terça-feira, 17 de junho de 2025

Que vida para além das contas certas?

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O programa do Governo conhecido este fim de semana traz novidades, por incluir várias medidas que nunca foram apresentadas nem discutidas durante a campanha eleitoral. Desde as mudanças na legislação laboral e na lei da greve aos cortes nos serviços públicos, são várias as áreas em que se anunciam mudanças em relação à governação dos últimos anos. No entanto, há opções que parecem manter-se e há uma que se destaca: a prioridade de continuar a obter excedentes orçamentais.

Embora, no ano passado, o primeiro-ministro tenha afirmado que “o equilíbrio das contas não é o fim da nossa política” e que “há vida para além do excedente orçamental”, a política seguida não tem correspondido ao discurso. Na análise que a Comissão Europeia publicou com a comparação dos planos de médio-prazo apresentados pelos países, há uma dimensão em que Portugal surge na cauda da Europa: é o país que se compromete a financiar o menor nível de investimento público em toda a União Europeia.

O investimento público foi a principal vítima da estratégia das contas certas na última década. Neste período, o país registou os níveis mais baixos de investimento público da história recente, em nome da prioridade dada à obtenção de excedentes orçamentais. O investimento público “líquido”, que representa o saldo entre a formação bruta de capital fixo (ou seja, o valor investido em obras públicas, equipamentos, I&D, software, etc.) e o consumo de capital fixo (que mede o que se vai perdendo com o desgaste dessas obras públicas e equipamentos), tornou-se negativo neste período. Por outras palavras, o que o Estado investe nem chegou para compensar o desgaste das infraestruturas.

A trajetória do investimento público compara bastante mal com o resto dos países europeus. Na última década, Portugal foi o segundo país da União Europeia em que o Estado menos investiu em percentagem do PIB (sendo que o único país que regista uma percentagem de investimento público inferior – a Irlanda – tem o PIB manifestamente inflacionado, o que faz com que não seja o indicador mais útil para avaliar a situação do país).

Os níveis de investimento público nunca recuperaram verdadeiramente desde o programa de ajustamento da Troika. O desinvestimento tornou-se particularmente visível em áreas como a saúde ou os transportes, onde a degradação da qualidade do serviço prestado contribuiu para descredibilizar o serviço público. Neste aspeto, na governação do último ano e nos planos agora apresentados, não se encontram grandes sinais de mudança.

No caso da saúde, a opção tem sido a de contratualizar serviços com o setor privado e apostar em parcerias público-privado, em vez de reforçar o Serviço Nacional de Saúde. É preciso ter em conta que o investimento público não serve apenas para dotar os hospitais e centros de saúde dos meios necessários, mas também para atrair e manter os profissionais, ao contrário do que tem acontecido. Um relatório elaborado por especialistas para o PLANAPP, que avalia a satisfação dos profissionais de saúde, concluiu que as condições do local de trabalho e a atualização de equipamentos e tecnologia são fatores importantes para motivar e reter médicos e enfermeiros. Canalizar o dinheiro público para o setor privado acentua os problemas em vez de os resolver.

Em relação aos transportes, depois de décadas a encerrar linhas ferroviárias, o governo anunciou um corte do investimento previsto da CP para a alta velocidade, com a justificação de que “é saudável para o mercado [o Estado] não investir tanto em comboios”, além de não se conhecerem medidas para combater a sobrelotação em linhas que servem áreas com grande densidade populacional, como a de Sintra. Novamente, o investimento na ferrovia não serve apenas para melhorar a qualidade de vida de quem utiliza o transporte público para se deslocar diariamente. Também permite reduzir as emissões de carbono através da redução do recurso a automóveis privados, o que contribui para o combate às alterações climáticas e reduz as necessidades de importação de combustíveis fósseis.

Nestas e noutras áreas, o desinvestimento costuma ser justificado com a ideia de que as “contas certas” são necessárias para reduzir a dívida pública. No entanto, não existe uma contradição entre a promoção do investimento público e a sustentabilidade das contas do Estado. A maioria dos estudos sobre o efeito multiplicador – isto é, o impacto que a política orçamental tem no funcionamento da economia – conclui que este é superior a 1: por cada aumento de 1 euro na despesa (e, sobretudo, no investimento) do setor público, o PIB cresce mais do que 1 euro. Ou seja, os benefícios que o investimento gera para a economia não só compensam, como tendem a superar os seus custos iniciais.

Enquanto se acena com reduções de impostos que não trazem ganhos verdadeiros para a maioria das pessoas e estão desenhados para beneficiar essencialmente os mais ricos, o investimento público continua a ser relegado para último plano. O verdadeiro problema não está nos impostos que pagamos, mas sim na forma como o dinheiro é utilizado e na qualidade dos serviços que os impostos devem financiar. Adiar os investimentos necessários é uma escolha que nos tem saído bastante cara.

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