Na entrevista de hoje ao DN, Isabel Jonet lança o alerta: «há outra vez mais gente endividada, com salário penhorado, sem subsídio de desemprego». Isto porque, segundo a presidente do Banco Alimentar, «a recuperação económica que houve não chegou às famílias mais pobres», apesar de «algumas melhorias em abonos». «Aquilo que eu noto», acrescenta, «é que nos últimos meses sentimos como que algum agravamento da situação das famílias mais carenciadas».
Curiosamente, o INE divulgou também hoje os resultados do Inquérito ao Rendimento e Condições de Vida, que dá conta da redução do risco de pobreza de 19,0 para 17,3% entre 2015 e 2017, com uma diminuição igualmente significativa no universo das formas mais extremas de carência: a população em situação de privação material severa passa de 9,6 para 6,9%, numa quebra que ronda as -283 mil pessoas (estimando-se que este indicador atinja os 6,0% em 2018).
A presidente do Banco Alimentar poderia de resto olhar para as estatísticas da instituição que dirige e que convergem com os indicadores oficiais. Entre 2015 e 2017 o número de beneficiários do BACF diminuiu em cerca de 66 mil (-15,2%), passando o peso relativo do número de pessoas assistidas na população total de 4,2 para 3,6%.
Com uma entrevista concedida na véspera de mais uma campanha de recolha de alimentos, é de admitir que Isabel Jonet tenha considerado a necessidade de «forçar a nota» (mesmo que à custa da deturpação da realidade), para melhorar o fund raising (ou food raising, melhor dizendo). O que, convenhamos, não deixa de alimentar a suspeição de que os «objetivos» empresariais do BACF se sobrepõem, uma vez mais, à alegada causa a que a instituição se dedica.
sexta-feira, 30 de novembro de 2018
quinta-feira, 29 de novembro de 2018
Mensagem errada
Entre as muitas propostas apresentadas no debate na especialidade do Orçamento de Estado para 2019, houve uma que fez o Governo e o PS equivocar-se na mensagem que afirma defender.
O PCP defendeu que os valores dos escalões de IRS fossem actualizados com o valor da inflação prevista de 1,3%. Essa actualização é uma das propostas recorrentes do PCP e é uma protecção para aqueles cidadãos cujos rendimentos estejam ali mesmo na fronteira entre dois escalões.
Assim, se os escalões fossem actualizados e caso tivessem um aumento dos seus rendimentos nem que fosse pelo valor da inflação (para manter o seu poder de compra), essa subida dos rendimentos não o faria subir de escalão de IRS. Caso contrário, esses cidadãos arriscavam-se a ter um aumento de rendimento, mas a perdê-lo depois de tributado.
Era expectável que os deputados e o Governo do PS fossem sensíveis a este argumento. Mas não. A proposta foi chumbada. E com ela passou a mensagem de que não se deve lutar por uma subida de salários ou uma subida de pensões porque - quem sabe? - até pode ficar a perder...
Ele há coisas que um partido de esquerda devia ter como regra.
O PCP defendeu que os valores dos escalões de IRS fossem actualizados com o valor da inflação prevista de 1,3%. Essa actualização é uma das propostas recorrentes do PCP e é uma protecção para aqueles cidadãos cujos rendimentos estejam ali mesmo na fronteira entre dois escalões.
Assim, se os escalões fossem actualizados e caso tivessem um aumento dos seus rendimentos nem que fosse pelo valor da inflação (para manter o seu poder de compra), essa subida dos rendimentos não o faria subir de escalão de IRS. Caso contrário, esses cidadãos arriscavam-se a ter um aumento de rendimento, mas a perdê-lo depois de tributado.
Era expectável que os deputados e o Governo do PS fossem sensíveis a este argumento. Mas não. A proposta foi chumbada. E com ela passou a mensagem de que não se deve lutar por uma subida de salários ou uma subida de pensões porque - quem sabe? - até pode ficar a perder...
Ele há coisas que um partido de esquerda devia ter como regra.
A economia como ela é
«Continuamos a ouvir, do PSD e do CDS, a ideia de que este Orçamento de Estado - apesar de "alimentar clientelas" - não tem medidas para as empresas e para a competitividade económica. Este é um debate muito mais importante do que parece. O que o PSD e o CDS nos têm para apresentar sistematicamente, como grande medida para as nossas empresas, é a redução do IRC. Continuam sem perceber que por mais que baixássemos os impostos, que tívessemos a torneira do crédito aberta, as melhores máquinas, os melhores pavilhões, se não tivermos um povo com capacidade para consumir, as empresas não vendem, não florescem, e a economia também não.
Como é que podem falar em competitividade económica quando acham que a política económica é aumentar impostos e cortar rendimentos? Quando aumentam impostos e cortam rendimentos, o que fazem é degradar a atividade económica e impossibilitar as empresas de vender produtos e de crescer.
E portanto quando nós governamos com o povo português, para o povo português, para os trabalhadores portugueses e para as famílias portuguesas; quando aumentamos as pensões em trinta euros, quando aumentamos o Abono de Família, quando aumentamos o salário mínimo nacional de 505 para 600€, quando eliminamos a sobretaxa, quando repomos o que foi cortado nos salários da Administração Pública, o que estamos a fazer não é a governar para nenhuma "clientela", é governar para todos os portugueses e, já agora, com ganho para as nossas empresas. Essa separação é uma separação falsa. De quem não percebe o que determina as decisões de produção e de investimento das nossas empresas. E era importante que percebessem, porque gostam de falar em nome dos empresários mas não sabem o que é que os faz vender, o que é que os faz investir. Não se pode separar empresários e empresas do resto do povo português.»
Da intervenção de Pedro Nuno Santos no encerramento do Debate na Especialidade do OE de 2019.
quarta-feira, 28 de novembro de 2018
Grandes tragédias e pequenas farsas
A declaração de um Tsipras já muito habituado a ceder em tudo, que naturalmente tanto agradou ontem ao Negócios, é a máxima expressão de impotência democrática da esquerda europeísta, ou seja, a máxima expressão da potência do neoliberalismo inscrito no mercado único e na moeda única, na política fundamentalmente única. De facto, nestas condições estruturais, a política está reduzida a pequenas diferenças conjunturais, apenas engrandecidas pela espuma político-mediática e pelo correspondente presentismo.
Se a esquerda é sinónimo de ausência de alternativa, se aceita na prática a hegemonia neoliberal, está condenada, como se vê por aí. A impotência democrática abre precisamente o campo ao que é literalmente o outro lado da moeda única, ou seja, à captura da imaginação nacional-popular pelos Salvinis desta trágica vida. O governo italiano, segundo a BBC, parece que não cede. Será que a Itália não é a Grécia?
Adenda. Entretanto, no Público, as pequenas farsas políticas do europeísmo dito progressista garantem uma seta a subir, como aconteceu também ontem: parece que Varoufakis é candidato na Alemanha por uma lista trans-não-sei-quê às eleições ditas europeias.
Debater a vida que temos e a que queremos
Estará Portugal a caminho do pleno emprego?
A precariedade do trabalho é hoje uma condição inelutável?
Quais foram os grandes marcos da liberalização do mercado de trabalho em Portugal?
O que esperar da próxima legislatura?
Estas questões merecem um debate político sério, fundamentado, com a participação de cidadãos informados e de representantes dos partidos que apoiam o governo. O FÓRUM PORTO COM NORTE convida-o a participar neste debate.
Envelhecimento e desertificação
A partir da população residente segundo a dimensão dos lugares, mostrou-se aqui que entre 2001 e 2011 a desertificação do interior do país se traduziu, a par das perdas demográficas, numa tendência para a concentração da população nos núcleos urbanos.
Ainda sem dados que permitam analisar a evolução registada desde então (os mesmos só serão conhecidos com os censos de 2021), pode contudo ter-se uma ideia da capacidade de revitalização demográfica destes territórios a partir das dinâmicas do envelhecimento entre 2011 e 2017. Para tal, o Índice de Envelhecimento - que determina o número de idosos (65 e mais anos) por cada 100 jovens (até 15 anos) - constitui um bom indicador. Quanto mais elevado for o valor obtido, maior é o grau de envelhecimento demográfico (sendo que valores inferiores a 100 traduzem a existência de uma maior proporção de jovens face a idosos).
