sexta-feira, 30 de novembro de 2007
Greve Geral
Só a acção colectiva organizada permite superar o medo, a fragmentação e a ausência de esperança. Há alternativas a esta lenta corrosão do nosso ainda embrionário estado social. Há alternativas a uma política económica errada e a uma engenharia mercantil iníqua e irresponsável. Hoje, os trabalhadores da função pública enviam mais um sinal. Espero que seja bem forte. Se algumas das suas razões se fizerem ouvir, as coisas podem começar a mudar no nosso país.
quinta-feira, 29 de novembro de 2007
O choque e o drama socialistas
Primeiro foi o sempre atento Mário Soares, agora é Narciso Miranda: «Em cada cinco jovens, há um desempregado, mais de 20 por cento da população vive abaixo do limiar da pobreza. Sou convictamente socialista e isto incomoda-me profundamente» (Publico). Já no fim-de-semana passado Sócrates lá tinha reconhecido, enfim, que o desemprego é de facto um problema grave. Mas foi Vitalino Canas quem, ao procurar sacudir as pressões, melhor resumiu o drama da direcção do PS: «À medida que os problemas forem sendo ultrapassados, é claro que a dimensão à esquerda poderá ser mais visível» (DN). E o drama reside na ideia, algo ingénua, de que na condução dos assuntos do governo pode existir uma zona mágica, para além da esquerda ou da direita, onde, sem princípios, ideologias ou grelhas de interpretação, os problemas e as suas soluções surgissem de repente de forma límpida e transparente. A esquerda ficaria para depois. Isto ilustra bem o que acontece quando as ideias socialistas são abandonadas. Por exemplo, na área da política económica fica-se refém do «ar do tempo». E o ar do tempo, em Portugal, é ainda dado pelas correntes neoliberais que afirmam que o desemprego não é um problema a ser resolvido por uma política económica activa, mas sim um problema do «mercado» que se explica, e é sempre a mesma cantiga desde o século XIX, pela «interferência» política perturbadora dos seus celestiais equilíbrios.
Informação em primeira-mão: o Nuno Teles tem um excelente artigo sobre o desemprego no número de Dezembro do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa.
Informação em primeira-mão: o Nuno Teles tem um excelente artigo sobre o desemprego no número de Dezembro do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa.
Será que as coisas estão a mudar? III
Uma das fontes da ansiedade neoliberal tem origem no facto de distintos economistas ortodoxos, como Alan Blinder ou Paul Krugman, terem começado, com ampla repercussão pública, a pôr em causa a crença, ainda partilhada por 95% dos economistas, na bondade ilimitada dos processos de liberalização irrestrita das relações económicas internacionais (como é evidente nós fazemos parte dos 5%, o que se calhar faz de nós «populistas»). Podem, de facto, existir muitos perdedores com estes processos de liberalização e estes perdedores podem ter força suficiente, se tudo correr bem, para gerarem contra-movimentos de protecção com os mais variados efeitos. A resposta convencional a isto, diz-se agora, é o reforço do estado-providência. Surpreendente? Talvez não. Parece estar a ganhar força uma nova linha na economia política internacional: a globalização e o estado-providência seriam complementares e reforçar-se-iam mutuamente já que o segundo asseguraria a legitimidade da primeira ao instituir mecanismos que compensariam os perdedores. Assim, a crença na mão invisível do «comércio livre» é salva pela mão visível do Estado. Esta linha parece ser suportada por alguma evidência histórica e tem a grande virtude de acabar de uma vez com todos os determinismos. Afinal temos escolha. A política regressou à economia.
quarta-feira, 28 de novembro de 2007
Será que as coisas estão a mudar? II
A crise financeira é também a crise da crença nas virtudes ilimitadas do mercado. Os liberais esclarecidos, como o editor do insuspeito Financial Times, já se aperceberam disto. Segundo Martin Wolf, há duas alternativas no sector bancário depois da crise: ou se aumenta a regulamentação ou se deixa que os bancos operem «segundo as leis do mercado» (nunca sei o que isto significa). A segunda hipótese é impensável dada o caos que geraria. Assim, «suspeito que vamos ser obrigados a caminhar em direcção à primeira». Já não era sem tempo.
Será que as coisas estão a mudar?
Michael Lind defende hoje, em artigo no Financial Times, que é possível identificar mudanças profundas na «ideologia económica e política nos países desenvolvidos». (leia-se nos EUA). Mudanças que puxam o pêndulo político de novo para a esquerda, depois de décadas de hegemonia neoliberal. A coisa explicar-se-ia assim: nos EUA, o regresso em força do proteccionismo económico (o chamado «populismo económico»), como resposta à quebra dos salários no rendimento nacional atribuída à globalização, está a mudar os termos do debate e a colocar a defesa do reforço do estado-providência e da redistribuição no centro político; esta é a forma pragmática e centrista para impedir que as «ansiedades populares» reforcem o tal «populismo económico». Segundo Lind, isto significa que os «neoliberais da terceira via», que compraram a tese da ‘mundialização feliz’, estão «agora na extrema-direita» do espectro político a fazer companhia aos «libertários económicos». Será?
Arrastão
O Daniel Oliveira tem uma bicicleta nova. Já a vi e gostei. Sobretudo do cabeçalho do Pedro Vieira. Boas corridas. A esquerda bem precisa.
terça-feira, 27 de novembro de 2007
Bens Comuns
Não percebo como é que o Zé Neves pensa organizar, com base na ideia vaga do comum, um sistema complexo, que tem de mobilizar recursos humanos e materiais colossais, como é o caso de um sistema universal de provisão de cuidados de saúde acessível a todos. Acho no fundo que a sua discussão não passa de um apelo sensato para que os utentes e profissionais possam ter uma «voz» mais activa na gestão de um sistema público, propriedade da comunidade política relevante, ou seja, do Estado. Caso contrário, quem financia o «comum»? Quem recolhe «coercivamente» as receitas que o vão sustentar?
Sinceramente, acho que as posições libertárias do Zé Neves a favor da abolição do Estado só são sustentáveis a um nível tal de abstracção que dificulta a discussão sobre os «assuntos correntes da vida». No quadro do marxismo ela só faz sentido acoplada à bizarra hipótese da abundância e ao correspondente desaparecimento de qualquer ideia de conflito na gestão dos recursos e na provisão dos bens (em sentido amplo) necessários à vida. Se se abandona esta hipótese voltamos a precisar de sistemas de regras, de justiça, de mecanismos de coordenação, de estruturas de autoridade, do Estado. E depois temos de discutir a democracia. A participativa e a representativa. Juntas.
Finalmente, creio que a posição libertária nem sequer é relevante para a discussão séria que se pode fazer sobre a importância dos comuns nas áreas do conhecimento e da informação ou, no caso de comunidades de pequena dimensão com laços fortes, de certos activos ou recursos materiais. Se se pegar na «economia moral da multidão» é isto que aí se encontra. Comunidades locais que resistem à subversão das suas vidas pela lógica do mercado e que traçam linhas divisórias, impondo, através da acção colectiva, formas precárias de regulação não mercantil do processo de provisão. Para mim é um bom ponto de partida para pensar a economia moral do socialismo.
Sinceramente, acho que as posições libertárias do Zé Neves a favor da abolição do Estado só são sustentáveis a um nível tal de abstracção que dificulta a discussão sobre os «assuntos correntes da vida». No quadro do marxismo ela só faz sentido acoplada à bizarra hipótese da abundância e ao correspondente desaparecimento de qualquer ideia de conflito na gestão dos recursos e na provisão dos bens (em sentido amplo) necessários à vida. Se se abandona esta hipótese voltamos a precisar de sistemas de regras, de justiça, de mecanismos de coordenação, de estruturas de autoridade, do Estado. E depois temos de discutir a democracia. A participativa e a representativa. Juntas.
Finalmente, creio que a posição libertária nem sequer é relevante para a discussão séria que se pode fazer sobre a importância dos comuns nas áreas do conhecimento e da informação ou, no caso de comunidades de pequena dimensão com laços fortes, de certos activos ou recursos materiais. Se se pegar na «economia moral da multidão» é isto que aí se encontra. Comunidades locais que resistem à subversão das suas vidas pela lógica do mercado e que traçam linhas divisórias, impondo, através da acção colectiva, formas precárias de regulação não mercantil do processo de provisão. Para mim é um bom ponto de partida para pensar a economia moral do socialismo.
A Venezuela e os perigos do petróleo
O Renato Carmo coloca o dedo na ferida quando critica o facto do processo de transformação em curso na Venezuela depender do petróleo. Acho que esta é uma questão crucial. Não me parece é correcto criticar a Venezuela por usar as rendas do mesmo. Não é justo colocar o fardo da resolução dos problemas da dependência mundial deste recurso nas costas de um país em vias de desenvolvimento. Também não concordo com a análise algo determinista da «maldição dos recursos». O petróleo em si mesmo não explica nada. Tudo passa pela natureza dos arranjos institucionais nos países que o exportam, dos mecanismos de repartição dos rendimentos, dos sectores que deles usufruem, do grau de autonomia face a pressões externas. Da Noruega à Nigéria há um vasto leque de percursos.
O que se tem passado na Venezuela? O Estado usou o controlo que tem dos recursos (que já vinha detrás, sendo ampliado e reforçado) para financiar programas sociais redistributivos (com algum sucesso aparente), experiências autogestionárias (com resultados contraditórios), investimentos em infra-estruturas e um esforço de diversificação da economia. O restabelecimento de mecanismos de controlo de capitais, o fim da independência do banco central, as nacionalizações de sectores estratégicos, a reforma da estrutura fundiária ou o proteccionismo selectivo assinalam uma ruptura com o modelo neoliberal de desenvolvimento e um esforço para recuperar politicamente algumas alavancas da economia como passos graduais para construir uma economista mista com elementos socialistas fortes (empresas públicas e cooperativas de produção, mas também amplo espaço para a iniciativa privada que aliás tem acompanhado o passo acelerado da restante economia). Existe já, aparentemente, uma certa diversificação económica (e é também por aqui que poderá ser avaliada a prazo esta experiência).
Certamente que existe muita ineficiência e corrupção. E muitos perigos potenciais. O meu pesadelo foi teorizado há já alguns anos por Janos Kornai, um economista húngaro, e chama-se «soft budget constrain». O controlo dos rendimentos do petróleo pode servir para o Estado financiar experiências económicas que seriam a prazo inviáveis sem esta almofada e, pior, o facto dos agentes económicos saberem que a almofada estará sempre presente gera todo uma série de incentivos perversos e de vícios. Toda a área, politicamente promovida, do sector público e da economia solidária corre este risco. E quem está de fora vê um conjunto de experiências interessantes, mas que apenas florescem regadas pelo petróleo. Aqui está a questão central e o Renato identifica-a bem: «É claro que enquanto o barril perdurar, Chávez terá toda a liberdade e todos os recursos para eternizar o seu processo revolucionário». Nada disto é inevitável se se criarem os mecanismos de monitorização adequados. Se os financiamentos forem temporários e se destinarem a financiar iniciativas que a prazo têm de ser viáveis sem apoios. Se isto acontecer, o apoio estatal à criação de cooperativas e de empresas controladas pelos trabalhadores abre uma via que pode libertar energias empreendedoras individuais e colectivas que seriam atrofiadas de outra forma. Acho que deve haver espaço para a experimentação e para a existência de vários sistemas de propriedade (o que a constituição prevê) e de vários mecanismos de coordenação mercantil e não-mercantil. Uma economia impura portanto. Acho que é esta a aposta da Venezuela.
