sábado, 31 de março de 2018

Organograma

Sanitários públicos em Alcochete
Modelo de desenvolvimento nacional, assente cada vez mais na produção de serviços financeiros, de imobiliário, de comércio, alojamento, restauração e hotelaria; na captação de administradores de multinacionais (a quem se dá elevadas condições de bem-estar, nomeadamente fiscais); e na exportação de cuidados a estrangeiros (vulgo turismo) e de mão-de-obra qualificada, formada a preço de ouro nas universidade nacionais e recambiada para o centro da Europa.
Há quem diga que, invertida, a imagem ilustra também as origens das aristocracias nacionais, antes da acumulação primitiva de capital.

sexta-feira, 30 de março de 2018

Jantar comemorativo: «Em abril esperanças mil»

«Um encontro de cidadãs e cidadãos que participam na construção da sociedade presente para conseguir uma sociedade futura mais democrática, mais justa, mais equitativa e mais sustentável. Que recusam baixar os braços quando “os tiranos fazem planos para mil anos», num ambiente internacional de aumento da desigualdade e de erosão da paz, da democracia e das relações laborais. E que sabem que em Portugal é preciso continuar a mobilização cidadã, o diálogo crítico e a convergência à esquerda, para que a atual solução política de governação seja ponto de partida para alternativas duradouras e sustentáveis ao austeritarismo neoliberal. Não queremos andar para trás. Precisamos proteger e desenvolver conquistas e direitos maiores do processo democrático iniciado com a Revolução de Abril, como é o Serviço Nacional de Saúde, tema deste nosso encontro. Queremos um SNS universal, público e de qualidade. Precisamos parar com a sua degradação e com o aumento da desigualdade de acesso aos cuidados de saúde que a sua privatização promove. E assumir que o SNS tem de ser pago com os nossos impostos. Para que haja mais vida além do défice. São pois bem-vindos os que vierem por bem. E tragam mais amigos também.»

A 15ª edição de um encontro que se mantém vivo e que é dedicado este ano ao Serviço Nacional de Saúde, contando com uma mensagem de António Arnaut e João Semedo, intervenções de João Almeida, Maria Augusta Sousa e Sofia Crisóstomo e um momento musical a cargo de Manuel Freire e Vítor Sarmento. É no próximo dia 20 de abril, sexta-feira, a partir das 19h30, na Cantina Velha da Cidade Universitária, em Lisboa, podendo as inscrições ser feitas aqui ou aqui.

quinta-feira, 29 de março de 2018

E se experimentássemos pensar em «rankings» diferentes?

Percebe-se que a iniciativa «Escola Amiga das Crianças», proposta pelo psicólogo Eduardo Sá e promovida pela CONFAP, pretende em certa medida superar as limitações dos rankings convencionais, construídos a partir da ordenação dos resultados dos exames.

De facto, esta nova abordagem considera aspetos menos relacionados com os processos de ensino e resultados escolares, preferindo avaliar os estabelecimentos de ensino a partir da qualidade das suas «infraestruturas» (espaços de recreio, por exemplo), da «alimentação» ou dos «projetos educativos», atribuindo um «selo de qualidade» às escolas públicas ou privadas melhor posicionadas na ordenação construída a partir desses fatores. Ou seja, trata-se de uma avaliação mais centrada na ambiência das escolas e em fatores de bem-estar dos alunos.

Deve contudo sublinhar-se que este projeto (no qual se inscreveram cerca de 800 escolas), continua a apostar - tal como os rankings convencionais - numa lógica de concorrência («ciúme saudável», nas palavras do seu mentor) que é alheia ao papel das escolas em termos de inclusão e igualdade de oportunidades, desvalorizando igualmente a importância dos contextos e, até, as genealogias e (des)vantagens de partida dos diferentes estabelecimentos de ensino. Ou seja, bem intencionada e procurando ir além das ordenações a partir dos níveis de aproveitamento escolar, a iniciativa «Escola Amiga das Crianças» continua a não responder a uma avaliação que valorize efetivamente aspetos essenciais da missão socioeducativa das escolas.

