Não tendo sido ainda encaradas de frente as consequências negativas deste modelo, lesivo dos imigrantes brutalmente explorados e da sociedade no seu conjunto, que tanto favorece a insegurança material e até ontológica de importantes segmentos da população, como é possível que se vá agora investir numa economia de duplo uso, em contexto de rearmamento europeu e orçamentos da Defesa aumentados, em detrimento do Estado social, que anunciam uma segunda austeridade? Alguém ignora que tudo isto constitui o terreno fértil em que a extrema-direita irá continuar a crescer, em particular num país com um campo mediático sem pluralismo político, há muito afunilado à direita e que desde 2019 sobrerrepresenta o Chega nos espaços informativos e de opinião-comentário? Os media em Portugal — e não apenas as televisões, como têm mostrado os estudos do MediaLab do ISCTE — reservaram durante anos um espaço muito maioritário à direita, e depois à extrema-direita, tornando as alternativas de esquerda cada vez mais invisíveis, ou visíveis como saco de pancada. As linhas editoriais dos media tendem a favorecer os interesses políticos e comerciais dos seus proprietários e direções, ou a reproduzir acrítica e irresponsavelmente o que os jornalistas pensam ou sabem ser lucrativo («dá cliques e audiências»). Apesar das exceções, hoje é evidente que os media são uma parte fulcral do problema da democracia, não um seu pilar.
Em maio de 2002, quando França acabava de passar, no mês anterior, pelo choque da primeira vez que a extrema-direita ficava em segundo lugar numas eleições, o diretor de então deste jornal, Ignacio Ramonet, escreveu num editorial intitulado «A Peste»: «Mas se, passado o momento de susto, os mesmos partidos de sempre continuarem com a sua política liberal de privatizações, de desmantelamento dos serviços públicos, de criação de fundos de pensões, de aceitação dos despedimentos por conveniência bolsista — em suma, se continuarem a opor-se frontalmente às aspirações populares a uma sociedade mais justa (…) —, nada nos diz que o neofascismo, aliado às forças colaboracionistas de sempre, não conseguirá levar a melhor da próxima vez...» Aqui chegados, convinha partirmos noutra direção. Enquanto é tempo.
Sandra Monteiro, Chegadas e partidas, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, junho de 2025.
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