económica disciplinar: "A liberalização dos mercados financeiros foi iniciada no final dos anos 70 e o número de crises financeiras, como é óbvio, aumentou exponencialmente desde então. Misterioso é Rogoff achar que nada disto é óbvio."
João Pinto e Castro. Entretanto, João Galamba faz uma breve história de uma fraude que deu origem a uma arquitectura económica disciplinar: "A liberalização dos mercados financeiros foi iniciada no final dos anos 70 e o número de crises financeiras, como é óbvio, aumentou exponencialmente desde então. Misterioso é Rogoff achar que nada disto é óbvio."
Serão muitos mais...
Há 630 mil portugueses que têm crédito vencido junto das instituições financeiras. Com as políticas deflacionárias, assentes no corte dos rendimentos, serão muitos mais. Lembram-se de Fisher?
terça-feira, 19 de outubro de 2010
Entre Marx e List
O Zé Neves escreve um post crítico a responder ao meu apelo para que se ressuscite uma política industrial robusta. Começa pelo confronto no século XIX entre List e Marx. O primeiro foi um dos melhores teóricos sobre a necessidade de protecção nacional como forma de desenvolvimento industrial. Não foi de todo o único a teorizar sobre o assunto, o primeiro foi provavelmente um dos “pais” dos EUA, Alexander Hamilton (“cara” das notas de 10 dólares), ele próprio inspirado na experiência do inicio do século XVIII do primeiro-ministro britânico Robert Walpole. A identidade das diferentes nacionalidades com os diferentes tempos dos processos de industrialização (Reino Unido, EUA, Alemanha) não é coincidência. Mas, adiante. O Zé Neves confronta List com Marx, fruto de umas notas que Karl escreveu sobre o Frederich. Marx é caracterizado como “crítico do idealismo de uma burguesia que para implementar o capitalismo industrial associava-o a um projecto nacionalista supraclassista”. Certo, para o Marx era indiferente se a exploração era conduzida pelo capital alemão ou inglês. O capital, no fundo, não teria nacionalidade. O proteccionismo seria uma temporária barreira ao capitalismo, já que a tendência seria a de que “o país mais desenvolvido só mostra ao menos desenvolvido a imagem do futuro deste” (Capital, prefácio à edição alemã). Daí que o Marx fosse um entusiasta do livre-cambismo, uma posição que nunca vi subscrita por nenhum marxista vivo. Aliás, Engels aparentemente discordava. Enfim, temos já alguma distância suficiente para saber que Marx estava enganado neste aspecto (os porquês estão na obra de muitos marxistas do século XX) e também sabemos, pela experiência histórica e sem ilusões sobre as motivações idealistas e nacionalistas de List, que este estava certo na sua análise do desenvolvimento industrial, nomeadamente na existência de economias crescentes à escala na indústria (uma ideia recusada pela economia clássica e neo-clássica) e na necessidade de protecção para o desenvolvimento industrial.
Não acho que o Zé Neves comungue de uma qualquer visão determinista sobre o desenvolvimento do capitalismo. A discordância está no entendimento de qual a melhor forma de articular na produção os processos de luta socialistas através da qualificação da economia. Penso que o Zé fica demasiado deslumbrado com os sectores de produção industrial que se deslocalizaram em massa e ignora que, por exemplo, no No Logo da Naomi Klein, os exemplos que são fornecidos não são os da indústria aeronáutica, das energias renováveis ou genericamente dos bens de capital. As Nikes deste mundo podem ser deslocalizadas, mas a Boeing continua a produzir nos EUA e a Aerobus na Europa. Também não tenho qualquer nostalgia da linha de produção fordista. O que sei é que é o sector industrial o principal dínamo das economias modernas e que uma política industrial pode e deve ser o caminho para maior qualificação, maior produtividade e maior democracia no local de trabalho. Na verdade, acredito que é tendo os três, bem apoiados por Estado não parasitado, que se consegue o sucesso, pelas razões que já expliquei (como a melhor informação e avaliação que tal implica). E é através deste processo que as empresas podem deixar de ter à porta o sinal “democracia não entra aqui”. E não Zé, isto não acontece a nível agrícola, onde os avanços tecnológicos estão sempre constrangidos pelo factor terra e pela procura que tem outras características (a saciedade é aqui mais fácil). Na agricultura as economias crescentes à escala são bem mais difíceis.