Para a análise pretendida importa contudo considerar não só o Índice de Envelhecimento registado, mas também a sua evolução recente (2011 a 2017), de modo a identificar as regiões que, de forma cumulativa, apresentam estruturas demográficas mais envelhecidas e ritmos de envelhecimento mais acentuados, sugerindo à partida uma menor capacidade de regeneração. Cruzando as duas dimensões, verifica-se que a Área Metropolitana de Lisboa e o Algarve são as únicas que apresentam, em simultâneo, Índices de Envelhecimento (IE) e Variações do Índice de Envelhecimento (VAR) inferiores à média, seguindo-se o caso da Área Metropolitana do Porto e das NUT adjacentes (Cávado, Ave e Tâmega e Sousa), com valores abaixo da média no IE mas acima do valor médio no que respeita à variação desse indicador.
Num terceiro patamar surgem as NUT do Alentejo e a Beira Baixa, que combinam estruturas demográficas já particularmente envelhecidas em 2001 (muito acima da média) e que por isso registam menores aumentos do IE entre 2001 e 2017 (abaixo da média). Por último, as restantes NUT caraterizam-se por acumular valores de IE e de VAR acima da média, sendo contudo de destacar quatro casos de envelhecimento mais acentuado, que correspondem ao interior norte e centro (Beiras e Serra da Estrela, Douro, Terras de Trás-os-Montes e Alto Tâmega), nos quais ambos os indicadores assumem valores acima da média mais o desvio-padrão.
Estamos evidentemente perante processos que não começaram em 2001, mesmo que se tenham acentuado desde então. São dinâmicas de tempo longo, que se sedimentaram e incrustaram de forma gradual e que diferentes políticas (ou a sua ausência) não souberam até hoje reverter ou atenuar, sendo ilusório pensar que a natalidade será suficiente para resolver o assunto. Aliás, sobre o processo de desvitalização progressiva destes territórios é de leitura imprescindível o ensaio de «geografia emocional do interior» de Álvaro Domingues, no Público do passado fim-de-semana.
Ainda sem dados que permitam analisar a evolução registada desde então (os mesmos só serão conhecidos com os censos de 2021), pode contudo ter-se uma ideia da capacidade de revitalização demográfica destes territórios a partir das dinâmicas do envelhecimento entre 2011 e 2017. Para tal, o Índice de Envelhecimento - que determina o número de idosos (65 e mais anos) por cada 100 jovens (até 15 anos) - constitui um bom indicador. Quanto mais elevado for o valor obtido, maior é o grau de envelhecimento demográfico (sendo que valores inferiores a 100 traduzem a existência de uma maior proporção de jovens face a idosos).
Para a análise pretendida importa contudo considerar não só o Índice de Envelhecimento registado, mas também a sua evolução recente (2011 a 2017), de modo a identificar as regiões que, de forma cumulativa, apresentam estruturas demográficas mais envelhecidas e ritmos de envelhecimento mais acentuados, sugerindo à partida uma menor capacidade de regeneração. Cruzando as duas dimensões, verifica-se que a Área Metropolitana de Lisboa e o Algarve são as únicas que apresentam, em simultâneo, Índices de Envelhecimento (IE) e Variações do Índice de Envelhecimento (VAR) inferiores à média, seguindo-se o caso da Área Metropolitana do Porto e das NUT adjacentes (Cávado, Ave e Tâmega e Sousa), com valores abaixo da média no IE mas acima do valor médio no que respeita à variação desse indicador.
Num terceiro patamar surgem as NUT do Alentejo e a Beira Baixa, que combinam estruturas demográficas já particularmente envelhecidas em 2001 (muito acima da média) e que por isso registam menores aumentos do IE entre 2001 e 2017 (abaixo da média). Por último, as restantes NUT caraterizam-se por acumular valores de IE e de VAR acima da média, sendo contudo de destacar quatro casos de envelhecimento mais acentuado, que correspondem ao interior norte e centro (Beiras e Serra da Estrela, Douro, Terras de Trás-os-Montes e Alto Tâmega), nos quais ambos os indicadores assumem valores acima da média mais o desvio-padrão.
Estamos evidentemente perante processos que não começaram em 2001, mesmo que se tenham acentuado desde então. São dinâmicas de tempo longo, que se sedimentaram e incrustaram de forma gradual e que diferentes políticas (ou a sua ausência) não souberam até hoje reverter ou atenuar, sendo ilusório pensar que a natalidade será suficiente para resolver o assunto. Aliás, sobre o processo de desvitalização progressiva destes territórios é de leitura imprescindível o ensaio de «geografia emocional do interior» de Álvaro Domingues, no Público do passado fim-de-semana.
terça-feira, 27 de novembro de 2018
O FMI e a redescoberta da Economia Política
No início deste verão, a propósito de um relatório anual publicado pela OCDE, discutimos a estagnação dos salários nos países desenvolvidos. Como explicação para o facto de a recuperação do emprego nestes países para níveis semelhantes aos registados antes da crise financeira de 2007-08 não estar a ser acompanhada pelo crescimento dos salários, o relatório apontava a baixa inflação e a desaceleração da produtividade. Contudo, ignorava os efeitos da financeirização e da liberalização do mercado de trabalho nos países da OCDE.
Um estudo recente de investigadores do FMI aponta neste sentido: contrariando a visão dominante entre os economistas, segundo a qual a distribuição funcional do rendimento (que, traduzido do economês, significa a divisão do rendimento total entre quem contribuiu para a produção, ou seja, trabalho e capital) é explicada pelo progresso tecnológico e pela produtividade dos fatores, o estudo reconhece o impacto negativo das reformas laborais levadas a cabo nas últimas décadas sobre os salários reais.
A novidade presente no estudo prende-se com o facto de passar a ter em conta o poder negocial de ambas as partes como fator explicativo do crescimento dos salários. Os investigadores concluem que “além de outros fatores (não mutuamente exclusivos), as alterações institucionais que enfraqueceram o poder negocial dos trabalhadores desempenharam um papel importante” na estagnação dos salários. Por outras palavras, os investigadores do FMI limitam-se a recuperar elementos com longa tradição na Economia Política, de Smith e Marx a Veblen e Keynes, como a relevância do contexto institucional e das relações de forças sociais na evolução das economias. Ronald Jansen, consultor de política económica para a OCDE, resume as conclusões do estudo de forma certeira: “O FMI parece descobrir que a proteção laboral não é de forma nenhuma neutra na determinação da distribuição dos rendimentos. O que está em causa na desregulação do mercado de trabalho é que o trabalho sai perdedor, ao passo que o capital vence.”
O enfraquecimento do poder de negociação dos trabalhadores tem como consequência a diminuição dos salários e da parte da riqueza produzida que reverte para o trabalho. Esta conclusão é facilmente verificável quando olhamos para a evolução da parte dos salários no PIB destes países nas últimas décadas (a percentagem do produto total que é paga aos trabalhadores).
As reformas laborais, concretizadas através da facilitação dos despedimentos e da contratação a tempo parcial ou sob novas formas de contratação precária, foram defendidas pela doutrina económica dominante, por vários governos à direita e ao “centro” e pelas instituições europeias e internacionais (como o próprio FMI) como necessárias para diminuir o desemprego, aumentar a produtividade e promover o dinamismo da economia. No entanto, o estudo agora publicado contraria o consenso dos últimos anos e conclui o oposto, identificando os efeitos negativos destas reformas sobre os salários, a recuperação económica e a desigualdade. Embora pareça pouco provável, seria bom que instituições com influência política como o FMI ou a OCDE as tivessem em conta no futuro.
Ao reconhecer o papel fundamental da regulação laboral e da organização coletiva dos trabalhadores, o estudo recupera elementos da Economia Política que têm sido ignorados nos últimos tempos pelas instituições internacionais. Convém não esquecer que a evolução das economias depende sempre do contexto histórico e político em que se inserem, e não apenas da suposta “mão invisível” do mercado sem restrições. Por esse motivo, a recuperação de rendimentos e o combate à desigualdade salarial têm de passar por medidas de reforço da proteção dos trabalhadores. Sem surpresa, a relação de forças social continua a ser determinante.
domingo, 25 de novembro de 2018
Esqueçam as aldeias
Com a divulgação dos resultados dos próximos censos, a realizar em 2021, será possível conhecer com maior rigor a dimensão das mudanças profundas que atravessaram o país desde 2011, ano do último exercício censitário e data de início do processo de «ajustamento», que acentuou os impactos da crise iniciada em 2008.
