Rui Tavares escreveu na quarta-feira uma interessante crónica sobre “
uma terra sem factos”, destacando como numa terra deste tipo existem várias estratégias para que ninguém repare na hipocrisia e na chantagem. Mas será que Rui Tavares não tem estado, à sua maneira, a contribuir, em matéria europeia, para uma terra onde factos importantes são ofuscados? Nesta sua crónica, por exemplo, acusa a comunicação social de ignorar boas indicações da Comissão Europeia em matéria de investimento público e de combate às desigualdades.
De que árvores é que Rui Tavares estará a falar para ignorar a floresta? Desconhecerá por acaso que o investimento público, em percentagem do PIB nacional, corre o risco de atingir com este governo apoiado pelas esquerdas, graças à chantagem austeritária europeia, o valor mais baixo na democracia, prolongando trajectórias anteriores? Desconhecerá que quando em Bruxelas falam de investimento público em geral não estão a falar de Portugal, nem, de resto, de nada que seja macroeconomicamente significativo na escala europeia? E desconhecerá os efeitos das políticas da troika em matéria de aumento das desigualdades socioeconómicas? O que é que mudou nas recomendações da Comissão em matéria laboral, de prestações sociais ou de política económica orientada para a criação de emprego, os grandes determinantes da sua evolução? Será que desconhece o pensamento na Comissão em matéria de salário mínimo, por exemplo? E o que se pensa no BCE?
O drama hoje é que muita gente de esquerda e no que à integração diz respeito parece apostar em ignorar estruturas, instrumentos de política e seus muito factuais efeitos. De Portugal à Grécia, isto paga-se caro. Má política, dado que existem boas razões para colocar no centro a chantagem e a imposição europeias e creio até que na gerigonça, no fundo, sabem isso.
E já que estou a falar de integração, o que dizer da Grécia? Mais 7500 páginas de legislação aprovadas esta semana, novos tijolos neoliberais, das mais severas rondas de austeridade, incluindo aumentos do regressivo IVA e mais cortes nas já depauperadas pensões, tudo totalizando mais 3% de um PIB assim mais prolongadamente deprimido do que o dos EUA na
Grande Depressão (sabemos que não há programas transformadores do género do
New Deal numa escala que não seja nacional e que o tal programa de recuperação e de reformas implicou uma ruptura com o sistema monetário rígido da altura…); um fundo, controlado por burocratas europeus, para eventualmente privatizar cerca de
71500 propriedades públicas nas próximas décadas, funcionando como uma espécie de garantia parcial da dívida; a possibilidade de cortes automáticos, em caso de incumprimento das metas orçamentais definidas, aprofundando círculos viciosos. E esta semana celebrou-se mais acordo. Um protectorado, em suma.
Diz que isto é a esquerda europeísta na Grécia. Esquerda não será no que conta, nas políticas, mas lá que é europeísta disso não restam dúvidas. Isto é a integração realmente existente: a destruir esquerdas desde pelo menos os anos oitenta, os da regressiva viragem de política económica de Mitterrand e de Delors, em 1983, em nome da integração económica e monetária, como Varoufakis reconhece no seu último e frustrante
livro, dado o abismo intransponível entre a força do diagnóstico e a fraqueza da prescrição e da estratégia política subjacente.
E depois há o alívio da dívida grega, agora prometido lá para 2018, numa discussão envolvendo apenas os credores, com o governo grego a assistir: o que não pode ser pago, não será pago, claro, e até já sabemos isso de anterior reestruturação grega. Mas as condições da próxima reestruturação serão igualmente definidas pelos credores, nos seus tempos e nos seus interesses, o que é muito diferente de uma reestruturação liderada pelo devedor, que exigiria rupturas com esta ordem monetária europeia, facto hoje conhecido.
A dívida é um instrumento para impor conformidade com esta ordem monetária pós-democrática. O governo grego conformou-se. Isto parece ser também razoavelmente factual.
Aposto que ainda veremos os europeístas por cá a saudar o governo grego, se durar até lá, e esta integração, esperemos que não dure muito mais, quando algum novo perdão de dívida for concedido pelos credores. Uma Europa com factos, uma Europa com amos.