E aqui Zé Neves lamento, mas o Marx serve-nos para muito pouco. O mesmo não se pode dizer da tradição cooperativa, da escola histórica alemã de List, de Keynes e de todos os que desenvolveram a tradição da economia impura. Quem tem de manter uma cooperativa, gerir a atribuição de recursos, tomar decisões sobre política industrial, faz melhor em ter outros livros na sua mesinha de cabeceira para além do Capital e do Império.
O que se tem passado na Venezuela? O Estado usou o controlo que tem dos recursos (que já vinha detrás, sendo ampliado e reforçado) para financiar programas sociais redistributivos (com algum sucesso aparente), experiências autogestionárias (com resultados contraditórios), investimentos em infra-estruturas e um esforço de diversificação da economia. O restabelecimento de mecanismos de controlo de capitais, o fim da independência do banco central, as nacionalizações de sectores estratégicos, a reforma da estrutura fundiária ou o proteccionismo selectivo assinalam uma ruptura com o modelo neoliberal de desenvolvimento e um esforço para recuperar politicamente algumas alavancas da economia como passos graduais para construir uma economista mista com elementos socialistas fortes (empresas públicas e cooperativas de produção, mas também amplo espaço para a iniciativa privada que aliás tem acompanhado o passo acelerado da restante economia). Existe já, aparentemente, uma certa diversificação económica (e é também por aqui que poderá ser avaliada a prazo esta experiência).
Certamente que existe muita ineficiência e corrupção. E muitos perigos potenciais. O meu pesadelo foi teorizado há já alguns anos por Janos Kornai, um economista húngaro, e chama-se «soft budget constrain». O controlo dos rendimentos do petróleo pode servir para o Estado financiar experiências económicas que seriam a prazo inviáveis sem esta almofada e, pior, o facto dos agentes económicos saberem que a almofada estará sempre presente gera todo uma série de incentivos perversos e de vícios. Toda a área, politicamente promovida, do sector público e da economia solidária corre este risco. E quem está de fora vê um conjunto de experiências interessantes, mas que apenas florescem regadas pelo petróleo. Aqui está a questão central e o Renato identifica-a bem: «É claro que enquanto o barril perdurar, Chávez terá toda a liberdade e todos os recursos para eternizar o seu processo revolucionário». Nada disto é inevitável se se criarem os mecanismos de monitorização adequados. Se os financiamentos forem temporários e se destinarem a financiar iniciativas que a prazo têm de ser viáveis sem apoios. Se isto acontecer, o apoio estatal à criação de cooperativas e de empresas controladas pelos trabalhadores abre uma via que pode libertar energias empreendedoras individuais e colectivas que seriam atrofiadas de outra forma. Acho que deve haver espaço para a experimentação e para a existência de vários sistemas de propriedade (o que a constituição prevê) e de vários mecanismos de coordenação mercantil e não-mercantil. Uma economia impura portanto. Acho que é esta a aposta da Venezuela.
E aqui Zé Neves lamento, mas o Marx serve-nos para muito pouco. O mesmo não se pode dizer da tradição cooperativa, da escola histórica alemã de List, de Keynes e de todos os que desenvolveram a tradição da economia impura. Quem tem de manter uma cooperativa, gerir a atribuição de recursos, tomar decisões sobre política industrial, faz melhor em ter outros livros na sua mesinha de cabeceira para além do Capital e do Império.
Quem paga o ajustamento
A desvalorização acentuada do dólar confirma aquela frase de um responsável norte-americano (citado neste artigo) que um dia afirmou para os europeus: «o dólar é a nossa moeda, mas é o vosso problema». É a capacidade exportadora da Europa que está agora a ser ameaçada. O facto dos países asiáticos terem a sua moeda indexada ao dólar só piora as coisas. Portugal é particularmente penalizado. Perdemos mercados fora da zona euro e temos de enfrentar a concorrência acrescida nos nossos mercados de destino europeus. A estratégia do governo está posta em causa. Acho que andam demasiadas pessoas demasiado entusiasmadas com a perspectiva do euro vir a substituir o dólar como moeda de reserva e pilar das transacções internacionais. Sonhos de domínio imperial. E por vezes são as mesmas pessoas que acham que é preciso promover os sectores industriais exportadores de bens transaccionáveis. De qualquer forma nada é menos certo do que o domínio do euro já que até agora tem sido a economia europeia a pagar o preço da «correcção» dos desequilíbrios externos norte-americanos. «Correcção» se não ocorrer pelo meio um colapso do dólar (gerado pelo acentuar da crise interna nos EUA). Tempos incertos. Não se admirem se vier aí uma reacção proteccionista forte.
segunda-feira, 26 de novembro de 2007
Economia moral do socialismo
A propósito de Sicko, Hugo Mendes no rawlsiano véu da ignorância: «um sistema público e universal de saúde é uma construção segundo princípios socialistas, onde vigora o princípio da igualdade independentemente dos rendimentos, qualificações, estatuto social, etc., e onde cada um paga em função das suas possibilidades e recebe cuidados em função das suas necessidades (. . .) apetece mesmo dizer: não apenas um sistema público e universal concretiza princípios socialistas, como serve de clara demonstração do que noutros tempos se chamava, pomposamente, a ‘superioridade moral do socialismo’. Já não há assim tantas instituições que consigam mostrar isto, mas esta é uma delas». Não é nada pomposo Hugo. Eu deixaria cair a superioridade, mas já é tempo da esquerda reconquistar a palavra moral, voltar a discutir princípios fundamentais e a assumir um discurso articulado sobre o tipo de valores partilhados que nos podem permitir viver juntos numa sociedade decente com instituições justas. Quem tem um blogue com uma citação de Richard Tawney, um dos expoentes do chamado socialismo ético britânico, não tem que ter medo das palavras. Aliás, no filme de Michael Moore aparece Tonny Benn, herdeiro desta tradição, que defende o SNS britânico com um «irredentismo moral» de que a esquerda bem precisa, entre outras coisas, para proteger a integridade das instituições ameaçadas pelas múltiplas engenharias mercantis.
Aprender com os EUA
É difícil encontrar nos EUA um economista mais convencional do que Lawrence Summers. Professor em Harvard e antigo secretário do tesouro. Neste artigo no Financial Times, Summers traça um quadro negro para a evolução futura da economia norte-americana: quebra do mercado imobiliário, contracção do crédito, fragilidade financeira, redução da procura. Que fazer? Ficar à espera que o mercado «opere a sua magia»? Nem pensar. Essa crença ingénua é para os outros. Para os países em vias de desenvolvimento e para os Europeus que compraram a ideia de que a política económica deve estar constrangida por regras muito apertadas. «Manter a procura deve ser a prioridade suprema» afirma Summers e as políticas orçamental e monetária são para isso mesmo. Keynesianismo puro e duro: redução das taxas de juro e política orçamental contra-cíclica com aumento do défice. Se isto não chegar, então é preciso «intervir» no mercado de crédito imobiliário, o que já está a acontecer, e promover uma reestruturação da dívida acumulada pelas famílias confontadas com as insolvência devido às subidas dos juros nos seus obscuros contratos. Tudo para salvar o mercado evidentemente. A conclusão não é nova: em matéria de política económica a Europa tem muito que aprender com o pragmatismo norte-americano. Aqui a macroeconomia ortodoxa, com as suas bizarras hipóteses, fica nos departamentos de economia. É que há uma crise para resolver.
Amiguismo
Vale a pena seguir com atenção este novo blogue (infelizmente em inglês): History of Economics. O blogue, como o nome indica, dedica-se à história do pensamento económico, uma disciplina em vias de extinção nos currículos dos cursos de economia. No entanto, penso que o enfoque estará na história "recente" do pensamento económico e nos seus confrontos teóricos, políticos e públicos. Essencial, para quem, como nós, entende a economia como um "desporto de combate".
A qualidade do blogue está assegurada, não fosse um dos bloggers um amigo cá da casa.
A qualidade do blogue está assegurada, não fosse um dos bloggers um amigo cá da casa.
domingo, 25 de novembro de 2007
Uma entrevista
«A opinião que a imprensa procura fazer vem sempre do lado direito. Se vir hoje, não há nenhum jornal que veicule as ideias da esquerda em Portugal, o que é triste. A sua opinião sobre a imprensa é curiosa porque é normal ouvirmos políticos de partidos de direita dizer que a generalidade da imprensa é de esquerda. Por isso, a sua opinião aqui é curiosa...Se calhar alguns dizem isso porque acham que não é suficientemente de direita. Mário Soares em entrevista ao DN. Toda a entrevista, conduzida de forma preconceituosa e incompetente por João Marcelino, é um exemplo da justeza da tese de Mário Soares. Aliás, como director do DN, João Marcelino é responsável pela acentuada direitização do jornal, bem visível na eliminação de quase toda a opinião de esquerda e no amplo espaço concedido às correntes de opinião de extrema-direita. Jornalistas como Marcelino são, no fundo, a versão portuguesa dos «novos cães de guarda».
Pelo menos nas áreas da economia e das relações internacionais, a direita tem praticamente o monopólio da opinião escrita. Seja como for este investimento é a melhor prova de que «as ideias são uma força material quando penetram nas massas» (Marx). A direita de todos os interesses e negócios tem isto cada vez mais presente e, à falta de um projecto partidário maioritário, só se pode esperar o reforço desta consciência. Até porque o PS, como Mário Soares no fundo reconhece, é mais do que permeável a esta pressão ideológica. E quando ouvimos e lemos dirigentes deste partido (António Vitorino é um exemplo) percebemos que a «pressão» principal talvez venha mesmo de dentro.
A voz e a fuga
As ideias deste livro clássico de Albert Hirschman podem ajudar neste debate (a sua tradução para além de colmatar uma falha grave, seria um grande contributo para promover o diálogo interdisciplinar na teoria social). O seu ponto central é o de que quando algo está mal e existe insatisfação (qualquer que seja a instituição considerada) há duas respostas possíveis por parte dos indivíduos: a «voz», típica dos processos políticos e a «fuga», típica dos processos de mercado. A primeira tende a pressupor algum compromisso com a instituição em causa e a envolver algum esforço colectivo. A segunda é uma reacção expressiva da «desistência» em relação ao tipo de relação previamente estabelecida, tende a ser tipicamente individual e a revelar a natureza efémera e «liquida» do laço em causa. Ambas podem servir, de diferentes formas, para criar mecanismos correctores dos problemas. É evidente que há instituições que, pela forma como estão organizadas, favorecem a «voz» e outras que favorecem a «fuga».