Uma dessas transformações diz respeito à mais que provável intensificação do processo de desertificação do interior, aprofundando as tendências registadas entre 2001 e 2011. Isto é, com os aumentos de população a circunscreverem-se às NUT das áreas metropolitanas e do litoral norte e Algarve (com valores entre 1 e 13%), e com as restantes a registar perdas em regra superiores a 2% e que chegam a atingir valores próximos dos 10%.
Sendo generalizada a tendência, neste período, para o aumento da concentração da população em cidades (com os residentes em núcleos urbanos a passar de 38 para 42%), nas NUT com perdas demográficas registam-se situações em que esse processo de concentração vem acompanhado de uma perda muito significativa (acima da média nacional) de população a residir em lugares com menos de 2 mil habitantes. É o caso, nomeadamente, das NUT do interior norte e centro e do interior do Alentejo e do Alto Minho. Ou seja, regiões em que o declínio demográfico é acompanhado por processos de crescimento urbano, à custa de lugares de menor dimensão, numa espécie de autofagia territorial que foi salvando os núcleos urbanos destas regiões.
Estamos a falar, sublinhe-se, das mudanças ocorridas entre 2001 e 2011, importando agora conhecer o que aconteceu desde então. Uma das hipóteses que se pode colocar é a de que na última década se possa ter esgotado a capacidade de atração de população rural para as cidades e vilas de muitas destas regiões do interior e que portanto a tendência de declínio comece a atingi-las também. O que significa que o desafio do combate à desertificação e aos desequilíbrios regionais já não passa pela revitalização humana dos espaços rurais, mas apenas, se ainda for possível, das próprias cidades e núcleos urbanos.
Uma dessas transformações diz respeito à mais que provável intensificação do processo de desertificação do interior, aprofundando as tendências registadas entre 2001 e 2011. Isto é, com os aumentos de população a circunscreverem-se às NUT das áreas metropolitanas e do litoral norte e Algarve (com valores entre 1 e 13%), e com as restantes a registar perdas em regra superiores a 2% e que chegam a atingir valores próximos dos 10%.
Sendo generalizada a tendência, neste período, para o aumento da concentração da população em cidades (com os residentes em núcleos urbanos a passar de 38 para 42%), nas NUT com perdas demográficas registam-se situações em que esse processo de concentração vem acompanhado de uma perda muito significativa (acima da média nacional) de população a residir em lugares com menos de 2 mil habitantes. É o caso, nomeadamente, das NUT do interior norte e centro e do interior do Alentejo e do Alto Minho. Ou seja, regiões em que o declínio demográfico é acompanhado por processos de crescimento urbano, à custa de lugares de menor dimensão, numa espécie de autofagia territorial que foi salvando os núcleos urbanos destas regiões.
Estamos a falar, sublinhe-se, das mudanças ocorridas entre 2001 e 2011, importando agora conhecer o que aconteceu desde então. Uma das hipóteses que se pode colocar é a de que na última década se possa ter esgotado a capacidade de atração de população rural para as cidades e vilas de muitas destas regiões do interior e que portanto a tendência de declínio comece a atingi-las também. O que significa que o desafio do combate à desertificação e aos desequilíbrios regionais já não passa pela revitalização humana dos espaços rurais, mas apenas, se ainda for possível, das próprias cidades e núcleos urbanos.
sexta-feira, 23 de novembro de 2018
Um bom epitáfio
Um editorial recente no Público terminava assim: “Valha-nos Merkel”. Sugiro que este seja o epitáfio do europeísmo realmente existente neste jornal, o epitáfio da imaginação do centro dominante entre as elites intelectuais e políticas desta e de outras periferias europeias.
Realmente, é requerida muita imaginação pós-nacional para fazer da melhor encarnação política do capital industrial exportador e da banca do centro alemão uma garantia do que quer que seja de decente nas causticadas periferias e para lá delas. Com a sua intransigência na defesa dos superávites externos alemães e da moeda disfuncional que os garante, Merkel foi o rosto da austeridade europeia que lhes é inerente; um dos principais factores de instabilidade económica internacional, em suma.
Entretanto, é trágico ver o que resta da social-democracia europeia a aplaudir o ordoliberalismo alemão que a destruiu, julgando, contra a evidência mobilizada pela história da economia política, que esta forma de anti-socialismo e de anti-keynesianismo é outra coisa que não uma variação do globalismo neoliberal.
Neste contexto, é também trágico ver o que resta da social-democracia europeia a tentar agarrar-se ao perigoso plástico político que ainda flutua por aí – Macron 2017 = Le Pen 2022. Estou de resto cada vez mais convencido que o laboratório italiano mostra aos dependentes objectivos e subjectivos de Merkron o seu futuro. Afinal de contas, as classes subalternas reconstroem sempre um espaço nacional, graças à esquerda ou apesar dela ou mesmo contra ela.
Mas valha-nos ao menos Merkel por causa de Trump. Repito-me, uma vez mais, contra este liberalismo do medo que só serve para tolher amplos sectores intelectuais ditos progressistas:
Na verdade, a UE nunca será um contraponto a Trump, porque sempre cresceu à sombra do poder imperial norte-americano e assim espera continuar. No quadro da acomodação, de resto já em curso, com a nova administração, quanto muito haverá um perigoso reforço do militarismo europeu, com maior investimento nas forças armadas em países como a Alemanha. Trump espera assim aligeirar o fardo financeiro dos EUA com a NATO.
E acrescento: não se esqueçam finalmente dos efeitos políticos internacionais contraproducentes dos superávites alemães, alimentado a economia política (inter)nacional de Trump.
Sim, o valha-nos Merkel é mesmo um bom epitáfio.
Realmente, é requerida muita imaginação pós-nacional para fazer da melhor encarnação política do capital industrial exportador e da banca do centro alemão uma garantia do que quer que seja de decente nas causticadas periferias e para lá delas. Com a sua intransigência na defesa dos superávites externos alemães e da moeda disfuncional que os garante, Merkel foi o rosto da austeridade europeia que lhes é inerente; um dos principais factores de instabilidade económica internacional, em suma.
Entretanto, é trágico ver o que resta da social-democracia europeia a aplaudir o ordoliberalismo alemão que a destruiu, julgando, contra a evidência mobilizada pela história da economia política, que esta forma de anti-socialismo e de anti-keynesianismo é outra coisa que não uma variação do globalismo neoliberal.
Neste contexto, é também trágico ver o que resta da social-democracia europeia a tentar agarrar-se ao perigoso plástico político que ainda flutua por aí – Macron 2017 = Le Pen 2022. Estou de resto cada vez mais convencido que o laboratório italiano mostra aos dependentes objectivos e subjectivos de Merkron o seu futuro. Afinal de contas, as classes subalternas reconstroem sempre um espaço nacional, graças à esquerda ou apesar dela ou mesmo contra ela.
Mas valha-nos ao menos Merkel por causa de Trump. Repito-me, uma vez mais, contra este liberalismo do medo que só serve para tolher amplos sectores intelectuais ditos progressistas:
Na verdade, a UE nunca será um contraponto a Trump, porque sempre cresceu à sombra do poder imperial norte-americano e assim espera continuar. No quadro da acomodação, de resto já em curso, com a nova administração, quanto muito haverá um perigoso reforço do militarismo europeu, com maior investimento nas forças armadas em países como a Alemanha. Trump espera assim aligeirar o fardo financeiro dos EUA com a NATO.
E acrescento: não se esqueçam finalmente dos efeitos políticos internacionais contraproducentes dos superávites alemães, alimentado a economia política (inter)nacional de Trump.
Sim, o valha-nos Merkel é mesmo um bom epitáfio.
quinta-feira, 22 de novembro de 2018
Há lodo fora do cais de Setúbal
"Vinhas da Ira", de John Ford |
Nesta luta, o Governo socialista esteve - até agora - mal.
O ministro da Economia Pedro Siza Vieira esteve mais preocupado que o sistema portuário nacional respondesse “às necessidades das empresas” - vulgo Autoeuropa - e manteve-se “em contacto com a empresa [Autoeuropa] no sentido de assegurar que as necessidades de escoamento da produção continuam a ser satisfeitas”. Esse era o problema que o Governo mais sentia!
