Surgiram na semana passada várias notícias a assinalar o risco de esgotamento da capacidade de resposta de unidades de cuidados intensivos (UCI), em resultado do aumento significativo do número de contágios Covid-19. Se em alguns casos essas notícias davam nota de dificuldades sentidas em unidades hospitalares específicas, noutros a questão era colocada à escala regional e, noutros casos ainda, as manchetes sugeriam que o problema era mesmo nacional.
Sendo certo que os internamentos têm vindo a aumentar (ainda que a um ritmo inferior ao do número de contágios), o surgimento destas notícias gera uma dupla perplexidade. Por um lado, porque em termos globais o número de internados em UCI é ainda inferior ao registado no pico da pandemia (quando se atingiram valores acima de 250). Por outro, porque se foi assistindo, desde o início da primeira vaga, a um aumento gradual da capacidade e flexibilidade de resposta (e tendo-se desde então mantido estável o peso relativo de internados em UCI no total de internamentos).
É sabido que não bastam camas para que uma unidade de cuidados intensivos funcione, sendo necessário assegurar recursos humanos e um adequado funcionamento em rede das diferentes UCI. E se em casos específicos o risco de lotação pode ser circunstancialmente atingido, não parece haver razões para colocar o problema, por enquanto, nem sequer à escala regional. De facto, como então referiu a ministra da Saúde, a taxa global de ocupação de camas UCI que podem vir a ser utilizadas por doentes Covid-19 situava-se em 18% nas regiões de Lisboa do Porto.
É claro que, com o agravar da situação ao nível dos internamentos, a capacidade atual de resposta pode deixar de ser suficiente, desafiando as margens de elasticidade da oferta no SNS. O que não faz sentido é que, nesta fase, os interesses privados tentem por diversos meios empurrar o Estado para um reforço da contratualização com o setor. Até porque, como assinala Marta Temido, o envolvimento dos privados no combate à pandemia «não é uma questão de fatura, é uma questão de escolhas», atendendo a que «a abordagem que o setor público tem é diferente, não é uma abordagem centrada em atos, é uma abordagem centrada num cuidado integral».
"They Live".
ResponderEliminar«a abordagem que o setor público tem é diferente, não é uma abordagem centrada em atos, é uma abordagem centrada num cuidado integral»
ResponderEliminarTípico linguajar estatês, sinónimo de 'não me falem em detalhes ou em eficiência', como se o integral não fosse decomposto em actos!
A inversa também é verdadeira. O linguajar emprendedorês também é detetável. Sabemos bem o cuidado nos detalhes e eficiência na destruição do planeta pelos empreendedores ao serviço de acionistas de SA e o seu cuidado e preocupação na resolução dos problemas sociais. A crise de 2007 resultante de uma sistemática desregulação dos mercados teve um final feliz, certo? Voltando ao texto, ver em tudo um ato empresarial tem-nos conduzido num bom caminho. O comunismo morreu, mas o José ainda não percebeu que o neoliberalismo também morreu... As empresas ou estão ao serviço das pessoas ou são dispensáveis. Não vejo outra forma de legitimar a sua existência.
EliminarCaro Nuno Serra,
ResponderEliminarConcordo consigo que em Portugal todas as crises servem para justificar mais uma qualquer ronda de privatizacao financeiramente ruinosa do SNS.
Dito isto, se face ao evoluir da situacao epidemiologica portuguesa nao se planeia agora para a possivel ruptura de capacidade no SNS quando e que isso se faz? Em cima do joelho, como em Marco/Abril?
Por outro lado ainda, algumas assercoes suas suscitam-me perplexidade:
"Sendo certo que os internamentos têm vindo a aumentar (ainda que a um ritmo inferior ao do número de contágios),"
Os internamentos crescem a um ritmo inferior ao dos contagios...? OK... e? Matematicamente estranho seria se os internamentos crescessem a um ritmo superior ao dos contagios nao acha? Ou esta a sugerir que em Marco havia uma taxa de internamento pro prevalencia superior? Com que base diz isso? A prevalencia verdadeira em Marco estava grosseiramente sub-estimada. Nao pode tecer qualquer tipo de comentarios nesse ambito com a qualidade de numeros na sua posse.
"(e tendo-se desde então mantido estável o peso relativo de internados em UCI no total de internamentos)."
Outra vez... e? Que quer exactamente dizer com este parentesis? O problema de capacidade do SNS nao e um de pesos relativos mas sim de numeros absolutos. 14% de UCI's em 500 internados COVID tem o mesmo peso relativo que 14% de UCI's em 2000, 3000 ou 4000 internados COVID (n.b. em 21-09-2020 havia 1272 internados COVID com tendencia crescente) mas presumo que concordara que cenarios com milhares de internados em vez de centenas tem consequencias gravosas na capacidade de resposta do SNS certo...?
Permita-me sintetizar Nuno Serra. A tentativa de "assalto a mao armada" por parte dos neoliberais ao SNS presentemente em curso e uma ignominia. Pode e deve ser combatido vigorosamente. Ha imensas opcoes de contra-ataque.
