sábado, 31 de outubro de 2020

Da indignação dos hospitais privados

1. Em reacção às declarações do Ministério da Saúde, nas quais se denunciava a indisponibilidade dos privados para receber doentes com covid-19, a Comissão Executiva da CUF fez um comunicado onde afirma haver neste momento 17 internados com covid-19 nos hospitais da CUF de Lisboa e do Porto.

2. Como termo de comparação, só o hospital público de Almada tinha ontem internados 66 infectados - 55 nas enfermarias e 11 nos cuidados intensivos. 

3. Tal como aconteceu na primeira vaga, tenho recebido relatos em primeira mão (não li nas redes sociais, nem ouvi dizer que alguém disse) de que todos os dias chegam aos hospitais públicos doentes que são encaminhados pelos privados porque apresentavam sintomas mínimos de covid-19 (tosse e febre acima de 37 graus), sem terem sido sequer testados. 

4. As pessoas que conheço que têm espaço na comunicação social, quando falam em público sobre este tema, são inundadas de contactos de agências de comunicação ao serviço dos hospitais privados, numa atitude que varia entre a réplica e o bullying. 

5. Aos bullies convido para encherem esta caixa de comentários com o vosso trabalho dedicado, tal como fizeram quando aqui escrevi sobre este tema durante a primeira vaga. Sei que o farão, de qualquer forma.

Kalidás Barreto (1932-2020)

Faleceu ontem um dos imprescindíveis do movimento sindical português. Kalidás Barreto encarnou o ideal socialista de uma república democrática protagonizada pelos trabalhadores, partindo do combate antifascista para a construção de uma democracia digna desse nome, que não parasse à porta dos locais onde se trabalha. 

Curvo-me, curvamo-nos, perante a sua memória. Ficam excertos do seu percurso, tirados da página da CGTP-IN, de que foi um dos principais construtores: 

 “Contabilista de profissão, exercida no sector têxtil, em Castanheira de Pera, onde, em 1958, integrou a comissão de apoio à candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República. Foi dirigente do Sindicato dos Têxteis do Centro e, nessa qualidade, participou numa reunião da Intersindical, realizada em Leiria, antes do 25 de Abril. Foi também dirigente nacional da Federação dos Sindicatos Têxteis. Foi eleito Deputado pelo PS à Assembleia Constituinte, em 1975. Foi eleito, sucessivamente, para o Conselho Nacional e a Comissão Executiva da CGTP – IN, entre 1977 e 1996. Acérrimo defensor da unidade dos trabalhadores, contra o divisionismo sindical, teve um importante papel na realização do Congresso de Todos os Sindicatos realizado em Janeiro de 1977, no qual lhe coube a primeira intervenção em defesa da unidade sindical, consubstanciada na CGTP-Intersindical Nacional.”

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pandemia e capitalismo


Um dos erros de análise da actual crise económica é considerá-la como causada por um factor exógeno, a pandemia, comparável a uma qualquer queda de um meteorito, sobre a qual não temos qualquer responsabilidade. Se as origens da actual pandemia ainda não são claras, o impacto da acumulação de capital na desflorestação e nas alterações climáticas está inegavelmente na origem de velhas e novas pandemias. Ou seja, a crise global não terá uma origem exterior à economia. Interessante é ver como o orgão oficial da finança internacional (o Financial Times) e um autor marxista, como Andreas Malm no seu recém publicado Corona, Climate. Chronic Emergency, convergem no diagnóstico.

Saco 2

Na sequência do post do João Rodrigues, sobre o slogan publicitário do novo Hospital da Cuf em Lisboa no saco do jornal Expresso (é todo um programa esta combinação de elementos), antecipam-se possíveis equívocos com os pacientes: 

- Pronto, se tem uma doença hoje, não venha, está bem? É só para as doenças futuras  

(Previsão: é possível que, assim, o Hospital fique vazio e o negócio apenas possa ser rentabilizado com a transferência de doentes do SNS subfinanciado, pagas pelas verbas do Orçamento de Estado, assim desviadas do seu propósito apesar das regras apertadinhas para que se cumpra o défice bruxelense)

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Está tudo no saco

No seguimento da denúncia feita por João Ramos de Almeida a mais um ideologicamente enviesado número do Expresso em matéria de política de saúde, peço-vos que reparem no saco onde vinha este jornal. É um dos principais “influenciadores”, para usar o termo mobilizado pelos médicos que defendem o SNS. 

Isto está de tal ordem que o marxismo mais elementar tem maior poder explicativo do que tudo o que passa por sabedoria convencional. É desgraçadamente simples na economia política desta imprensa: se a saúde for cada vez mais um negócio, há mais publicidade. 

No capitalismo realmente existente, de onde o Estado nunca esteve e nunca estará ausente, tanto a robusta CUF como a frágil Impresa recebem directa e indirectamente apoios públicos. E se o Estado não optar pela requisição civil de hospitais ditos privados, até perante a recusa destes em receber doentes infectados com Covid-19, é caso para dizer que já nem é preciso falar da sua autonomia sempre relativa, mas potencialmente real em democracia.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A irresponsabilidade é um luxo


Não podemos ter pessoas de classe média ou média baixa a morar em prédios classificados.

Relativamente à Comporta tivemos, neste período, um aumento da procura por parte de clientes high-end, que procuram exclusividade, segurança e privacidade num ambiente de proximidade com a natureza, o que, no período em que vivemos, só nos dá ainda mais segurança e conforto para o desenvolvimento do projeto (...) A personalização da oferta é fundamental para conquistar o consumidor de luxo. Algo mais subjetivo e que se sente, sem se ver, ou seja, a experiência. Daí estarmos otimistas, talvez a pandemia tenha acelerado a transformação que já antecipávamos, ou seja, a democratização do luxo, o elitismo para todos. 

Miguel Guedes de Sousa, “Amorim Luxury Group - Founder CEO JNcQUOI”. 

Paula Amorim é a pessoa mais rica de Portugal e para lá do rentismo fundiário e do capitalismo fóssil aposta fortemente no mercado do luxo e da ostentação. Um dos exemplos recentes e mais expressivos do que apodei de porno-riquismo é realmente o clube de que é proprietária com o marido, Miguel Guedes de Sousa, na Avenida da Liberdade, o JNcQUOI. O francês rivaliza sempre com o inglês no consumo conspícuo em mais uma época de desigualdades pornográficas na história do capitalismo. 

Não consta que a festa em espaço fechado que aí decorreu com dezenas de jovens ricos de Cascais tenha sido interrompida à bastonada, ao contrário de outras festas de jovens pobres, em espaço aberto, mas distantes do centro da capital. 

Que digo eu, não foi de festa que aí se tratou, mas sim de “jantar com DJ”, segundo afirmou o clube, em reacção a dezenas de infecções por Covid-19. “Um escândalo na alta roda”, noticiou uma revista agora pouco cor-de-rosa. O distanciamento aí é sempre social, mas não terá sido físico. 

Dizem que com grande poder vem grande responsabilidade. No caso do grande capital vem sempre grande e luxuosa irresponsabilidade, na ausência de poderes compensatórios à altura. Aliás, a ficção do mercado livre, alimentada por batalhões de economistas, tem precisamente por função ocultar o poder e a responsabilidade. A pandemia e a catástrofe ecológica que com ela se imbrica expõem todas as grandes irresponsabilidades nesta forma insustentável de capitalismo. 