Finalmente, o Zé acha que por ter estratégias nacionais de desenvolvimento, estou a ser nacionalista e a prejudicar a perspectiva do movimento internacionalista. Primeiro, as minhas hipóteses colocam-se no quadro nacional, porque ele, por mais Nikes deste mundo, continua a fazer sentido enquanto unidade económica de intervenção. As fronteiras continuam a existir. O capital financeiro pode estar muito internacionalizado (e está), mas ele distingue fronteiras e é ele próprio composto por fracções que, devido à sua posição geográfica, têm interesses diferentes. Por isso, não posso trabalhar com "pressupostos puramente globalistas". Por outro lado, os efeitos de qualquer crise internacional, por mais internacional que seja, são assimétricos geograficamente. A intervenção tem pois que ser diferenciada. A “nossa” actual crise afecta os nossos trabalhadores como não afecta os trabalhadores alemães ou franceses. Assim acredito que dentro de um determinado quadro, mais ou menos autonómico, as vitórias nacionais de uns podem ter consequências internacionalistas para outros. Aliás, como o Zé assinala, o que escrevo é inspirado (com as devidas reservas) por modelos de desenvolvimento industrial produto da articulação da luta de classes, em determinados contextos nacionais, que abrem o caminho para dizer “olá” ao que o Zé quer dizer “adeus”.
Não acho que o Zé Neves comungue de uma qualquer visão determinista sobre o desenvolvimento do capitalismo. A discordância está no entendimento de qual a melhor forma de articular na produção os processos de luta socialistas através da qualificação da economia. Penso que o Zé fica demasiado deslumbrado com os sectores de produção industrial que se deslocalizaram em massa e ignora que, por exemplo, no No Logo da Naomi Klein, os exemplos que são fornecidos não são os da indústria aeronáutica, das energias renováveis ou genericamente dos bens de capital. As Nikes deste mundo podem ser deslocalizadas, mas a Boeing continua a produzir nos EUA e a Aerobus na Europa. Também não tenho qualquer nostalgia da linha de produção fordista. O que sei é que é o sector industrial o principal dínamo das economias modernas e que uma política industrial pode e deve ser o caminho para maior qualificação, maior produtividade e maior democracia no local de trabalho. Na verdade, acredito que é tendo os três, bem apoiados por Estado não parasitado, que se consegue o sucesso, pelas razões que já expliquei (como a melhor informação e avaliação que tal implica). E é através deste processo que as empresas podem deixar de ter à porta o sinal “democracia não entra aqui”. E não Zé, isto não acontece a nível agrícola, onde os avanços tecnológicos estão sempre constrangidos pelo factor terra e pela procura que tem outras características (a saciedade é aqui mais fácil). Na agricultura as economias crescentes à escala são bem mais difíceis.
Finalmente, o Zé acha que por ter estratégias nacionais de desenvolvimento, estou a ser nacionalista e a prejudicar a perspectiva do movimento internacionalista. Primeiro, as minhas hipóteses colocam-se no quadro nacional, porque ele, por mais Nikes deste mundo, continua a fazer sentido enquanto unidade económica de intervenção. As fronteiras continuam a existir. O capital financeiro pode estar muito internacionalizado (e está), mas ele distingue fronteiras e é ele próprio composto por fracções que, devido à sua posição geográfica, têm interesses diferentes. Por isso, não posso trabalhar com "pressupostos puramente globalistas". Por outro lado, os efeitos de qualquer crise internacional, por mais internacional que seja, são assimétricos geograficamente. A intervenção tem pois que ser diferenciada. A “nossa” actual crise afecta os nossos trabalhadores como não afecta os trabalhadores alemães ou franceses. Assim acredito que dentro de um determinado quadro, mais ou menos autonómico, as vitórias nacionais de uns podem ter consequências internacionalistas para outros. Aliás, como o Zé assinala, o que escrevo é inspirado (com as devidas reservas) por modelos de desenvolvimento industrial produto da articulação da luta de classes, em determinados contextos nacionais, que abrem o caminho para dizer “olá” ao que o Zé quer dizer “adeus”.
