Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
quinta-feira, 31 de dezembro de 2020
Desejo
Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Branqueamento
Texto de Maria João Avillez no Público |
A julgar pela pena de Maria João Avillez, na peça que hoje assina no jornal Público, tudo teria acabo bem com a saída limpa de Portugal do estúpido procedimento por défices excessivos, depois de uma explosiva e socialmente desastrosa intervenção da troica. Havia, pois, uma "herança" a abrilhantar.
A propósito desses estragos - que ainda hoje perduram e foram agravados com a pandemia - já se escreveu aqui. Marcelo Rebelo de Sousa também achava em 2015 que tudo tinha corrido bem e que havia uma "herança" a comemorar. Não, não houve. Foi um desastre. Está ainda a ser um desastre, apesar de algumas das medidas então tomadas - poucas - terem sido revertidas. E o que muito do que melhorou desde 2015 teve a ver com essa mudança. E convém repeti-lo à exaustão para que não se lembrem de votar novamente nessas políticas, defendidas por PSD, CDS, IL e pela extrema-direita. E nalguns casos, o PS alinha com eles.
Concretamente, do que se orgulha esta direita do que foi feito com uma intervenção que obrigou o povo português - e os mais pobres - pagar um empréstimo ruinoso ao Estado, para salvar bancos alemães e franceses que tinham apostado no saque das finanças públicas portuguesas, obrigadas a elevar as taxas de dívida pública porque um BCE inoperante não estava para regular esse saque... E tudo foi aproveitado para desregular o emprego e o desemprego, a ponto de presentemente se viver uma situação de calamidade no Trabalho, com salários e condições contratuais própria de um cataclismo social. Quais foram as vitórias conseguidas com essa intervenção? Onde estão os ganhos de competitividade prometidos? Onde está o saldo das contas externas equilibradas?
E questiona-se Maria João - sem estranhamente conseguir responder - onde estão os "oficiantes (...) que ninguém os viu cuidar da herança"? Mas a resposta existe: Vítor Gaspar fugiu para o FMI. Paulo Portas foi tratar de negócios para o México. Álvaro Santos Pereira foi para a OCDE. E se Passos Coelho aparece ainda, é já com um novo visual, também para lembrar que nada nele tem a ver com os desastrosos momentos que foi aquele mandato de 2011 a 2015.
Não funcionou! Repita comigo, Maria João: não funcionou! O legado foi um desaatre.
quarta-feira, 30 de dezembro de 2020
Marcelo queria em 2015 uma coligação de direita alargada
MRS foi comentador da TVI de 2010 a 2015. Ou seja, um período dramático da vida dos portugueses, que coincidiu com a intervenção externa da troica em Portugal, recebida de braços abertos pela coligação PSD/CDS que quis ir ainda mais além do memorando de entendimento.As consequências foram desastrosas.
Ora, o que pensou Marcelo de tudo isto?
Comentando o estado da maioria de direita na TVI a 4/1/2015 (26'), Marcelo Rebelo de Sousa disse que PSD e CDS estavam a perder a iniciativa política para o PS de António Costa e criticou Paulo Portas por dizer no Brasil que o CDS estava disponível para "renovar a maioria":
MRS: E a expressão "renovar a maioria" é curta porquê? Porque não basta o discurso do PSD e do CDS. Que é: "Nós herdamos um país desfeito, à beira do caos, arruinado, e pusemo-lo equilibrado. Só por isso merecemos continuar". Não chega, não chega. Cada eleição pressupõe mais do que isso, uma esperança, um projecto, uma ideia de futuro que vá além de "nós por aquilo que fizemos justificar continuarmos por 4 anos"
Judite de Sousa (JS): As declarações são sempre muito voltadas para o passado...
MRS: É afirmação do passado quer naquilo em que o PS falhou quer naquilo que a maioria acertou. E portanto é curto. Falta iniciativa política e falta discurso mobilizador. (...)
JS: Mas quanto mais tempo pode durar este tabu sobre a coligação?
MRS: (...) Eu já disse que só por si a coligação é curta. Precisa de meter uns PPMs, uns renovadores qualquer coisa que alargue, precisa de alargar. Mas precisa sobretudo dessa ideia de futuro, precisa de tomar a iniciativa. (...)
Estas declarações são interessantes porque:
1) para Marcelo, a receita levada a cabo foi a adequada e foi eficaz e, portanto, cola Marcelo a uma agenda e a uma política neoliberal para a economia. Na verdade, a receita apenas deprimiu os rendimentos salariais, acrescentou crise à crise ao cortar abruptamente na despesa pública (salários de serviços públicos e investimento), ao fazer explodir o desemprego (o desemprego em
sentido lato atingiu 1,5 milhões de pessoas, cerca de 25% da população
activa!), o que - a par de medidas de caducidade das convenções, congelamento da negociação colectiva, corte de compensações por despedimento, corte para metade da duração do subsídio de desemprego e mesmo do seu montante, tudo fragilizou o emprego e o desemprego, o que forçou a uma descida salarial e aumentou a pobreza e a desigualdade social. Tudo isto visando uma maior competitividade externa da economia (via baixa salarial), o que, mesmo assim... nâo se conseguiu! Na verdade, a terapia, contribuiu para a desarticulação dos serviços públicos (nomeadamente do SNS de que Marcelo não gosta), provocou uma emigração histórica de quadros qualificados (nomeadamente do SNS!), tudo para criar um ambiente de choque que permitisse introduzir as ditas reformas estruturais que nada mudaram, senão o mercado de trabalho (que na sua generalidade se mantêm em vigor). E a prova é que, mal a retoma chegou, os desequilíbrios voltaram.
2) Para Marcelo, a coligação de direita precisava de ser "alargada". E é isso mesmo que está agora a acontecer com ... a iniciativa política da extrema-direita. E - claro está! - Marcelo tudo faz para valorizar o seu papel, esquivando-se a comentar a sua agenda racista inconstitucional.
Como poderia o Presidente da República acabar politicamente com a extrema-direita se é ela que está a dar ânimo à sua direita?
Se a desigualdade cresce e Marcelo quer mais apoios orçamentais, bem poderia ter pensado nisso quando apoiou todos os cortes praticados.