MAS, MAS, MAS, ESTA sua argumentacao minimizadora da magnitude e impacto desta segunda vaga epidemica e um erro de Crasso. E tecnica e cientificamente radicalmente errada e sera exposta ao ridiculo a curto prazo pela rapida evolucao da epidemia no terreno. Lembre-se do que aconteceu a Crasso.
Uma segunda nota:
ResponderEliminarA taxa de positividade nos testes COVID em Portugal situa-se neste momento entre 11 e 12%. A OMS recomenda dimensionamento da testagem para manter essa taxa abaixo dos 5%.
Isto quer dizer que, apesar do numero de contagios recordados nesta segunda vaga ser uma imagem mais fidedigna da real prevalencia de SARS-CoV-2 em Portugal que em Marco/Abril, verifica-se ja uma significativa sub-representacao da real prevalencia do virus em Portugal.
https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=10218027088251755&id=1322691913
ResponderEliminarCaro Lowlander,
ResponderEliminarO post não é sobre a importância, indiscutível, de preparar atempadamente o SNS para responder a um eventual aumento da necessidade de internamentos. O post é sobre o facto de, perante valores absolutos de internados em UCI inferiores aos registados em março/abril - e quando entretanto a capacidade de resposta, efetiva e «elástica», aumentou - depararmos com notícias que quase sugerem estarmos perante um risco eminente de rutura.
A referência à evolução do peso relativo de internamentos UCI apenas pretende dar nota da ideia de que as situações que exigem internamento não têm vindo a aumentar, nem no conjunto de internamentos nem face ao número de casos. Sendo que, ao contrário do que o Lowlander refere, em teoria o ritmo de aumento de internamentos (o ritmo, a taxa de crescimento, e não o número absoluto) até pode superar o volume de casos (basta pensar, por exemplo, que a dado momento há um agravamento súbito da manifestação da doença num segmento de infetados, que obriga a uma subida dos internamentos).
Por último, não pretendo minimizar a magnitude da segunda vaga em termos de internamentos e óbitos, tanto mais quanto estes indicadores têm vindo a agravar-se recentemente, depois de um período em que andavam, de facto, desfasados do aumento de novos casos e de infetados.
Requisição civil dos privados para tratarem doentes não-covid, pagos pela tabela pública para prestações de saúde. Os privados não contribuiram com nada para ajudar nesta pandemia e ainda por cima sobrecarregaram o SNS com os doentes com covid que rejeitaram, até grávidas. Fiem-se nos seguros de saúde!
ResponderEliminarCaro Nuno Serra,
ResponderEliminarRespondendo ponto por ponto ao seu comentario de 22-10-2020 10h39:
NS: "O post é sobre o facto de, perante valores absolutos de internados em UCI inferiores aos registados em março/abril -"
LL - Estamos a uma ou duas semanas desses valores. Isto e sofisma.
NS: "e quando entretanto a capacidade de resposta, efetiva e «elástica», aumentou"
LL - 1) Aumentou mesmo? Onde estao os dados? Precisa de demonstrar: mais camas, mais equipamento e mais gente treinada adequadamente e disponivel para trabalhar para poder fazer uma afirmacao temeraria dessas. 2) Aumentou quanto? Esta mesmo a argumentar aqui, sem se rir, que este "aumento" altera substancialmente a capacidade de resposta no terreno?
NS: " - depararmos com notícias que quase sugerem estarmos perante um risco eminente de rutura."
LL: Quais sao os criterios do NS para declarar um "risco iminente"? Volto a perguntar, se nao quer soar o alarme agora, quando e que o quer fazer soar? Ha criterio? Vamos a metaforas: O NS quer tomar medidas quando receber telegramas de outros navios nas redondezas que ha icebergs na sua trajectoria? Quando avistar o Iceberg? Depois do Titanic embater no iceberg? Ou talvez quando a agua chegar ao conves da primeira classe? E que na minha opiniao, dentro da minha metafora, ja embatemos no iceberg vai para um mes pelo menos...
NS: "A referência à evolução do peso relativo de internamentos UCI apenas pretende dar nota da ideia de que as situações que exigem internamento não têm vindo a aumentar, nem no conjunto de internamentos nem face ao número de casos."
LL - ??? Wait...What? A unica coisa que pode concluir dos dados que apresenta e que a virulencia do virus nao aumentou. Mas isso ja se sabe e anda a ser noticiado ha MESES. Esta sua frase e imprecisa numa interpretacao caridosa e desonesta intelectualmente numa interpretacao severa.
NS: "Sendo que, ao contrário do que o Lowlander refere, em teoria o ritmo de aumento de internamentos (o ritmo, a taxa de crescimento, e não o número absoluto) até pode superar o volume de casos (basta pensar, por exemplo, que a dado momento há um agravamento súbito da manifestação da doença num segmento de infetados, que obriga a uma subida dos internamentos)."