Sobre as mais do que precárias condições de trabalho dos estivadores, a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, começou por dizer que não havia razão para a paralisação e depois - face à cobertura mediática - foi forçada a emendar a mão. Mas em vez de exercer o seu poder de Estado e pedir a intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho (no fundo, trata-se de uma questão eminentemente laboral saber se aquelas condições são legais), achou por bem intervir redundantemente. Pediu ao Instituto da Mobilidade e Transportes e Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS) para que se entendam na contratação colectiva e pressionou os trabalhadores a acabar com a greve e a negociar. Algo que não tem funcionado muito bem e daí a greve. Ao mesmo tempo, o seu marido e ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, esvaziava o poder negocial da greve dos estivadores, ao colocar o corpo de intervenção da PSP a repor a "ordem pública" - ainda que com bons modos... -, deixando o autocarro com os fura-greves entrar no cais, para lucro da Autoeuropa e da Operestiva.
Imagens como estas são clássicas em muitos filmes. Podemos vê-las no filme de John Ford (1940), baseado na obra de John Steinbeck (1939), quando uma família fugida da grande depressão é conduzida a um campo de fruta por apanhar e vê-se envolvida num conflito, com guardas de varapaus e espingardas, a protegê-los dos outros trabalhadores em luta. Ou nos filmes que retratam a luta dos mineiros no Reino Unido nos anos 80. Em todos eles, as forças da ordem alinharam com a liberdade de contratação, e nunca para pugnar pela dignidade no trabalho.
Era impensável ver o mesmo quase um século depois e, ainda por cima, pela mão de políticos socialistas. Como se pode dizer que Marx está morto, na gaveta?
Aliás, não foi por acaso que, ouvido pela Antena 1, o representante da firma contratadora dos estivadores, Diogo Marecos (ver "11h00 estivadores de substituição ficam até tudo estar normalizado"), se mostrou satisfeito com a actuação da PSP, que repôs "a normalidade da situação", porque se tratava de um caso de... "emergência nacional" (sic!). Os carros da Autoeuropa não podiam esperar mais!
Vergonha.
[Actualização às 14h27: Citando de um post de Bruno Carvalho no Facebook: "O António Mariano, presidente do SEAL - Sindicato dos Estivadores e da Actividade Logística, contou-me que recebeu a informação de que os fura-greves vão ganhar cerca de 500 euros pelo trabalho de embarcar os automóveis da Autoeuropa. É um bom princípio para a mesa de negociações. Se a empresa pode pagar 500 euros por um ou dois dias de trabalho, isso significa que os estivadores em luta podem negociar, para além da integração permanente, salários que rondem esse valor por dia?"]
quarta-feira, 21 de novembro de 2018
Ver o país, não esquecer o país
No
domingo, cinco pessoas morreram
intoxicadas numa casa miserável
aquecida a gerador. Na segunda,
uma estrada desaparecia entre duas
pedreiras e, perante a sucessão
trágica, muita gente terá feito a
interrogação-lamento: “É isto que
nós somos”?
É. É isto que também somos,
mesmo que nem sempre o vejamos
e quase sempre o esqueçamos. Um
país onde há gente que continua
a esgadanhar para viver e um país
onde a incúria e a ganância matam.
Para variar, o editorial de hoje do Público, da autoria de David Pontes, cruza a questão social com a sua declinação territorial: um país de múltiplas formas fracturado, em suma. Um país, não o esqueçamos.
Para variar, o editorial de hoje do Público, da autoria de David Pontes, cruza a questão social com a sua declinação territorial: um país de múltiplas formas fracturado, em suma. Um país, não o esqueçamos.
Pobreza
Conferência
"Para onde vai a Economia da Pobreza? Seguindo o legado de Leonor Vasconcelos Ferreira"
Co-organizada pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto e pela Associação Portuguesa de Economia Política.
Na próxima 5ª feira, dia 22 de Novembro, a partir das 14h30, na FEP.
Inscrições aqui.
terça-feira, 20 de novembro de 2018
Vitalino Canas versus Vieira da Silva
Há uns dias, num dos debates sobre a proposta de Orçamento de Estado para 2019, o ministro do Trabalho, José António Vieira da Silva - que fez declarações polémicas sobre a falta de perspectivas na melhoria das condições contratuais (já aqui abordadas) - teve uma declaração feliz sobre o trabalho temporário.
O caso referia-se à RTP, mas é extensível ao país. Disse ele:
Ora, o que é que se passa?
O caso referia-se à RTP, mas é extensível ao país. Disse ele:
Relativamente às situações de outsourcing, quando elas são falsas situações de contratação, devem ser avaliadas no âmbito do PREVPAP [Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública]. Aliás, uma das instituições que referiu – a RTP – antes do PREVPAP ter sido lançado já tinha sido alvo de uma acção da ACT que identificou um conjunto de situações ilegítimas e que eu tinha expectativa que fossem resolvidas no âmbito do PREVPAP. Está a ser difícil, mas estou convicto que se vai resolver. Haverá aqui algumas zonas de conflito, mas obviamente quando a contratação de uma empresa significa a colocação noutra de pessoal que está sob orientação, sob a direcção, tem um trabalho regular para essa segunda, essa pessoa é funcionário da segunda instituição e não da primeira. Sobre isso eu não tenho nenhuma dúvida e espero que é isso que vai acontecer.
Ora, o que é que se passa?
sábado, 17 de novembro de 2018
Aplaudir a tortura, o sangue e a morte
«Podem dar as voltas que quiserem, mas as touradas são a exibição pública da tortura de um animal, que é esfaqueado para enfraquecer e depois, no caso das touradas de morte (...) ser morto. (...) As histórias ridículas de como os defensores das touradas “amam os touros” (sic), de como prezam a valentia dos animais, de como o “touro bravo” enobrece os campos do Ribatejo, para depois ser trazido à arena de tortura e morte como se esse fosse o seu destino teleológico, a cultura machista da “coragem” perante os mais fracos (o touro é o mais fraco dentro da praça), devem pouco a pouco envelhecer no passado. É isso mesmo que chamamos civilização. O mundo em que vivemos é duro, desigual, injusto, violento. Quem saiba história sabe que não há maneira de o tornar limpinho, higiénico, pacífico, nem em séculos, quanto mais numa geração. Mas acabar com as touradas, com a tortura dos touros para satisfação sádica das massas, é um passo no bom sentido. Porque senão vivemos na pior das hipocrisias em que matar ou tratar mal um cão e um gato pode levar à prisão — e bem —, mas em que no meio de cidades e vilas de uma parte do país podemos aplaudir a tortura, o sangue e a morte.»
José Pacheco Pereira, Os que “amam” muito os touros e os torturam e matam
«Há um momento nas touradas em que o touro, muito ferido já pelas bandarilhas, o sangue a escorrer, cansado pelos cavalos e as capas, titubeia e parece ir desistir. Afasta-se para as tábuas. Cheira o céu. Vêm os homens e incitam-no. A multidão agita-se e delira com o sangue. O touro sabe que vai morrer. Só os imbecis podem pensar que os animais não sabem. Os empregados dos matadouros, profissionais da sensibilidade embaciada, conhecem o momento em que os animais "cheiram" a morte iminente. Por desespero, coragem ou raiva (não é o mesmo?), o touro arremete pela última vez. Em Espanha morre. Aqui, neste país de maricas, é levado lá para fora para, como é que se diz? ah sim: ser abatido. A multidão retira-se humanamente, portuguesmente, de barriga cheia de cultura portuguesa, na tradição milenar à qual nenhuma piedade chegou. (...) Que será preciso para acabar com a tradição da tourada? Que sobressalto do coração será necessário para despertar em nós a piedade pelos animais?»
Paulo Varela Gomes, Morrer como um touro
quinta-feira, 15 de novembro de 2018
O incompreensível corte salarial da função pública
A atual solução governativa assenta num entendimento político cujo núcleo central é a devolução de rendimentos aos trabalhadores e pensionistas, tanto por uma questão de dignidade e de justiça social como enquanto meio para a recuperação económica. É isso mesmo que tem vindo a ser feito ao longo desta legislatura, de formas tão diversas e acertadas quanto os aumentos do salário mínimo, as atualizações das pensões, a introdução de novas prestações sociais, a eliminação da sobretaxa, o descongelamento das carreiras ou as alterações aos escalões do IRS.
Tendo em conta todas estas medidas e os resultados claramente positivos que produziram, percebe-se mal que o governo se prepare agora para, no último ano da legislatura, cortar os salários de boa parte dos funcionários públicos. O que está em causa para 2019 não é um corte nominal nos salários da função pública, claro está, mas um corte em termos reais resultante da inflação prevista de cerca de 1,5%. No próximo ano, quem não tiver um aumento nominal de pelo menos 1,5% verá o seu poder de compra reduzido de forma bem real. De acordo com a proposta de Orçamento do Estado, deverá ser o caso de boa parte dos funcionários públicos, para os quais esta nova perda acrescerá aos cerca de 20% de perda do salário real acumulados em média desde a viragem do século.