Antes e depois do suspiro de alívio
Palavra de Ventura
«Tomei a decisão, pessoal, de ser candidato presidencial nas próximas eleições. (...) Quero que saibam e que percebam que fiz uma reflexão longa, demorada, sobre este assunto. Até chegar à conclusão de que, neste momento, o melhor serviço que posso prestar ao partido é entregar-me a esta luta. Neste momento eu sou o líder do partido, tendo sido também um dos seus fundadores. Sou o deputado que representa o partido na Assembleia da República. (...) E portanto vou trabalhar na minha candidatura presidencial sem nunca esquecer que, em primeiro lugar, a minha primeira obrigação é no Parlamento e é à frente do partido. Não suspenderei o meu mandato no Parlamento. E por isso continuarei a exercer as funções para as quais fui eleito»
Excertos da comunicação de André Ventura aos militantes, antes de anunciar publicamente a sua candidatura, a 8 de fevereiro de 2020. O mesmo André Ventura que, a 21 de dezembro, solicita à Assembleia da República a suspensão do mandato de deputado entre 1 e 24 de janeiro (prorrogável até 14 de fevereiro no caso de haver segunda volta).
Como bem lembra aqui o David Crisóstomo, «os "motivos relevantes" que admitem a suspensão de mandato e a correspondente substituição são a doença grave, a licença de parentalidade e quando se é alvo de um procedimento criminal», não sendo por isso admitido, nos termos do Estatuto dos Deputados, «nenhum outro cenário». Ventura escusa aliás de se vitimizar, acusando «o sistema» de perseguição, já que não é sequer o primeiro deputado em exercício a candidatar-se à Presidência da República. Como também lembra oportunamente o David, com exemplos, «Defensor de Moura e Francisco Lopes foram candidatos em 2011. Jerónimo de Sousa e Francisco Louçã foram candidatos em 2006. Basílio Horta e Carlos Carvalhas foram candidatos em 1991». Nenhum deles suspendeu o mandato, todos se mantiveram em funções.
terça-feira, 29 de dezembro de 2020
Sem programa, e embalados por sondagens (II)
Estas diferenças na reconfiguração das intenções de voto à esquerda e à direita ficam ainda mais claras quando se analisa o peso relativo, em cada caso, dos «novos partidos». Se o Chega e a IL representavam cerca de 10% do voto à direita em outubro de 2019, hoje quase atingem quase 1/3 (31%) das intenções de voto. À esquerda, pelo contrário, o peso relativo do PAN e do Livre passa de 13% do voto à esquerda (legislativas de 2019) para cerca de 8%, reforçando em termos relativos as intenções de voto no PS, Bloco de Esquerda e CDU. Assim, se a ideia de aproximação ao Chega e à IL, por parte do PSD e do CDS-PP - que continuam sem um verdadeiro programa alternativo de governação - é a de conquistar o poder com os votos daqueles partidos, mas metendo-os no bolso, talvez valha a pena que avaliem o que está a acontecer.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2020
Candidato ou PR?
Os novos tempos não precisam de meias pessoas.
A situação do país está demasiado condicionada e fechada, quase condenada à estagnação e à desigualdade, à violência e explosão emocional gerada por essa desigualdade que precisa de gente menos preocupada com a sujidade dos punhos de renda e que olhe o futuro de frente, não através do retrovisor.
Marcelo Rebelo de Sousa fala facilmente, mas alguém sabe o que pensa sobre os grandes assuntos? Esconde metade do que pensa na metade da vida que é visível. Não é claro, não é sincero, não é frontal. Em cada evocação de um princípio básico esconde uma agenda própria.
É por isso que, quando confrontado com questões difíceis e essenciais, se esquiva, se refugia em Belém, usando geralmente, à vez, dois argumentos (como foi possível ver na entrevista dada à TVI):
Primeiro: "o candidato só pode dizer aquilo que o pode dizer o Presidente da República que é. Eu sou PR e depois sou o candidato a uma reeleição. E o PR já disse o que tinha a dizer". Segundo, o PR não comenta. "Já fui comentador durante muitos anos, várias décadas. E gostei muito. Mas agora fui eleito para decidir. E para ser comentado".
Se Hitler chegasse a Portugal, consagrasse os sagrados princípios nacional-socialistas portugueses (PNSP), mas evocasse na rua a estigmatização racial e a defesa progressiva da solução final, Marcelo Rebelo de Sousa não faria nada, porque estaria já a pensar como é que uma nova maré de deserdados que opte pela extrema-direita violenta poderia recentrar o espectro da política à direita e revelar a civilidade de uma direita tradicional pouco interessada em resolver os conflitos sociais do país, mas mais em mantê-los, ao apostar nas velhas "soluções" de redução dos custos salariais que acarretam consigo a subjugação sindical. Como em França, o povo português passaria a escolher entre a direita e a extrema-direita. E tudo ficaria igual.
Se fosse questionado sobre esse facto, adoptaria a táctica usada na entrevista à TVI:
- Vê algum problema constitucional nas posições que o [PNSP] tem assumido?
- Quem tem que ver é o ...
O entrevistador começa a enumerar as diversas posições e declarações políticas dessa organização. Mas Marcelo Rebelo de Sousa não se demove e continua onde parara:
- ... é o Tribunal Constitucional. O Tribunal Constitucional é que tem de ver, tem de julgar. Sabe, o processo hoje é muito claro: Ministério Público pede, o Tribunal Constitucional decide.
- Mas o senhor é constitucionalista...
[a Constituição da República Portuguesa, que o PR jurou cumprir e fazer cumprir, determina no seu artigo 46º que "não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista"]
- Sou constitucionalista, mas sou PR. Portanto, não me posso esquecer que sou PR. E o PR usa os seus conhecimenros constitucionais para o exercício da sua função. Não para comentar. (...) Eu não posso descriminar por razões de simpatia ou antipatia um partido e os deputados desse partido (...). Nem os eleitores. Quando digo que sou o presidente de todos os portugueses não sou de todos menos 10%, não sou de todos menos 15%.
Hitler agradeceria e continuava a militar em Portugal. E Marcelo sorriria quando o visse a rondar o poder, sem se aperceber que a História o estava julgar, não pelo que tinha evitado dizer, mas pelo que não fez.
domingo, 27 de dezembro de 2020
A adesão à CEE como estabilização democrática e a economia política do Minho
Existem certos setores da historiografia e da economia política há muito empenhados em traçar um quadro de análise da história portuguesa recente em que a adesão à CEE surge como a manifestação última da consolidação da democracia.