No caso do Serviço Nacional de Saúde, o grande objectivo da direita, ao promover a ideia de que aqui tudo aqui funciona mal, é estimular a insatisfação e enfraquecer a provisão pública, persuadindo as pessoas, sobretudo a classe média, a «fugir» para o sector privado oleando este processo com incentivos (como a deduções fiscais para despesas privadas). As críticas da esquerda ao SNS tendem a presumir que o sistema pode ser melhorado através da «voz» colectivamente organizada dos utentes e dos profissionais. Aqui chegamos ao pertinente ponto de Isabel do Carmo: será que a esquerda ao insistir apenas nas críticas ao que está mal, subestimando sistematicamente os seus inegáveis sucessos, não estará a contribuir, de forma não intencional, para acelerar a insatisfação infundada e os processos de fuga que estão a minar a natureza universal do SNS e a enfraquecer a prazo a eficácia da «voz»? Esta questão é bem espinhosa e interessante, embora as generalizações sejam problemáticas. Acho que aponta para um equilíbrio que tende a faltar na acção política: o debate e o protesto públicos têm que ser orientados para mostrar com mais clareza que os problemas residem nos ataques aos princípios do SNS (que têm de ser melhor articulados e explicitamente defendidos), ao mesmo tempo que se tem de mostrar que foram estes princípios igualitários que permitiram alcançar os extraordinários resultados de saúde pública no nosso país (facto que geralmente é ignorado). Só assim a «voz» pode servir para debelar a insatisfação e bloquear a «fuga» em curso. É claro que acabar com os incentivos à medicina privada e com a construção de alternativas falsamente sedutoras para quem tem dinheiro, também ajudaria na manutenção das instituições que dão um sentido concreto à ideia do bem comum.
No caso do Serviço Nacional de Saúde, o grande objectivo da direita, ao promover a ideia de que aqui tudo aqui funciona mal, é estimular a insatisfação e enfraquecer a provisão pública, persuadindo as pessoas, sobretudo a classe média, a «fugir» para o sector privado oleando este processo com incentivos (como a deduções fiscais para despesas privadas). As críticas da esquerda ao SNS tendem a presumir que o sistema pode ser melhorado através da «voz» colectivamente organizada dos utentes e dos profissionais. Aqui chegamos ao pertinente ponto de Isabel do Carmo: será que a esquerda ao insistir apenas nas críticas ao que está mal, subestimando sistematicamente os seus inegáveis sucessos, não estará a contribuir, de forma não intencional, para acelerar a insatisfação infundada e os processos de fuga que estão a minar a natureza universal do SNS e a enfraquecer a prazo a eficácia da «voz»? Esta questão é bem espinhosa e interessante, embora as generalizações sejam problemáticas. Acho que aponta para um equilíbrio que tende a faltar na acção política: o debate e o protesto públicos têm que ser orientados para mostrar com mais clareza que os problemas residem nos ataques aos princípios do SNS (que têm de ser melhor articulados e explicitamente defendidos), ao mesmo tempo que se tem de mostrar que foram estes princípios igualitários que permitiram alcançar os extraordinários resultados de saúde pública no nosso país (facto que geralmente é ignorado). Só assim a «voz» pode servir para debelar a insatisfação e bloquear a «fuga» em curso. É claro que acabar com os incentivos à medicina privada e com a construção de alternativas falsamente sedutoras para quem tem dinheiro, também ajudaria na manutenção das instituições que dão um sentido concreto à ideia do bem comum.
sexta-feira, 23 de novembro de 2007
A nacionalização ganha novos adeptos
Quando um cidadão compra a Economist já sabe que o preço de ter acesso a alguma da mais bem escrita informação internacional é ter de aturar uma linha editorial monotonamente neoliberal. Todos os problemas do mundo, ou pelo menos a esmagadora maioria, são o resultado de tentativas malévolas para bloquear o funcionamento das forças do mercado. Qual não foi então a minha surpresa quando hoje de manhã li isto: «este jornal nunca foi a favor da nacionalização. Mas no caso do Northern Rock esta parece ser crescentemente a opção menos má do ponto de vista do contribuinte».
Na realidade, esta posição pode ser compatível com o discurso e a prática neoliberais: trata-se de assegurar que o Estado usa o seu poder, no quadro da lei, para criar, manter e alargar a ordem mercantil. Se for preciso nacionalizar um banco à beira da falência, garantir a provisão de alguns serviços básicos ou até assegurar alguma redistribuição mínima do rendimento para assegurar a legitimidade política então que seja. O problema é traçar a linha divisória entre medidas que asseguram a reprodução ordeira de um sistema vocacionado para «a destruição criativa» e medidas que podem na realidade alimentar as forças que pugnam por reformas robustas que alterem o estado de coisas e que ponham em causa os interesses dos mais ricos.
Este jogo é mais ou menos fácil em tempos de hegemonia incontestada do capitalismo de mercado e de desmoralização e confusão no campo da esquerda socialista. Mas já se sabe: enquanto existirem movimentos intelectuais e políticos que contestam os actuais arranjos existirá sempre o risco de abrir uma caixa de pandora que torna de repente, e de forma imprevisível, este jogo muito perigoso para a posição neoliberal. Obviamente, é esta caixa que nós queremos reabrir a partir dos seus elos mais fracos: a instabilidade financeira recorrente, a repartição assimétrica dos fardos da crise e o brutal e universal aumento das desigualdades. Quando se reconhece que a estabilidade económica depende sempre de decisões e escolhas políticas há todo um leque de possibilidades que se abre. De repente torna-se claro que nada é inevitável na esfera económica. Como sempre é tudo uma questão de boas ideias e de luta política e social.
Na realidade, esta posição pode ser compatível com o discurso e a prática neoliberais: trata-se de assegurar que o Estado usa o seu poder, no quadro da lei, para criar, manter e alargar a ordem mercantil. Se for preciso nacionalizar um banco à beira da falência, garantir a provisão de alguns serviços básicos ou até assegurar alguma redistribuição mínima do rendimento para assegurar a legitimidade política então que seja. O problema é traçar a linha divisória entre medidas que asseguram a reprodução ordeira de um sistema vocacionado para «a destruição criativa» e medidas que podem na realidade alimentar as forças que pugnam por reformas robustas que alterem o estado de coisas e que ponham em causa os interesses dos mais ricos.
Este jogo é mais ou menos fácil em tempos de hegemonia incontestada do capitalismo de mercado e de desmoralização e confusão no campo da esquerda socialista. Mas já se sabe: enquanto existirem movimentos intelectuais e políticos que contestam os actuais arranjos existirá sempre o risco de abrir uma caixa de pandora que torna de repente, e de forma imprevisível, este jogo muito perigoso para a posição neoliberal. Obviamente, é esta caixa que nós queremos reabrir a partir dos seus elos mais fracos: a instabilidade financeira recorrente, a repartição assimétrica dos fardos da crise e o brutal e universal aumento das desigualdades. Quando se reconhece que a estabilidade económica depende sempre de decisões e escolhas políticas há todo um leque de possibilidades que se abre. De repente torna-se claro que nada é inevitável na esfera económica. Como sempre é tudo uma questão de boas ideias e de luta política e social.
Demoras e atrasos
«Não fora a demora de dois anos na definição do modelo de gestão e financiamento da rede rodoviária nacional (finalmente estabelecido com a concessão à Estradas de Portugal) e estes investimentos já estariam no terreno há mais tempo, criando emprego e dinamizando a economia. Trata-se dos primeiros projectos já da responsabilidade da nova empresa concessionária (cuja administração foi hoje mesmo empossada), a realizar em regime de parceria público-privada (PPP), com investimento privado e diluição do pagamento pela EP ao longo da duração do contrato». Vital Moreira. Pois é, desenhar contratos e opacos modelos de gestão dá uma trabalheira e só serve para atrasar investimentos necessários. Mas agora é só investir e o Estado cá está para garantir os lucros durante décadas sem fim. Um belo negócio.
Parabéns atrasados ao Causa Nossa pelos quatro anos de intervenção na luta das ideias. O «socialismo moderno» tem aqui o seu principal esteio intelectual.
Parabéns atrasados ao Causa Nossa pelos quatro anos de intervenção na luta das ideias. O «socialismo moderno» tem aqui o seu principal esteio intelectual.
Noir Désir
Talvez a mais bela canção do "engajado" grupo francês "Noir Désir", "Le Vent Nous Portera":
Modelo Social Europeu
O debate público à volta do futuro da Europa tem estado demasiado colado às agendas dos governos e instituições europeias. Contudo, têm sido publicadas excelentes análises, ancoradas à esquerda, sobre o significado presente e futuro do espaço europeu. Já aqui tínhamos feito referência a este brilhante artigo de Perry Anderson. Esta análise do «modelo social europeu», de Christoph Hermann e Ines Hofbauer, é uma excelente leitura complementar. Os autores realçam como a integração do conceito de «modelo social europeu» faz parte de um bloco hegemónico que legitima o aprofundamento neoliberal do projecto europeu. A recusa do modelo «anglo-saxónico», mais ou menos partilhada pelos europeus, permite criar um consenso necessário para políticas dirigidas à pretensa modernização. No entanto, as repetidas defesas do ~«modelo social europeu» nos diferentes acordos europeus (Maastricht, Agenda de Lisboa, Constituição Europeia) têm, sob o pretexto da sua modernização, aberto as portas a reformas (mercado de trabalho, segurança social) que, não só seguem o rumo dos EUA, como os ultrapassam. Veja-se o caso do Pacto de Estabilidade e das suas imposições orçamentais.
Ademais, quando lemos este artigo, de James Galbraith, e percebemos que a Europa, a 27, sofre crescentes níveis de desigualdade, bem superiores aos EUA, uma questão é clara: será que faz sentido falar de modelo social europeu? Estão bem estudadas as diferenças significativas da organização da protecção social e regulação do mercado de trabalho nos diferentes países europeus. No entanto, existem certas semelhanças. A universalidade no acesso e o papel do Estado na provisão permitiram um grau de desmercadorização ímpar nas economias capitalistas. Os cidadãos experimentam assim a protecção efectiva das dinâmicas e efeitos dos mercados. Contudo, assistimos hoje a uma mudança de paradigma de protecção social, onde esta é entendida como instrumento de apoio ao ajustamento dos cidadãos ao mercado, como a recente discussão sobre a flexisegurança o demonstra. É nestes diferentes entendimentos do papel da protecção que se joga o futuro do modelo social. Esta deve ser a luta ideológica prioritária da esquerda.
Modelo social europeu II
Bons exemplos da luta ideológica assinalada na posta anterior são as propostas de reforma da segurança social. Não vou discutir os cenários macroeconómicos e demográficos de longo prazo em que estas propostas se baseiam, que condenariam qualquer sistema, público ou privado, à falência. Essa é uma discussão que ficará para mais tarde. O que me interessa aqui é discutir as privatizações parciais ou a lenta corrosão dos sistemas públicos que, um pouco por toda a Europa, estão a ser aplicadas. O argumento por detrás deste movimento é o de que o Estado deve tão só garantir o mínimo de protecção aos mais desfavorecidos. Os que têm maiores rendimentos devem recorrer a sistemas privados de poupança, normalmente associados a fundos de investimento. Quebram-se os princípios da universalidade e da provisão pública e passamos a ter um sistema dual e assistencialista. O grosso do sistema é deixado ao mercado. Este parece assim ser o único caminho possível a seguir, mesmo para quem defende um modelo de protecção público.