LL: Isso de que fala e um artefacto estatistico possivel devido ao desfasamento temporal entre infeccao e desenvolvimento de sintomatologia clinica grave, mutatis mutandis, so ocorre/ocorrera se: a testagem na populacao e grosseiramente insuficiente ou quando superarmos o pico epidemico de contagios - em ambos os casos, como referi - matematicamente estranho. Aquilo que o NS descreve no texto original e uma "La palissada"
"Por último, não pretendo minimizar a magnitude da segunda vaga em termos de internamentos e óbitos, tanto mais quanto estes indicadores têm vindo a agravar-se recentemente, depois de um período em que andavam, de facto, desfasados do aumento de novos casos e de infetados."
Incorrecto. Errado. Nao pode afirmar isto. Erro de Crasso. Esta a comparar Fevereiro/Marco (prevalencia grosseiramente subestimada por incapacidade de testagem) com Agosto/Setembro (volume de testagem em Portugal grosso modo capaz de detectar todos os casos positivos em Portugal).
A virulencia do virus permanece inalterada e a populacao Portuguesa permanece essencialmente tao susceptivel ao virus agora como no inicio do ano - nao ha imunidade de grupo suficiente para quebrar as cadeias de transmissao.
E de longe muito mais provavel que a este segundo pico epidemico se esteja a comportar grosso modo da mesma maneira que aquando da introducao do virus em Portugal do que de alguma outra forma substancialmente diferente como o NS argumenta.
De acordo quanto à preocupação com o ataque dos privados ao SNS. Para eles, todos os pretextos são bons e a pandemia não é excepção.
ResponderEliminarQuanto ao resto, de acordo com o lowlander. Faço notar que uma simples extrapolação da curva da esquerda far-nos-ia esperar os 250 internados para, grosso modo, umas 4-5 semanas depois de 9 de Outubro, o que não é lá muito animador como perspectiva.
Caro Nuno Serra,
ResponderEliminarAs minhas desculpas se estou a ser aspero nos meus comentarios. Mas a sua abordagem nesta ultima serie de textos sobre COVID labora (e insiste!) num grave erro de analise da informacao epidemiologica disponivel.
Arrisca "borrar a pintura" num blog e num escriba que se destacam pela capacidade de analisar informacao e temas complexos para la da simples espuma dos dias.
Caro Lowlander,
ResponderEliminarEu concordo consigo quanto à diferença qualitativa dos dados de infetados (nomeadamente, como bem refere, pelas diferenças significativas em termos de testes realizados) relativos a março/abril e aos meses mais recentes. Tenho de resto assinalado isso nos posts.
Noto, porém, que estes são os dados disponíveis, não há outros. E, portanto, é esta a informação que toda a gente usa, a começar pelos especialistas da área. Ou seja, levando as suas reservas ao extremo, nenhuma análise sobre o número de contágios/casos seria válida.
Coisa distinta é o que se passa com as séries de internados e óbitos, em que a distorção provocada pela diferença de número de testes já não se aplica, permitindo uma análise temporal mais sólida.
Ora, o argumento do post assenta justamente sobre os dados relativos a internados e internados em UCI. E é também sobre eles incidem as notícias de há uma semana, a sugerir que a capacidade de resposta do SNS (em UCI) estaria a esgotar-se (quando, objetivamente, o respetivo número se encontra abaixo dos valores registados na primeira vaga).
Quanto ao aumento da capacidade de resposta dos cuidados continuados desde março, não só dificilmente seria plausível pensar, em abstrato, que houve uma redução (tanto em termos de camas como de maior elasticidade da oferta), como a mesma, de facto, não se verificou.
Na dúvida, sugiro uma simples pesquisa. Asseguro-lhe que encontrará, pelo menos em declarações públicas da ministra ou do secretário de Estado, referência a valores que demonstram que essa capacidade de resposta não só aumentou num sentido mais restrito (número de camas) como num sentido mais amplo (elasticidade da oferta).
Tudo isto não significa, evidentemente, que a evolução da pandemia não coloque em questão, nas próximas semanas, a capacidade de resposta (e a eventual necessidade de recorrer ao privado). Sucede porém que o post não é sobre o eventual futuro próximo, mas antes sobre o «tom» concreto de notícias concretas num tempo concreto, quando os dados disponíveis (de internados) não sustentam a ideia de pré-rutura que é transmitida.
Caro Lowlander uma nota adicional: atendendo a que a ponderação de internados em UCI pelo número de infetados gera ruído desnecessário, e é absolutamente irrelevante para o argumento em causa (a ponto de nem referir esse aspeto no texto), decidi eliminar o respetivo gráfico do conjunto de gráficos que ilustram o post.
ResponderEliminarResta dizer que não só o número de internamentos é inferior a Abril, como o número de internamentos por todas as causas neste momento é inferior ao de anos anteriores para a mesma época. As notícias de "lotação esgotada" das UCI não só destroem o SNS por fora (cedendo ao oportunismo privado) como por dentro ( cancelamento de cirurgias, consultas, exames, etc). É o acelerar do colapso do SNS em todas as frentes.
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