Admitindo que pudesse não ser assim, era de facto interessante que esta iniciativa incluísse, entre outros aspetos: a recolha de dados sobre o perfil socioeconómico dos alunos, permitindo identificar (e penalizar) as escolas que selecionam as crianças e jovens que as frequentam (e teríamos então, finalmente, elementos sobre as privadas nesta matéria); a obtenção de informação sobre constituição de turmas, afetação de docentes e distribuição de horários, permitindo aferir, nestes processos, a aplicação efetiva de princípios de equidade, heterogeneidade e igualdade de oportunidades; a recolha de dados relativos ao acompanhamento individualizado de alunos com maiores dificuldades de aprendizagem; ou, ainda, elementos relativos à avaliação do progresso dos alunos face à sua situação de partida. Centrando-se neste tipo de dimensões, a iniciativa «Escola Amiga das Crianças» bem poderia, nesse caso, defender a «concorrência» entre escolas e destacar, meritoriamente, as boas práticas e os melhores exemplos.

quarta-feira, 28 de março de 2018

Tratado assassino

Tal como Cecília Meireles do CDS tem dificuldades em criticar a estratégia orçamental do Governo, - porque ela assenta na mesma base da austeridade aplicada pelo PSD/CDS, assim a opinião à direita revela o contorcionismo necessário para a criticar sem se auto-inflingir.

Helena Garrido na sua crónica de hoje na Antena 1 tentou dissociar os efeitos da política de austeridade - fruto da contenção da despesa pública, após cumprir os acordos à esquerda - dos efeitos que essa contenção provoca no desempenho do Estado e nos serviços públicos. Se há mais greves do que em 2016, se o Serviço Nacional de Saúde está em pé de guerra, isso deve-se, não à acumulação dos efeitos da aplicação do Tratado Orçamental que Helena Garrido sempre defendeu - não se lembram da sempre recorrente fábula da formiguinha e da cigarra? - mas ao facto de o PCP e a CGTP estarem a partir para a guerra com o PS. Basta o PCP carregar no botão vermelho e o mundo explode...

No observador, acumulam-se também as opiniões a aproveitar-se do mau que se passa no país. Tese: Se a austeridade aplicada por Centeno tem maus resultados nos serviços públicos isso é a prova de que não há milagres: se há aumentos salariais, não é possível ter investimento público. Ou um ou outro. E ninguém se questiona sobre os ditos benefícios do Tratado Orçamental... que foi feito para ser aplicado independentemente de quem está no Governo.

Aliás, Centeno prepara-se para vender precisamente esta tese.

terça-feira, 27 de março de 2018

A irresistível atração pelo populismo


Não é só o simplismo nada inocente da mensagem (sobretudo a associação entre «financiamento dos partidos» e «CDS votou contra»), numa discussão bem mais complexa (que envolve, pelo menos, a gestão do processo legislativo, o regime do IVA e o limite de donativos). É também a lata de um partido que, nesta matéria, tem para contar o episódio inenarrável dos depósitos nos seus cofres, em apenas cinco dias, de um milhão de euros, «para evitar que os alarmes anti-corrupção disparassem». Nada de especialmente novo, porém, se considerarmos a propensão para deitar mão a tudo o que possa render votos (como sucede na perseguição demagógica aos beneficiários do RSI ou em relação a discursos abertamente anti-imigração, sobretudo nos anos noventa).

segunda-feira, 26 de março de 2018

Mário Meireles

Foi penoso ouvir hoje a deputada do CDS Cecília Meireles comentar os números mais recentes das contas do Estado de 2017. Penoso porque, visivelmente, o resultado foi tão bom que as palavras lhe custavam a sair. Duplamente penoso porque, face ao exercício de 2015 (maioritariamente gerido pela direita), a deputada disse então algo parecido com o que disse hoje o ministro das Finanças de um governo de esquerda, apoiado pela esquerda no Parlamento. Como se um espírito malífico tivesse descido à terra e encarnado certos políticos.

Senão veja-se as imagens em baixo:


Como pode estar certa esquerda e certa direita de acordo? Bem sei que o céu é azul independentemente das ideias de cada um. Mas a forma de o descrever não tem necessariamente de ser igual. E na verdade, as palavras que usam revela bem mais qualquer coisa, para além daquilo que pode ser o óbvio.

domingo, 25 de março de 2018

A origem dos nossos males: erros meus, má-fortuna ou corrupção?