Veja-se o exemplo destas passagens do livro "Crise e Castigo - o dia seguinte", de Fernando Alexandre, Luís Aguiar-Conraria e Pedro Bação: "O regime saído da revolução de Abril de 1974 encarou a Europa como fonte de legitimação política, fundamental para a consolidação da democracia (...)" e "A integração na UE era, também, a garantia da estabilização do regime democrático recentemente estabelecido".
O objetivo desta tese é mal disfarçado. A democracia portuguesa passa a ser interpretada como uma conquista dependente de um projeto externo (a UE) e de um golpe que pôs termo aos excessos da revolução, o 25 de Novembro. O 25 de Abril transforma-se num resíduo, num acontecimento histórico ambíguo que, sem os acontecimentos ulteriores, mais provavelmente teria desembocado numa ditadura socialista do que numa democracia. A democracia seria devida aos golpistas de Novembro e à Europa, não à revolução do 25 de Abril.
O problema desta tese é não ter qualquer adesão à realidade. Nunca, entre 1974 e 1986, esteve o regime democrático ameaçado. Todas as eleições realizadas foram reconhecidas como livres por todas as partes. Um marco notável numa democracia que herdara uma história de 40 anos de eleições forjadas pelo fascismo.
Se ameaças havia à democracia em 1986, elas provinham da candidatura de Freitas do Amaral à presidência e dos setores da sociedade portuguesa que em torno da candidatura ousaram sonhar com tempos passados.
Em 1986, Portugal era um a democracia consolidada há 12 anos. Não foi a Europa que nos trouxe a liberdade.
Obrigado
quinta-feira, 24 de dezembro de 2020
Sensibilidade acertada
A minha linguagem não será a mais acertada. Vários colegas descreveriam melhor o impacto da pandemia na vida das pessoas e na sua relação com Deus. Falo apenas daquilo que vejo. E o que vejo todos os dias são pessoas desesperadas, ao frio e à chuva, em filas crescentes para uma refeição. Quando a minha paróquia, da Senhora da Conceição, no Marquês, no centro do Porto, criou o projecto “Porta Solidária”, estávamos vocacionados para os sem-abrigo e preparados para servir 40 refeições. No pico da última crise, em 2013, tínhamos atingido médias diárias de 300 refeições, sobretudo a sem-abrigo e reformados cujas pensões mal chegavam para pagar o quarto, a água e a luz. Desde que esta pandemia começou, logo em Março, os números dispararam para uma média de 550 refeições diárias (...) Já aparecem famílias com bebés nos carrinhos. Quem arrasta os filhos atrás de si e se expõe ao frio e à chuva para conseguir uma refeição é porque tem mesmo necessidade disso (...) Procuro dar-lhes algum apoio espiritual, que a reconciliação seja um momento de libertação, não uma sala de tortura, mas acontece-me muitas vezes no final incentivar as pessoas a procurarem ajuda técnica, e às vezes química, para conseguirem alcançar de novo a paz interior e o equilíbrio emocional. Ainda há tanto estigma em relação a isto (...) Espero que venha aí um programa estrutural de combate à pobreza, que se vai agravar ainda mais. As respostas de emergência como a nossa nem deveriam ser necessárias. Não é aceitável termos cidadãos portugueses que não têm o que comer nem casa para morar. Para a Igreja, o desafio será conseguir transmitir uma mensagem de confiança, de espírito de luta e resiliência. Estamos todos no mesmo barco e temos de ser capazes de cuidar uns aos outros.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2020
Repetimos. Um artigo miserável. De facto.
Colaborar na tradução
Estou a ler o livro de Grace Blakeley, O Choque do Coronavírus – Como a pandemia mudará o capitalismo. Estou a gostar do livro, mas da tradução nem por isso. Por exemplo, leio que “a Amazon contratou 175 000 colaboradores” durante a pandemia e fico de cabelos em pé. Vou ver o original: “staff”. Que tal funcionários, empregados, trabalhadores, mesmo? Mais um cromo para a colecção de João Ramos de Almeida. Bem sei que é a primeira autora marxista que a Gradiva edita nesta colecção (em 128 livros), mas não havia necessidade deste enviesamento ideológico na tradução.
Confiança nacional
A UE não é, nem vai ser, um país, lembrem-se.
É preciso confiar inteiramente no nosso serviço nacional de saúde e na nossa capacidade de vacinação. Temos boas razões para isso, dado o precedente nesta área. O problema pode estar a montante, em instituições europeias desenhadas para destruir serviços nacionais. Lembram-se de quantas recomendações daí emanaram neste sentido? 63, entre 2011 e 2018.
Não há propaganda que substitua a legitimidade pelos outputs, na manifesta ausência da que é dada pelos inputs...
terça-feira, 22 de dezembro de 2020
Notas sobre triunfos das cavaquices
Vejo demasiados intelectuais de esquerda a usar expressões equivocadas e produto de uma amnésia histórica. A minha favorita é democracia liberal, ou seja, democracia limitada pelo poder capitalista.
Os liberais no longo século XIX não eram propriamente democratas e no breve século XX só o foram relutantemente. Há muito que o neoliberalismo, filho dessa tradição liberal, mina deliberadamente a democracia. Os liberais que quiseram ser democratas tiveram de acabar por se transformar em social-democratas ou mesmo em socialistas num outro contexto histórico, em que o pêndulo oscilava para o nosso lado, graças ao espectro da revolução. A nossa constituição original superou o liberalismo e o essencial do que ainda lá está de válido corresponde a essa superação democrática.
Também vejo demasiados intelectuais, orgânicos e tradicionais, que tinham obrigação de se declarar socialistas ou comunistas, a declararem-se social-democratas, levando assim o pêndulo para a direita, ainda que o façam de forma não intencional. Enfim, às vezes apetece fazer como Jean-Claude Michéa e mandar a noção de esquerda às malvas, regressando, por exemplo, a termos típicos da boa tradição antifascista, a uma noção de comunidade nacional socialmente enraizada, ancorada na moralidade da gente comum, a um tipo de fronteira do antagonismo que nos deu tantas vitórias. Não se regressa exactamente da mesma forma a um sítio onde já se triunfou, bem sei.