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
Qual é a mentirola predilecta dos economistas de Belém?
Acusar os que deles discordam de defender que “o Estado a gastar muito é que faz a economia crescer” (ver Vítor Bento no Público).
Vou tentar explicar outra vez: (a) um Estado a poupar muito num contexto recessivo de desemprego e de sub-utilização da capacidade é a receita para o desastre; (b) quando ninguém investe tem de ser o Estado a fazê-lo; (c) não é possível, nem sequer para o Estado, viver indefinidamente a crédito; (d) o défice e a dívida devem ser reduzidos na fase ascendente do ciclo económico; (e) as despesas estúpidas e pouco sérias do Estado, a evasão e os privilégios fiscais, devem ser combatidas em todas as circunstâncias.
É só isto. É assim tão difícil de entender? Claro que não. Só que é mais fácil correr a dizer agarra que é despesista.
Vou tentar explicar outra vez: (a) um Estado a poupar muito num contexto recessivo de desemprego e de sub-utilização da capacidade é a receita para o desastre; (b) quando ninguém investe tem de ser o Estado a fazê-lo; (c) não é possível, nem sequer para o Estado, viver indefinidamente a crédito; (d) o défice e a dívida devem ser reduzidos na fase ascendente do ciclo económico; (e) as despesas estúpidas e pouco sérias do Estado, a evasão e os privilégios fiscais, devem ser combatidas em todas as circunstâncias.
É só isto. É assim tão difícil de entender? Claro que não. Só que é mais fácil correr a dizer agarra que é despesista.
Apanhado numa citação fora de contexto
Na entrevista ao Jornal de Negócios que reproduzo abaixo, respondi assim à questão da jornalista sobre a equidade da proposta de Orçamento de Estado para 2011: «Não creio que haja alguma possibilidade de afirmarmos que os esforços de consolidação orçamental estejam a ser equitativamente distribuídos». De seguida apontei quatro razões que me levam a essa conclusão. Bem sei que às vezes gaguejo e as construções frásicas não saem sempre perfeitas. Ainda assim, parece-me um tanto deslocada a opção pelo destaque «Ricardo Paes Mamede (...) considera que "foi feito um esforço para introduzir alguma justiça"».
A lógica dos economistas de Belém no OE
“O único caminho é baixar salários.” Vítor Bento, conselheiro de Cavaco e beneficiário de promoções de duvidoso mérito no Banco de Portugal, em entrevista ao Público. Engenharia social com a vida dos outros. Teixeira dos Santos alinha pelo mesmo diapasão no orçamento, como aliás reconhece em entrevista ao Negócios: defende melhorias da competitividade por via de cortes salariais. Entretanto, o DN indica o que já se sabe: “o salário médio nacional era de 777 euros/mês”. A fraude intelectual do regabofe salarial português é isso mesmo: uma fraude que diz muito sobre os hábitos das elites. A desgraça das nossas elites, promotoras de um capitalismo cada vez mais medíocre, é clara.
Os cortes na despesa pública, os mais profundos desde o 25 de Abril, vão originar quebras intensas nos rendimentos. É esse o efeito. E depois o ministro ainda tem a desfaçatez de vir dizer, em entrevista ontem ao Público, que é tudo muito equilibrado socialmente e promotor da poupança. A abordagem dos balanços financeiros sectoriais ajuda a perceber as imprecisões do ministro. Esta abordagem parte de uma igualdade contabilística incontroversa: a soma dos saldos dos sectores externo, público e privado no PIB tem de ser igual a zero em cada momento.
O projecto do governo é operar uma brutal contracção do mercado interno por via orçamental e da quebra dos rendimentos e assim reduzir o saldo do sector externo, ou seja, o nosso défice externo. No entanto, a redução do saldo do sector externo não deve acompanhar a redução do défice público prevista em percentagem do PIB, o que significa que o contraproducente esforço para reduzir o défice público, a ser bem sucedido, terá como contrapartida uma deterioração do saldo do sector privado e um aumento do seu endividamento. Num contexto de deflação, pode acontecer que o saldo do sector privado se deteriore também porque aumenta o valor real das dívidas. Mas será que a corda parte por outro lado?