Não é preciso recuar muito no tempo para encontrarmos uma alternativa universal, solidária que reforçaria a solidariedade nacional e retiraria poder ao mercado. No início dos oitenta, Rudolf Meidner, economista do principal sindicato sueco, LO (próximo dos sociais-democratas), propôs um plano cujo objectivo inicial era assegurar níveis de investimento que sustentariam uma economia de pleno emprego. A ideia é simples, parte dos lucros das grandes empresas suecas seriam investidos em acções das próprias empresas, mas em fundos controlados pelos trabalhadores em parceria com entidades públicas. Estas acções não poderiam ser transaccionadas. Se o objectivo inicial de Meidner foi o de obter uma nova fonte de investimento público, não é difícil imaginar como estes fundos poderiam ser uma fonte de financiamento da segurança social pública. Aparentemente, a lógica deste sistema não é muito distante da capitalização privada agora defendida por tantos. No entanto, esta é uma proposta que preserva o carácter universal e público do sistema. E é também uma proposta radical: os trabalhadores ganhariam lentamente um maior controlo das empresas, dada a acumulação crescente de capital «socializado». Como o historiador Donald Sasson, no seu excelente Cem anos de Socialismo, escreve, este foi: «o primeiro programa socialista do pós-guerra com o objectivo de eliminar o controlo privado dos principais meios de produção».
Não é preciso recuar muito no tempo para encontrarmos uma alternativa universal, solidária que reforçaria a solidariedade nacional e retiraria poder ao mercado. No início dos oitenta, Rudolf Meidner, economista do principal sindicato sueco, LO (próximo dos sociais-democratas), propôs um plano cujo objectivo inicial era assegurar níveis de investimento que sustentariam uma economia de pleno emprego. A ideia é simples, parte dos lucros das grandes empresas suecas seriam investidos em acções das próprias empresas, mas em fundos controlados pelos trabalhadores em parceria com entidades públicas. Estas acções não poderiam ser transaccionadas. Se o objectivo inicial de Meidner foi o de obter uma nova fonte de investimento público, não é difícil imaginar como estes fundos poderiam ser uma fonte de financiamento da segurança social pública. Aparentemente, a lógica deste sistema não é muito distante da capitalização privada agora defendida por tantos. No entanto, esta é uma proposta que preserva o carácter universal e público do sistema. E é também uma proposta radical: os trabalhadores ganhariam lentamente um maior controlo das empresas, dada a acumulação crescente de capital «socializado». Como o historiador Donald Sasson, no seu excelente Cem anos de Socialismo, escreve, este foi: «o primeiro programa socialista do pós-guerra com o objectivo de eliminar o controlo privado dos principais meios de produção».
Trabalhadores pobres
"Portugal é dos poucos países da União Europeia onde estar empregado não significa deixar de ser pobre, indica um relatório segundo o qual cerca de 14 por cento das pessoas que trabalharam em 2004 tiveram rendimentos abaixo do nível da pobreza" (PÚBLICO). Dados como este apenas confirmam o fracasso de um modelo de desenvolvimento liberal imposto por elites convertidas à ideia do mercado sem fim.
quinta-feira, 22 de novembro de 2007
Um bom debate
«As críticas nas áreas da Educação e da Saúde feitas pelos partidos da direita, pelos cronistas fazedores de opinião ideológica à direita e pela sua movida tão presente na comunicação social, e particularmente na televisão, têm um objectivo de fundo, expresso ou oculto - apresentar como alternativa os benefícios do sistema privado. Mas como as críticas se baseiam muitas vezes sobre problemas reais, misturam-se em amálgama com as críticas dos partidos mais à esquerda. E estes deixam-se cavalgar e cavalgam as críticas de direita, sem fazerem uma separação higiénica e pedagógica». Este importante ponto consta de um artigo de Isabel do Carmo intitulado «A quem serve o ‘bota-abaixo’ do Serviço Nacional de Saúde», publicado no último número do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa. Isto vai certamente dar um bom debate. Ainda por cima é num belo lugar da capital.
quarta-feira, 21 de novembro de 2007
O Estado «facilitador» dos negócios sem risco
«O esvaziamento do Estado», com as privatizações, as parcerias público-privadas e as concessões, é um dos efeitos perversos dos «constrangimentos orçamentais» criados pelo PEC que assim promove a abertura de novas fronteiras para a acumulação privada de capital à custa dos activos que eram de todos e/ou com a contribuição do esforço fiscal de todos. As Estradas de Portugal são apenas mais um bizarro exemplo. O que não se compreende é que Helena Garrido venha afirmar que nestas áreas a gestão privada é mais eficiente do que a gestão pública. O argumento é muito frágil: o bom funcionamento das travessias do Tejo e das auto-estradas, por contraste com as restantes vias de comunicação, comprová-lo-ia. Em primeiro lugar, isto é comparar alhos com bugalhos. Em segundo lugar, a verdade é que se há algo que estes casos demonstram é que a «eficiência», como quer que a definamos (aliás como é que se define?), não passa por aqui. Em relação ao primeiro caso, existe evidência de que o contrato com a Lusoponte foi extremamente prejudicial para o Estado. Em relação ao segundo caso, os portugueses pagam das portagens mais caras da Europa para que o Grupo Mello possa ter, sem esforço, o negócio com a mais elevada taxa de rendibilidade do país.
A abertura destas áreas ao negócio privado reforça os incentivos para que os grandes grupos económicos se especializem no sector dos bens não-transaccionáveis, menos exposto à concorrência. As virtudes empreendedoras do sector privado não são para aqui chamadas. Trata-se apenas de ter poder e influência para negociar bons e complexos contratos, de difícil monitorização e com lucros politicamente garantidos porque o Estado acaba sempre por ter de assumir os riscos do negócio dada a importância dos equipamentos em causa. Depois é cortar ao máximo na manutenção e tentar bloquear todo o escrutínio. Além disso, cria-se uma perigosa promiscuidade entre o sector público e o sector privado, bem ilustrada pela circulação de pessoal político do bloco central dos ministérios para cargos bem remunerados nestas empresas. Não há nenhuma razão para defender que uma empresa pública não está em condições de gerir tão bem, ou até melhor, sectores deste tipo. Além disso, seria mais fácil de controlar, os lucros reverteriam para o Estado e seriam menores as oportunidades de corrosão da ética do serviço público. Quem perderia? Os políticos pouco escrupulosos, os juristas e economistas bem pagos para desenharem os contratos e os «modelos de negócio», os grandes escritórios de advogados com boas ligações e os grupos económicos rentistas. Quem ganharia? O resto do país.
A abertura destas áreas ao negócio privado reforça os incentivos para que os grandes grupos económicos se especializem no sector dos bens não-transaccionáveis, menos exposto à concorrência. As virtudes empreendedoras do sector privado não são para aqui chamadas. Trata-se apenas de ter poder e influência para negociar bons e complexos contratos, de difícil monitorização e com lucros politicamente garantidos porque o Estado acaba sempre por ter de assumir os riscos do negócio dada a importância dos equipamentos em causa. Depois é cortar ao máximo na manutenção e tentar bloquear todo o escrutínio. Além disso, cria-se uma perigosa promiscuidade entre o sector público e o sector privado, bem ilustrada pela circulação de pessoal político do bloco central dos ministérios para cargos bem remunerados nestas empresas. Não há nenhuma razão para defender que uma empresa pública não está em condições de gerir tão bem, ou até melhor, sectores deste tipo. Além disso, seria mais fácil de controlar, os lucros reverteriam para o Estado e seriam menores as oportunidades de corrosão da ética do serviço público. Quem perderia? Os políticos pouco escrupulosos, os juristas e economistas bem pagos para desenharem os contratos e os «modelos de negócio», os grandes escritórios de advogados com boas ligações e os grupos económicos rentistas. Quem ganharia? O resto do país.
Bem visto da economia
Helena Garrido publicou uma excelente posta sobre a «tempestade» que vem da América: «com este quadro temos ainda uma margem limitada dos instrumentos de política. A descida de taxas de juro por parte do BCE enfrenta riscos de impacto limitado pela correcção em alta dos 'spreads' para créditos de maior risco, podendo ainda ficar condicionada se a inflação subir. E as políticas orçamentais estão manietadas pelo Pacto de Estabilidade». Pois é. É no que dão mandatos e regras «estúpidas» que só têm servido para bloquear o crescimento concertado da procura agregada europeia, o que obrigou a um esforço exportador para os EUA que é agora posto em causa. O PEC é um colete de forças que só bloqueia uma política económica de relançamento para fazer face às dificuldades. Não é por acaso que a nossa longa estagnação coincide com esta aberração pré-keynesiana. Há duas alternativas: ou se reforça o orçamento europeu (como é que se avançou para a moeda única sem um orçamento europeu com peso macroeconómico é uma das questões que os historiadores económicos do futuro irão ter de explicar), o que é inexequível políticamente no actual contexto, ou se manda o PEC para o caixote do lixo da história, coisa que os grandes países já fizeram na prática. Isto implica aceitar que o défice é apenas um instrumento e não o objectivo da política económica.
La France
Ontem, mais de meio milhão de pessoas manifestaram-se em França contra as reformas propostas por Sarkozy, no que é o maior movimento social desde o famoso "Inverno do descontentamento" de
Socialismo para os ricos, capitalismo para os pobres
A discussão sobre a possível nacionalização do Northern Rock realça o papel vital das instituições públicas nas numerosas crises financeiras passadas. De facto, a história recente mostra como foram numerosas as intervenções públicas salvadoras do sistema financeiro global. Intervenções justificadas pela importância deste sector no resto da economia, mas que sempre foram acompanhadas por medidas que distribuíram assimetricamente os efeitos das crises, quer na relação entre capital e trabalho, quer nas relações entre diferentes nações. A expressão do João é certeira: «socialismo para os ricos, capitalismo para os pobres».
Doug Henwood faz esta breve história aqui (só para assinantes). A crise da dívida externa nos países em vias de desenvolvimento, aberta pela insolvência mexicana no início dos anos oitenta, resultou nos trágicos programas de ajustamento estrutural do FMI. O pagamento do pesado serviço da dívida destes seguintes foi, no entanto, assegurado. A crise bolsista de 1987 foi "resolvida" com um empréstimo de 200 mil milhões de dólares do Fed norte-americano ao sector financeiro. Em 1994, foi novamente o México o centro da instabilidade financeira, cedo circunscrita por um novo empréstimo norte-americano. Contudo, este país não foi poupado a uma dura recessão e a um novo programa de liberalização da sua economia. O mesmo se passou, grosso modo, no Sudoeste Asiático, em 1997-98. Finalmente, em 2001, a bolha especulativa bolsista em torno da "nova economia” foi lentamente "esvaziada" pela diminuição progressiva das taxas de juro, criando uma nova espiral especulativa, desta vez no sector imobiliário.