Como na Galp, de que a família Amorim é a principal acionista, vai ser preciso muito mais investimento em relações públicas, ou seja, em propaganda na comunicação social. E talvez a criação de uma cátedra Amorim em economia sustentável numa dessas faculdades de economia onde tudo se vende possa também ajudar no esforço de propaganda.

Deserções

Se há coisa que o Partido Socialista e António Costa não podem fazer é gritar que o Bloco de Esquerda desertou da esquerda para se aliar à direita. 
 
Discuta-se se é uma boa ideia votar contra a proposta de Orçamento de Estado, mas nunca aquilo que se disse ontem no Parlamento. Porque nesse capítulo há actores maiores.  

O Partido Socialista foi um dos principais obreiros das alterações à legislação laboral que foram sendo introduzidas desde 1976 e - como o próprio António Costa o disse - sempre para prejudicar os milhões de trabalhadores que o Partido Socialista diz defender. Costa afirmou-o quando se discutia o pacote contra a precariedade, que - veja-se lá! - se melhorou umas coisas, prejudicou ainda mais outras. Aliás, a sua aprovação foi feita com júbilo pelos deputados do CDS e do PSD para vergonha silenciosa dos próprios deputados socialistas que se viram engomados por esse rolo compressor. 
 
Tudo supostamente porque o Partido Socialista adere como uma luva perfeita a um modelo neocorporativo e governamentalizado, erguido para desvalorizar o trabalho, em que a concertação social - onde confederações patronais sem representatividade têm o mesmo peso dos trabalhadores e marcam as discussões e o conteúdo dos acordos, com o voto de uma confederação sindical onde pontuam... os socialistas. Um modelo que abusiva e inconstitucionalmente se sobrepõe ao próprio parlamento e acaba por esvaziar as suas competências, obrigando os deputados a aprovar o que quem lidera o patronato quer. 

Por causa disso, todas as iniciativas legislativas à esquerda no Parlamento, visando alterar a legislação aprovada à direita em 2003 (sem os socialistas), 2008 (com os socialistas) e 2012 (sem os socialistas) - e que visaram eficazmente desvalorizar o trabalho como forma ineficaz de criar ganhos de competitividade externa - foram sempre chumbadas pelo voto dos socialistas aliados aos do PSD e do CDS e aos dos demais grupos mais à direita ainda. Faça-se uma lista das vezes que o Partido Socialista se aliou à direita contra os partidos de esquerda e ver-se-á quão descabidas foram as palavras ontem de Costa. 
 
Aliás, ainda ontem Costa teve daqueles momentos em que disse numa frase uma coisa e o seu contrário. A defender a proposta do OE para 2021, elogiou a moratória de 24 meses para a caducidade das convenções colectivas porque assim se "impede a desregulação" para 3 milhões de trabalhadores. Palmas dos deputados socialistas! Disse mesmo, em resposta ao deputado de Os Verdes: 
 
"A garantia que demos protege 3 milhões de trabalhadores com a moratória da caducidade das convenções colectivas que assegura a protecção durante dois anos, evitando que os trabalhadores sejam forçados a renegociar a contratação colectiva numa situação de fragilidade e que, numa situação de crise, veja a sua posição negocial reforçada para manter o diálogo social e a negociação". 
 
Mais palmas! Mas fica a dúvida: se o impedimento da caducidade das convenções públicas é bom por 24 meses - porque ela impede a desregulação do mercado - por que razão se aprova uma moratória e não um impedimento permanente? O que vai acontecer daqui a 24 meses? Benignamente, dir-se-á que o PS está a abrir uma porta para, daqui a dois anos, dizer: "Correu bem, continuemos". Mas nunca se pensou nisso? Ou ter-se-á pensado agora, porque essa foi uma das propostas que surgiu na negociação e que o PS já se apropriou dela? Porque, na verdade, o Partido Socialista já votou tantas vezes contra o fim da caducidade das convenções colectivas e contra o princípio do tratamento mais favorável - que legitima que uma convenção pode ter normas mais recuadas que a própria lei! - dispositivos legais que deixam os trabalhadores a negociar em estado de necessidade (isto parafraseando José António Vieira da Silva em 2003).  
 
Ninguém questionou Costa sobre isso, mas para Costa esta frase parece ter sido dita sem se aperceber do alcance das suas palavras. Algo revelador da forma como certas medidas são tomadas, pensando-se apenas nos equilíbrios políticos de curto prazo, sem que se pense nos seus efeitos económicos e - pior, muito pior! - sem que se pense nos milhões de trabalhadores que estão na matriz da fundação do Partido Socialista. Refiro-me à primeira, porque a segunda foi outro assunto...   
 
Veja-se o caso da notícia que saiu hoje no Público (novamente assinada pela jornalista São José Almeida, como se tivesse sido debitada pelo Governo, sem contraditório) em que o Partido Socialista chantageia literalmente ainda o Bloco, sem pensar nas pessoas a quem a medida se destina e sem admitir que o Bloco possa votar a medida na especialidade:
 
"Algumas das alterações às leis laborais que o Governo se comprometeu a fazer, num documento que entregou ao BE durante o processo negocial sobre o Orçamento do Estado para 2021, ficarão sem efeito, no caso de o BE votar contra a proposta de contas do Estado na votação final global a 26 de Novembro" (...) "o mesmo responsável afirmou: 'É importante ter presente que o BE, ao decidir votar contra, decidiu também abdicar ou largar mão de tudo o que consta nesse documento sobre matérias laborais'.”

 
Em resumo: Se há deserção, essa tem sido a prática laboral em democracia do Partido Socialista. E friso o nome do partido por extenso porque creio ainda que os socialistas devem defender no dia-a-dia a construção de uma sociedade mais justa e menos desigual. E não dizer defendê-lo e fazer o seu contrário todos os dias.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Quinta-feira, a partir das 17h30


Segunda sessão do ciclo de apresentações do livro Financialisation in the European Periphery: Work and Social Reproduction in Portugal, coordenado por Ana Cordeiro Santos e Nuno Teles, que reúne contributos dos principais autores que, em Portugal, têm estudado a evolução financeirizada da economia portuguesa.

Nesta sessão, com início às 17h30 e que pode ser acompanhada por videoconferência, Catarina Príncipe, Helena Lopes e Sérgio Lagoa debatem o impacto da financeirização na (re)produção desigualdades sociais, tanto ao nível da organização do cuidado à comunidade como nas formas de organização do trabalho e distribuição de rendimentos.

Ao serviço do público

A carta dirigida à ministra da Saúde pelo bastonário da Ordem dos Médicos (OM) e cinco dos seus antecessores enquadra-se num movimento mais amplo de intervenções de “influenciadores” nos meios da comunicação social e em meios universitários, todas com a mesma orientação e a mesma substância. 

Começam por enunciar dificuldades reais do SNS, sobretudo derivadas da pandemia, ampliam-nas em tom alarmista e daí passam ao ataque político à ministra. Finalmente, e para culminar, chegam ao objetivo mercantil: perante tal “caos”, “desorganização” e “risco” há que recorrer aos serviços privados. 

Poderá haver médicos concordantes com essa carta, por coincidirem com os seus objetivos. Nós não. Não nos sentimos representados.