E se a redução do consumo e investimento privados for maior do que a redução dos rendimentos? O colapso das importações poderá ser maior do que o previsto? No entanto, tenho dúvidas em relação ao aumento das exportações previsto devido à situação europeia global, ou seja, o cenário de uma melhoria muito significativa da posição externa parece improvável. Pode então acontecer que o défice público, devido à recessão criada, não vá diminuir como o governo prevê e que a corda parta por aqui. Teremos novos cortes e o acentuar do ciclo vicioso. Por isso é que Rob Parenteau, um dos proponentes da abordagem dos balanços financeiros sectoriais, criou várias cenários e concluiu que uma coisa é certa: os “porcos (pigs) vão ser mortos” com estas políticas deflacionárias...
Os cortes na despesa pública, os mais profundos desde o 25 de Abril, vão originar quebras intensas nos rendimentos. É esse o efeito. E depois o ministro ainda tem a desfaçatez de vir dizer, em entrevista ontem ao Público, que é tudo muito equilibrado socialmente e promotor da poupança. A abordagem dos balanços financeiros sectoriais ajuda a perceber as imprecisões do ministro. Esta abordagem parte de uma igualdade contabilística incontroversa: a soma dos saldos dos sectores externo, público e privado no PIB tem de ser igual a zero em cada momento.
O projecto do governo é operar uma brutal contracção do mercado interno por via orçamental e da quebra dos rendimentos e assim reduzir o saldo do sector externo, ou seja, o nosso défice externo. No entanto, a redução do saldo do sector externo não deve acompanhar a redução do défice público prevista em percentagem do PIB, o que significa que o contraproducente esforço para reduzir o défice público, a ser bem sucedido, terá como contrapartida uma deterioração do saldo do sector privado e um aumento do seu endividamento. Num contexto de deflação, pode acontecer que o saldo do sector privado se deteriore também porque aumenta o valor real das dívidas. Mas será que a corda parte por outro lado?
E se a redução do consumo e investimento privados for maior do que a redução dos rendimentos? O colapso das importações poderá ser maior do que o previsto? No entanto, tenho dúvidas em relação ao aumento das exportações previsto devido à situação europeia global, ou seja, o cenário de uma melhoria muito significativa da posição externa parece improvável. Pode então acontecer que o défice público, devido à recessão criada, não vá diminuir como o governo prevê e que a corda parta por aqui. Teremos novos cortes e o acentuar do ciclo vicioso. Por isso é que Rob Parenteau, um dos proponentes da abordagem dos balanços financeiros sectoriais, criou várias cenários e concluiu que uma coisa é certa: os “porcos (pigs) vão ser mortos” com estas políticas deflacionárias...
Retórica eurocrata
Maria João Rodrigues (MJR), ex-ministra de um governo de António Guterres e sua assessora para a política de inovação, veio dizer-nos que “É fundamental apresentar nas instâncias europeias não só um orçamento de responsabilidade fiscal, mas também um plano para o crescimento e o emprego” que traduza “uma verdadeira estratégia de inovação, que Portugal ainda não tem” (Expresso, edição impressa de sábado passado, p. 40).
Começo por notar que Portugal já recebeu muito dinheiro da União Europeia para apoiar as suas empresas nesse processo de transição para produtos de maior valor acrescentado. Se na presente crise há um consenso de que o fundo do nosso problema é a falta de competitividade das empresas produtoras de bens transaccionáveis, a pergunta a que ainda ninguém respondeu no miserável debate público que nos oferece a comunicação social é a seguinte: o que é que falhou nas políticas de inovação empresarial em Portugal?