Este olhar sobre a história recente ajuda-nos a perceber que estamos longe das crises profundas e duradouras do século XIX. Ao contrário do que certa esquerda sempre espera quando uma crise se anuncia, o capitalismo não vai acabar amanhã. Mas será que estamos condenados a "socializar" as perdas dos investimentos especulativos do sector financeiro? A resposta é não. Através da regulação (taxação das transacções, regulamentação da actividade dos diferentes agentes, intervenção de um sector público robusto, etc) o sistema financeiro pode ser disciplinado e estabilizado. Se as suas irresponsáveis acções têm efeitos exacerbados nas vidas de todos nós, então porque não poderemos ter, todos nós, uma palavra a dizer no seu funcionamento?
Doug Henwood faz esta breve história aqui (só para assinantes). A crise da dívida externa nos países em vias de desenvolvimento, aberta pela insolvência mexicana no início dos anos oitenta, resultou nos trágicos programas de ajustamento estrutural do FMI. O pagamento do pesado serviço da dívida destes seguintes foi, no entanto, assegurado. A crise bolsista de 1987 foi "resolvida" com um empréstimo de 200 mil milhões de dólares do Fed norte-americano ao sector financeiro. Em 1994, foi novamente o México o centro da instabilidade financeira, cedo circunscrita por um novo empréstimo norte-americano. Contudo, este país não foi poupado a uma dura recessão e a um novo programa de liberalização da sua economia. O mesmo se passou, grosso modo, no Sudoeste Asiático, em 1997-98. Finalmente, em 2001, a bolha especulativa bolsista em torno da "nova economia” foi lentamente "esvaziada" pela diminuição progressiva das taxas de juro, criando uma nova espiral especulativa, desta vez no sector imobiliário.
Este olhar sobre a história recente ajuda-nos a perceber que estamos longe das crises profundas e duradouras do século XIX. Ao contrário do que certa esquerda sempre espera quando uma crise se anuncia, o capitalismo não vai acabar amanhã. Mas será que estamos condenados a "socializar" as perdas dos investimentos especulativos do sector financeiro? A resposta é não. Através da regulação (taxação das transacções, regulamentação da actividade dos diferentes agentes, intervenção de um sector público robusto, etc) o sistema financeiro pode ser disciplinado e estabilizado. Se as suas irresponsáveis acções têm efeitos exacerbados nas vidas de todos nós, então porque não poderemos ter, todos nós, uma palavra a dizer no seu funcionamento?
terça-feira, 20 de novembro de 2007
A hipótese da nacionalização
O «novo trabalhismo» britânico pôde prosperar sem bloqueios políticos dos grupos sociais mais privilegiados porque aceitou e nutriu a herança liberal de uma economia onde a finança especulativa de mercado ocupa, desde os anos oitenta, um lugar de inédita e insustentável proeminência. Já conhecíamos as abissais desigualdades que a aceitação deste padrão de mercado pode gerar. Desde Setembro que conhecemos a instabilidade financeira como resultado da combinação de dinâmicas concorrenciais coercivas em tempos de euforia financeira com uma gestão bancária gananciosa e míope. De facto, o já famoso caso do Northern Rock e do colossal empréstimo que o Banco de Inglaterra teve que garantir para gerir o risco sistémico que uma falência bancária, precedida de uma corrida aos depósitos, acarretaria, poderá ter pesadas consequências políticas para o governo de Brown. Existe a percepção fundada de que o empréstimo pode nunca vir a ser reembolsado, ou seja, o erário público corre o risco de acabar a financiar especuladores dispostos a adquirir o banco apenas sob condição de grandes apoios do governo (uma versão do «socialismo para os ricos, capitalismo para os pobres»). Daí que comece a surgir uma alternativa interessante e com uma repartição aparentemente mais balanceada dos fardos entre o erário público e os proprietários: a nacionalização do banco. Ouviram bem. A palavra mais «suja» do vocabulário económico está a reentrar na discussão pública na pátria de todas as contra-reformas liberais e pelas mãos mais insuspeitas.
O medo como instrumento de política
«É também assim que as ‘reformas’ actuais se impõem: primeiro gera-se o medo do futuro, com previsões catastrofistas matraqueadas todos os dias. Perante o medo as pessoas apenas desejam que não sejam elas as visadas pelas ‘reformas’ e calam-se. Multiplicado por todas as pessoas, esta atitude leva a uma desmoralização generalizada, que redunda numa self-fulfiling prophecy: a ideia de que já ninguém está para isso e de que o mundo é mesmo assim, sem escolhas, sem alternativas, sem sequer se perguntar se é mesmo assim». Miguel Vale de Almeida. Certeiro como poucos. Quem manda esquece que toda a política de reconfiguração institucional bem sucedida requer o consentimento activo e empenhado dos «subordinados». É por aqui que a política da «direita socialista» vai fracassar. Os incentivos, a monitorização e a repressão não substituem a persuasão.
Jornalismo
Sabemos que algo vai mal no jornalismo quando temos de destacar um trabalho por ouvir várias vozes e assim oferecer uma perspectiva mais equilibrada sobre um assunto. No entanto, em relação à Venezuela, a imprensa dita de referência costuma estar algures entre a Atlântico e o Insurgente, ou seja, ao nível da pura propaganda da direita intransigente. Francisca Gorjão Henriques, pelo contrário, procura compreender o que está por detrás do sucesso político de Chávez, ouve pessoas de vários quadrantes e apresenta alguns elementos para uma discussão informada: «Dados da Comissão Económica para a América Latina e Caraíbas das Nações Unidas (ECLAC, na sigla inglesa) mostram que a pobreza venezuelana caiu dos 48,6 por cento para 37,1 por cento entre 2002 e 2005. A indigência passou de 22,2 por cento para 15,9 por cento». A verdade só pode emergir do pluralismo. E o jornalismo digno desse nome também.
segunda-feira, 19 de novembro de 2007
Reversão de política?
Uma história intelectual da trajectória recente do PS, ainda por escrever, revelaria a influência das orientações de política promovidas pela Terceira Via britânica. Muitas das «reformas» do governo Sócrates são decalcadas da «pérfida Albión». É o caso da área da saúde em que a aposta política na criação de massa crítica no sector privado inevitavelmente gerará as convenientes pressões sectoriais para mais arrojados avanços mercantis no futuro. Daí que julgue necessário chamar a atenção para a reversão de política que parece estar em curso na Grã-Bretanha com o governo de Brown a efectuar grandes cortes no que deveria ser um festim para a expansão do sector privado nesta área. Receio de um «tipping point» de consequências desastrosas para o popular SNS? Avaliação das dificuldades passadas com os custosos imbróglios contratuais? Provavelmente ainda é cedo para sabermos, mas acho que os convertidos ao «novo trabalhismo» devem estar atentos.
«O petróleo é nosso»
Não sei se «Deus é brasileiro», mas sei que a Petrobras é. Esta empresa brasileira de capitais ainda maioritariamente públicos é líder mundial na prospecção e exploração de petróleo em águas profundas e domina as tecnologias de ponta nesta área. Isto significa que o Brasil está em boas condições para aproveitar as recentes descobertas de novas e significativas jazidas nas suas águas. Só que aqui chegados os liberais são atacados por súbita amnésia histórica. Vale por isso a pena recordar que esta empresa foi o resultado da famosa campanha «o petróleo é nosso» dos anos quarenta. Criada pelo Estado brasileiro em 1953, deteve durante mais de quarenta anos o monopólio no Brasil e nem o governo neoliberal de FHC, o das maiores privatizações da história do capitalismo, se atreveu a privatizá-la integralmente. A Petrobras é um belo exemplo de uma política desenvolvimentista bem sucedida num período de refluxo liberal. A protecção pública contribuiu decisivamente para o processo de «educação industrial», de aprendizagem e de criação de capacidade técnica que fizeram da Petrobras aquilo que ela é hoje: um actor internacional de primeiro plano neste importante sector. Precisamente porque teve o tempo e a autonomia para crescer e para se desenvolver. Esta lição de política pública de desenvolvimento não pode ser esquecida porque é graças a ela que o Brasil pode explorar autonomamente as suas jazidas sem depender de terceiros. E dizer: «o petróleo é nosso».
domingo, 18 de novembro de 2007
É o frio que os faz trabalhar mais?
«Os níveis de produtividade dos trabalhadores no Luxemburgo estão 66 por cento acima da média europeia, o que lhe confere a quarta posição no ranking dos países mais produtivos da Europa. Portugal, que ocupa a 39ª posição, apresenta níveis 40 por cento abaixo. Se os imigrantes portugueses que trabalham no país regressassem, começariam o fim-de-semana às 17 horas de terça-feira e teriam direito a mais de sete meses de férias, porque produzem a um ritmo 2,7 vezes superior em território luxemburguês.» (no Público de ontem).
Pérolas destas repetem-se na comunicação social portuguesa. Vai-se incutindo na cabeça das pessoas a ideia de que «os portugueses lá fora trabalham tão bem ou melhor que os outros». Não deveria ser difícil a um jornalista que escreve num caderno de economia perceber que a «produtividade do trabalho» (e não «produtividade dos trabalhadores», como escreve a jornalista) é um indicador que consiste em não mais do que a simples divisão do valor da produção pelo número de trabalhadores. Logo, se o valor deste indicador é baixo, a única coisa que se pode concluir é que o valor (de mercado) do que se produz em Portugal é baixo tendo em conta a dimensão da economia nacional.
E porque é que o valor do produto nacional é tão baixo? Por diferentes motivos, nomeadamente: porque se produz muito em sectores de baixo valor acrescentado; porque a qualidade e sofisticação do que se produz não permite cobrar preços elevados pelos bens e serviços produzidos; porque mesmo quando se produzem bens e serviços de elevada qualidade não se consegue convencer os consumidores que esses produtos valem o preço que é pedido; ou porque, muitas vezes, quando os produtos são bons e até são reconhecidos no exterior há distribuidores que controlam o acesso aos mercados externos e que ficam com as margens de lucro realizadas.
As razões que conduziram a economia portuguesa a esta situação são várias e nem sempre simples de descortinar. Entre as principias candidatas estão: uma industrialização que se deu demasiado tarde para que a indústria portuguesa conseguisse afirmar-se naqueles sectores de elevado valor acrescentado onde só há lugar para um número reduzido de empresas a nível internacional; o facto de as poucas empresas nacionais com escala para competir a nível internacional sempre se terem interessado mais por explorar as rendas garantidas no mercado nacional (com o apoio generoso dos poderes públicos); o facto de o investimento em factores de inovação e qualidade (que permitiriam criar marcas próprias em bens e serviços sofisticados, mas que levam alguns anos até garantirem retorno) sempre terem sido preteridos em favor de investimentos com retorno imediato; um nível de qualificação dos portugueses (tanto trabalhadores como gestores) que dificultou o 'upgrading' das capacidades de produção; entre outras.