Vários dirigentes políticos, a maioria dos comentadores mediáticos e até algumas pessoas que têm obrigação de saber o que dizem continuam a responder como sempre responderam à questão que está no título deste post. Para eles, Portugal entrou em crise na viragem do milénio porque alguns governantes se deixaram influenciar pelos poderosos deste país, adoptando políticas que os beneficiaram em prejuízo do resto das pessoas e da economia nacional.

Sejamos claros: tem havido em Portugal – como sempre houve e sempre haverá, neste país e em muitos outros – casos evidentes de captura do Estado por interesses particulares. Essas formas mais ou menos directas de corrupção causam dano na economia e são, em qualquer caso, eticamente inadmissíveis. São ameaças à democracia e como tal têm de ser combatidas.

Separemos, porém, a discussão. A questão não é se a corrupção existe. O que está aqui em causa é saber se os privilégios especificamente concedidos a alguns sectores e grupos na sociedade portuguesa explicam a crise que teve início no início do século. A minha resposta é negativa.

Vale a pena termos presente nesta discussão que o aspecto distintivo da crise nacional é a acumulação de uma enorme dívida externa, que teve início em meados da década de noventa. Note-se que não estamos a falar de dívida pública: na verdade, a dívida do Estado em percentagem do PIB esteve em queda até 2000 e depois disso subiu de forma ligeira até à grande crise internacional. A crise da economia portuguesa traduz-se, primordialmente, no crescimento acentuado da dívida privada, especialmente das empresas. Foi o aumento da dívida privada que levou a dívida externa portuguesa para valores próximos do PIB na viragem do século, quando era quase inexistente poucos anos antes.

De acordo com a tese da captura do Estado por interesses particulares, a origem da crise portuguesa está no facto de vários governos terem privilegiado certos grupos económicos, protegendo-os da concorrência e dando-lhe condições especiais para acumulação de lucros através da regulação dos sectores em que actuam. Teria sido assim que se tornaram poderosos as empresas e os grupos dos sectores da banca e seguros, da construção, da distribuição, da energia ou das telecomunicações. De acordo com esta tese, estes grupos tornaram-se dominantes porque tinham proximidade ao poder político, o qual os protegeu da concorrência interna e externa, e os alimentou financeiramente através de contratos públicos chorudos. Vivendo à sombra do Estado, e da regulação que este faz dentro das fronteiras nacionais, os grandes grupos económicos portugueses ter-se-iam sobreespecializado em actividades dirigidas ao mercado interno, menosprezando a disputa de mercados internacionais e a concorrência externa.

Em economês diz-se que a economia portuguesa se sobreespecializou em sectores “não-transaccionáveis” (ou seja, naquelas actividades que não estão sujeitas à concorrência internacional), em prejuízo dos sectores exportadores. E isto é um problema, na medida em que os não-transaccionáveis não permitem obter rendimentos a partir do exterior, mas dão origem a salários e lucros que serão usados em consumo e investimento, o que por sua vez se traduz em mais importações. Além disso, quando empresas daqueles sectores investem têm de pedir dinheiro emprestado, o qual de uma forma ou de outra vem do estrangeiro (agravando assim a dívida externa).

Por outras palavras, foi o predomínio dos sectores não-transaccionáveis que conduziu a que houvesse mais saída do que entrada de dinheiro no país, levando à explosão da dívida externa portuguesa. Até aqui estamos de acordo. A questão é saber o que conduziu ao peso excessivo dos sectores não-transaccionáveis.

Segundo a tese da captura do Estado por interesses particulares como origem da crise, foram os privilégios políticos atribuídos àqueles grupos económicos que explicam a orientação da produção nacional para o mercado interno. A tese é atractiva, sem dúvida. Mas, se analisarmos com atenção, há várias coisas que não batem certo.

Primeiro, o aumento do peso dos sectores não-transaccionáveis aconteceu em vários países da UE no mesmo período. Por exemplo, entre 2000 e 2007 o aumento do peso destes sectores no PIB em Portugal foi equivalente ao da França e inferior ao do Reino Unido, de Espanha e de Itália. Na verdade, nas vésperas da grande crise internacional, o peso dos sectores não-transaccionáveis em Portugal continuava abaixo destes e de vários outros países da UE. É difícil sustentar que todos estes países sofreram o mesmo processo de captura do Estado por interesses particulares, ao mesmo tempo, da mesma forma e com os mesmos efeitos.