Início de uma resposta notável, de um grupo notável de médicos, que pode e deve ser lida na íntegra no Público. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Confusão

Na apresentação da proposta de Orçamento de Estado para 2021, coube a vez à ministra do Trabalho e segurança Social, Ana Mendes Godinho, defender hoje a sua pasta. 

O deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro fez uma intervenção política sobre a política de esquerda nas medidas previstas e, de certa forma, criticando a recente posição do Bloco de Esquerda, mas procurando voltar a dar a mão. 

E rematou com um pedido de esclarecimento para justificar a intervenção política que a ministra não soubera fazer até então: "Aprofunde estes compromissos nas matérias social e laboral, sobretudo para os trabalhadores, e de que forma estas marcas distintivas desta Orçamento nos posicionam claramente no espírito, no caminho e identidade do programa político que construímos em conjunto desde 2015".

Eis a resposta textual da ministra, de alguma forma pontuada - nem sempre era claro onde estavam as vírgulas. Pede-se alguma paciência: 

Senhor deputado, este é, de facto, um momento de alguma perplexidade. De alguma perplexidade, se já era expectável que do lado da direita houvesse uma oposição nomeadamente também aqui com alguma perplexidade quanto ao facto de dizerem que vamos longe demais e que é um orçamento despesista, mas depois vêm pedir que gastemos mais em vários públicos e não conseguem dizer... onde, qual dos públicos devemos optar; também neste momento há alguma perplexidade porque, depois de um trabalho intenso de muitas negociações e de muita evolução naquele que acreditamos que é um caminho de resposta ao país, num momento em que o país precisa de uma resposta, de uma resposta colectiva e de uma mobilização em conjunto da esquerda para respondermos ao momento que vivemos de uma forma diferente à forma como foi respondido numa outra crise e que todos nós creio que já aprendemos que não é a forma de responder a estas situações; no momento em que depois de evoluirmos, de negociarmos, de caminharmos em conjunto, procuramos aqui encontrar soluções seja ao nível de respostas de emergência, mas também de criação de uma nova forma de prestação social procurando chegar a um universo o mais abrangente possível nomeadamente também tendo em conta o momento que vivemos, também procurando chegar a quem mais precisa, e tendo em conta os rendimentos que têm, portanto que seja uma prestação do ponto de vista social também justa que responda a quem precisa, sendo uma prestação não contributiva; e por outro lado também procurando aqui chegar a um universo que respondesse aquelas que eram as preocupações dos partidos de esquerda, é de facto, penso ,num momento em que não se compreende que não estejamos todos juntos a conseguir a construir este Orçamento que responde ao país nesta fase que vivemos também com a preocupação de responder não só do ponto de vista orçamental mas também de uma agenda do mercado de trabalho contra a precariedade e da valorização do trabalho. E nesse sentido que trabalhámos e procurando encontrar aqui equilíbrios e dando uma resposta também aos trabalhadores e aos jovens que olham com expectativa para aquilo que Portugal lhes consegue oferecer em termos de futuro, seja quanto ao aumento do salário mínimo - e neste aspecto, aliás, demos logo um avanço em relação às bolsas do IEFP, aumentámos significativamente as bolsas de entrada do IEFP de entrada no mercado de trabalho, para que seja uma forma de valorizar quem entra no mercado de trabalho - seja também a moratória para as convenções colectivas, seja através de uma proposta de criação de instrumentos de dinamização da contratação colectiva  e da negociação colectiva, nomeadamente com a criação de instrumentos, de incentivos e condições de acesso a apoios e incentivos públicos como condição de majorações de... de... de... de uma contratação dinâmica, ou o alargamento da contratação colectiva a trabalhadores em outsourcing e a trabalhadores independentes ou ao combate ao recurso abusivo ao trabalho temporário quando não é manifestamente enquadrável legalmente. São estes alguns dos exemplos que procuramos caminhar também respondendo à expectativa que o país tem de conseguirmos andar em frente e construirmos, através deste orçamento, não só responder ao problema presente, mas construir um futuro que seja um futuro em que todos nós nos revemos que é um futuro de confiança, de responder também ao futuro. 

Sorriu e recostou-se na cadeira. 

Post Scriptum

Pode não ser nada de novo, mas neste caso assistir ao debate cria uma pilha de nervos. 

A ministra não pára de mexer em qualquer coisa - passa páginas, ajeita o microfone (várias vezes numa intervenção), passa a mão pelo cabelo - e as perguntas dos deputados não são respondidas: "Como é seu apanágio, respondeu, mas não àquilo que eu pretendia que respondesse (...) agradecia que respondesse de forma concisa e directa e sem rodeios (...) está aqui na proposta de lei, se calhar ainda não teve oportunidade de ler" (Ofélia Ramos, PSD), "Por favor, não volte a falar no programa 3 em linha" (Lina Lopes, PSD),"Sobre os sócios gerentes, a senhora ministra ainda não respondeu" (Isabel Pires, BE, na segunda ronda de perguntas), "Senhora ministra, eu vou ter de insistir" (Diana Ferreira, PCP), "Oh senhora ministra eu não pedi para desenvolver o tema do aumento das pensões mais baixas" (João Almeida, CDS), Inês Sousa Real, PAN, fala da precariedade e pergunta se está disponível para reduzir o período experimental e a ministra responde que concorda com ela, que juntos devemos caminhar contra a precariedade e que o Governo está disponível para alargar o subsídio de desemprego aos despedidos após o período experimental(!). 

Ou então as perguntas são embrulhadas em discursos como o retratado, as preocupações sobre a realidade são abordadas como meros tópicos de um intervenção política vazia de sentido e de pensamento, em que os temas são atamancados, confundidos, misturados, enrolados em listas de medidas que a ministra debita a ritmo a mata-cavalos, porque não sabe, não-sabe-que-não-sabe, e alguém acima de dele acha por bem deixar uma pasta tão sensível como a social e a laboral a pessoas com este grau de inconsciência, de incompetência técnica e política. 

Apenas é compreensível se esse alguém no Governo considera que os trabalhadores são, na verdade, a variável de ajustamento.  

Ajuda e lucro

A direcção do jornal - como, aliás, a do jornal Público - parece alinhar com a agenda de Marcelo Rebelo de Sousa: imiscuir-se nos assuntos governamentais e dar azo a uma intervenção musculada em véspera eleitoral. 

A nota reproduzida é sibilinamente aldrabona ao transmitir a  ideia de que Marta Temido não quer, por teimosia ou preconceito ideológico, a "ajuda extra do sector privado". Vários jornalistas do mesmo jornal já o afirmaram no programa Expresso da Meia Noite.

É aldrabona, primeiro, porque nem se trata de uma ajuda. 

Seria sempre uma intervenção em que o sector privado iria lucrar com o pagamento pelo Estado por fazer o que é sua obrigação e que apenas não é cumprido porque, mais uma vez ao longo de décadas, os Orçamentos de Estado subfinanciam o SNS. É como se os privados investissem sabendo que a sua capacidade instalada (como o recente Hospital do grupo Cuf em Lisboa ) vai ser - por certo e sem risco - preenchida e paga por fundos públicos. Mas os jornalistas do Expresso nem se lembram de discorrer sobre um efectivo e atempado reforço dos meios do SNS. Porque se assim fosse, será que não sairia mais barato aos cidadãos - e não contribuintes - portugueses?

