quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Há lodo fora do cais de Setúbal

"Vinhas da Ira", de John Ford
Em homenagem à luta dos estivadores que, esta manhã, estiveram no porto de Setúbal a impedir que trabalhadores vindos de fora carregassem os carros da firma Autoeuropa para um navio fantasma e, assim, furassem a sua greve por condições dignas de trabalho, contra a precariedade e por um contrato colectivo. 

Nesta luta, o Governo socialista esteve - até agora - mal.

O ministro da Economia Pedro Siza Vieira esteve mais preocupado que o sistema portuário nacional respondesse “às necessidades das empresas” - vulgo Autoeuropa - e manteve-se “em contacto com a empresa [Autoeuropa] no sentido de assegurar que as necessidades de escoamento da produção continuam a ser satisfeitas”. Esse era o problema que o Governo mais sentia!

Sobre as mais do que precárias condições de trabalho dos estivadores, a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, começou por dizer que não havia razão para a paralisação e depois - face à cobertura mediática - foi forçada a emendar a mão. Mas em vez de exercer o seu poder de Estado e pedir a intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho (no fundo, trata-se de uma questão eminentemente laboral saber se aquelas condições são legais), achou por bem intervir redundantemente. Pediu ao Instituto da Mobilidade e Transportes e Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS) para que se entendam na contratação colectiva e pressionou os trabalhadores a acabar com a greve e a negociar. Algo que não tem funcionado muito bem e daí a greve. Ao mesmo tempo, o seu marido e ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, esvaziava o poder negocial da greve dos estivadores, ao colocar o corpo de intervenção da PSP a repor a "ordem pública" - ainda que com bons modos... -, deixando o autocarro com os fura-greves entrar no cais, para lucro da Autoeuropa e da Operestiva.

Imagens como estas são clássicas em muitos filmes. Podemos vê-las no filme de John Ford (1940), baseado na obra de John Steinbeck (1939), quando uma família fugida da grande depressão é conduzida a um campo de fruta por apanhar e vê-se envolvida num conflito, com guardas de varapaus e espingardas, a protegê-los dos outros trabalhadores em luta. Ou nos filmes que retratam a luta dos mineiros no Reino Unido nos anos 80. Em todos eles, as forças da ordem alinharam com a liberdade de contratação, e nunca para pugnar pela dignidade no trabalho.

Era impensável ver o mesmo quase um século depois e, ainda por cima, pela mão de políticos socialistas. Como se pode dizer que Marx está morto, na gaveta?

Aliás, não foi por acaso que, ouvido pela Antena 1, o representante da firma contratadora dos estivadores, Diogo Marecos (ver "11h00 estivadores de substituição ficam até tudo estar normalizado"), se mostrou satisfeito com a actuação da PSP, que repôs "a normalidade da situação", porque se tratava de um caso de... "emergência nacional" (sic!). Os carros da Autoeuropa não podiam esperar mais!

Vergonha.

[Actualização às 14h27: Citando de um post de Bruno Carvalho no Facebook: "O António Mariano, presidente do SEAL - Sindicato dos Estivadores e da Actividade Logística, contou-me que recebeu a informação de que os fura-greves vão ganhar cerca de 500 euros pelo trabalho de embarcar os automóveis da Autoeuropa. É um bom princípio para a mesa de negociações. Se a empresa pode pagar 500 euros por um ou dois dias de trabalho, isso significa que os estivadores em luta podem negociar, para além da integração permanente, salários que rondem esse valor por dia?"]

22 comentários:

  1. "pela mão de políticos socialistas. "

    Mas quando é que acabam com esta palhaçada de chamar socialista ao PS ?

    Até a esquerda se presta a essa burla ?

    ResponderEliminar
  2. Sem dúvida. Incrível como se volta a ter que falar todos os dias no trabalho à jorna em pleno século XXI.

    ResponderEliminar
  3. Quais são as condições de trabalho dos estivadores de países desenvolvidos e de 1º mundo como a Dinamarca, Suécia, etc?

    Esta questão deve-se ao facto de ouvir e ler tipo "o trabalho é precário e mal pago devido à sua natureza", nós estamos em Portugal e bem sabemos a qualidade duvidosa dos gestores sempre lestos a responsabilizar o trabalhador "preguiçoso" "cheio de direitos e mordomias", seria interessante comparar os estivadores portugueses a estivadores de países avançados ajudando assim a clarificar a situação dos estivadores portugueses.

    ResponderEliminar
  4. Com o governo de Passos Coelho era ainda muito pior, por isso houve aquela manifestação na AR. Ainda não chegámos a tanto.

