O novo ministro das Finanças, Fernando Medina, não podia ter sido mais ofuscador sobre a linha que preside ao Orçamento do Estado (OE): «Ter contas certas é uma política de esquerda». O novo ministro da Economia, António Costa Silva, não podia ter sido mais hesitante em relação a uma proposta fiscal, modesta e defendida por várias organizações internacionais insuspeitas, mas ainda assim destinada a ficar na gaveta governamental: «Não podemos hostilizar as empresas, mas vamos falar com elas e provavelmente vamos considerar um windfall tax [imposto extraordinário] para os lucros aleatórios e inesperados que elas estão a ter». Por sua vez, o primeiro-ministro António Costa foi claro sobre as consequências socioeconómicas de uma maioria absoluta: «Todos os que viveram nos anos 70 e 80 se recordam [das consequências] de responder unicamente com aumento dos rendimentos ao aumento dos preços. Se os preços estão a aumentar porque os custos de produção estão a subir na área da energia, então, por essa via, iríamos só aumentar mais os custos de produção».
António Costa invocou o espectro que o neoliberalismo esconjurou institucionalmente há muito, isto é, o poder compensatório dos sindicatos, capazes de lutar pelo aumento do poder de compra dos salários, num contexto de luta de classes subjacente ao processo inflacionário. Reduziu então os salários a um custo a conter, em nome de uma explicação genericamente correta, mas incompleta e politicamente enganadora, para a inflação: esta seria um fenómeno real, distributivo e, por isso, eminentemente político. Nas actuais circunstâncias históricas, a inflação moderada é sobretudo empurrada pelos custos, em primeiríssimo lugar da energia. A aceleração da inflação – de 0,9%, em 2021, para 4%, em 2022 – será, a fazer fé no governo, um choque temporário e destinado a desvanecer-se por mecanismos económicos e geopolíticos incertos. Para esse desvanecimento, insiste o primeiro-ministro, seria necessário manter uma economia com muito baixa pressão salarial. Há sempre novas razões para este padrão estrutural, em que os salários são a variável de ajustamento.
O ministro da Economia reconheceu que há grandes empresas, da fileira energética à distribuição, a beneficiar de lucros extraordinários, mas ficou-se literalmente pela conversa, revelando o receio governamental de «hostilizar» quem não hesita em transformar poder de mercado em músculo político organizado. Se nem se quer instituir, na área da fiscalidade, uma medida tímida e reconhecidamente conforme aos mercados, então o que dizer de medidas robustas e necessárias de controlo dos preços e das margens destas empresas, que excedam os (sempre úteis) preços tabelados no mercado regulado de eletricidade?
O centro da política económica do governo reside num OE que promete reduzir o défice de 2,8%, em 2021, para 1,9% do produto interno bruto (PIB), em 2022. O ano de 2020, com um défice de 5,7% do PIB, teria sido absolutamente excepcional, tal como a pandemia, produto de uma queda abrupta do PIB de 8,4% induzida por uma quebra da despesa privada. É importante relembrar que, de Janeiro de 2020 a Junho de 2021, entre receitas públicas renunciadas e despesa pública adicional, o impulso orçamental português de 5,6% do PIB representou um terço do registado nas economias avançadas em que nos integramos. E isto no momento em que uma política orçamental vincadamente expansionista teria sido necessária para uma recuperação mais rápida dos efeitos da crise.
Pode ser classificada como de esquerda uma política com um registo comparativo tão medíocre? Será de esquerda uma política que permite um dos maiores aumentos anuais da taxa de risco de pobreza de que há memória, dado que, entre 2019 e 2020, esta passou de 16,2% para 18,4%? E que dizer de uma política que adiou investimentos públicos essenciais ou que só os faz tardiamente e apenas à boleia de vitaminas europeias insuficientes, e que vêm com condicionalidade política reforçada, tal como prometido no OE de 2022? E que dizer de uma política económica que, perante as incertezas redobradas do presente, planeia dedicar somente 0,6% do PIB ao que no OE para 2022 se designa por «medidas de mitigação do choque geopolítico», incluindo 55 milhões de euros para financiar uma prestação única de 60 euros para famílias carenciadas, pretendendo protegê-las assim dos aumentos dos preços? Trata-se de um valor tão residual que, em percentagem do PIB, o relatório do OE indica um valor de 0,0% (nas finanças não trabalham com centésimas de PIB). Haveria mais questões mais ou menos retóricas, mas, felizmente, o pior da pandemia já terá passado e o modelo de Portugal como «Flórida da Europa», centrado nos fluxos turísticos, garante uma recuperação económica de 4,9% do PIB e uma redução das despesas relacionadas com a pandemia de 2,3% do PIB, em 2021, para 0,8%, em 2022. Esta recuperação permitirá superar os efeitos da crise pandémica este ano, se tudo correr como o previsto num mundo imprevisível. E permitirá manter a trajectória de redução do défice orçamental e da dívida pública em percentagem do PIB de 2021, em conformidade com regras ordoliberais europeias que nunca foram suspensas na cabeça dos responsáveis governamentais nacionais. Tudo isto aparentemente sem austeridade, ainda para mais com a boleia adicional de uma inflação que faz subir a receita fiscal, como a do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), e que faz reduzir o valor real da dívida.
Em termos de rendimentos, o que prevê agora o OE para 2022? Prevê que os salários reais recuem 0,8% e que a produtividade cresça 3,5%. Assim sendo, o que podemos concluir? Podemos concluir que, comparativamente com 2021, o poder aquisitivo dos salários vai recuar 0,8% e que, tudo o resto igual, caindo 4,3% o peso das remunerações no PIB, se operará a maior transferência de rendimento do trabalho para o capital a que já assistimos em Portugal no século XXI.