Segundo, analisando com cuidado várias políticas públicas em Portugal nas últimas duas décadas, não é evidente que os sectores transaccionáveis tenham sido sistematicamente preteridos a favor dos não-transaccionáveis. Por exemplo, neste estudo mostrámos que vários tipos de políticas públicas (subsídios ao investimento, incentivos fiscais de natureza transversal, incentivos fiscais de natureza contratual, etc.) foram sistematicamente dirigidos para empresas da indústria transformadora ou actividades de serviços mais expostos à concorrência internacional (e não para os sectores e grupos económicos supostamente protegidos).

Terceiro, não haveria nenhuma razão óbvia para que os grupos de interesse que capturaram os decisores políticos portugueses estivessem todos ligados a sectores não-transaccionáveis. A história e os estudos comparados mostram-nos que sempre que os Estados quiseram (ou querem, ainda hoje) apoiar empresas nacionais expostas à concorrência internacional, arranjam forma de o fazer.

É um facto que a crise portuguesa surge associada a um aumento acentuado do peso dos sectores não-transaccionáveis. Mas para percebermos por que motivos os sectores menos expostos à concorrência internacional se tornaram mais lucrativos do que os restantes não precisamos de teorias da conspiração. Basta termos em conta três desenvolvimentos marcantes das últimas duas décadas e meia (que se conjugaram no tempo, em parte por um infeliz acaso):

• a liberalização financeira (particularmente acentuada em Portugal pelo processo profundo e acelerado de privatizações após 1989),
• a liberalização comercial (no caso português são particularmente relevantes os acordos comerciais da UE com a China, cujos produtos competem directamente com os nacionais) e
• a adesão ao euro (que no caso português acentuou os efeitos da liberalização financeira e da liberalização comercial, ao facilitar a entrada de capitais no país e ao tornar as exportações portuguesas mais caras – e as importações mais baratas).

Estes factores (desenvolvidos aqui) são suficientes para explicar o crescimento dos sectores não-transaccionáveis em Portugal (e noutros países): por um lado, a abundância de crédito levou ao crescimento do mercado interno, favorecendo os lucros de empresas que vendem cá dentro e impulsionando as importações; por outro lado, a liberalização financeira e a adesão a uma moeda forte penalizaram a lucratividade das empresas que vendem para fora (ao mesmo tempo que tornavam as importações mais acessíveis).

Em suma, não precisamos de falar em corrupção – que, repito, com certeza existiu – para explicar a crise da economia portuguesa desde a viragem do século.

Nada disto isenta os dirigentes políticos nacionais de responsabilidades. Em última análise, foram os governos que decidiram liberalizar a finança, precipitar a entrada no euro e viabilizar os acordos comerciais da UE com outros países. No entanto, os dirigentes políticos em causa não são exactamente os mesmos que estão na mente de quem apresenta as banais teorias da conspiração para a crise – nem a decisões relevantes são as mesmas.

É fácil perceber por que razão os comentadores da espuma dos dias insistem numa explicação que não cola com os dados disponíveis: dá menos trabalho e serve os propósitos que os movem. Compreender e conseguir explicar a um público alargado as origens complexas da crise portuguesa exige mais esforço do que simplesmente atribuir culpas a esta ou aquela pessoa. Em qualquer caso, o objectivo daqueles comentadores nunca é explicar seja o que for: é manipular a opinião pública para o lado que mais lhes convém no momento. O problema é que se acreditarmos em explicações simplistas nunca perceberemos verdadeiramente o que nos aconteceu. Nem perceberemos o que devemos fazer para evitar que volte a acontecer.

sábado, 24 de março de 2018

Impasse


Uma vista de olhos à página em inglês da revista Spiegel permite observar a grande precariedade da actual situação política na Alemanha e na UE.