Como disse uma vez, a ainda administradora do grupo Luz Saúde, Isabel Vaz (ex-Espírito Santo, hoje grupo Fidelidade, de accionistas chineses) não há nada mais lucrativo do que a Saúde, depois da indústria do armamento (ver em baixo). Naquela altura, era a inauguração do Hospital da Luz.


Depois, porque parece ter passado desapercebido uma chamada de atenção recente da ministra da Saúde em conferência de imprensa. Em resposta a uma pergunta da Rádio Renasncença sobre se o Governo não pensava fazer parcerias com o sector privado - por que será que as boas almas se encontram? - Marta Temido respondeu que o SNS ainda tinha oferta disponível, mas que se faltasse sempre se poderia recorrer "a figura da requisição" do sector privado. Mas talvez nesse caso o sector privado já não esteja tão interessado em prestar essa "ajuda extra", não é? 

É estranho como tão depressa a comunicação social se tornou um canal de transmissão de mensagens tão orientadas e interesseiras.

Fica longe


Por uma vez, estou de acordo com Vital Moreira“Já tínhamos o StayawayCovid, agora temos o IVAucher (jogando com a sigla IVA e a palavra inglesa voucher). O Estado junta-se assim, oficialmente, à tendência de jornalistas, economistas, etc. na adoção de termos ingleses ou de anglicismos, mesmo quando eles nada acrescentam à compreensão das iniciativas públicas em causa, salvo pretensiosismo. Infelizmente, hoje em dia, há muita gente nas elites cosmopolitas que cuida mais do seu Inglês do que do Português. Mas o Estado, esse, não tem o direito de desconsiderar a Língua.” 

É por estas e por outras que neste blogue estão proibidos os anglicismos e outros estrangeirismos. 

Seguindo o empresarialmente correcto, a bem denunciada tendência é a expressão linguística de classe da perda, que também é material, de independência política,  por sua vez filha da manifestação da globalização nesta parte do continente, ou seja, da integração europeia. 

E diz que isto já não é um bem um Estado, até porque parece que existe uma espécie de constituição supranacional e tudo. Enfim, as tais elites “cosmopolitas” gostam de se imaginar no centro, algures entre Washington e Bruxelas. Na realidade, são alunas acríticas de professores visivelmente desactualizados. 

Ana Vale

Faleceu recentemente, a 26 de setembro, Ana Vale. Técnica do gabinete técnico-jurídico da CGTP-IN entre 1974 e 1994, representou esta organização sindical no Conselho Consultivo da atual CIG, na Comissão Tripartida da CITE e na OIT. E o seu nome marcaria, de forma indelével, a Iniciativa Equal (2001-2009), «um programa de carácter experimental, dinâmico e evolutivo», de que foi gestora, orientado para o desenvolvimento de «novas soluções para combater as discriminações no mercado de trabalho e responder de forma mais eficaz aos problemas das comunidades e das pessoas em situação de maior desvantagem».

Num tempo de certa forma ainda não contaminado com os mantras estéreis das startups, dos empreendedorismos da moda, das inovações-porque-sim e dos simulacros de participação, a Iniciativa Equal apoiou projetos consistentes, em termos de conceção e funcionamento, na busca de soluções diferentes para velhos e novos problemas. Desde logo na constituição das parcerias, em que se promovia um diálogo efetivo entre conhecimentos técnicos e experiências de terreno, essenciais para identificar problemas e soluções, posteriormente desenvolvidas e sujeitas a experimentação e validação, num amadurecimento progressivo das respostas. Uma «filosofia» de intervenção pautada pelos princípios da igualdade e da emancipação, de que Ana Vale foi intransigente defensora.

sábado, 24 de outubro de 2020

"Nem dado"

(Apanhado no Facebook com o recado que está em título) 

Até parece que alguém está a pagar o livro requentado de um tardio Cavaco Silva, escrito para comemorar os 25 anos em que deixou o Palácio de S.Bento. Ninguém já se recorda, mas Cavaco Silva saiu de S.Bento envolto no tabu de deixar o poder entregue aos mais turvos interesses, ao que parece pressionado por provas entregues à comunicação social do enriquecimento ilegal de diversos ministros, na sequência do seu papel de introduzir - através de políticas deliberadas e desejadas - o projecto neoliberal em Portugal

Na sua autobiografia política, escreveu que se afastou porque se tinha vindo "cansando da vida partidária", que "estava a ficar farto", que os "comportamentos oportunistas e mesquinhos de alguns dirigentes partidários desenvolveram" nele "uma crescente sensação de fastio e vontade de reencontrar outras envolventes humanas, outras linguagens, outras atitudes" e que "era com sacrifício que participava nas reuniões dos órgãos de direcção do partido e escutava os discursos dos chamados barões ou de certos dirigentes".

E cita aquilo que, a 13/8/1994, na Festa do Pontal, disse: 

"No PSD, tal como nos partidos da oposição, também existem alguns barões que vêem nos partidos trampolins para alcançarem benesses pessoais"

Frase que, numa entrevista (“As revelações de Cavaco”, Público, 28/3/1995), voltou a abordar: 

“Sangue novo, novas ideias, novas atitudes...” – começou por dizer. Depois interrompeu-se e a seguir disse algo aparentemente estranho, que nada tinha a ver com o que estava a dizer - “...e defendendo que o partido não devia ser trampolim para benesses pessoais. Fiz este discurso no Pontal, depois do Pontal... e há momentos em que o exemplo tem de vir de cima”.

Que exemplo? O da deserção? O de ser cúmplice de benesses pessoais, eventualmente ilegais e criminosas? O de defender o partido acima de tudo, mesmo da lei? 

Ora, eis algo que sobre o qual nada diz no seu livro requentado. Mesmo passados 25 anos sobre esse tabu.  

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Faturar com a pandemia


Uma investigação exaustiva de jornalistas do Público deu a conhecer os gastos do Estado com os mais de 15 mil contratos públicos efetuados na resposta à pandemia. Na notícia, pode ler-se que "a GLSMed Trade, do grupo Luz Saúde, foi a empresa que mais facturou em contratos feitos pela Administração Pública para responder à pandemia. A principal cliente do grupo foi a Direcção-Geral da Saúde (DGS), que gastou 32,7 milhões de euros em compras à empresa de distribuição de produtos, equipamentos e dispositivos médicos do grupo Luz Saúde, detido pela Fosun e pela seguradora Fidelidade [...]".

Não está em causa a necessidade que o Estado pode ter de recorrer à aquisição de bens, equipamentos ou serviços a grupos privados num contexto de emergência sanitária. O problema são os termos em que os contratos têm sido efetuados. É por isso que há quem tenha defendido soluções como a da requisição civil, que permitiria ao Estado adquiri-los a preço de custo em vez de negociar o seu preço, privilegiando o serviço de saúde público em detrimento dos lucros privados.

Não surpreende que alguns grupos privados aproveitem para lucrar com a pandemia. Isabel Vaz, do Grupo Luz Saúde, já dissera que "melhor negócio do que a saúde só mesmo a indústria do armamento", o que dificilmente podia ser mais claro. O que surpreende é que muitos continuem a achar que o Estado deve promovê-los em vez de canalizar os fundos para reforçar o investimento no SNS.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Ideologia e medo têm um único fim?