Depois de em todos os anos desta legislatura o governo ter reposto salários da função pública através da eliminação dos cortes e outras medidas, no próximo ano podem regressar os retrocessos caso o governo mantenha a intenção de dedicar a este fim apenas 50 milhões de euros, que independentemente da forma como possam vir a ser distribuídos estão longe de chegar para compensar a deterioração do poder de compra decorrente da inflação. E ainda menos se perceberá que assim seja se, como sugeriu recentemente o economista Ricardo Cabral, isso se dever ao excesso de zelo do ministro das finanças no cumprimento de absurdas regras orçamentais europeias relativas à evolução da despesa nominal.
O governo deve explicar claramente aos portugueses porque é que, num contexto de crescimento económico, pretende voltar a cortar em termos reais os salários dos funcionários públicos. E, de preferência, deve reconsiderar esta intenção, garantindo no mínimo a preservação do rendimento real de todos através do recurso à dotação provisional para este fim. Por um questão de justiça, de motivação e de consistência com a linha de atuação do próprio governo.
quarta-feira, 14 de novembro de 2018
O papel histórico da negociação coletiva
No próximo dia 22 de Novembro, o Conselho Económico e Social e a OIT-Portugal promovem uma conferência sobre o papel histórico da negociação coletiva, no âmbito da comemoração do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A conferência decorrerá no auditório António de Almeida Santos, no edifício novo da Assembleia da República.
Esta sessão assume-se como um importante momento de reflexão em torno da negociação coletiva, um dos principais eixos dos direitos laborais. A sua valorização e consolidação é essencial para um mercado de trabalho mais justo e digno.
A entrada é gratuita, mas sujeita a inscrição.
terça-feira, 13 de novembro de 2018
A direita não diria melhor
Ontem no debate do Orçamento de Estado, o ministro Vieira da Silva deu uma resposta que ficaria bem na boca de qualquer ministro da direita. Foi em resposta ao PCP. A deputada Rita Rato iniciou as questões ao Governo afirmando que não há trabalho digno sem emprego com direitos. E o ministro lembrou-se de responder isto:
Mais: o que parece estar subjacente é que, de certa forma, a legislação laboral protectora - e equilibradora da relação laboral desigual - é prejudicial. Se se complicar muito a legislação, "com toda a elegância legística e toda qualidade ética", as empresas não criam emprego, porque essa rigidez da legislação laboral afectará o investimento ou, de outra forma, manterá o desemprego...
Quase pareceu ouvi-lo dizer: "Senhora deputada, são as empresas que criam emprego". Um dito até já afirmado por Mário Centeno que, para lá da redundância evidente, resume um programa político muito aventado pelo CDS no Parlamento: uma menor carga fiscal sobre as empresas, uma menor interferência nas relações laborais, nenhuma palavra sobre a repartição do rendimento nacional entre o trabalho e o capital. Porque é preferível que sejam as empresas a gerir o valor acrescentado da produção, do que os malfadados trabalhadores que só consomem...
A frase é tanto mais estranha quando Vieira da Silva é dos ministros mais bem preparados e até já o ouvimos criticar a direita por ter estas mesmas opiniões. Durante a maioria PSD/CDS, da bancada socialista, Vieira da Silva desancou na direita forte e feio, sobre o desequilíbrio que se estava a criar na relação laboral. E ainda no governo, quando a direita se manifesta fora do aceitável, o ministro esmaga-a literalmente.
Portanto, a que se deve esta intempérie?
"Eu estou de acordo consigo relativamente à questão que abriu a intervenção sobre a qualidade do emprego e trabalho digno. (fez uma pausa) Senhora deputada, não há trabalho digno sem emprego." (nova pausa. Ouvem-se risos das bancadas da direita parlamentar). Essa relação... concordarei consigo: trabalho sem direitos não é (imperceptível) trabalho. Mas concordará comigo que direitos sem emprego não é nada. A nossa principal preocupação e a nossa principal orientação política tem de ser dar todas as condições para que a sociedade dê resposta ao direito mais básico, a um dos direitos mais básicos dos cidadãos que é o direito ao trabalho. E ao trabalho com direitos, naturalmente. Mas sem criar as condições para que a sociedade crie emprego, gere emprego... podemos desenhar a legislação mais perfeita, com toda a elegância legística e toda qualidade ética, mas se não conseguirmos que a economia crie emprego... Depois podemos ter leituras diferentes como é que a economia cria emprego... Seja como for, é preciso que as condições económicas e sociais sejam favoráveis à criação de emprego. E essa é a nossa primeira batalha para a recuperação do país, do ponto de vista económico e do ponto de vista social. Dificilmente concretizaremos a ambição que temos de melhorar as condições de trabalho e generalizar o conceito de trabalho digno à sociedade portuguesa se não tivermos como primeira prioridade a criação de emprego."Resumindo: o ministro parece concordar que o trabalho que está a ser criado não é trabalho digno, com direitos, mas é o emprego que é possível. Perpassa a ideia de que a função do Estado não é intervir directamente na relação laboral, mas apenas criar as condições de enquadramento macroeconómico - entre as quais uma legislação laboral amiga do investimento - que levem à criação de emprego. Porque, quando for possível, as empresas se encarregarão disso, ou nessa altura, o Estado falará.
Mais: o que parece estar subjacente é que, de certa forma, a legislação laboral protectora - e equilibradora da relação laboral desigual - é prejudicial. Se se complicar muito a legislação, "com toda a elegância legística e toda qualidade ética", as empresas não criam emprego, porque essa rigidez da legislação laboral afectará o investimento ou, de outra forma, manterá o desemprego...
Quase pareceu ouvi-lo dizer: "Senhora deputada, são as empresas que criam emprego". Um dito até já afirmado por Mário Centeno que, para lá da redundância evidente, resume um programa político muito aventado pelo CDS no Parlamento: uma menor carga fiscal sobre as empresas, uma menor interferência nas relações laborais, nenhuma palavra sobre a repartição do rendimento nacional entre o trabalho e o capital. Porque é preferível que sejam as empresas a gerir o valor acrescentado da produção, do que os malfadados trabalhadores que só consomem...
A frase é tanto mais estranha quando Vieira da Silva é dos ministros mais bem preparados e até já o ouvimos criticar a direita por ter estas mesmas opiniões. Durante a maioria PSD/CDS, da bancada socialista, Vieira da Silva desancou na direita forte e feio, sobre o desequilíbrio que se estava a criar na relação laboral. E ainda no governo, quando a direita se manifesta fora do aceitável, o ministro esmaga-a literalmente.
Portanto, a que se deve esta intempérie?
domingo, 11 de novembro de 2018
A realidade não é suave
No Público garantem que o Bloco suavizou discurso anti-Europa. Perante tal rigor ideológico, eu pergunto: será que o BE é contra uma mera expressão geográfica? Na realidade, é de União Europeia que falamos e logo do efeito da ideologia europeísta. No Público, salvo excepções, nunca tivemos direito a mais nesta área.
Por cá, o europeísmo está também ao serviço de uma narrativa: o BE está em vias de se transformar numa espécie de verdes alemães, o sonho de uma certa elite nacional dita progressista e que se imagina no centro do império. Acontece que estamos na periferia europeia e por essa razão bem material tal tipo de cooptação pode ser mais difícil. E já nem falo da cultura política socialista existente no BE, bem como da existência de outra força, o PCP, que é igualmente parte da alternativa (aliás não é por acaso que a defesa de uma regressão ideológica no BE está fortemente articulada com o discurso anti-comunista).
Na realidade, a moção da maioria parece confirmar a necessária viragem soberanista do BE - “só a recuperação de esferas fundamentais da soberania permite responder às crises” -, oriunda da convenção de 2105, em plena ressaca do golpe financeiro perpetrado pela UE na Grécia. Isto nota-se, por exemplo, no saudável distanciamento em relação ao Syriza e na constatação, na prática política, do fim dessa farsa inventada pela Comissão Europeia que são os partidos europeus.