    ResponderEliminar
  5. Fez bem em comparar, através do título do texto, a situação dos estivadores de Setúbal à descrita no filme "Há lodo no cais", no qual é mostrado o cenário de miséria a que conduzia o trabalho de estiva à jorna num porto dos EUA (Nova Iorque?).
    O que não deve ser esquecido é que o filme é de 1954 e não é minimamente tolerável que uma situação destas ocorra, impunemente, em Portugal, 68 anos depois. Isto é uma vergonha pura e simples.
    Voltamos a ter a Polícia de Choque a proteger fura-greves, embora agora já não agridam fisicamente os grevistas - com tanta cobertura mediática, daria muito nas vistas e levaria, eventualmente, à perda de votos no actual governo. Tudo isto trás más memórias.
    Parece-me que seria excelente por os ministros Siza Vieira e Cabrita a trabalhar à jorna durante alguns anos. Talvez assim entendessem o que vai na cabeça dos estivadores de Setúbal.

    ResponderEliminar
  6. A PSP a ser utilizada para tirar força a quem vive numa situação de inegável precariedade, a legalidade desta intervenção devia ser averiguada, e os trabalhadores que carregaram os carros a ganhar dinheiro à custa dos mais elementares direitos dos outros.

    ResponderEliminar
  7. No seguimento da filosofia do " menos mau",

    que por sistema justifica a cumplicidade activa com o poder instalado,

    surpreende a lata dos responsáveis,

    na incompreensível diferença de atitude quando se fala de precários no Estado.

    Pelos vistos, precários no privado...estarão num outro planeta!

    ResponderEliminar
  8. A integração permanente quer dizer o quê?
    São pagos haja ou não trabalho?
    Fecha a barra do porto e ainda assim são pagos?
    São sempre chamados os mesmos havendo trabalho?

    Usam-se as palavras como se fosse a maior das justas causas, mas fica por explicar a cena completa.

    ResponderEliminar
  9. Mas se furar greves é priobido (pela conversa só pode ser), porque raio a policia protege sempre os fura greves?

    ResponderEliminar
  10. Caro José,
    Acho que até para si a situação é demasiado excessiva. Só o facto de colocar as questões que coloca revela uma certa fragilidade da própria situação, do ponto de vista patronal.

    Em todas as actividades há momentos de altos e baixos de actividade. E não é por isso que o patronato acha que deve deixar de pagar quando há essas baixos de actividade. Aliás, o patronato conseguiu algo assim (mas de forma inversa), com a criação de banco de horas grupais: se houver excesso de actividade não se paga mais por isso, porque se pode reduzir quando não houver.

    Suscitar essa hipótse é transformar um assalariado num pisca-pisca por conta própria, coisa que o Direito nem reconhece. Mas é isso que existe no cais de Setúbal.

    ResponderEliminar
  11. José,

    As leis laborais em Portugal respondem a essas dúvidas todas. Porque é só isso que está em causa no porto de Setubal. Onde os precários representam cerca de 90% da força laboral do porto. Alguns deles com décadas de serviço. Aliás por alguma coisa o porto parou completamente com a greve. O que nunca acontecia dentro do estrito cumprimento da lei. Mais, a empresa em causa quando concorreu para operar no Porto de Setúbal conhecia muito bem o regime jurídico dos portos portugueses. Licença essa que pode ser cassada, revogada ou anulada a partir do momento em que o numero de trabalhadores efectivos não é o mais adequado. Outra coisa que o regime jurídico garante sempre é exactamente a sustentabilidade económica-financeira das empresas de trabalho portuário. Por isso não vale a pena estar muito preocupado com a empresa em questão. Tivesse o governo vontade de fazer cumprir a lei e nunca tínhamos chegado a esta situação.

    ResponderEliminar
  12. No fim do dia - além claro da forte convicção que os eventuais podem ter perdido uma batalha mas acabarão por ganhar a guerra, inclusive por pressão da Autoeuropa a quem interessa sobretudo o bom funcionamento do porto - interessa sobretudo aferir da legalidade de trabalhadores exteriores ao porto de Setúbal terem acabado por carregar os carros. Perguntas, que já foram feitas ao governo e muito bem pela bancada parlamentar do Bloco.

    ResponderEliminar
  13. Vitor

    O facto de 'Alguns deles com décadas de serviço' não define a natureza do serviço. Se não há segurança quanto ao regular volume de serviço no porto não pode haver segurança no trabalho.
    É o serviço que condiciona o trabalho, não é por haver trabalho que há serviço.