Entrevista de Jorge Torgal ao jornal Público

Jorge Torgal, médico especialista em saúde pública, foi entrevistado pelo jornal Publico e a Rádio Renascença. Nela, o médico expressa certas opiniões que têm ido contra aquilo que tem sido veiculado, por diversos actores políticos, na comunicação social. Veja-se os sublinhados.

Mas por estranho que possa parecer, a parte da entrevista em que o médico critica os ex-bastonários da Ordem dos Médicos e a utilização política de uma ideologia, o papel do sector privado ou o medo que se está a criar, essa parte foi obliterada das peças da RTP e da SIC, passadas esta manhã. E porquê?

Porque, muito possivelmente, não estou certo, aqueles dois órgãos de comunicação social enviam às televisões os excertos que consideram mais relevantes - no seu ponto de vista ou no ponto de vista de alguém, de quem edita ou de quem coordena a edição. E as televisões montam a peça. Mas se assim for, e se ninguém consultar a entrevista toda - porque ainda leva tempo fazê-lo - as televisões apenas comunicam o que alguém por elas escolheu... Neste caso, alguém no Público e na Rádio Renascença. E, se assim for, é mais grave do que possa parecer, porque a informação acaba por estar ainda mais centralizada e condicionada, menos independente.

Neste caso, é ainda mais paradigmático. É que se manteve a parte em que Torgal defende um plano mais ousado do Ministério da Saúde para o Outono e Inverno e se pede uma "coragem forte" para mudar os planos seguidos quanto ao tratamento das patologias não Covid. Ora, estas ideias - com os cortes cirúrgicos introduzidos (os sublinhados) - passam a entroncar bastante bem na mensagem comummente passada pela comunicação social: o sector público não dá conta do recado e alguém tem de tratar das outras patologias que estão a ser deixadas sem tratamento. Algo precisamente contrário ao que o médico disse.

Sobre o orçamento

 «As previsões do Governo de um crescimento de 5,4% são de uma rápida recuperação. Ora, o aumento progressivo de despedimentos cuja dimensão ainda é difícil de prever devido ao layoff, aliado à incerteza nacional e internacional que a própria pandemia traz, é razão para ser cético. Por outro lado, este orçamento traz um esforço insuficiente e incerto do Estado no que toca ao investimento público (que cresce, mas vem de mínimos históricos). Este não é o orçamento contra-cíclico que se impõe face à gravidade da crise», refere. 

 Quanto à taxa de desemprego, o economista admite que as previsões «refletem o otimismo do Executivo não só de uma rápida recuperação, mas também do real impacto da atual crise, cujos efeitos estão ainda longe de serem claros, devido às medidas de emergência. Acresce que, dada a dependência do emprego recente de setores como o turismo, não é fácil ser tão otimista como o Governo». 

Também o aumento do endividamento é visto pelo economista como natural tendo em conta o atual contexto económico. Mas deixa um alerta: «Devido ao trauma do que foi a crise do Euro em 2011-12 há uma clara inibição do Governo em recorrer a endividamento para relançar a atividade económica. Pode parecer um bom princípio de cautela, mas não o é. Ao contrário do que aconteceu em 2011, o BCE está no mercado a comprar títulos de dívida pública dos diferentes Estados da zona euro, mantendo assim taxas de juro muito próximas do zero para países como Portugal». 

Mais difícil de compreender é, para Nuno Teles, a alternativa de um empréstimo do sistema financeiro nacional ao Fundo de Resolução. «Se cumpre o objetivo da não transferência orçamental, estamos a falar de empréstimos a uma entidade que está no perímetro do Estado, logo que contará para efeitos de défice. Na prática, o mais provável é que o financiamento do FdR será mais caro do que o financiamento que seria conseguido através de endividamento através de emissão de dívida. Por mera manipulação contabilística, arriscamo-nos a onerar mais uma entidade pública», conclui.

Excertos das declarações de Nuno Teles ao Sol. Se o Professor da Universidade Federal da Bahia não vem ao blogue, o blogue vai até ele, tentando resgatá-lo de tais companhias...

Vontade de empurrar?

Surgiram na semana passada várias notícias a assinalar o risco de esgotamento da capacidade de resposta de unidades de cuidados intensivos (UCI), em resultado do aumento significativo do número de contágios Covid-19. Se em alguns casos essas notícias davam nota de dificuldades sentidas em unidades hospitalares específicas, noutros a questão era colocada à escala regional e, noutros casos ainda, as manchetes sugeriam que o problema era mesmo nacional.

Sendo certo que os internamentos têm vindo a aumentar (ainda que a um ritmo inferior ao do número de contágios), o surgimento destas notícias gera uma dupla perplexidade. Por um lado, porque em termos globais o número de internados em UCI é ainda inferior ao registado no pico da pandemia (quando se atingiram valores acima de 250). Por outro, porque se foi assistindo, desde o início da primeira vaga, a um aumento gradual da capacidade e flexibilidade de resposta (e tendo-se desde então mantido estável o peso relativo de internados em UCI no total de internamentos).


É sabido que não bastam camas para que uma unidade de cuidados intensivos funcione, sendo necessário assegurar recursos humanos e um adequado funcionamento em rede das diferentes UCI. E se em casos específicos o risco de lotação pode ser circunstancialmente atingido, não parece haver razões para colocar o problema, por enquanto, nem sequer à escala regional. De facto, como então referiu a ministra da Saúde, a taxa global de ocupação de camas UCI que podem vir a ser utilizadas por doentes Covid-19 situava-se em 18% nas regiões de Lisboa do Porto.

É claro que, com o agravar da situação ao nível dos internamentos, a capacidade atual de resposta pode deixar de ser suficiente, desafiando as margens de elasticidade da oferta no SNS. O que não faz sentido é que, nesta fase, os interesses privados tentem por diversos meios empurrar o Estado para um reforço da contratualização com o setor. Até porque, como assinala Marta Temido, o envolvimento dos privados no combate à pandemia «não é uma questão de fatura, é uma questão de escolhas», atendendo a que «a abordagem que o setor público tem é diferente, não é uma abordagem centrada em atos, é uma abordagem centrada num cuidado integral».

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Chumbo pelas piores razões


"São as empresas que fomentam o emprego. O reforço do consumo sem ter o devido equilíbrio na produção gera défice externo ou inflação ou défice externo e inflação. O Governo põe o consumo à frente sem cuidar da produção".

"O problema não é haver ricos, mas haver pobres". 

A citação é do líder do PSD, Rui Rio, esta tarde, quando anunciou que o PSD irá votar contra a proposta de lei de Orçamento de Estado (OE) para 2021.

As tiradas enfatizam a importância de o OE apoiar as empresas, coisa que, para o PSD, não o faz. Na verdade, o OE de 2020 ajudou e o de 2021 ajuda as empresas como nunca o fez. O lay-off simplificado e a sua variante actual garantiu e garante poupanças consideráveis nos custos salariais das empresas abrangidas (no caso do lay-off simplificado era de 84% dos salários dos trabalhadores abrangidos), embora em muitos casos para empresas que não necessitivam. Foram quase 900 milhões de euros em poucos meses de 2020, em muitos casos com isenção de TSU, embora metade das verbas tenha ido para grandes empresas, mas sobre isso o PSD nada disse. O problema desta medida é, antes, ser mal orientada e o de cortar rendimentos salariais durante uma recessão. 
 