Embora, devido às regras, as moções do BE sejam excessivamente curtas, não permitindo o desenvolvimento das hipóteses políticas formuladas, creio que esta passagem da moção da maioria é relevante e ajuda a contrariar uma narrativa que diz mais sobre a ideologia dos seus proponentes do que, e esta é a aposta de quem está de fora, sobre este partido:
“Com a capitulação dos seus defensores institucionais, desapareceram as propostas de uma reforma progressista da União Europeia. Só é possível uma política alternativa à austeridade e ao neoliberalismo na rutura com os tratados, o que implica um confronto com o diretório europeu. O balanço da chantagem europeia contra a Grécia é claro: se não dispuser de uma alternativa soberana fora do euro, um governo de esquerda, mesmo com apoio social maioritário, perde o espaço negocial e cede perante o ultimato.”
sábado, 10 de novembro de 2018
Fogo na RTP
A decisão anunciada pela administração da RTP, de sancionar a nova direcção de informação (DI) da televisão pública, foi uma decisão incompetente. Por várias razões.
Primeira. A formação desta DI culmina um período de omissões e confusões em que a administração esteve envolvida. No meio de um processo de substituição do então director Paulo Dentinho, a administração acabou, afinal, por reconduzir o mesmo Paulo Dentinho e provocar a saída da RTP de um dos candidatos (ver a parte final deste artigo no Público). Dentinho chefiou então uma direcção escolhida por si, visivelmente desastrada, que se aguentou apenas uns meses, até Dentinho colocar o lugar à disposição.
E o que fez a administração da RTP para sair deste imbróglio que criou?
Segunda razão. Decidiu - sabe-se lá por que razão - convidar uma jornalista - Flor Pedroso - que pertence ao grupo público, tem os seus créditos e respeitos firmados na Rádio, mas que pouco sabe de televisão. Ninguém coloca em causa a capacidade de se aprender fazendo, mas seria preferível que um cargo da importância do ocupado não o fosse por alguém em regime experimental.
Terceira razão. Não se conhece as condições dadas pela administração da RTP a Flor Pedroso para formar a sua equipa, mas o certo é que a convidada teve carta branca para escolher pessoas da sua confiança pessoal, independentemente das suas qualificações para o cargo, e mesmo fora da RTP.
Foi o caso de Helena Garrido que, igualmente, é uma jornalista com créditos e respeitos firmados na Imprensa, mas que pouco sabe de televisão. Helena Garrido tem outra particularidade: não é uma pessoa que defenda a existência de uma televisão pública. Economista formada na Universidade Nova de Lisboa, sempre defendeu teses liberais. Enquanto directora adjunta do Jornal de Negócios, coerentemente sancionou a intervenção da troica, as políticas que fragilizaram o Estado, e até formulou opiniões contrárias à existência de uma televisão pública. Em Agosto de 2012, Helena Garrido criticou a hesitação do governo em não privatizar a RTP, defendendo que o serviço público deveria ser então concessionado aos operadors privados (TVI e SIC):
Primeira. A formação desta DI culmina um período de omissões e confusões em que a administração esteve envolvida. No meio de um processo de substituição do então director Paulo Dentinho, a administração acabou, afinal, por reconduzir o mesmo Paulo Dentinho e provocar a saída da RTP de um dos candidatos (ver a parte final deste artigo no Público). Dentinho chefiou então uma direcção escolhida por si, visivelmente desastrada, que se aguentou apenas uns meses, até Dentinho colocar o lugar à disposição.
E o que fez a administração da RTP para sair deste imbróglio que criou?
Segunda razão. Decidiu - sabe-se lá por que razão - convidar uma jornalista - Flor Pedroso - que pertence ao grupo público, tem os seus créditos e respeitos firmados na Rádio, mas que pouco sabe de televisão. Ninguém coloca em causa a capacidade de se aprender fazendo, mas seria preferível que um cargo da importância do ocupado não o fosse por alguém em regime experimental.
Terceira razão. Não se conhece as condições dadas pela administração da RTP a Flor Pedroso para formar a sua equipa, mas o certo é que a convidada teve carta branca para escolher pessoas da sua confiança pessoal, independentemente das suas qualificações para o cargo, e mesmo fora da RTP.
Foi o caso de Helena Garrido que, igualmente, é uma jornalista com créditos e respeitos firmados na Imprensa, mas que pouco sabe de televisão. Helena Garrido tem outra particularidade: não é uma pessoa que defenda a existência de uma televisão pública. Economista formada na Universidade Nova de Lisboa, sempre defendeu teses liberais. Enquanto directora adjunta do Jornal de Negócios, coerentemente sancionou a intervenção da troica, as políticas que fragilizaram o Estado, e até formulou opiniões contrárias à existência de uma televisão pública. Em Agosto de 2012, Helena Garrido criticou a hesitação do governo em não privatizar a RTP, defendendo que o serviço público deveria ser então concessionado aos operadors privados (TVI e SIC):
"E se se quer concessionar, não fará mais sentido lançar um concurso para o provisionamento de serviço público de televisão ao qual pudessem concorrer todos os canais? O problema com o serviço público de televisão não está no que gastou no passado. Está naquilo que gastará no futuro e nos efeitos que o serviço público de televisão terá no exercício da nossa liberdade." (Jornal de Negócios, 27/8/2012)
sexta-feira, 9 de novembro de 2018
Democracia é com povo
[O] alvo da crítica de «eleitoralismo» somos nós. É o cidadão comum, que tem expectativas e que luta por uma vida melhor, e não apenas o governo ou as forças que o sustentam. Mil vezes repetida na comunicação social, a imputação de «eleitoralismo» serve o propósito de baixar expectativas, de as erradicar se possível e, se não for, de preparar o terreno para voltar a apregoar-se que vivemos acima das nossas possibilidades, que quisemos o que não tínhamos direito de querer, e que por isso seremos castigados com mais crises e mais políticas de austeridade. Quando se dá por isso, a austeridade torna-se permanente, torna-se um estado natural: umas vezes sofrida na pele, com cortes reais; outras na mente, com sonhos cortados pelo medo e pela culpa. Torna-se uma autocensura.
Sandra Monteiro, «Eleitoralismo» e democracia sem povo, Le monde diplomatique - edição portuguesa,
“Na edição de Novembro assinalamos o 20.º aniversário do Referendo sobre a Regionalização com uma reflexão de José Reis sobre o caminho percorrido e o que pode ser feito para «recuperar o país inteiro». Em mês de discussão do Orçamento do Estado para 2019, Maria da Paz Campos Lima analisa os atribulados caminhos de um instrumento fundamental: a negociação colectiva. As rupturas que estão a ser introduzidas no sector dos transportes e da mobilidade são o tema do artigo de Sérgio Manso Pinheiro, enquanto Marcelo Moriconi nos traz o mundo mercadorizado da manipulação dos resultados desportivos.
No internacional, destaque para o Brasil após as eleições vencidas por Jair Bolsonaro («Será o Brasil fascista?»), para uma análise do impasse em que se encontra a Venezuela e para as negociações do novo acordo comercial entre os Estados Unidos, o México e o Canadá, identificando problemas mas também avanços. As relações entre a União Europeia e o governo italiano, os mitos sobre as migrações africanas para norte e a face anti-social de Putin são outros dos destaques desta edição.”
O passado é um país distante?
«A kristallnacht faz hoje 80 anos, o que significa que ainda há gente viva que assistiu ao estilhaçar anunciado da humanidade. Não é só pelos nossos filhos, amigos e mais-que-tudo que devemos mostrar os dentes ao fascismo. É também pela indecência de obrigar os sobreviventes a verem tudo outra vez.»
Pedro Vieira (facebook)
quinta-feira, 8 de novembro de 2018
O perigo
Enquanto o presidente Bolsonaro promete eternas juras à Constituição, o seu filho propõe um diploma que combata a ideia do Comunismo.
A sua ideia não é combater as organizações comunistas, fragilizadas, mas aproveitar o anticomunismo enraizado para combater todas as organizações sociais que ponham em causa a opinião dominante, tidas na sua ideia como comunistas. Em Portugal, tivémos um vislumbre pesado dessa ditadura em que o conceito comunismo abarcava toda a oposição e os valores do anticomunismo foram erguidos durante 48 anos de empobrecimento político, social e económico e de desigualdades sociais.
Mas as novas (velhas) experiências também acontecem deste lado do oceano. A par de uma homenagem do socialista Macron ao marechal colaboracionista dos nazis Pétain (perigosa mesmo que seja para cativar a base social da Frente Nacional) e depois de sucessivas iniciativas da Comissão Europeia, o Senado francês acaba de rejeitar mais um diploma relacionado com as falsas notícias, que apareceu sem qualquer debate sério e tido por políticos e jornalistas como mais perigoso que eficaz.