De um lado, a ascensão da extrema-direita condiciona as relações entre a CDU e a CSU da Baviera. Este partido procura travar a perda de eleitorado para a AfD acentuando o discurso anti-islamismo. Merkel já respondeu em plenário, assumindo publicamente que discorda do seu ministro do interior, o líder do partido-irmão que integra a coligação. Há eleições em Outubro na Baviera e a CSU está sob pressão do seu concorrente à direita. O declínio dos sociais-democratas e a progressão da extrema-direita são a outra face do sucesso do modelo exportador na economia alemã. Enriquecimento do capital que lucra com as exportações e os paraísos fiscais (também dentro da Europa), um elevado nível de vida para os dirigentes e os quadros especializados e intermédios dessas empresas, enquanto os trabalhadores do fundo da hierarquia e toda a população que vive da procura interna tem os seus rendimentos estagnados, ou precisa de trabalhar em mais que um emprego, vive a insegurança da precariedade e deprime, ou acumula raiva, face à desigualdade gritante, à ausência de perspectivas saudáveis e à pobreza que alastra. A falta de futuro nos estados orientais da Alemanha garantiu uma fortíssima votação à AfD. A imigração é o bode expiatório de uma imensa frustração que atravessa o mundo do trabalho menos qualificado.

De outro lado, o Primeiro-Ministro da Holanda, Mark Rutte, faz mais um aviso ao eixo franco-alemão. Quaisquer que sejam as reformas da Zona Euro (ZE) que aí venham, não contem com mais dinheiro nem com avanços no caminho de uma UE supra-nacional; os Estados-nação são a base da UE. O que significa que as transferências de recursos entre o centro e a periferia da ZE - um amortecedor do mecanismo estrutural de sucção das periferias pelo centro - não podem ser concretizadas, por muito que os europeístas falem delas. Quando muito, alguma cosmética. A Itália, a Grécia, a Espanha e António Costa não podem contar com mais do que já recebem. E a austeridade (para além da que já está instituída), em contrapartida de um eventual resgate pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade, também está assegurada. Uma nova crise, acompanhada de mais compressão orçamental, afundará a exígua e deficiente recuperação que ocorreu com o apoio do BCE.

Portanto, em termos globais, o marasmo continuará até que o voto da raiva tome o poder. Tal e qual como na larga maioria dos países na Europa dos anos trinta. E, como bem sabemos, a raiva não produz coisa boa. Infelizmente, ainda há demasiada esquerda à espera de uma UE reformável por dentro e por unanimidade. Assim, é mesmo provável que seja a direita demagógica e violenta a tomar o poder. A memória histórica é mesmo muito precária.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Tradição, veteranos e democracia

Depois de em 2016 ter sido eliminada a «lide do novilho a pé e a cavalo», a Comissão Central da Queima das Fitas, em Coimbra, decidiu este ano, por unanimidade, «propor a abolição da garraiada como evento tradicional da festa». Perante a proposta, a Associação Académica de Coimbra e o Conselho de Veteranos (entidades que tutelam a organização da Queima) acordaram na realização de um referendo, a 13 de março. Os estudantes, que aparentemente não tiveram que «pensar muito, muito, muito, muito» no assunto, decidiram de forma esmagadora pela abolição da garraiada, com cerca de 70% dos votos a favor e 26% contra.

Sucede porém que o Conselho de Veteranos, em reunião ontem realizada, decidiu «manter a Garraiada Académica no programa oficial da "Queima 2018"», tendo 14 dos 27 membros votado nesse sentido e 11 contra (havendo ainda a registar 2 abstenções). Isto é, desprezando olimpicamente os resultados da consulta à comunidade estudantil que o próprio Conselho de Veteranos apoiou, apesar de ter dito aos alunos, numa nota publicada no facebook antes do referendo, «a tua opinião conta». Já a Direção-Geral da AAC, numa tomada de posição exemplar, assegurou que defenderá, até às últimas consequências, «a decisão democrática dos estudantes».

Podia o Conselho de Veteranos lamentar o resultado do referendo (sem deixar de o aceitar), invocando argumentos como a tradição ou os impactos, na indústria tauromáquica, resultantes da não realização da garraiada? Sim, podia, mas não era a mesma coisa (ou, como se diz em latim manhoso do google translator, «etiam, potestate poterat, autem non erat idem»).

quinta-feira, 22 de março de 2018

São eles que dizem


O europeísmo, que ainda domina uma certa social-democracia desta forma em franco declínio no continente, é uma máquina de fabricar ilusões políticas, de resto altamente complementar com a máquina europeia de fabricar liberalizações económicas com profundos impactos políticos.

Há quantos anos andam, sobretudo a partir do sul, com a história da mudança na Alemanha, da qual dependeria sempre tudo, incluindo a última hipótese de reformar o euro? Agora é que é: a repetição do mesmo, ou seja, a coligação das duas alas do partido exportador alemão, produzirá resultados diferentes.