Se o OE peca é por ser, precisamente, parco no combate orçamental a uma conjuntura nunca vista de afundamento económico - e sem inflação de monta. Seja no lado do investimento, seja na protecção do rendimento dos portugueses. O PSD parece, pois, nada aprender da evolução do pensamento das instituições multilaterais - como o FMI - que já aplaudem a eficácia do investimento público. 
 
Municiado pelas ideias requentadas de Miranda Sarmento - o tal Ronaldo  do PSD - Rui Rio critica o Governo de não entender a velha fábula da cigarra e da formiga que ele terá aprendido e digerido na 4ª classe. Mas Rui Rio não se recorda que, no tempo dessa velha 4ª classe, um governo de consumo parco empobreceu todo um povo (que as empresas não enriqueceu), em que os miúdos mais pobres - a esmagadora maioria - não conseguiam seguir os estudos básicos e tinham de ir trabalhar. De tal forma que ainda hoje a população activa de Portugal é das menos instruídas da Europa, situação que tanto cria obstáculos ao desenvolvimento do país. 
  
A incapacidade de Rio para o entender não é, porém, nova. Essas mesmas ideias basearam o programa económico do PSD/CDS de 2011 a 2014. Ao arrepio até do patronato, as empresas tiveram todas as condições: embarateceu-se o emprego (cortou-se salários, aumentou-se horários de trabalho, cortou-se compensações por despedimento), facilitou-se o despedimento e penalizou-se quem estava no desemprego para que aceitasse as ofertas de emprego que aparecessem, liquefez-se a contratação colectiva, cortou-se e congelou-se os rendimentos a Função Pública - tal como se congela neste OE -, impedindo que a valorização do seu trabalho contagiasse o sector privado. E no entanto, a economia afundou.
 
Medidas, aliás, que se mantêm quase todas em vigor. Como se mantém em vigor um injusto regime fiscal entre assalariados e detentores de outros rendimentos, nomeadamente de capital. Tal como se mantêm em  vigor todos os dispositivos que permitem a ocultação de rendimentos ou de propriedade e património que prejudicam a igualdade de oportunidades, prevista na Constituição.   
 
Baseado na mesma fábula, esse governo forjou a poupança forçada de todos os portugueses através de uma terapia de choque com sucessivas medidas de austeridade que geravam o pânico quotidiano - método para conseguir aplicar medidas impopulares - e, afinal, o investimento não surgiu. Caiu como nunca, porque todos estavam mais pobres e assustados, e isso levou a economia ao cadafalso: empobreceu os portugueses, estrangulou as empresas, forçou a emigração da população qualificada e fomentou o desemprego cuja taxa efectiva atingiu 25% da população activa. 

Já se esqueceu Rui Rio? Por que insiste na velha tónica geradora de desigualdades? E nalguns casos por que se esquece o PS?

Covid-19: até onde vai a redescoberta do papel do Estado?

Desde o início da pandemia, a mudança de tom de comentadores de referência no debate sobre governação económica e políticas públicas tem sido notória. Ontem, foi novamente a vez de Martin Wolf, conceituado colunista do Financial Times que tem assumido posições até há pouco tempo relegadas para as margens do debate económico. No seu artigo de ontem sobre a resposta à crise, deixa um aviso certeiro: o maior risco para os governos é não aumentarem a despesa e deixarem que a recessão se acentue.

"Os governos podem dar-se ao luxo de gastar. Aquilo a que não se podem dar ao luxo é não o fazer, deixando que as economias vacilem, que as pessoas se sintam abandonadas, que as cicatrizes económicas se agravem e que as economias se vejam presas numa trajetória permanente de crescimento inferior", escreveu. 

No fundo, durante a recessão profunda que atravessamos, em que a maioria dos agentes económicos recua nas suas decisões de consumo e investimento devido à enorme incerteza sobre o futuro, o Estado é o agente que pode intervir para estimular a economia e contrariar o ciclo. Uma resposta expansionista que proteja os rendimentos das famílias e promova o investimento público arrasta consigo, como consequência, o investimento privado, a atividade económica e o emprego, evitando que a retoma seja lenta e que as "cicatrizes económicas" se aprofundem. É a velha ideia de que a atuação do Estado tem um efeito multiplicador na economia como um todo, concebida por Keynes há quase um século.

Essa é, de resto, a mesma conclusão a que chegam os investigadores do Departamento de Assuntos Orçamentais do FMI no relatório publicado recentemente: no atual cenário, um aumento de 1% do PIB no investimento público de um país pode levar a um aumento de 2,7% do PIB em dois anos. O Banco Mundial, pela voz da sua presidente, Carmen Reinhart, também já apelara ao endividamento dos Estados de forma a financiar a resposta à recessão. A mudança de posição parece ser, por isso, transversal a economistas convencionais e instituições de referência, os mesmos que estiveram associados à resposta pró-cíclica e austeritária após a última crise. Talvez se tenha aprendido algo com os erros da última década.

Mas há uma incógnita que subsiste: a de saber se, depois de contida a pandemia e reduzido o risco de contágio, estas instituições continuarão a mostrar-se compreensivas face a governos significativamente mais endividados. A pandemia trouxe um aparente consenso sobre o problema do subfinanciamento dos serviços públicos essenciais na resposta à crise, consequência da estratégia de austeridade. Mas a palavra é para manter? Ou veremos o consenso a ser destruído quando os mesmos que hoje o sustentam vierem justificar uma nova vaga de contenção da despesa e degradação dos serviços públicos em nome do pagamento da dívida?

Amanhã, quinta-feira, a partir das 17h30


Segunda sessão do ciclo de apresentações do livro Financialisation in the European Periphery: Work and Social Reproduction in Portugal, coordenado por Ana Cordeiro Santos e Nuno Teles, que reúne contributos dos principais autores que, em Portugal, têm estudado a evolução financeirizada da economia portuguesa.

Nesta sessão, com início às 17h30 e que pode ser acompanhada por videoconferência, José Maria Castro Caldas, Maria da Paz Campos Lima, Manuel Carvalho da Silva e Nuno Teles debatem as manifestações da condição semiperiférica da economia portuguesa nas relações laborais e as formas de as superar.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Marcelo "obrigado a expor-se", diz o Público

O presidente da República continua a imiscuir-se nos assuntos do Governo e a forçar que o sector privado consiga beneficiar alguma coisa com esta pandemia. E que o SNS não saia reforçado dela.  

E certa comunicação social tende a fazer eco dessa intervenção - seja a de Marcelo Rebelo de Sousa nos assuntos governamentais, seja a de forçar a uma mudança da política do Governo. 

Tudo como se fosse o mais natural.

O Publico de hoje faz um destaque (paginas 2 e 3) - assinado por Leonete Botelho, jornalista que é presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista - que se assemelha mais a um microfone aberto a Belém do que um artigo de um jornal de referência e ainda por cima num espaço nobre do jornal.