Bom, tudo isto mostra nos decisivos campo das palavras e das coisas como o pêndulo continua a ir para a direita, ao contrário das aparências complacentes. É assim por cá pelo menos desde 1984. É como se o protocavaquista clube da esquerda liberal dos funestos anos oitenta nunca tivesse acabado.
Uma das razões para esta deslocação para a direita está relacionada com o fenómeno das preferências adaptativas, já aqui identificado, num país progressivamente sem instrumentos de política e onde assim se perde o músculo ideológico que vem do seu exercício na prática e dos combates consequentes pelo seu controlo. Continua tudo a decidir-se no poder de Estado.
De resto, sem uma classe trabalhadora forte e organizada, condição para a emancipação social e nacional, muita intelectualidade progressista anda sempre meio perdida, sobretudo as suas camadas superiores. Não é defeito, é feitio de classe. É verdade que a desgraçada proletarização em curso pode pelo menos contribuir para isolar politicamente as camadas superiores, hoje imprestáveis com honrosas excepções, radicalizando, mas nada é certo, ao contrário de visões mecanicistas da história. É preciso organização e devo dizer que vejo, espero estar a ver mal, a juventude universitária muito abandonada politicamente.
Lembrem-se que nesta periferia ainda é tudo ideologicamente pior, dado o efeito de cooptação num espaço público hegemonizado pelos europeístas de quase todos os partidos, como confirmam indirectamente os dados disponíveis sobre o espaço das direitas.
Sim, Cavaco nunca cessou de vencer. Só enfrentando com realismo este estado de coisas, é possível começar a mudar os termos da paisagem ideológica. Mais realismo radical, por favor.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2020
Quiz: pode um neoliberal ser social-democrata?
Resposta: Ele pode dizer que sim, mas no final será apenas um neoliberal.
Vem isto a propósito da mais recente entrevista de Cavaco Silva à rádio Observador, a qual merece alguma da nossa paciente atenção.
A sua visão é um caldo de confusões, que já nem se percebe se Cavaco Silva está verdadeiramente confundido, se é apenas ignorante (da sua própria ignorância), se quer enganar meio-mundo ou, pior, se a visão redutora e autista do neoliberalismo esvazia o conteúdo da própria História, falsificando-a:
Jornalista: Hoje em dia a social-democracia parece estar muito na moda: Rui Rio é social-democrata, Marisa Matias é social-democrata, Catarina Martins do BE é social-democrata. (...) Esta social-democracia existe mesmo ou é mais uma força de expressão?
Cavaco Silva: Sabe... surpreende que algumas pessoas invoquem em tempo de eleições - devemos sublinhar isso - que são da social-democracia procurando se afastar daquelas ideologias que estão muito longe da social-democracia. Quer dizer que, em tempo de eleições, eles querem mostrar aos portugueses que, afinal, não são extremistas no sentido que têm uma ideologia próxima do comunismo e do marxismo e que preferem dizer - ou dar a entender - que estão mais próximas das ideologias que consideram a economia de mercado, a livre iniciativa, a concorrência, como os grandes motores do crescimento económico, quando essas pessoas - sabemos - são contra a livre iniciativa na Saúde, a medicina privada, que são contra as escolas privadas (...). Eu penso que seria muito fácil escrever um livro a demonstrar que essas forças políticas, incluindo o PS, não têm nada - pelo menos em Portugal - a ver com a verdadeira social-democracia.
Jornalista: Portanto, nem o BE nem o PS são sociais-democratas, isso parece-me claro no entendimento que faz da social-democracia...
Cavaco Silva: Repare, repare... São forças políticas que defendem a estatização da economia, como agora temos prova disso quase todos os dias. Eles secundarizam a concertação social. (...). Defendem um Estado grande, com impostos muito elevados. Portanto, não têm quase nada ou muito pouco a ver com a moderna social-democracia que foi aquela que eu tentei implementar em Portugal, inspirada em Francisco Sá Carneiro, no período entre 1985 e 1995. Mas mostra bem como a designação social-democracia é apelativa, é atractiva, pensam que atrai mesmo votos, criando ilusões e enganando os cidadãos. Bem...
Antes de se responder a esta saraivada, ouça-se a pergunta seguinte.
Quando questionado sobre se o programa de Passos Coelho iria no sentido de uma social-democracia moderna, Cavaco responde que esse foi, sim, um programa "da troica, negociado pelo engenheiro Sócrates". Estamos, pois, no completo delírio político. Todos se recordam das declarações de Eduardo Catroga, em Maio de 2011, de ter sido o PSD a influenciar o conteúdo do memorando de entendimento (ver a partir de 3'30); de Passos Coelho querer "ir além da troica" no sentido de uma redução mais acelerada do papel e da dimensão do Estado na economia, na redução dos direitos dos trabalhadores - tidos como rigidezes do mercado - e do desastre social que isso criou, com uma taxa de desemprego em sentido lato a atingir 25% da população activa, provocando a fuga de Vitor Gaspar (para o FMI) e de Paulo Portas (negócios mexicanos).
Ao contrário do que diz Cavaco Silva, a social-democracia não se divide entre antiga e moderna, mas entre verdadeira e falsa.
A verdadeira social-democracia sempre defendeu um papel público na provisão de bens e serviços como a Saúde e a Educação. Diria mesmo até que a verdadeira social-democracia é tributária e é influenciada pelas ideias socialistas e comunistas, lançadas desde o século XIX em nome de uma igualdade de oportunidades que o mercado por si só não garantiu - nem garante ainda -, tornando-se paradigmas dominantes de políticas públicas, seguidas por centenas de milhões de homens e mulheres em todo o mundo, medidas necessárias para pôr cobro a uma flagrante desigualdade de vidas, de repartição de riqueza. É mesmo tributária da existência de uma União Soviética, na altura farol de revolta e de esperança para os famélicos da terra capitalista, em que a social-democracia europeia surgiu como alternativa capitalista a um novo mundo em construção, quando movimentos comunistas ganhavam cada vez mais adeptos nos países ocidentais.