Será que a jornalista do Público não percebe coisas tão básicas? Será que está mesmo convencida que os portugueses que vivem no Luxemburgo trabalham mais do que em Portugal (talvez por causa do frio, ou por que se aborrecem de morte no Grão-Ducado) e que isso expica a diferença na «produtividade do trabalho»?
Um aviso aos desatentos: esta notícia do Público serviu para anunciar um novo programa da :2, «Economia do Mês», apresentado por uma das maiores fraudes das questões de Economia em Portugal, Vasconcelos e Sá. Para comentar os dados referidos no início, a jornalista não encontrou ninguém melhor do que essa outra fraude, tão ideologicamente empenhada como a primeira, que é Pedro Arroja. Não admira que quase ninguém tenha paciência para a imprensa económica em Portugal.
Pérolas destas repetem-se na comunicação social portuguesa. Vai-se incutindo na cabeça das pessoas a ideia de que «os portugueses lá fora trabalham tão bem ou melhor que os outros». Não deveria ser difícil a um jornalista que escreve num caderno de economia perceber que a «produtividade do trabalho» (e não «produtividade dos trabalhadores», como escreve a jornalista) é um indicador que consiste em não mais do que a simples divisão do valor da produção pelo número de trabalhadores. Logo, se o valor deste indicador é baixo, a única coisa que se pode concluir é que o valor (de mercado) do que se produz em Portugal é baixo tendo em conta a dimensão da economia nacional.
E porque é que o valor do produto nacional é tão baixo? Por diferentes motivos, nomeadamente: porque se produz muito em sectores de baixo valor acrescentado; porque a qualidade e sofisticação do que se produz não permite cobrar preços elevados pelos bens e serviços produzidos; porque mesmo quando se produzem bens e serviços de elevada qualidade não se consegue convencer os consumidores que esses produtos valem o preço que é pedido; ou porque, muitas vezes, quando os produtos são bons e até são reconhecidos no exterior há distribuidores que controlam o acesso aos mercados externos e que ficam com as margens de lucro realizadas.
As razões que conduziram a economia portuguesa a esta situação são várias e nem sempre simples de descortinar. Entre as principias candidatas estão: uma industrialização que se deu demasiado tarde para que a indústria portuguesa conseguisse afirmar-se naqueles sectores de elevado valor acrescentado onde só há lugar para um número reduzido de empresas a nível internacional; o facto de as poucas empresas nacionais com escala para competir a nível internacional sempre se terem interessado mais por explorar as rendas garantidas no mercado nacional (com o apoio generoso dos poderes públicos); o facto de o investimento em factores de inovação e qualidade (que permitiriam criar marcas próprias em bens e serviços sofisticados, mas que levam alguns anos até garantirem retorno) sempre terem sido preteridos em favor de investimentos com retorno imediato; um nível de qualificação dos portugueses (tanto trabalhadores como gestores) que dificultou o 'upgrading' das capacidades de produção; entre outras.
Será que a jornalista do Público não percebe coisas tão básicas? Será que está mesmo convencida que os portugueses que vivem no Luxemburgo trabalham mais do que em Portugal (talvez por causa do frio, ou por que se aborrecem de morte no Grão-Ducado) e que isso expica a diferença na «produtividade do trabalho»?
Um aviso aos desatentos: esta notícia do Público serviu para anunciar um novo programa da :2, «Economia do Mês», apresentado por uma das maiores fraudes das questões de Economia em Portugal, Vasconcelos e Sá. Para comentar os dados referidos no início, a jornalista não encontrou ninguém melhor do que essa outra fraude, tão ideologicamente empenhada como a primeira, que é Pedro Arroja. Não admira que quase ninguém tenha paciência para a imprensa económica em Portugal.
Intervir ou não intervir? Uma falsa questão
«Ao contrário do que defendem os liberais, quando o Estado abandona as suas funções sociais e económicas tem de reforçar a sua presença na esfera privada e cívica». Daniel Oliveira. Na realidade, os liberais reconhecem, de forma mais ou menos disfarçada, este facto indiscutível. Na suas teorias e na sua prática como conselheiros políticos. A construção e expansão de uma ordem mercantil exigem um incremento do «intervencionismo» estatal em certas esferas. Por isso é que a discussão, como reconheceu um dia Hayek (o santo padroeiro da blogoesfera liberal), nunca é entre «intervir» e «não intervir», mas sim saber como deve o Estado distribuir os direitos e as obrigações entre cidadãos que ocupam diferentes posições. Além do mais, existem bons estudos que têm argumentado que sociedades com maiores desigualdades socioeconómicas requerem «investimentos improdutivos» mais significativos na manutenção de um aparato de segurança e de controlo, público e privado, do que sociedades mais igualitárias. O liberalismo intransigente é apenas um dos «caminhos para a servidão». E hoje é certamente o mais promissor.
sexta-feira, 16 de novembro de 2007
Para ler com calma
«É cada vez mais claro que uma recessão severa nos EUA é inevitável nos próximos meses. Aqueles que avisaram, nos últimos doze meses, que uma combinação de crise imobiliária, contracção do crédito severa, instabilidade financeira, preços do petróleo elevados, com consumidores endividados e em crescentes dificuldades, [aqui devia entrar uma análise do impacto diferenciado da crise nas diversas classes sociais porque consumidores somos todos] causaria uma recessão geral foram ignorados pela projecção convencional de uma aterragem suave assente na 'resistência' dos consumidores. Mas agora aumenta a evidência de que uma recessão bastante feia é inevitável». Nouriel Roubini. A questão parece ser já a do impacto destes desenvolvimentos no resto da economia mundial. Diz-se que tudo depende da Ásia e da sua autonomia em relação aos EUA. Esta ideia irá ser testada nos próximos tempos. As notícias que chegam da China não parecem animadoras. No entanto, é preciso cautela e calma. Em tempos turbulentos, em que as notícias se sucedem, tantas vezes contraditórias, vale a pena alguma «distância». Aqui entra a teoria que nos permite ordenar o «real caótico», sugerir com rigor alguns mecanismos causais e fazer modestas «previsões de padrões gerais» ou de tendências de desenvolvimento na economia mundial. Este contributo de François Chesnais é uma ajuda neste sentido. É um trabalho ainda provisório. E filia-se na melhor tradição da economia política marxista que continua a ser, por muito que custe a algumas pessoas que confundem escolhas teóricas com modas intelectuais, um excelente quadro, entre outros, para compreender o capitalismo. Já agora uma questão de história intelectual: por que é que o ramo trotsquista do marxismo sempre produziu os melhores economistas da tradição? Será a influência de Mandel? O facto de Trotsky ter alguns contributos interessantes na área? Fica a pergunta.
Unidade na diversidade
«O que não falta no país é discussão. Democracia é assim: a gente submete aquilo que acredita, o povo decide e a gente acata o resultado. Se não, não é democracia». Lula da Silva sobre Chávez e a Venezuela. E disse mais: «Houve uma declaração de Chávez que o rei achou que era demais. Tratava-se de uma crítica ao ex-primeiro-ministro da Espanha que havia apoiado o golpe (. . .) E qual é a diferença? Que o rei estava na reunião. E quem disse 'cállate' foi o rei. Ou seja, não foi nenhum de nós (os presidentes)». No fundo o Rei é irrelevante para aquilo que interessa. Muito bem. A unidade da esquerda latino-americana é crucial. É preciso resistir à ideia, que certos sectores da direita e da esquerda querem fazer passar, de que há uma esquerda boa e uma esquerda má. Não. Há diferentes contextos, diferentes tradições, diversidade e discussão. E também unidade naquilo que importa: o combate pela autonomia de um continente.
PS. Agradeço a João Bau o envio desta referência
PS. Agradeço a João Bau o envio desta referência
quinta-feira, 15 de novembro de 2007
Tornar a pobreza visível
A redução da pobreza infantil no Reino Unido sempre foi uma das proclamadas ambições do novo trabalhismo. Era pesada a herança de Thatcher. O Reino Unido tinha, como ainda tem hoje, das mais elevadas taxas de pobreza infantil da Europa. A tendência de ligeira redução inverteu-se no ano passado quando o número de crianças pobres aumentou em cem mil. Quando uma em cada três crianças está nesta situação sabemos que o neoliberalismo fracassou. Um estudo publicado hoje revela o fenómeno em toda a sua extensão. Escolhas trágicas como resultado da falta de recursos - refeições que se saltam, casas por aquecer. Mas ao menos aqui o fenómeno é conhecido. Os jornais falam disto. Publicam-se estudos e relatórios. O assunto faz parte da agenda política. Já em Portugal, o fenómeno permanece largamente invisível. Do ponto de vista do governo «socialista» percebe-se bem que assim seja. Seria muito embaraçoso ter de admitir que as suas políticas têm, pelo menos, perpetuado este problema. Notem que eu gostava bem de ser contrariado neste assunto. Com estudos que mostrem que estou errado. E que a pobreza infantil tem afinal diminuido nestes anos de crise. Seria a melhor demonstração de uma aposta política.
Um pseudónimo que é todo um programa
«O Chavez desagrada à esquerda portuguesa. Usa o petróleo, esse inimigo carbónico do planeta, para financiar os partidos populares da América do Sul e Centro. Usa a religião e o mito bolivariano para romantizar a sua obra social. Usa o carisma para se fazer ouvir sobre as vozes dos média e dos interesses económicos que o combatem. Dinheiro, romance e carisma são elementos ausentes na esquerda portuguesa. Mas a principal perturbante característica é que a esquerda Chavista funciona. A América está a mudar por conta dos Venezuelanos e do seu barulhento anti-imperialismo». A. Cabral no Bitoque.
Estranho país este
onde os jornalistas do mais liberal diário nacional entram em greve.
p.s. Mais estranho é o país onde acontecem coisas destas.
p.s. Mais estranho é o país onde acontecem coisas destas.
quarta-feira, 14 de novembro de 2007
O futuro
«Mas a questão de fundo no motor económico da Europa é se o SPD alemão conseguirá recuperar à esquerda os apoios que perdeu para o Link/a 'Esquerda', invulgar confluência da antiga esquerda socialista de Oskar Lafontaine com o que sobrava dos comunistas da Alemanha de Leste e que, a partir da fusão, têm 'aparelho', tribunos e alguns apoios sindicais». Joel Hasse Ferreira. Ainda há socialistas atentos. Embora pouco rigorosos. Não há nada de invulgar aqui. Apenas a aliança promissora entre as forças que recusam ser parte da destruição do Estado Social alemão e da desregulamentação do mercado de trabalho promovida pelo SPD e continuada pela CDU-SPD. Uma nova força socialista, pacifista e ecologista. Capaz de criar dinâmicas políticas que quebrem o consenso liberal e mudem o mapa político da Alemanha. É mesmo por aqui que passa o futuro da esquerda.