"O Presidente da República decidiu tomar a liderança política do processo e ouvir, em contra-relógio, representantes das duas facções que se vão extremando — os “sanitaristas” e os “des- confinadores radicais” — à procura da convergência possível para a próxima etapa. "

É mesmo essa a clivagem principal? 

“Alguém tem de tentar falar com todos, manter pontes e perceber se é possível encontrar um consenso sobre a forma como vai evoluir a pandemia e quais as medidas que as pessoas aceitem e que sejam fundamentais, porque, se não há medidas eficazes, vamos chegar a medidas mais radicais que têm um preço maior em termos económicos e orçamentais”, ouviu o PÚBLICO de fonte próxima do Presidente. Esse trabalho está a ser feito 'em articulação com o Governo', garante a mesma fonte.

Alguém acha que Marcelo está a ouvir as diversas entidades por causa das "medidas eficazes"? É por isso que chama a Belém os vários bastonários da Ordem dos Médicos que protagonizaram um episódio em que quiseram forçar o Governo a contratar o sector privado da Saúde? Como se a direita estivesse no poder, Marcelo chama ainda a bastonária da Ordem dos Enfermeiros -  que esteve à frente de uma greve prolongada a operações cirúrgicas apenas no sector público e, mais recentemente, foi abraçar um amigo à Convenção do Chega - e os ex-ministros da Saúde à direita, como Campos e Cunha, Paulo Macedo e - pasme-se! - Maria de Belém Roseira, ligada actualmente ao sector privado da Saúde, além das confederações patronais, sector social e, para compor o ramalhete de barões e corporações, os sindicatos.

Alguém ainda duvida que Marcelo quer decretar o estado de emergência para - ganhando protagonismo em véspera eleitoral - forçar a adopção de medidas contra a vontade do Governo (António Costa, na entrevista que deu ontem à TVI, já marcou a sua posição contra)? Pior: quando intervém, fá-lo provocatoriamente de forma desproporcionada, numa deriva securitária - sendo depois obrigado a recuar -, como aconteceu com os diversos decretos presidenciais em que, a talhe de foice, proibiu o direito à greve e à participação dos trabalhadores na discussão de diplomas e até o direito à revolta...

Mas para a jornalista a intenção é a melhor e o necessário. Chega mesmo a afirmar pela sua pena: 

"É, portanto, previsível que o patamar que se segue seja mesmo a declaração do estado de emergência, apenas para dar segurança jurídica a medidas que possam tornar-se necessárias, como a declaração do recolher obrigatório ou confinamentos cirúrgicos de freguesias ou concelhos. A três meses das eleições presidenciais, o Presidente é, pois, obrigado a expor-se mais do que desejaria [até para levar a vacina da gripe teve de despir-se da cintura para cima] e volta ao ponto de partida, tentando coser um país partido ao meio, agora por causa da pandemia."

É "obrigado a expor-se"? Ele intervém onde não deve, quer ter o protagonismo na vésperas de eleições e a culpa é dos outros? Nem um assessor de imprensa faria melhor.  

PS:A imagem desta texto é do filme Eles vivem de John Carpenter, que retrata a resistência humana a uma invasão extraterrestre, já presente nas esferas do poder e da comunicação social e que apenas é perceptível para quem tenha certos óculos escuros.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Do vírus liberal


Hoje ficámos a saber o seguinte: depois de ter perdido uma importante batalha política, o parasitário capitalismo educativo tem perdido as batalhas judiciais, que, claro, também são políticas, contra o Ministério da Educação. 

Como já aqui argumentei, aquando da luta mais intensa contra o capitalismo educativo, o vírus liberal espalha-se de várias formas na educação e para lá dela, não bastando limitar a lógica da contratualização, de resto perfeitamente em linha com vetustas hipóteses de economia política. A potência do vírus liberal está na sua capacidade mutante, na forma como se adapta aos vários sistemas de provisão sem perder a sua natureza. O Estado é sempre central.

Na saúde, o vírus é ainda mais potente pelos lucros reais ou potenciais mais elevados. Transformar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Sistema Nacional de Saúde é o meio de o espalhar, como neste blogue temos insistido. O primeiro hospital que Marcelo Rebelo de Sousa visitou como Presidente foi sintomaticamente um da CUF. Essa é a sua aposta política de sempre, lembrem-se que a direita votou contra a institucionalização do SNS, e a pandemia é uma oportunidade.

O tema do vírus liberal na saúde tem realmente de ser central nas presidenciais, a par de outras questões de soberania na economia política. Marcelo é o candidato da CUF e quejandos, ou não tivesse Paulo Portas, o dos negócios estrangeiros, declarado que Marcelo está do lado certo.   

domingo, 18 de outubro de 2020

Negociação em directo

Há uma negociação que corre em directo.

Essa negociação visa determinar o preço por doente Covid que o SNS vai pagar ao sector privado da Saúde.

Esse "negócio" permitirá, por sua vez, ultrapassar o vexame passado pelo sector privado da Saúde, quando, em Março passado, decidiu fechar as portas aos doentes Covid (por serem caros demais). Um vexame que transbordou para os partidos à direita no Parlamento, que se mostraram incapazes de justificar o injustificável, se não com o facto de o sector privado não querer perder dinheiro, revelando uma total falta de responsabilidade social.

Mas o silêncio à direita deu lugar a outra táctica. Primeiro, pediu-se um reforço de verbas para o SNS, colando-se às críticas à esquerda sobre os esforços orçamentais insuficientes (devido à política de contenção orçamental do ministro das Finanças). E, depois, fez-se sobressair que o SNS não é capaz de dar conta do recado, havendo urgência em contratar o sector privado para fazer o papel do SNS. E de uma assentada, o problema inicial do sector privado foi resolvido.

No programa A Circulatura do Quadrado, António Lobo Xavier - um advogado bem entrosado no mundo do grande empresariado - chegou mesmo a propor uma solução "para proteger os mais fracos":
Vamos lá aos negócios. Francamente, não tenho nenhuma paixão aqui. (...) Aquilo que o Pacheco Pereira diz - que é verdade do ponto de vista teórico, que seria estranho que um sector privado, com o país em crise, quisesse apropriar-se de uma margem indevida, (...) era inadmissível. Mas eu nunca vi o sector privado a pedir isso. Existe um critério básico que é: que os custos por doente que o sector privado vai tratar sejam os mesmos que existem nos hospitais públicos. Acho que o Estado não deve gastar nem mais um tostão do que aquilo que gasta por doente se precisar de utilizar os hospitais privados. Eu espero que não, que não seja preciso. Não tenho gosto que se crie esse negócio. Mas acho que devemos ser prudentes aí. Há pessoas que morrem, que não são tratadas, não são diagnosticadas e essas negociações devem ser uma negociações muito claras. O Estado não tem que pagar mais pelos doentes tratados pelo sector privado do que paga no sector público. E portanto, se o custo for esse, tiramos de cima da mesa e na nossa conversa, a treta do negócio e do lucro. O que interessa é o custo para o Estado e para os contribuintes e se o custo for o mesmo e se for possivel salvar vidas, acho que esse deve ser o critério. Mas não tenho nenhuma paixão e espero que não se chegue a situações desesperadas.
Ora, esse preço de custo - julgando pelo entendimento/argumentário do sector privado - deverá ser mais elevado no sector público do que é no sector privado. E se assim for, a solução Lobo Xavier será um bónus para o sector privado.