Recorde-se que, no pós-guerra, os partidos comunistas ou à esquerda foram dos partidos mais votados. Foi o que aconteceu em França, na Itália em 1945, 1948 ou 1953, no Reino Unido, na Bélgica, na Holanda, na Suécia, na Finlândia, etc. O Plano Marshall, a par de uma penetração norte-americana na Europa, com a criação da NATO para defender a sua aplicação, teve muito de reactivo a essa crescente implantação à esquerda. E o paradigma social saído desse pax americana visou, também, estancar essa hemorragia e salvaguarda da zona de influência capitalista.
Seguindo esses tempos - simultâneo a um poderoso movimento internacional anticolonial e anti-imperialista - as ideias hoje conhecidas da social-democracia entraram em Portugal pela mão de socialistas, de comunistas, de católicos durante a ditadura fascista, em prol de uma justiça social. Leia-se, por exemplo, o programa do PCP de 1965 e encontrar-se-á lá medidas que qualquer regime social-democrata defenderia com gosto e que, nesse momento da História europeia, ainda eram actuais: "elevar o nível de vida das classes trabalhadoras", um programa laboral básico (direito ao trabalho, à jornada de 8 horas, segurança no trabalho, assistência médica, contratação colectiva), "democratizar a instrução e a cultura" (extinção do analfabetismo, instrução primária obrigatória e gratuita e acesso das classes trabalhadoras à universidade, "ensino industrial, agrícola e politécnico gratuito aos jovens trabalhadores"), etc.
Eram os ventos da História. E mesmo o PSD português não quis ficar atrás ou ser varrido por eles. Como já se escreveu aqui, o Partido Social Democrata, criado após o 25 de Abril como PPD por deputados do partido único marcelista e liderado por Francisco Sá Carneiro - que Cavaco Silva tanto homenageia -, teve um programa em 1974 que defendia um papel crucial do Estado e a subordinação da tal iniciativa privada ao bem colectivo.
Aquilo que Cavaco Silva considera hoje como apanágio da social-democracia, são antes conceitos instrumentais entroncados num ideário neoliberal, que nada tem de social-democrata. E que surgem bem mais tarde, para cuja implantação Cavaco Silva teve - de facto - um papel essencial.Essas ideias - redução do papel de provisão pública, livre iniciativa em plena concorrência através dos mercados e em que o Estado apenas regula - foram veiculados em Portugal, primeiro no início dos anos 70, numa página económica do Diário de Notícias - em que estava um grupo de alguma forma ligado ao regime marcelista como Diogo Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, Augusto Athaíde, Alberto Xavier, Duarte Ivo Cruz e Miguel Puppo Correia; desde 1976, foram veiculadas sobretudo por instâncias internacionais como o FMI (a que PPD se associou como apoio político anti-nacionalizações após o 11/1/1975); ainda a reboque do FMI, foram veiculados através da criação da Universidade Nova de Lisboa em 1978 muito ligada aos Estados Unidos e que agregou um grupo de doutorados em universidades dos EUA e noutros países (onde estava também Cavaco Silva); foram-no ainda através da acção política contra a Constituição de 1976 levada a cabo pelo Governo da AD (criado em 1980); através da segunda intervenção do FMI (1983/85) que por acaso coincide com a criação no jornal Semanário ligado a uma direita e extrema-direita do PSD, onde estavam, entre outros, Marcelo Rebelo de Sousa, José Miguel Júdice, Vítor Cunha Rego (segundo Rui Mateus, com ligações à CIA desde antes do 25 de Abril), jornal que abriu uma coluna - "A Mão Invisível" - a um grupo de economistas da Nova, de pendor abertamente neoliberal e cujos alguns escribas - Miguel Beleza, Jorge Braga de Macedo, António Borges, nomeadamente - viriam a ter um papel institucional durante os governos Cavaco Silva.
Tudo isto aconteceu sob o chapéu do nome do Partido Social Democrata. Mas além do PSD, o próprio Partido Socialista se viu infectado por estas ideias neoliberais.
Trickle-down economics: a enésima confirmação de um embuste
Votos de um Natal em Paz
Contra a miserável política social do nosso país que tem deixado na valeta milhares de cidadãos, defendo neste vídeo uma sociedade justa e solidária. Recordo a expressão do Papa Francisco: “ninguém se salva sozinho”.
Votos de um Natal em Paz.
domingo, 20 de dezembro de 2020
Mais um, para a campanha de desinformação
Na sua súbita aparição, quem sabe se a preparar o caminho para uma segunda tentativa de «ir ao pote», Passos Coelho referiu-se deste modo aos resultados dos alunos portugueses no TIMSS (Trends in International Mathematics and Science Study) de 2019, ignorando convenientemente os factos.
Mas não, sem contraditório e com uma comunicação social pouco exigente (já viram, por exemplo, algum polígrafo tratar disto?), podem continuar a dizer - com a maior descontração e sem um pingo de escrúpulo - que os resultados do TIMSS «incidem sobre o percurso escolar de alunos que iniciaram os seus estudos já no âmbito das reformas introduzidas pela atual equipa governativa», ignorando assim o lastro deixado pelas suas próprias políticas.
Cavaquices
O título e a foto foram roubados a Vítor Dias. Quem tenha lido o último livro de Cavaco Silva e a sua desmontagem por João Ramos de Almeida no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Dezembro, terá aprendido que só os seus governos encarnaram o que designa por social-democracia moderna e que surpreendentemente Olof Palme é uma das duas grandes referências social-democratas (a outra é Sá Carneiro, claro).
Olof Palme, o que chegou a considerar a CEE sinónimo de quatro c - conservadora, capitalista, colonialista e clerical - (citado pelo historiador Bernard Moss), é certamente a antítese da tradição euro-liberal de Cavaco. Qualquer social-democrata a sério só pode repudiar a convergência com a extrema-direita, isto para não falar dos elogios a Salazar já feitos pelo próprio Cavaco, como lembrou Ramos de Almeida. Já agora, a social-democracia sueca foi consequentemente favorável aos movimentos nacionalistas, em luta contra o colonialismo salazarista.
É épica a falta de respeito do grande promotor da neoliberalização da economia política nacional pelos leitores, pela verdade histórica. E por falar em falta de respeito pela verdade: Passos Coelho, o líder da poderosa JSD nos tempos de Cavaco, está de regresso. Um susto, realmente, sobretudo quando se sabe da reacção favorável de Ventura, um dos seus subprodutos mais tóxicos. Está tudo ligado, realmente.