Uma outra UE é possível
«Perante uma visão tão negativa, seria legítimo perguntar se Miguel, BE e PCP querem a UE tal como ela existe hoje, ou se não valeria a pena pôr termo a uma criação política que corresponde tão pouco às suas aspirações. Mas o problema é que o BE e o PC só atiram de viés à Europa, sem levar a sua linha de argumentação consequentemente até ao fim». Ana Gomes. Aqui está uma forma um pouco esquemática de pensar as coisas. Ou se adere dogmaticamente à UE «tal como ela existe» ou se defende a sua extinção. Sem mais. Ana Gomes, que em matéria de relações internacionais costuma ter posições bem mais sofisticadas, certamente que percebe que é possível e desejável superar os raciocínios dicotómicos que nos impedem de pensar outras saídas bem mais interessantes. Por exemplo, como todos fazemos neste blogue, criticar as escolhas políticas que a partir dos anos oitenta trancaram a UE numa trajectória neoliberal e ao mesmo tempo considerar que a UE poderia ser já hoje, com reformas institucionais adequadas, o espaço privilegiado para pôr em prática políticas keynesianas coordenadas de relançamento económico e de regulação da finança, de harmonização fiscal e de convergência em termos de direitos sociais. Uma alternativa social-democrata robusta que rompa com o ordo-liberalismo hegemónico à escala europeia. Este programa tem feito o seu caminho na esquerda portuguesa. No BE, em alguns sectores do PS (estou a pensar nas posições de João Cravinho ou nas preocupações de Guilherme d'Oliveira Martins) e até no PCP (Carlos Carvalhas numa brilhante intervenção num recente e soporífero debate no Prós e Contras com o Cherne, Sampaio e Mota Amaral). O que é que esta posição tem de incoerente ou de inconsequente?
Inflação ou Inflações?
A discussão em torno das actualizações para as pensões de reformas é central para o combate à pobreza em Portugal. Dezenas de milhares de idosos dependem das miseráveis pensões sociais de invalidez ou velhice do regime não contributivo, cujo valor não chega aos 200 euros (212 euros para os antigos trabalhadores agrícolas). É, por isso, natural que o Governo assegure um aumento das pensões superior à taxa de inflação prevista. No entanto, desconfio que esta não seja a melhor forma de garantir o aumento do poder de compra desta vulnerável parcela da nossa população. O cabaz de compras médio de um pensionista será, provavelmente, muito diferente do cabaz de compras utilizado pelo INE no cálculo da taxa de inflação. Os produtos alimentares, os serviços básicos (água, gás e electricidade) e os medicamentos pesam mais no orçamento familiar. Então, porque não indexar as actualizações a uma de taxa de inflação "para idosos", a ser calculada pelo INE?
Uma ciência prudente
«As melhores políticas estão sempre associadas às condições locais, quando se recorre às vantagens já existentes e se procura ultrapassar os condicionalismos internos. É por isso que, habitualmente, muitas reformas bem sucedidas não têm o mesmo resultado noutros países. As reformas, no fim de contas, não são como aquelas estufas que podem ser transferidas à vontade para qualquer tipo de solo (...) em última análise, cabe a cada país dizer: ‘Obrigado, mas não queremos; faremos as coisas à nossa maneira’». Dani Rodrik, o mais iconoclasta dos economistas neoclássicos do desenvolvimento, professor em Harvard e blogger profícuo. Contemplado com o Prémio Albert Hirschman (recentemente criado). Esta citação foi retirada de um artigo que o Jornal de Negócios em boa hora publicou e onde Rodrik destaca precisamente a importância de Hirschman, um economista que nunca recebeu o reconhecimento de uma disciplina que tende a empurrar para a margem muitos dos melhores. Sobretudo quando estes recusam as desastradas receitas universais propagadas pelas ortodoxias do momento. Não quero ser demasiado optimista, mas parece que algo está mesmo a mudar: «Os modelos dinâmicos são muito mais comuns, floresceu uma economia de 'second-best', a economia política tornou-se corrente dominante e a economia comportamental pôs em causa o 'actor racional'. Consequentemente, Hirschman parece-se cada vez menos com o inovador tresmalhado que imaginava ser. A sabedoria convencional poderá, por fim, estar a alcançá-lo». Já não era sem tempo. Agora só falta mudar as orientações dominantes da política económica. E já agora o ensino da economia.
terça-feira, 13 de novembro de 2007
O futuro do socialismo depois de Hayek
Nikolai Bukharine afirmou um dia que o grande adversário do marxismo é a «escola austríaca» de economia. Referia-se provavelmente à crítica de Bohn-Bawerk à teoria marxista do valor e da exploração. Bukharine teve a oportunidade de frequentar o seu famoso seminário em Viena antes da revolução bolchevique o tornar «o favorito de todo partido». No século XX, F. Hayek, cujas obras Bukharine já não teve oportunidade de estudar, encarregar-se-ia de mostrar até que ponto era verdadeira a sua afirmação. Creio que, com Ludwig von Mises, é o adversário intelectual mais poderoso de todos os socialismos. A ideia central de Hayek é que só uma ordem de mercado é capaz de mobilizar e dar bom uso ao «conhecimento particular do tempo e do lugar» que cada indivíduo possui, dando-lhe a oportunidade e os incentivos para prosseguir livremente os seus planos e para realizar «explorações no desconhecido» de que todos acabamos por beneficiar. Hoje ninguém de esquerda o pode ignorar. Pensar o socialismo implica assim uma confrontação séria com a crítica de Hayek ao planeamento e com a sua defesa das virtudes epistémicas, políticas e morais do mercado.
É isso que faz Theodore Burczak. O resultado é um livro elegante que parte de uma crítica imanente a Hayek, integra a sua ideia do mercado como processo, repensa a teoria da exploração e usa diversos recursos teóricos (a teoria das «capacidades» de Sen e de Nussbaum, por exemplo) para defender um «socialismo hayekiano» centrado na democracia no espaço da produção e no desenvolvimento das capacidade humanas (mostrando que a justiça social não é uma «miragem»). Tenho alguns reparos a fazer a algumas escolhas metodológicas e teóricas e a um eclectismo intelectual excessivo. Acho também que aceita com demasiada facilidade a visão hayekiana, algo idealizada, do mercado. Mas há muito tempo que não lia um livro de economia política tão fascinante. Pelos vistos os meus adversários predilectos - «os austríacos» - concordam, visto que uma das suas associações científicas acaba de o considerar o livro do ano de «economia austríaca».
É isso que faz Theodore Burczak. O resultado é um livro elegante que parte de uma crítica imanente a Hayek, integra a sua ideia do mercado como processo, repensa a teoria da exploração e usa diversos recursos teóricos (a teoria das «capacidades» de Sen e de Nussbaum, por exemplo) para defender um «socialismo hayekiano» centrado na democracia no espaço da produção e no desenvolvimento das capacidade humanas (mostrando que a justiça social não é uma «miragem»). Tenho alguns reparos a fazer a algumas escolhas metodológicas e teóricas e a um eclectismo intelectual excessivo. Acho também que aceita com demasiada facilidade a visão hayekiana, algo idealizada, do mercado. Mas há muito tempo que não lia um livro de economia política tão fascinante. Pelos vistos os meus adversários predilectos - «os austríacos» - concordam, visto que uma das suas associações científicas acaba de o considerar o livro do ano de «economia austríaca».
A propósito da recente polémica
Já que toda a gente contribui para o importante debate à volta do "por que no te callas?" real, porque não escutar o que dizem os "punks"?
"God Save the Queen", Sex Pistols, 1977.
"God Save the Queen", Sex Pistols, 1977.
Défice, Desorçamentação, Privatização
Com a economia mundial a abrandar, as previsões do Governo para o orçamento de 2008 parecem ser demasiado optimistas. Mas então, como iremos nós cumprir o desígnio nacional da redução do défice orçamental? É fácil, através da desorçamentação. Retiram-se receitas e despesas do orçamento (mais das segundas do que das primeiras) e, num passe de mágica, cumprimos os limites impostos por Bruxelas.
Aparentemente, o anunciado novo modelo de gestão da rede rodoviária nacional não é mais do que um destes "passes de mágica" estatísticos. Uma empresa, concessionária de todas as estradas nacionais, irá ser criada em 2008. O Estado deixará então de arcar com as despesas de investimento e conservação das rodovias nacionais, transferindo para a nova empresa as receitas das presentes e futuras portagens. Esta receberá ainda uma renda anual pela concessão. Resultado? Redução do défice.
Não tenho qualquer problema moral com manipulações estatísticas que escondam o défice real, mas este novo modelo faz recear o pior. A criação desta empresa, por agora de capitais públicos, abre o caminho para a sua privatização a médio prazo. Uma privatização muito apetecida, já que estamos perante um sector com rendas asseguradas. Os agentes privados não arriscam, só ganham.
Para muitos isto pode parecer paranóia, mas as anunciadas parcerias público privadas indicam já este sentido e as declarações de Mário Lino estão longe de nos tranquilizar: "não há qualquer intenção de privatizar até ao final deste mandato". Para bom entendedor...
Uma nota final. Na passada semana, durante a discussão do orçamento, Sócrates respondia à interpelação de Louçã, vincando que os 92 anos de concessão eram um limite temporal e não o prazo definido pelo Governo. Seis dias depois, o ministro das obras públicas confirma a data de 2099.
Aparentemente, o anunciado novo modelo de gestão da rede rodoviária nacional não é mais do que um destes "passes de mágica" estatísticos. Uma empresa, concessionária de todas as estradas nacionais, irá ser criada em 2008. O Estado deixará então de arcar com as despesas de investimento e conservação das rodovias nacionais, transferindo para a nova empresa as receitas das presentes e futuras portagens. Esta receberá ainda uma renda anual pela concessão. Resultado? Redução do défice.
Não tenho qualquer problema moral com manipulações estatísticas que escondam o défice real, mas este novo modelo faz recear o pior. A criação desta empresa, por agora de capitais públicos, abre o caminho para a sua privatização a médio prazo. Uma privatização muito apetecida, já que estamos perante um sector com rendas asseguradas. Os agentes privados não arriscam, só ganham.
Para muitos isto pode parecer paranóia, mas as anunciadas parcerias público privadas indicam já este sentido e as declarações de Mário Lino estão longe de nos tranquilizar: "não há qualquer intenção de privatizar até ao final deste mandato". Para bom entendedor...
Uma nota final. Na passada semana, durante a discussão do orçamento, Sócrates respondia à interpelação de Louçã, vincando que os 92 anos de concessão eram um limite temporal e não o prazo definido pelo Governo. Seis dias depois, o ministro das obras públicas confirma a data de 2099.
segunda-feira, 12 de novembro de 2007
Forma e conteúdo
«Infelizmente, esta súbita atenção mundial em relação à Venezuela, que Chávez alimenta, nada tem a ver com a democracia na América Latina. A preocupação está um pouco mais abaixo. Abaixo do solo venezuelano». Aqui Daniel Oliveira é certeiro. Se tivesse alguma coisa que ver com a democracia dados como estes não seriam sistematicamente omitidos. O que incomoda realmente é que a renda do petróleo esteja a ser utilizada para expandir as «liberdades positivas» das classes populares (liberdade para aceder progressivamente a condições de vida condignas) e para forjar um Estado desenvolvimentista assente numa economia mista com uma redistribuição importante dos activos. É verdade que Chávez tem um estilo histriónico que, numa era de mediatismo agressivo, tende a toldar a força da sua mensagem política. Sobretudo para algumas audiências. Mas também aqui cabe-nos separar o essencial do acessório. A forma do conteúdo se quiserem. E recusar categorias vazias - «populismo», por exemplo. Até porque se alguma coisa Chávez tem feito na América Latina não é certamente transformar «a esquerda internacional numa palhaçada», mas sim dar força material aos vários projectos progressistas que não cessam de crescer no continente. Acho mesmo que a esquerda europeia, dado o estado em que se encontra, tem muito poucas lições - de forma ou de conteúdo - a dar à pujante e variada esquerda latino-americana de que Chávez é parte integrante. É que esta tem conquistado democraticamente o poder e mudado a vida da gente comum. E no fim, para além da espuma, é só isto que conta.