MJR também não toca neste assunto e compreende-se porquê. Tendo ganho notoriedade e feito carreira política encostada ao Partido Socialista, está inibida de dizer que José Sócrates extinguiu o PROINOV que MJR coordenava e, atirando-o ao caixote do lixo, lançou o seu Plano Tecnológico dominado pela ciência. Em ruptura com o caminho já empreendido de elaboração partilhada de uma estratégia de inovação mobilizando as empresas mais dinâmicas na procura de sinergias entre indústrias (“clusters”), José Sócrates interrompeu uma dinâmica de aprendizagem colectiva que, com limitações, procurava superar erros cometidos em anteriores programas apoiados pelos Fundos da UE.
Ao fazer um apelo piedoso para que juntamente com o orçamento se apresente “instrumentos de apoio ao crescimento”, MJR escolhe o discurso mole da mensagem nas entrelinhas que nada diz sobre as políticas que nos levaram a uma década perdida. Simples tacticismo à espera da nova liderança no PS? Seja qual for a razão, uma coisa é certa: artigos de opinião que omitem uma avaliação das políticas, que não nos confrontam com o que correu mal, que evitam apontar os responsáveis pelas políticas erradas, apenas contribuem para que o País continue anestesiado e não se supere.
Como se isto não bastasse, o artigo de MJR continua a apelar para a política económica inspirada nas ideias da “economia da oferta”. Assume que a recessão produzida pelo orçamento, imposta pela finança internacional e legitimada pelo Consenso de Bruxelas (Comissão, Conselho, BCE), poderia ser neutralizada por um qualquer plano que, de cima para baixo, se tornasse miraculosamente num instrumento promotor de crescimento e emprego. Como se a manutenção da despesa pública em ciência, acompanhada de incentivos fiscais às empresas e outros instrumentos de âmbito financeiro, fossem bastantes “para voltarmos a crescer, criar emprego e ter um futuro”. Como se a oferta gerasse a sua própria procura.
Será que MJR acredita que, por muito que se faça do lado da oferta, haverá crescimento e criação de emprego sem relançamento do consumo das famílias, sem investimento criteriosamente seleccionado para que contenha um elevado efeito multiplicador de emprego, e promotor de sustentabilidade ambiental?
Será que MJR acredita que a austeridade generalizada vai permitir o crescimento da procura no Mercado Interno da União Europeia e, por essa via sustentar as nossas exportações, ao mesmo tempo que a mesma UE renuncia a qualquer política comercial que apoie a nossa (forçosamente demorada) subida na cadeia de valor dos bens em que acumulámos competências exportadoras?
Será que MJR acredita que há uma varinha mágica que transforma milhares de empresários habituados a competir pelo baixo salário (mesmo depois de tantos programas de apoio à inovação) em empresários criadores de milhares de postos de trabalho através das biotecnologias, da exploração dos recursos marinhos, da concepção de software sofisticado, etc?
Não, por muito que MJR se indigne com as novas penalizações por incumprimento dos critérios do Pacto de Estabilidade (com decrescimento), a sua retórica eurocrata não nos leva a lado nenhum, muito menos aponta ao País qualquer caminho que permita “Honrar o nosso nome”.
Toda a economia é política
A crise económica do capitalismo global está a gerar uma situação paradoxal: por um lado, um reforço das políticas económicas que nos conduziram à actual crise e que prometem gerar ainda mais crises e desigualdades sociais e regionais, até à reversão política deste processo ou até à autodestruição do euro; por outro lado, uma intensificação do debate entre os estudiosos da economia acerca da melhor maneira de pensar as relações sociais e políticas subjacentes à provisão económica e acerca dos valores que devem orientar a sua reorganização democrática.
A crise reforçou duas tendências intelectuais positivas que podem, a prazo, ter consequências políticas fundamentais. Isto acreditando que as ideias são uma força material quando adquirem força cidadã. Em primeiro lugar, a crise reforçou o interesse das diversas ciências sociais – da sociologia à psicologia social – pelos processos económicos reais. Em segundo lugar, a crise deu alguma visibilidade a correntes que dentro da própria ciência económica há muito vinham dizendo que a “rainha das ciências sociais” vai nua: a fixação da maioria dos economistas por idealismos mercantis, por uma autêntica utopia económica, no que reproduziram a formação académica recebida, teve consequências científicas e políticas desastrosas.