Segundo acto. Nessa estratégia, juntou-se mais recentemente o papel dos ex-bastonários da Ordem dos Médicos. Em carta aberta, pediu-se uma alteração à estratégia do Governo de combate à pandemia assente apenas no SNS (por fuga do sector privado) e um "envolvimento" do sector privado (vulgo: pagamento pelo Estado dos doentes Covid). Este pensamento nada tinha de novo, mas colou numa altura em que é perceptível uma segunda vaga.

A carta aberta incendiou uma comunicação social acrítica, sem pensamento próprio, sem tempo para pensar ou escrever, que vai atrás da onda porque estão preocupados com a concorrência e não com a informação, sentindo na pele a pressão "todos estão a dizer o mesmo e, se eu não disser o mesmo, a notícia passa-nos ao lado". A carta aberta foi objecto de noticiários, mesas redondas, notícias. No recente programa Expresso da Meia Noite, na SIC Notícias, os jornalistas Bernardo Ferrão e Ângela Silva criticaram - através de sucessivas perguntas - a ministra da Saúde pela sua "opção ideológica" de querer combater a pandemia apenas com o SNS.

Ou seja, a comunicação social colocou-se claramente de um dos lados da negociação ao pressionar o Estado e o Governo a negociar com os privados a utilização dos seus recursos. Pior: a comunicação social nunca se questionou se não haveria outras formas de reforçar imediatamente o SNS ou por que razão, estando nós a viver uma situação de emergência, não pode o Estado requisitar os serviços do sector privado, ideia que permitiria baixar a parada do sector privado.

Esta campanha obrigará, de qualquer das formas, a um reforço de verbas do Orçamento de Estado. E aqui entra nesta negociação outro actor - o Presidente da República.

Primeiro, dando eco aos ex-bastonários e, depois, imiscuindo-se em áreas que não as do PR e exigindo um maior défice e mais verbas para a Saúde:
"Se se chegar à conclusão de que é preciso reforçar o orçamento da Saúde, não estou a ver nenhum partido a dizer que não, por muito que isso custe sacrificar uma ou outra área ou, neste ano que é muito especial, em termos de subida do défice", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa."O défice é muito importante, mas se for provado que, efetivamente, é preciso mais uns tantos zero vírgula qualquer por cento pela urgência de reforço do orçamento da saúde e os partidos entenderem que assim deve ser, pois assim deve ser", sublinhou. O Presidente da República considerou importante saber se "nos termos" em que os concursos são abertos "permitem a progressão de carreira", que "haja novo pessoal a entrar em funções" ou se "é preciso mais pessoal"."Este é um debate e uma discussão que tem de ser feita serenamente", adiantou.

O noticiário da Antena 1 desta manhã referia mesmo um reforço de verbas, não para o SNS, mas para o Sistema Nacional de Saúde (com privados). Marcelo Rebelo de Sousa já anunciou - escreve o Expresso - que, na próxima semana, vai consultar várias personalidades da área da Saúde, começando pela ministra da tutela, Marta Temido, mas recebendo também o atual e os ex-bastonários da Ordem dos Médicos, outros bastonários das áreas ligadas à saúde, ex-ministros da saúde, sindicatos e confederações sindicais e patronais, o "setor económico e social".

E o PS já dá mostras de estar a ceder.

sábado, 17 de outubro de 2020

O preço do “bom senso”


O Governo de um país que tenha soberania monetária tem sempre dinheiro para as suas despesas. Fixa as suas escolhas políticas no orçamento e, uma vez este aprovado, o banco central financiará o défice que estiver previsto. Ou seja, um governo soberano não pode invocar o risco de uma dívida excessiva (no dia do vencimento, o banco central já pôs o dinheiro na conta do Tesouro) para protelar a contratação de profissionais para o SNS, ou para dar um mísero aumento às pensões dos pobres, apenas a partir de Agosto.

Nem precisa de poupar no apoio extraordinário aos trabalhadores independentes e aos da parte informal da economia que cada vez mais pedem às organizações de solidariedade social comida e dinheiro para a renda da casa, para o gás, etc. Com moeda própria, no quadro de uma gravíssima crise que não tem fim à vista, o Governo pode, e deve, incluir no orçamento um rendimento de cidadania para sustentar com decência todos os que não possuem rendimentos (todos os dias há mais), ou atribuir um complemento a quem tem uma pensão abaixo desse limiar de decência.

Pode também financiar um programa de investimento público que cubra todo o país, por exemplo recuperando e dando dignidade aos bairros degradados, restaurando ou construindo pequenas infraestruturas que sirvam o bem-estar das populações. Um orçamento que responda a um estado de calamidade, deve lançar projectos com utilidade social que possam ser executados por empresas de pequena e média dimensão para que se mantenha o emprego dos menos qualificados e o dinheiro seja gasto na comunidade.

O Governo que tem moeda própria sabe que a despesa pública, quando bem direccionada, tem um efeito multiplicador sobre o produto muito significativo e gera muitos empregos. Sabe também que o limite para os seus défices não é a falta de dinheiro, é (1) a inflação, quando a economia se aproxima do pleno emprego, e (2) o défice externo, quando não for conveniente deixar flutuar demasiado a taxa de câmbio. O Governo com moeda própria não depende dos especuladores para gastar e sabe que é o próprio banco central que fixa a taxa de juro (para mais explicações ver os meus Snacks de Economia Política #7 e #9). Um governo destes tem poder para controlar os movimentos de capitais especulativos que criam bolhas no imobiliário e, tendo vontade política, também pode impedir a saída do dinheiro para os paraísos fiscais.

Com o que acabo de escrever, muita coisa fica por explicar. Mas espero que baste para que se entenda o preço que estamos a pagar, e continuaremos a pagar, por termos caído na armadilha do euro.

Aliás, mesmo dentro desta armadilha, o Governo não tem fundamento para tanta prudência orçamental à custa dos mais desfavorecidos. Quando a pandemia estiver controlada através de uma vacina eficaz cobrindo a larga maioria da população nos vários países – e isso pode vir a acontecer mais tarde do que estamos a imaginar – o peso da dívida pública no PIB do nosso país será acompanhado por valores também muito elevados nos restantes países da periferia da zona euro. Não é razoavelmente concebível que a CE e o Eurogrupo venham a exigir a aplicação dos critérios de Maastricht tão cedo, até porque têm consciência de que foram responsáveis pelo grande atraso na entrega do dinheiro a fundo perdido que prometeram e, sobretudo, porque a Itália não o permitiria.

Entretanto, o Brexit vai realizar-se e, a partir daí, perde toda a credibilidade o discurso de que um país que saia da UE é um país arruinado. Só será assim enquanto o seu povo eleger governos de direita que se comportem como se não tivessem soberania monetária. Como sempre disse, esta é uma condição necessária, mas não suficiente. Para que haja desenvolvimento, no mínimo, temos de ser livres para escolher as políticas que nos servem, o que não é o caso dentro da UE, e aliás se verá melhor nas condições fixadas para o uso da “bazuca” dos muitos milhões que não vão dar de comer a ninguém nos próximos tempos. E serão gastos sem estratégia de desenvolvimento porque, para isso, seria preciso ter políticas monetária, industrial e comercial adequadas, exactamente aquilo de que estamos privados.