Mercados de alta tensão
Um artigo do New York Times da semana passada mostra como, nos EUA, o preço da electricidade é menor nos estados com preços regulados publicamente do que nos estados com mercados de electricidade liberalizados (ver evolução no gráfico abaixo). A subida dos preços dos combustíveis, aliada ao aumento da procura de energia, resultou em excelentes oportunidades para a especulação no mercado de electricidade. Especulação esta, favorecida por estarmos perante um estratégico sector onde o nível de produção é razoavelmente constante face a um consumo muito variável.
O resultado, contrário às previsões dos fanáticos da concorrência, foi, então, o encarecimento de um dos mais «pesados» custos de produção da generalidade das empresas. A construção deste mercado resultou assim num arranjo ineficiente, penalizador da competitividade de economia, que só beneficia um punhado de empresas eléctricas retalhistas.
Os EUA parecem não ter aprendido com os anteriores desastrosos resultados destas ficções mercantis. Já em 2000/2001, um dos Estados com mercados desregulados, a Califórnia, assistiu a consecutivos cortes de energia, devido à manipulação especulativa e fraudulenta do mercado retalhista eléctrico por parte de empresas como a Enron. A mesma Enron que, pouco tempo depois, entrou em processo de falência.
Entretanto, Portugal parece querer seguir, a passos largos, os erros dos outros, como indiciam as privatizações no sector (primeiro da EDP, recentemente da REN) e a criação de um mercado eléctrico ibérico que ainda ninguém viu. (Obrigado a Tiago Antão pela referência do NYT).
O resultado, contrário às previsões dos fanáticos da concorrência, foi, então, o encarecimento de um dos mais «pesados» custos de produção da generalidade das empresas. A construção deste mercado resultou assim num arranjo ineficiente, penalizador da competitividade de economia, que só beneficia um punhado de empresas eléctricas retalhistas.
Os EUA parecem não ter aprendido com os anteriores desastrosos resultados destas ficções mercantis. Já em 2000/2001, um dos Estados com mercados desregulados, a Califórnia, assistiu a consecutivos cortes de energia, devido à manipulação especulativa e fraudulenta do mercado retalhista eléctrico por parte de empresas como a Enron. A mesma Enron que, pouco tempo depois, entrou em processo de falência.
Entretanto, Portugal parece querer seguir, a passos largos, os erros dos outros, como indiciam as privatizações no sector (primeiro da EDP, recentemente da REN) e a criação de um mercado eléctrico ibérico que ainda ninguém viu. (Obrigado a Tiago Antão pela referência do NYT).
domingo, 11 de novembro de 2007
Será que «o dólar perdeu sex-appeal»?
Coloco sob a forma de pergunta a afirmação de Pedro Sales. Até porque os EUA têm revelado uma extraordinária capacidade, desde os anos setenta, de aproveitamento da sua posição hegemónica na economia política global para assim exportarem os seus problemas e assegurarem a manutenção do seu estatuto único. Só que agora as coisas estão de facto mais complicadas. A quebra do dólar reflecte problemas profundos na economia norte-americana e no modelo anglo-saxónico de capitalismo e pode gerar encadeamentos altamente perversos. A acumulação de brutais défices externos até agora financiados pela poupança do resto do mundo reflecte, por um lado, a incapacidade de lidar com as pressões concorrenciais de outras economias industrializadas, e por outro lado, a extensão da financeirização da sua economia. Esta permitiu o desenvolvimento de sofisticados e perigosos mecanismos de crédito que financiaram sucessivas e cada vez mais insustentáveis bolhas especulativas nos mais diversos tipos de activos (o imobiliário destaca-se desde o rebentamento da bolha da «nova economia»). O que por sua vez gerou padrões de consumo que ajudaram a sustentar o mito de uma economia «vibrante» capaz de superar todas as crises. Estas dinâmicas também estão presentes no Reino Unido que esta semana anunciou um défice recorde nas suas contas externas. O que agora se anuncia é também o fim de um ciclo ideológico em que o «crescimento económico» destes dois países serviu para justificar a imitação dos seus arranjos institucionais e para elogiar as virtudes das desigualdades obscenas e, pelo menos no caso dos EUA, da estagnação salarial e da mercadorização de todo o processo de provisão. O custo disto está agora à vista de todos. Economias pouco competitivas, corroídas por um sector financeiro predatório e com encadeamentos macroeconómicos insustentáveis que, dada sua importância, irão ter repercussões no resto do mundo. A questão crucial como sempre é a de saber sobre quem é que irá incidir o fardo do ajustamento.
Contágio
É notável que sejam de uma publicação mais vocacionada para análises políticas internacionais os melhores artigos sobre a actual crise financeira e suas implicações para a economia global. Depois do artigo de Fredric Lordon, é o contributo de François Chesnais, no Le Monde Diplomatique deste mês, que merece atenção.
Este artigo aborda as implicações da actual crise sobre os frágeis equilíbrios que sustentam hoje a economia internacional. As formidáveis reservas de divisas estrangeiras detidas pelas economias asiáticas, sobretudo a China, têm sido investidas em títulos de Tesouro norte-americanos, financiando assim a largamente endividada economia dos EUA. Este financiamento tem como clara contrapartida o acesso ao vasto mercado deste país - só a cadeia de distribuição Wal-Mart é responsável pela compra de 10% das exportações totais da China. Ora, com o seu consumo sustentado em boa medida através do endividamento, a actual crise financeira faz prever um abrandamento da procura americana. Se adicionarmos a incapacidade do governo chinês em «arrefecer» a sua economia e suster a criação de sobrecapacidade produtiva, estão reunidos os ingredientes para uma prolongada crise global.
Finamente, uma pequena nota sobre François Chesnais. Ex-técnico da OCDE, marxista e membro de um pequeno grupo trotskista, este economista ganhou notoriedade através da acção da ATTAC (Associação pela Taxação das Transacções para Ajuda aos Cidadãos) na defesa de uma maior regulação financeira, simbolizada na famosa taxa de Tobin. De facto, ele é autor e editor de algumas das melhores análises dos actuais processos de financeirização da economia (um dos domínios na teoria económica onde os franceses ultrapassam os seus congéneres anglo-saxónicos). No entanto, gostava de chamar a atenção para o trabalho de Chesnais La Mondialisation Du Capital, um dos melhores livros sobre a economia global que já li, onde o autor consegue, de forma brilhante, mostrar como se articulam os desiguais processos de internacionalização da produção com a desenfreada influência da finança global na economia.
Este artigo aborda as implicações da actual crise sobre os frágeis equilíbrios que sustentam hoje a economia internacional. As formidáveis reservas de divisas estrangeiras detidas pelas economias asiáticas, sobretudo a China, têm sido investidas em títulos de Tesouro norte-americanos, financiando assim a largamente endividada economia dos EUA. Este financiamento tem como clara contrapartida o acesso ao vasto mercado deste país - só a cadeia de distribuição Wal-Mart é responsável pela compra de 10% das exportações totais da China. Ora, com o seu consumo sustentado em boa medida através do endividamento, a actual crise financeira faz prever um abrandamento da procura americana. Se adicionarmos a incapacidade do governo chinês em «arrefecer» a sua economia e suster a criação de sobrecapacidade produtiva, estão reunidos os ingredientes para uma prolongada crise global.
Finamente, uma pequena nota sobre François Chesnais. Ex-técnico da OCDE, marxista e membro de um pequeno grupo trotskista, este economista ganhou notoriedade através da acção da ATTAC (Associação pela Taxação das Transacções para Ajuda aos Cidadãos) na defesa de uma maior regulação financeira, simbolizada na famosa taxa de Tobin. De facto, ele é autor e editor de algumas das melhores análises dos actuais processos de financeirização da economia (um dos domínios na teoria económica onde os franceses ultrapassam os seus congéneres anglo-saxónicos). No entanto, gostava de chamar a atenção para o trabalho de Chesnais La Mondialisation Du Capital, um dos melhores livros sobre a economia global que já li, onde o autor consegue, de forma brilhante, mostrar como se articulam os desiguais processos de internacionalização da produção com a desenfreada influência da finança global na economia.
sábado, 10 de novembro de 2007
O desastre da agenda neoliberal
O blogue Esquerda Republicana dá conta de que no estado norte-americano do Utah a absurda proposta de instituir o cheque-ensino foi derrotada em referendo. Excelente notícia que prova que as ficções neoliberais não conseguem ter apoio popular. De seguida uma outra posta neste blogue cita The Shock Doctrine, o excelente livro de Naomi Klein que acabei recentemente de ler. Uma das suas teses centrais é a de que a agenda neoliberal mais radical tende a avançar à boleia de ditaduras, intervenções militares ou através de um aproveitamento inteligente e sem escrúpulos de desastres que fragilizam as populações. Tudo muito bem documentado (para quando a tradução?).
Um dos episódios que Naomi Klein usa para ilustrar esta tese está precisamente relacionado com o cheque-ensino. Numa das suas últimas intervenções públicas, Milton Friedman, um dos criadores desta proposta, defendeu a privatização do sistema escolar da cidade de Nova Orleães, destruída pelo Katrina. Obviamente sem qualquer consulta às populações. Os neoliberais sabem no fundo que as suas doutrinas desumanas não colhem numa opinião pública informada e moralizada. A diligência da administração Bush na promoção da privatização do sistema de ensino desta devastada cidade contrastou com a sua ineficácia no socorro às vitimas. A «engenharia social» dos neoliberais é selectiva. Nada como aproveitar os desastres para a impor.
Um dos episódios que Naomi Klein usa para ilustrar esta tese está precisamente relacionado com o cheque-ensino. Numa das suas últimas intervenções públicas, Milton Friedman, um dos criadores desta proposta, defendeu a privatização do sistema escolar da cidade de Nova Orleães, destruída pelo Katrina. Obviamente sem qualquer consulta às populações. Os neoliberais sabem no fundo que as suas doutrinas desumanas não colhem numa opinião pública informada e moralizada. A diligência da administração Bush na promoção da privatização do sistema de ensino desta devastada cidade contrastou com a sua ineficácia no socorro às vitimas. A «engenharia social» dos neoliberais é selectiva. Nada como aproveitar os desastres para a impor.