Entretanto, e ainda no quadro das culturas das direitas, a ascensão da iniciativa liberal confirma que certa esquerda precisa urgentemente de superar o complexo liberal que a mina desde o cavaquismo e que inclina, com a imprescindível ajuda do resiliente império liberal que dá pelo nome de UE, o plano na direcção das políticas das direitas, por muito que alguns insistam em iludir-se.
Tudo começa nos nomes: a nossa democracia não é liberal, palavra que de resto nem aparece na Constituição, ao contrário de socialismo. A nossa democracia, dadas as suas origens sadiamente revolucionárias, superou, com o que isto implica de ter retido o que houve de meritório nessa tradição, o liberalismo. Qualquer liberal consequente só pode rejeitar a ordem constitucional saída de 1976. E daí que o projecto, ainda não totalmente vitorioso, de expurgar a Constituição das suas origens antifascistas e socialistas, em sentido amplo, tenha feito parte da reconstrução desse ideário em Portugal, sob a forma neoliberal que é hoje a sua. Uma doutrina, qualquer uma, identifica-se em primeiro lugar por aquilo a que se opõe. Em Portugal não foi diferente.
Esta ronda pelas direitas não ficaria completa sem uma nota sobre o líder de um cadáver político adiado, o CDS: apoiou ontem convictamente no Público Marcelo Rebelo de Sousa, o candidato anti-socialista, como bem o definiu. É realmente trágico ver autodenominados socialistas a apoiar o candidato de todas as CUF, do que Rodrigues dos Santos chama de economia social de mercado, nome de código fácil de deslindar para o patrocínio à entrada do capital nas áreas do Estado social, tendo ainda o topete de se declarar contra experimentalismos sociais.
Que mais não seja numa lógica de puro poder, estes socialistas com tantas aspas terão amplas oportunidades para arrependimentos tardios no caso de Marcelo conquistar um segundo mandato. Conhecem a história do escorpião e do sapo? A travessia poderá ir a meio. E a natureza dele é clara e ninguém a capta melhor do que João Ramos de Almeida: da polícia nacional aos ataques ao SNS, passando pelos reveladores pés de dançarino. Riam, riam, que depois choram.
E já que alguns estão mais próximos ideologicamente da sua economia política do que doutra coisa qualquer, aconselho a que falem com Cavaco sobre o segundo mandato de um presidente republicano, socialista e laico que ele apoiou no início dos anos noventa. Aprende-se, olhando para todos os lados. A história é novidade, mas também é recorrência.
sábado, 19 de dezembro de 2020
Leituras: Manifesto (nº 5)
E surgiu, entretanto, a crise pandémica associada à Covid-19, que perturbou de forma brutal o quotidiano, no plano social, económico e até político e cultural, obrigando à adoção de medidas, até aqui impensáveis, para a enfrentar. No fundo, temos todos a obrigação de saber que a robustez das soluções democráticas – do Serviço Nacional de Saúde à confiança social alimentada pela igualdade cidadã, passando pelas instituições públicas de produção de ciência – são outros tantos mecanismos que fazem a diferença no combate à pandemia. Esta obrigou-nos a distinguir o essencial do acessório, incluindo na produção e no trabalho, superando o relativismo neoliberal, que tinha feito da finança o alfa e ómega da existência. E obrigou também as instituições europeias a suspender regras “estúpidas” no plano orçamental ou do mercado interno sem, no entanto, colocar em causa o primado da finança.»
Do editorial do nº 5 da revista Manifesto, disponível a partir da próxima segunda-feira, 21 de dezembro, em livrarias e quiosques, podendo ainda ser adquirida através da página da Fórum Manifesto. Boas leituras!
Lista de Artigos:
ANA BENAVENTE, O meu apoio? Marisa Matias. Porquê? Múltiplas razões..■..ANA MARGARIDA ESTEVES, Desenvolvimento Regenerativo: Comunidade, resiliência ecológica e economia solidária..■..ANDRÉ CARMO, A Visão Estratégica de Costa Silva ou, mais uma vez, a crise como oportunidade..■..CLIVE L. SPASH, A passiva revolução ambiental capitalista..■..DANIEL OLIVEIRA, Ana Gomes. Nas margens do Rubicão..■..FRANCISCO FERREIRA (entrevista por Filipa Vala)..■..FREDERICO FRANCISCO, Os limites físicos do planeta, a tecnologia que nos vai salvar e a injustiça climática..■..HELOÍSA APOLÓNIA, Desvalorização do Ambiente – Um erro político de custo elevado..■..HENRIQUE SOUSA, «Poderes sindicais em debate»..■..ISABEL DO CARMO e JOÃO N. RODRIGUES, O Serviço Nacional de Saúde e a Covid-19..■..ISABEL MENDES LOPES, JORGE PINTO e CARLOS M. TEIXEIRA, Pós-Covid-19: Um novo paradigma para a mobilidade?..■..JOANA MANUEL, O João Ferreira tem o meu voto..■..JOANA VILLAVERDE, «Animals nightmare»..■..JOÃO RODRIGUES e NUNO TELES, E já só há o Estado a que isto chegou..■..JOÃO RODRIGUES, Antes e depois do suspiro de alívio..■..JOÃO SANTOS PEREIRA, Florestas e ambiente..■..JORGE COSTA, Energia, transição climática e propriedade pública..■..JOSÉ CASTRO CALDAS, O súbito industrialismo de todos os partidos e as possibilidades de reindustrialização em Portugal..■..JOSÉ GUSMÃO, Acordo no Conselho Europeu: pensar em grande e omitir detalhes..■..JOSÉ GUSMÃO, MARISA MATIAS e VICENTE FERREIRA, Verdes Planos..■..JOSÉ REIS, «Precisamos de um programa de insubmissão» (entrevista por José Vítor Malheiros)..■..MARGARIDA MARQUES, Desta vez temos uma resposta europeia à crise..■..MIGUEL VALE DE ALMEIDA, Não são todos iguais..■..PAULA CABEÇADAS, «Bacurau»..■..PAULO PEDROSO, A Covid-19 e a desigualdade..■..ROBERT POLLIN, Defender os Bens Comuns Globais com um Novo Pacto Verde Global..■..SEBASTIÃO PERNES, «Ondas»..■..SÉRGIO GODINHO, ZMB..■..VASCO PAIVA, Agricultura, floresta e desenvolvimento rural..■..VERA FERREIRA, Justiça na Transição? Rumo à neutralidade carbónica em Portugal
sexta-feira, 18 de dezembro de 2020
Olhar para todos os lados
[A] classe revolucionária, para realizar a sua tarefa, deve saber dominar todas as formas ou aspectos, sem a mínima excepção, da actividade social (...) [e] deve estar preparada para a mais rápida e inesperada substituição de uma forma por outra. Todos concordarão em que seria insensata e até criminosa a conduta de um exército que não esteja preparado para dominar todos os tipos de armas, todos os meios e processos de luta que o inimigo possui ou possa possuir. Mas isto diz ainda mais respeito à política do que à arte militar. Em política é ainda menos fácil saber antecipadamente que meio de luta será aplicável e vantajoso para nós em tais ou tais condições futuras. Sem dominar todos os meios de luta podemos sofrer uma derrota enorme - por vezes mesmo decisiva -, se mudanças independentes da nossa vontade na situação das outras classes põem na ordem do dia uma forma de acção na qual somos particularmente fracos.