A ciência económica convencional tornou-se incapaz de explicar os mecanismos dos capitalismos realmente existentes e as exigências de reforma para tornar os sistemas económicos mais sustentáveis social e ecologicamente. A coisa foi ainda pior: a ciência económica foi colonizada pelo dinheiro e tornou-se uma engenharia política ao serviço dos poderes capitalistas mais perniciosos. Em certa medida, a economia neoliberal criou as condições intelectuais e institucionais para a autodestruição económica real.
Neste contexto, a economia é mesmo demasiado importante para ser monopólio de uma economia convencional, que tem também imensas responsabilidades na desastrosa austeridade assimétrica que agora se segue. Esta convicção está na base da conferência internacional que organizamos no Centro de Estudos Sociais (CES), em Coimbra, entre os próximos dias 21 e 23 de Outubro. O leitor português é muito bem-vindo ao esforço internacional para “renovar a economia política”. Poderá assistir a dezenas de comunicações sobre economia em que o objecto de estudo é mais importante do que divisões disciplinares tantas vezes artificiais.
Alguns investigadores internacionais passarão por Coimbra: de Peter Hall da Universidade de Harvard, um dos especialistas nas variedades do capitalismo, ou seja, no que está na base, por exemplo, da distinção entre o igualitário capitalismo nórdico e o desigual e financeirizado capitalismo anglo-saxónico, até a Joan Martinez-Alier, um dos fundadores da economia ecológica, ou seja, do pensamento económico que toma em conta a natureza e os seus fluxos e tenta propor formas sustentáveis de produzir. Isto para não falar dos portugueses José Reis, um defensor da economia impura, ou da economista Ana Cordeiro Santos, que tem analisado o impacto real da ciência económica na construção das economias. Trata-se, para retomar os termos do sociólogo Boaventura de Sousa Santos, também participante na conferência, de pensar a economia como “um conhecimento prudente para uma vida decente”. O que poderia ser mais realista?
Quiz e política industrial
A resposta certa do quiz é a Suíça e o vencedor foi o Rui Tavares. Foi com bastante surpresa que descobri este facto, habituado que estou a ver a Suíça como um país cuja riqueza estaria baseada no secretismo e facilidades fiscais do seu sofisticado sistema financeiro (sector terciário). Cheguei a este dado através do mais recente livro do, amiúde aqui citado, economista coreano Ha-Joon Chang intitulado “23 Things They Don’t Tell You About Capitalism” (“23 Coisas que não são ditas sobre o capitalismo”).
Uma dessas “coisas” (a nona) é que “não vivemos numa era pós-industrial”. Chang explica que, embora a maior parte de nós trabalhe no sector terciário, o sector industrial não perdeu importância nas economias modernas. Se o seu peso relativo no PIB tem vindo a diminuir nas economias mais desenvolvidas, tal não é tanto o efeito das deslocalizações para países como a China (Portugal é um caso diferente, mas já lá irei), mas sobretudo o resultado da ilusão óptica do aumento da subcontratação por parte das empresas - quando uma empresa industrial passa a contratar a terceiros os serviços de limpeza ou de design que antes assumia, existe uma aparente transferência de valor do sector secundário para o terciário – e dos maiores aumentos da produtividade no sector industrial face aos serviços. Esta última razão é deveras interessante: não consumimos hoje menos bens manufacturados, mas o seu valor relativo face aos serviços diminuiu. Por exemplo, hoje o preço dos computadores é um terço do que era nos anos noventa. Isso não quer dizer que consuma menos computadores. Pelo contrário, eu agora até tenho dois. No entanto, face aos serviços, cujo preço não desceu, como um corte de cabelo, o preço dos computadores desceu vertiginosamente e tal dá-me(nos) a sensação de que os bens industriais são menos importantes na economia. Não são. Não só pelo dinamismo da produtividade da economia como todo que o sector industrial proporciona, mas também porque os bens industriais continuam a ser bem mais transaccionáveis (e por isso exportáveis) face aos serviços, permitindo assim um equilíbrio, ou excedente (como no caso da Alemanha) da factura externa das diferentes economias. Aliás, boa parte dos sectores mais dinâmicos dos serviços são aqueles que estão serviço da indústria. Por isso, são raríssimos os casos de países cuja riqueza possa prescindir de um dinâmico sector industrial. A Suíça não é excepção.