O seu texto permitiria...
..."a pedido do Ministério Público, de todo o candidato, de todo o partido ou agrupamento político ou de toda a pessoa tendo interesse em agir", "fazer cessar" a difusão das "alegações ou imputações inexactas ou enganosas de um facto de natureza a alterar a sinceridade do escrutínio futuro" e de "difundidas de maneira deliberada, artificial ou automática e massiva através de um serviço de comunicação ao público em linha". Ver aqui (é possível que o seu conteúdo esteja impedido a não assinantes).
Aqui, o fenómeno de alargamento da frente de combate não é feito em nome do anticomunismo. Mas em prol da defesa da democracia e da transparência de informação, quando na verdade tudo pode servir para conseguir o seu contrário, ou seja, minar os opositores que tragam informações incómodas. Aliás, nada de novo.
Convém sublinhar que a guerra fria não foi nada disso - fria. Muito pelo contrário. Tratou-se de um período da Historia mundial que está longe de poder ser caracterizado pelas histórias dos filmes a preto e branco, baseados em romances de espionagem. Foram verdadeiros combates sem luvas brancas.
A sua ideia não é combater as organizações comunistas, fragilizadas, mas aproveitar o anticomunismo enraizado para combater todas as organizações sociais que ponham em causa a opinião dominante, tidas na sua ideia como comunistas. Em Portugal, tivémos um vislumbre pesado dessa ditadura em que o conceito comunismo abarcava toda a oposição e os valores do anticomunismo foram erguidos durante 48 anos de empobrecimento político, social e económico e de desigualdades sociais.
Mas as novas (velhas) experiências também acontecem deste lado do oceano. A par de uma homenagem do socialista Macron ao marechal colaboracionista dos nazis Pétain (perigosa mesmo que seja para cativar a base social da Frente Nacional) e depois de sucessivas iniciativas da Comissão Europeia, o Senado francês acaba de rejeitar mais um diploma relacionado com as falsas notícias, que apareceu sem qualquer debate sério e tido por políticos e jornalistas como mais perigoso que eficaz.
O seu texto permitiria...
..."a pedido do Ministério Público, de todo o candidato, de todo o partido ou agrupamento político ou de toda a pessoa tendo interesse em agir", "fazer cessar" a difusão das "alegações ou imputações inexactas ou enganosas de um facto de natureza a alterar a sinceridade do escrutínio futuro" e de "difundidas de maneira deliberada, artificial ou automática e massiva através de um serviço de comunicação ao público em linha". Ver aqui (é possível que o seu conteúdo esteja impedido a não assinantes).
Aqui, o fenómeno de alargamento da frente de combate não é feito em nome do anticomunismo. Mas em prol da defesa da democracia e da transparência de informação, quando na verdade tudo pode servir para conseguir o seu contrário, ou seja, minar os opositores que tragam informações incómodas. Aliás, nada de novo.
Convém sublinhar que a guerra fria não foi nada disso - fria. Muito pelo contrário. Tratou-se de um período da Historia mundial que está longe de poder ser caracterizado pelas histórias dos filmes a preto e branco, baseados em romances de espionagem. Foram verdadeiros combates sem luvas brancas.
quarta-feira, 7 de novembro de 2018
Antifascismo militante
No seu primoroso blogue A Terceira Noite, Rui Bebiano apela à “organização de um antifascismo militante”, capaz de fazer face à “extrema-direita mundial” em ascensão. Sem esquecer a solidariedade internacional possível e a atenção aos fenómenos internacionais de contágio, a escala nacional é hoje a mais importante para acção política, partindo de análises concretas das variadas situações nacionais concretas, incluindo das forças sociais em presença e suas bases materiais. Neste sentido, partindo da situação portuguesa, reafirmo: não importemos problemas, embora, dado o caso Bolsonaro, talvez tenha sobrestimado o grau de compromisso democrático de certa direita portuguesa dita liberal. É realmente preciso estar sempre vigilante. Sobre o fascismo, termo que realmente não deve ser vulgarizado, repito algumas notas a pensar sobretudo neste lado do Atlântico:
1. É necessário adaptar para estes tempos sombrios a famosa fórmula de Max Horkheimer sobre a relação entre capitalismo e fascismo: aqueles que não querem falar criticamente de neoliberalismo, da forma dominante de economia política hoje em dia, e que até querem defender as instituições supranacionais que garantem a sua perpetuação em parte do continente europeu, devem ficar calados sobre tendências fascizantes de novo tipo que lhe são endógenas.
2. A lógica da frente popular, do antifascismo mais consequente, nunca deve ser esquecida. Assim, vale a pena ler ou reler o discurso de Georgi Dimitrov sobre a estratégia das frentes populares, definida, em 1935, pela Terceira Internacional. Para lá da crítica ao sectarismo e da defesa de uma unidade política consequente, uma das apostas passou por não deixar a inevitável imaginação nacional entregue às direitas: “O internacionalismo proletário deve aclimatar-se, por assim dizer, a cada passo e deitar profundas raízes no solo natal. Ao revoltar-se contra toda a vassalagem e contra toda a opressão é o único defensor da liberdade nacional e da independência do povo”.
3. No seu extraordinário livro A Democracia – História de uma Ideologia, Luciano Canfora assinala precisamente como o antifascismo passou de um programa negativo, de resistência, para um programa positivo, de reforma na estrutura, sobretudo a seguir a 1945. Destacando justamente Palmiro Togliatti, outro dos grandes estrategas do antifascismo, Canfora localiza nesses anos de esperança o maior avanço do ideal democrático, consubstanciado constitucionalmente na república democrática, baseada no trabalho e na remoção dos obstáculos socioeconómicos no caminho de uma igualdade substancial, ou seja, de uma democracia avançada. Por cá, teríamos ainda quase três décadas de luta antifascista, rumo à revolução democrática e nacional.
4. Hoje não há internacional e desapareceu um dos freios e contrapesos que tinha contribuído para a institucionalização de formas menos polarizadoras e agressivas de capitalismo. Mas, de novo, só podem defender consequentemente os valores universais da solidariedade, que ganham densidade em estados soberanos, as forças democráticas enraizadas no solo nacional e que não aderiram à lógica supostamente leve dos fluxos e de um cosmopolitismo que mascara tantas vezes o imperialismo.
5. As sociedades mais igualitárias, seguras na sua identidade, são internacionalmente mais cooperativas, sabemo-lo há muito. E nós também sabemos bem como são hoje poderosas as forças que apostaram em destruir Estados no bloco afro-asiático e em esvaziá-los na Europa do sul. A história é repetição e novidade. Uma das boas novidades é que vivemos num mundo muito mais multipolar. A outra é que dispomos, aqui e ali, de constituições nacionais onde ainda sobrevivem algumas das marcas do antifascismo; constituições que de resto o capital financeiro e as suas instituições de suporte europeias ainda consideram um empecilho, lembrem-se.
terça-feira, 6 de novembro de 2018
Leituras
«O problema do Brasil não nasceu com esta eleição. O que aconteceu nos últimos anos no Brasil, principalmente o processo de impugnação da Dilma - que nunca foi acusada de um acto particular de corrupção - por um Congresso corrupto até aos limites, já mostra que há uma degenerescência muito considerável nos poderes democráticos. (...) O atual presidente do Brasil tem escutas telefónicas em que ele praticamente manda matar... Há coisas que deveriam suscitar uma intervenção das autoridades judiciais, mas não o fazem. Começaram a transformar-se, como sucedeu aliás em Itália - e isso é muito perigoso para as democracias - num mecanismo político. O número de políticos do PT que tem os seus mandatos cassados, por exemplo, é muito inferior ao dos outros partidos. Não digo com isto que o PT não tenha enormes responsabilidades pela corrupção. Só que isto não é uma coisa a preto e branco.»
Pacheco Pereira (Quadratura do Círculo)
«Tendo dado a vitória do candidato da extrema-direita por garantida, cada um se posicionou, não em função da votação do dia de hoje, mas do que poderá vir depois. A pretexto da negociação de um eventual apoio crítico a Haddad, quase todos aproveitaram para redobrar as críticas ao PT, seguros de que o PT não podia revidar, pelo menos não naquele momento. O espectáculo chegou a ser indecoroso. Foi como se cada agente político replicasse num curto intervalo o mesmo comportamento que seguiu nestes horríveis quatro anos. Como perante o Lava-Jato, cada um tentou salvar a própria pele e infligir o maior dano possível ao seu rival político, e de caminho obteve um resultado inteiramente destrutivo para o conjunto, abrindo as portas a Bolsonaro.»