Se insistem, nós também
Percorrem-se as páginas do semanário e não se encontra, contudo, mais nenhuma referência ao estudo e aos resultados dos alunos portugueses. Aliás, até se encontra: um artigo de opinião de Luís Aguiar-Conraria («Passa-culpas para o Passos») em que não se cuida de verificar a cronologia das mudanças educativas, enveredando-se pela mesma ligeireza na análise. De facto, as Metas curriculares de Nuno Crato mantiveram-se em vigor entre 2015 e 2019 (pelo que seriam sempre o «chão pedagógico» dos exames do 4º ano), tendo de resto servido de base aos manuais escolares utilizados nesse período.
Aliás, ainda em matéria de exames, como bem lembra João Costa, não só não se verifica uma «correlação entre os resultados do TIMSS 2019, ou do PISA 2018, e a existência de exames no final do primeiro ciclo» (dado que a melhoria dos resultados desde meados dos anos 90 ocorreu sem que estes existissem), como «nada sustenta», que essa correlação se registe a nível europeu (porque, «na verdade, a generalidade dos países não os tem»).
É pena portanto que o Expresso se tenha limitado a sinalizar os resultados do TIMSS no «Altos e Baixos», quando até poderia ter incluído, na sua edição impressa, o artigo detalhado e informativo assinado por Isabel Leiria três dias antes, que dava nota dos factos (sim, os factos), que impedem que se atribua às mudanças de política educativa entre 2015 e 2019 os resultados obtidos pelos alunos do 4º ano no TIMSS de 2019.
Não é difícil perceber o impulso intuitivo de associar resultados escolares ao tempo das legislaturas. Mas a verdade é que em educação as coisas não funcionam com essa linearidade, e menos ainda quando as alterações que estão em causa (substituição das Metas curriculares de Nuno Crato, em vigor desde 2013, pelas Aprendizagens Essenciais de João Costa), apenas ocorreram em 2019 no 1º Ano do 1º Ciclo. O que significa, repita-se as vezes for necessário, que os alunos do 4º ano que participaram no TIMSS de 2019 frequentaram todo o 1º Ciclo com as Metas curriculares do ex-ministro. Ou seja, se quiserem saber o impacto das Aprendizagens Essenciais e do Perfil do Aluno nos resultados escolares terão que esperar pelo próximo TIMSS, pois este ainda é o TIMSS de Crato e da maioria de direita.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
A Economia a caminho dos loucos anos 20?
A pergunta central do debate era simples: o que fazer em relação à política orçamental, num contexto de baixas taxas de juro e elevado rácio da dívida em relação ao PIB? O que terá causado surpresa foi a resposta apresentada: Furman e Summers não só reconhecem que o rácio da dívida não é a principal preocupação do momento, como defendem que não constitui um bom indicador da sustentabilidade das finanças públicas de um país. A razão para isso é o efeito dos juros baixos, que fazem com que o serviço da dívida possa ser menor do que em períodos anteriores, mesmo que o rácio da dívida tenha aumentado.
Num contraste claro com a perspetiva adotada pela maioria dos economistas nos últimos anos, os autores notam que a dívida pública e o défice não afastam o investimento privado, como se supunha: "Num mundo em que há capacidade inutilizada na economia e taxas de juro muito baixas, as preocupações sobre a exclusão [crowding-out] do desejável investimento privado, que era tomada como garantida há uma geração, têm bastante menos força hoje". Por isso, defendem que o endividamento não é um entrave a políticas expansionistas, dizendo que o atual contexto dá aos governos margem de manobra orçamental para investirem. Embora considerem que esta margem de manobra não é ilimitada, sugerem o reforço da progressividade fiscal como forma de promover a procura sem aumentar o défice. A divergência com as ideias que dominaram a disciplina nas últimas décadas não podia ser maior.
Na mesma linha, Blanchard nota que o atual contexto de estagnação secular faz com que o custo de oportunidade do endividamento público seja muito menor, ao mesmo tempo que o benefício dos défices se torna bastante maior, tornando-os sensatos não só do ponto de vista orçamental, mas também do ponto de vista do bem-estar coletivo. Também nesta linha, o Fiscal Monitor publicado em outubro pelo FMI destaca o efeito multiplicador do investimento público, estimando-se que um aumento do nível de investimento público gera um crescimento 2,7 vezes superior do PIB em dois anos. É por isso que Blanchard avisa que "os governos têm de estar preparados para ter défices pós-covid [...] e permitir um aumento adicional da dívida".
No fim do debate, os intervenientes admitiram que estavam todos maioritariamente de acordo. Hoje, parece que muito poucos economistas têm dúvidas sobre aquilo que, há um ano, muito poucos consideravam ser sequer imaginável. Conclui-se, por isso, que a dívida pública deixou de ser o foco exclusivo da atenção, que os défices passaram a ser reconhecidos como uma variável insuficiente para avaliar a economia, ou que os orçamentos expansionistas deixaram de ser vistos apenas como despesistas? Ainda é demasiado cedo para o fazer. Mas as alternativas começam a ganhar espaço num campo que sempre lhes foi adverso. Os termos do debate já não são os mesmos. Talvez por isso exista a hipótese de que estes anos 20 sejam, novamente, tempos de mudança.