A importância da desconstrução de um futuro radioso pós-industrial é maior no nosso país por quatro razões: 1- precisando de crescer urgentemente, a indústria é claramente a melhor forma de o fazer; 2- a desindustrialização devido à liberalização do comércio internacional foi aqui um facto, em sectores tão importantes como têxtil, o que só vinca a necessidade de construir alternativas; 3- Portugal sofre, por muitos motivos diga-se, de um crescente défice externo o que nos obriga a exportar mais e melhor quanto antes; 4- vivemos sob um governo fascinado com as novas tecnologias e sem um programa real de reconversão industrial.Em suma, Portugal precisa de uma política industrial robusta que alie protecção e promoção de determinados sectores industriais. Escreverei mais umas coisas sobre o assunto para que não fiquem a pensar que ando com sonhos produtivistas de uma margem Sul do Tejo cheia de chaminés a fumegar.
Entretanto, deixo um vídeo de apresentação do livro, seguido de debate com o editor de economia do the Guardian, Larry Elliot, infelizmente sem legendas.
Uma dessas “coisas” (a nona) é que “não vivemos numa era pós-industrial”. Chang explica que, embora a maior parte de nós trabalhe no sector terciário, o sector industrial não perdeu importância nas economias modernas. Se o seu peso relativo no PIB tem vindo a diminuir nas economias mais desenvolvidas, tal não é tanto o efeito das deslocalizações para países como a China (Portugal é um caso diferente, mas já lá irei), mas sobretudo o resultado da ilusão óptica do aumento da subcontratação por parte das empresas - quando uma empresa industrial passa a contratar a terceiros os serviços de limpeza ou de design que antes assumia, existe uma aparente transferência de valor do sector secundário para o terciário – e dos maiores aumentos da produtividade no sector industrial face aos serviços. Esta última razão é deveras interessante: não consumimos hoje menos bens manufacturados, mas o seu valor relativo face aos serviços diminuiu. Por exemplo, hoje o preço dos computadores é um terço do que era nos anos noventa. Isso não quer dizer que consuma menos computadores. Pelo contrário, eu agora até tenho dois. No entanto, face aos serviços, cujo preço não desceu, como um corte de cabelo, o preço dos computadores desceu vertiginosamente e tal dá-me(nos) a sensação de que os bens industriais são menos importantes na economia. Não são. Não só pelo dinamismo da produtividade da economia como todo que o sector industrial proporciona, mas também porque os bens industriais continuam a ser bem mais transaccionáveis (e por isso exportáveis) face aos serviços, permitindo assim um equilíbrio, ou excedente (como no caso da Alemanha) da factura externa das diferentes economias. Aliás, boa parte dos sectores mais dinâmicos dos serviços são aqueles que estão serviço da indústria. Por isso, são raríssimos os casos de países cuja riqueza possa prescindir de um dinâmico sector industrial. A Suíça não é excepção.
A importância da desconstrução de um futuro radioso pós-industrial é maior no nosso país por quatro razões: 1- precisando de crescer urgentemente, a indústria é claramente a melhor forma de o fazer; 2- a desindustrialização devido à liberalização do comércio internacional foi aqui um facto, em sectores tão importantes como têxtil, o que só vinca a necessidade de construir alternativas; 3- Portugal sofre, por muitos motivos diga-se, de um crescente défice externo o que nos obriga a exportar mais e melhor quanto antes; 4- vivemos sob um governo fascinado com as novas tecnologias e sem um programa real de reconversão industrial.Em suma, Portugal precisa de uma política industrial robusta que alie protecção e promoção de determinados sectores industriais. Escreverei mais umas coisas sobre o assunto para que não fiquem a pensar que ando com sonhos produtivistas de uma margem Sul do Tejo cheia de chaminés a fumegar.
Entretanto, deixo um vídeo de apresentação do livro, seguido de debate com o editor de economia do the Guardian, Larry Elliot, infelizmente sem legendas.