Ivan Nunes, Uma campanha em surdina
«Limpeza, faxina, marginais, bandidos, petralhada, cachaceiro, lombo, apodrecer na cadeia – o vocabulário de Jair Bolsonaro espelha de modo transparente suas intenções e sua personalidade. Ele fala a língua da tortura, a língua do extermínio, a língua da porrada. Exagero se disser que a palavra “lombo” nos remete aos suplícios contra os negros na época da escravidão? (...) Dizer com todas as letras que ele representa um retrocesso intolerável não significa condescender com os erros e os crimes praticados pelo PT. Para que isso ocorra é preciso desviar um pouco os olhos dos manuais e observar a realidade a fim de ter mais clareza do que está em jogo. De preferência antes que a bestialidade em gestação se transforme no nosso novo normal, como aliás não cansa de repetir a imprensa estrangeira, estupefata com o que estamos conseguindo fazer de nós mesmos.»
Fernando de Barros e Silva, A era da bestialidade
«Neste sábado soubemos que a declarada abstinência do juiz terminou e que ele aceitou integrar o Governo do recém-eleito Jair Bolsonaro para liderar o Ministério da Justiça e da Segurança Pública. E, assim, o que ontem era erotismo hoje é pornografia. (...) Há muito que se sugeria que a relação entre a condução do processo judicial Lava-Jato e o momento político tinha pouco de inocente. Afinal, foi Sérgio Moro que mandou prender o candidato que seguia à frente nas sondagens, Lula da Silva, o que facilitou, e muito, a vitória da extrema-direita. O mesmo juiz que interrompeu férias para evitar a libertação de Lula, o mesmo que, na última semana da primeira volta das eleições, decidiu libertar as declarações da delação premiada do ex-ministro petista Antonio Palocci, que claramente afectavam a candidatura de Fernando Haddad.»
David Pontes, Erotismo, pornografia e Sérgio Moro
segunda-feira, 5 de novembro de 2018
Veblen em português
Thorstein Veblen (1857-1929) é justamente considerado o fundador da pensamento institucionalista na Economia. A Teoria da Classe do Lazer – Um Estudo Económico das Instituições (1899) foi o seu primeiro livro (...) Contra a imagem difundida segundo a qual Veblen foi sobretudo um crítico social mordaz das classes abastadas, um sociólogo satírico dos costumes americanos da viragem do século, importa afirmar que este seu livro corresponde, antes de mais, a um enorme esforço intelectual centrado na explicação da origem e evolução das instituições do capitalismo.
Excertos da (in)formativa introdução – “Veblen e a Economia Política Institucionalista” (pp. 9-47) – que Jorge Bateira escreveu para a edição portuguesa acabada de sair. Se fosse tradutor, teria preferido classe ociosa como tradução para leisure class. Seja como for, trata-se de um importante acontecimento editorial no campo da economia política crítica. É que já se sabe: não há nada mais prático do que uma boa teoria.
Excertos da (in)formativa introdução – “Veblen e a Economia Política Institucionalista” (pp. 9-47) – que Jorge Bateira escreveu para a edição portuguesa acabada de sair. Se fosse tradutor, teria preferido classe ociosa como tradução para leisure class. Seja como for, trata-se de um importante acontecimento editorial no campo da economia política crítica. É que já se sabe: não há nada mais prático do que uma boa teoria.
sábado, 3 de novembro de 2018
Expedientes liberais
Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até ao momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história. Porém, embora sua política tenha propiciado salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encará-lo como algo mais seria um erro fatal.
Não sei porquê, mas nos últimos tempos tenho-me lembrado desta passagem do livro Liberalismo, da autoria de Ludwig von Mises (1881-1973), um dos mais destacados economistas políticos liberais do seu tempo. Publicado em 1927, ilustra bem como todos os expedientes valem, numa certa tradição liberal internacional, para que se imponha a versão mais intransigente dos direitos de propriedade privada, em face de movimentos vistos como ameaçadores, até porque portadores de outros direitos mais abrangentes.
Saltando quase um século, é possível afirmar que a direita portuguesa até é bastante liberal na sua atracção pelos expedientes autoritários favoráveis aos negócios, ao contrário do que afirma António Araújo. Realmente, Bolsonaro e seus apoiantes não enganam no campo que mais conta, em última instância, e que é o da economia política.
O que engana é a ficção, alimentada por uma certa esquerda e direita, de uma tradição liberal limpa de todo o variado trabalho sujo, intelectual e político, requerido ao longo da sua história: do elitismo abertamente anti-democrático ao tratamento penal da questão social, passando pelo imperialismo, colonial ou não, ou pelos expedientes autoritários, sem esquecer as mais recentes instituições supranacionais europeias, esvaziadoras dos Estados democráticos e sociais de base nacional.
É por denunciar esta ficção que a contra-história do liberalismo, a história de alguns dos seus mecanismos de exclusão, da autoria do saudoso Domenico Losurdo, deve ser traduzida.
Não sei porquê, mas nos últimos tempos tenho-me lembrado desta passagem do livro Liberalismo, da autoria de Ludwig von Mises (1881-1973), um dos mais destacados economistas políticos liberais do seu tempo. Publicado em 1927, ilustra bem como todos os expedientes valem, numa certa tradição liberal internacional, para que se imponha a versão mais intransigente dos direitos de propriedade privada, em face de movimentos vistos como ameaçadores, até porque portadores de outros direitos mais abrangentes.
Saltando quase um século, é possível afirmar que a direita portuguesa até é bastante liberal na sua atracção pelos expedientes autoritários favoráveis aos negócios, ao contrário do que afirma António Araújo. Realmente, Bolsonaro e seus apoiantes não enganam no campo que mais conta, em última instância, e que é o da economia política.
O que engana é a ficção, alimentada por uma certa esquerda e direita, de uma tradição liberal limpa de todo o variado trabalho sujo, intelectual e político, requerido ao longo da sua história: do elitismo abertamente anti-democrático ao tratamento penal da questão social, passando pelo imperialismo, colonial ou não, ou pelos expedientes autoritários, sem esquecer as mais recentes instituições supranacionais europeias, esvaziadoras dos Estados democráticos e sociais de base nacional.
É por denunciar esta ficção que a contra-história do liberalismo, a história de alguns dos seus mecanismos de exclusão, da autoria do saudoso Domenico Losurdo, deve ser traduzida.
sexta-feira, 2 de novembro de 2018
Abram os olhos
O núcleo de estudantes do curso onde ensinei, nos anos que concluíram a minha carreira docente, convidou para um debate André Ventura, um homem desqualificado.
André Ventura tem um discurso que estigmatiza os ciganos, qualifica de "parasita" uma deputada muito activa no trabalho parlamentar, defende a pena de morte, defende a castração química dos pedófilos, etc. Uma vista de olhos ao seu perfil, e aos apoios que recolhe, permite ver que se trata de um nojo.
Pergunto, o que terá levado esse núcleo de estudantes a convidar pessoa tão indigna, tão rasca, para um debate na sua escola/universidade?
Arrisco uma resposta: já o vêm como o nosso 'bolsonaro' em ascensão e, também, porque alguns até se identificam com o seu estilo truculento de neo-fascista, à maneira de Trump e da besta que foi eleita no Brasil. A maior parte dos alunos não tem espessura cultural e política para perceber o significado profundo das alarvidades do discurso neo-fascista e, aliás, muitos têm uma sensibilidade que está ao nível das praxes grotescas que por lá se praticam. O curso que frequentam não altera isto, infelizmente.
O meu ponto é este: o nojo precisa de palco, precisa de respeitabilidade nesta etapa inicial do seu projecto e a Faculdade de Economia da UC, ao fechar os olhos a este convite, colaborou por omissão. E ele já agradeceu.
Não me digam que receavam a acusação de censura, após o convite estar feito. Com que então, em nome da liberdade, a democracia deve respeitar e legitimar os que querem matar a liberdade? Acham mesmo que o neo-fascismo se combate através do debate racional com gente desta?
Em meu entender, o neo-fascismo não se combate com argumentos. Combate-se com o desprezo dos protagonistas e com políticas económicas que criem emprego, mobilidade social e redução da desigualdade. É preciso secar o mal-estar social, o terreno fértil onde medra a frustração receptiva a gente carismática que promete limpar o país de parasitas: ciganos, deputados e também (em devido tempo)... professores "comunistas". Abram os olhos.