Linguagem e trabalhadores
E muito menos o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos (PNS), que tem sido a voz à esquerda no PS, partido que tem aplicado, desde 1976, uma agenda laboral alavancada pelas instituições como o FMI, a OCDE ou a Comissão Europeia, responsável por grande parte do que está a alimentar a extrema-direita na Europa e em Portugal - precariedade, baixos salários, desigualdade social.
Apesar disso, PNS tem sido um ministro corajoso, frontal, claro, assertivo, conhecedor dos dossiers, eficaz na sua argumentação, arcando sozinho - no PS - com a responsabilidade de desbaratar opositores à direita (sem coragem de assumir a sua vontade de fechar a transportadora nacional) ou os comentadores enviesados. Foi inigualável a pancada dada na entrevista à SIC notícias aos jornalistas José Gomes Ferreira e João Vieira Pereira, jornalistas que aplaudiram a troica em 2011 (ver caderno nº7), obrigados a resguardar-se alegando: "Isto não é um debate”.
Fica, contudo, por debater uma questão (perigosa) para a esquerda que é a de se assumir um conjunto de argumentos que presupõe certos conceitos teóricos, os quais se sobrepõem ou colam aos usados pelo patronato para justificar a desvalorização salarial e a fragilização das relações laborais.
A solução oficial para a TAP é apresentada no quadro de uma crise pandémica, sem que por isso disponha de apoios próprios e adequados, antes sujeitando-se - por contrapartida da injecção de capitais públicos - a uma vistoria da Direcção-Geral de Concorrência. A DGC vai querer cortar na capacidade instalada, alegadamente para não desvirtuar a concorrência europeia, mas que na realidade servirá uma concentração europeia no sector.
Ao mesmo tempo, o Governo - pela voz de PNS - alega que a TAP tem “um conjunto de ineficiências” que a tornam “menos competitiva face aos seus concorrentes directos (as companhias de bandeira)", que decorrem dos acordos colectivos de empresa que - apesar de terem sido “vitórias dos trabalhadores da TAP” – “tornam mais difícil o ajustamento que temos de fazer agora”. Apesar de ser assumido que a responsabilidade da situação da TAP não é dos trabalhadores, “os custos laborais que a empresa enfrenta são um peso na TAP que tornam difícil a sua recuperação e a sua capacidade de competição, de concorrência no resto da Europa”, porque “tornam a TAP menos produtiva". Isto é, a TAP usa "mais trabalhadores e mais pilotos para produzir o mesmo trabalho que os nossos concorrentes”. Face à redução da actividade e face a esses custos acrescidos, a TAP tem de fazer aquilo que vão fazer as companhias concorrentes – cortar fortemente a massa salarial, seja por cortes salariais ou despedimentos.
Ao reduzir de 108 para 88 aviões, a TAP terá de reduzir 2 mil postos de trabalho (que "não são necessários"), reduzir salários para não despedir mais mil trabalhadores, suspender os acordos colectivos de empresa – “a suspensão dos acordos de empresa é uma ferramenta fundamental para que possamos proceder a redução da massa salarial” - de forma a aumentar horas de voo e reduzir tempos de descanso, para que se consiga um novo “patamar de maior competitividade para que possa crescer e voltar a recuperar algum emprego que neste momento infelizmente não é possível manter”, o qual, quando voltar entrar, será com salários mais baixos.
Esta reestruturação permite a "flexibilidade necessária" para a empresa poder aproveitar a recuperação do mercado e, assim, salvar a empresa.
Estas medidas irão gerar uma "poupança" acumulada de 1,4 mil milhões de euros até 2025. E, ou se obtém estes "ganhos de competitividade" ou então "todos os portugueses" terão de injectar esses 1,4 mil milhões dinheiro na TAP, além dos 3,7 mil milhões já previstos até 2024. Por outras palavras, ou há reestruturação ou pagam os contribuintes.
A acumulação destes argumentos/conceitos é particularmente flagrante quando PNS tem sido o militante socialista que tem feito uma pedagogia ideológica. Há quase 10 anos, lembrava como o PS tinha escorregado para uma deriva de direita ao aceitar todos os seus conceitos. Em Junho passado, PNS dizia: “Há um combate que temos ainda de travar e que está longe de estar ganho: é o combate da linguagem, das palavras que foram tomadas pela direita” (1'15).
Ouvir Pedro Nuno Santos – como se ouviu na passada 6ª feira em conferência de imprensa - causa, por isso, duplamente um arrepio na coluna, ao imaginar como a direita poderá capturar o discurso daquele que é a esperança laboral do PS, para subverter esse mesmo discurso, em todas as situações relacionadas com o tecido empresarial ou - como foi já tentado na entrevista à SIC Notícias por parte dos jornalistas - em toda a economia.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2020
Pandemia, população e território
Assim, numa mera aproximação a fatores de natureza espacial, entre muitos outros que podem e devem ser considerados, talvez valha a pena complementar - à ponderação pelo número de habitantes - a ponderação por área (Km2) ou pelo grau de concentração da população (segundo a dimensão dos lugares, por exemplo). Os mapas seguintes, à escala concelhia, mostram justamente as diferenças que se obtém entre as duas primeiras abordagens (população e superfície), constituindo o terceiro um exercício de síntese, no qual sobressaem os municípios com um número de casos por habitante e por Km2 simultaneamente acima da média.
Com dados acumulados até 26 de outubro, as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto passam a destacar-se de forma clara neste exercício de combinação das duas variáveis. É nestes concelhos e territórios, de facto (e apenas com a exceção do Entroncamento), que se registam valores de casos por habitante e por Km2 simultaneamente acima da média. Por seu turno, e face à ponderação pela população residente, a ponderação por Km2 tende a esbater os valores registados no resto do país e, de modo particular, em algumas áreas do interior. Seja como for, o resultado sugere uma aproximação mais definida a padrões territoriais de incidência e risco da pandemia em Portugal.