    ResponderEliminar
  14. Caro João

    Pode - indesejávelmente - haver 'momentos de altos e baixos de actividade'. Mas haverá limites que condicionam o salário ou o tempo de trabalho.
    Que o risco seja todo do lado do patrão não é seguramente aceitável. O 'pisca-pisca' é que define se o patrão vai investir e criar emprego ou se fica quieto.

    O padrão do emprego de Estado, a ideologia da vitimização do trabalhador, a ideia de que o Direito constrói a realidade, tudo são figuras de retórica que nada alteram a realidade dos factos e a viabilidade das relações de trabalho.

    ResponderEliminar
  15. Quanto à Auto-Europa, o dilema é simples: onde pode operar com segurança e rentabilidade?
    É dever dos seus gestores determinar essas condições e seguramente o farão.

    ResponderEliminar
  16. A Direita fazendo greve... é assim...

    Ninguém está sindicalizado, nenhum sindicato decretou a greve, a qual deve ter sido convocada pelas (tristemente) célebres Redes Sociais.

    Os homens estão cheios de razão porém, a forma como estão querendo ganhar direitos é tão desastrosa que nem dá para acreditar! Querem talvez criar o Contrato Coletivo dos Trabalhadores de Empresas de Trabalho Temporário com Clientes na Atividade Portuária... CCTETTCAP.

    ResponderEliminar
  17. José,

    Curioso como escrevo que os eventuais representam cerca de 90% da força laboral do porto, alguns deles com décadas de serviço e o José contradiz que o tempo não define a natureza do serviço?! E os 90%? Tal como já disse nada ilustra melhor a situação de ilegalidade da empresa quando só os eventuais conseguem parar o porto. Já que um dos requisitos fundamentais da licença é precisamente a capacidade técnica para assegurar o bom funcionamento do porto. Algo que o IMT e a APSS já deviam ter denunciado há muito tempo. De resto só não compreende a ilegalidade ímpar que se vive no porto de Setúbal - até em relação aos restantes portos portugueses - quem não quer. E ironia das ironias só a condição precária dos grevistas permitiu a entrada de externos no porto. Já que o que a lei diz é que se fossem trabalhadores efectivos a empresa nunca poderia ter furado a greve. Contra gente sem direitos vale tudo. Como a própria definição.

    ResponderEliminar
  18. Vitor,

    Nada sei sobre os níveis de actividade no Porto de Setúbal.
    Os 90% não impressionam; haveria de saber-se dos níveis de trabalho que lá é executado.

    Quanto aos estivadores posso lembrar-me de quanto do dinheiro dos contribuintes foi necessário para tornar Leixões e Lisboa minimamente concorrenciais com portos espanhóis a milhas de distância.
    E não tenho dúvidas de que é saque que os sindicatos estão disponíveis para promover e do que não se faria grande alarido, por força da doutrina dos coitadinhos. Leixões foi uma desbunda obscena!!!

    ResponderEliminar
  19. E se fossemos lá falar com essa gente?
    Talvez a eles fosse indiefrente, mas acho que a muitos de nós faria muito bem.

    ResponderEliminar
  20. José,

    Mas há estudos sobre a actividade do porto e o que dizem é que a maior parte dos precários chega a fazer dois turnos por dia durante todo o ano. As últimas palavras da ministra às autoridades portuárias não foram por acaso:

    "É desejável que sejam introduzidas alterações na estrutura das relações de trabalho existentes no Porto de Setúbal, entre os empregadores portuários e os trabalhadores que constituem o contingente de mão-de-obra, que contemple a redução da precariedade... Nesse sentido, considero desejável a redução do número de trabalhadores precários atualmente existentes nas empresas que operam no Porto de Setúbal, o que só será possível com recurso à negociação e ao fim de todas as situações que impliquem a paragem da atividade, seja no período normal de trabalho ou no recurso ao trabalho suplementar".

    ResponderEliminar
  21. Vitor,

    Li que os operadores estão disponíveis para aumentar os quadros; não para acabar com os precários.


    Obviamente a negociação nesses termos não dá cobertura à sanha de 'dar fim aos precários' que é bandeira da esquerdalhada.

    ResponderEliminar
  22. A questão aqui é se o Estado está disponível para anter os "operadores" caso eles continuem a manter a sua atividade baseada em precários.
    Caso os operadores mantenham esse modus operandi, talvez faça sentido substituir os atuais operadores por outros que efetivamente garantam que os trabalho se faz com base numa política de recursos humanos sustentável e não cm base na precariedade.

    ResponderEliminar