Entretanto, reparem na fraude que foi a ideia de que o aprofundamento da integração equivaleria a uma partilha da soberania, incluindo no decisivo plano da política económica. Creio que são cada vez menos os que têm o topete de repetir tal ideia.

Enfim, o novo Ministro das Finanças alemão, oriundo do politicamente moribundo e ideologicamente colonizado SPD, já veio dizer ao que vem e de forma bastante clara: “um Ministro das Finanças alemão é um Ministro das Finanças alemão, a filiação partidária não tem qualquer papel”. 

Dica

INE: Estatísticas da Saúde
Conselho a todos os jornalistas: de cada vez que ouvirem alguém propor alguma medida que implique recursos orçamentais públicos, perguntem-lhe duas coisas:

1) se fez ou consultou algum estudo de impacto dessa proposta e, se não, como é capaz de a propor assim, sem mais nem menos;

2) (no caso de ser um político de direita ou do PS) como se compatibiliza essa proposta com a sua concordância com o Tratado Orçamental - e a consequente obrigação de redução da dívida pública para 60% do PIB num curto espaço de tempo, o que obriga à existência de saldos orçamentais positivos.

É que, da última vez que se tentou compatibilizar os objectivos contraditórios, nomeadamente no que toca aos enfermeiros - hoje e amanhã em greve - as coisas não correram bem.

Veja-se os dados apurados pelo INE. Dos 1463 enfermeiros que, de 2012 a 2015, saíram do Serviço Nacional de Saúde, apenas 394 foram incorporados no sector privado. Os mais de mil enfermeiros restantes deverão ter abandonado o país, depois de formados com os nossos recursos. E vamos ver se voltam. Sobre a evolução recente do emprego público, consultar os dados da Direcção Geral da Administração e do Emprego Público. De Dezembro de 2011 a Dezembro de 2015, o sector perdeu quase 3500 pessoas, mas daí e até junho de 2017 ganhou mais de oito mil. E ainda fazem falta.   

Mas esta lógica aritmética pode ser enganadora. A constante supressão de recursos acarreta efeitos cumulativos que se reflectem em desarticulação de equipas, de serviços, de valências, com efeitos a prazo bem mais gravosos. Os cortes no passado ainda se reflectem na actividade de hoje, mal recuperadas. E essa avaliação cumulativa geralmente escapa à análise de curto prazo dos políticos.

E também aos jornalistas, que aceitam como boa qualquer declaração de políticos. Mesmo que sejam asneiras. Talvez o debate político suba de nível. 

Hoje, no ISEG: «A crise vista pela Sociologia»


Primeira sessão do ciclo promovido pelo Colectivo Economia Plural e organizado pela Cultra e a Lisbon School of Economics & Management, hoje com João Carlos Graça. É a partir das 17h00, no Auditório 2 do Edifício da Rua do Quelhas (ISEG). Apareçam.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Marielle


«Quando Marielle decidiu se candidatar ao cargo de vereadora na cidade do Rio, não tive dúvidas: era dela meu voto. Conhecia a pessoa, acompanhava seu trabalho há anos. Sequer hesitei. Lembro do dia da apuração dos votos, amigos na Lapa, celular na mão, atualizando sistematicamente o aplicativo do TSE. Marielle bateu 5 mil, 6 mil, 10 mil, 15 mil votos. Era inacreditável. Foi a 46 mil votos. Uma votação histórica. Uma coisa raríssima: uma mulher negra, moradora de favela eleita vereadora no Rio. Me lembro que sua primeira medida foi propor um projeto para que as creches municipais atendessem também à noite. Ela sabia a hora que mães periféricas chegavam em casa. Pensei: “valeu meu voto”. Marielle se foi. Sabe quantas fotos de Marielles mortas eu vejo todos os dias? Dezenas, de todos os ângulos, compartilhadas pelas redes, imagens com legendas como “toda furada”. A banalidade do mal. Por causa do trabalho eu vejo corpos – ou pedaço de corpos – diariamente, nesse Rio de Janeiro ocupado, usado por gente como os políticos que decidiram intervir nele militarmente apenas como cavalo de batalha eleitoral. 38 anos. Minha idade. Marielle tinha muita vida pela frente. Vai fazer muita falta. Falta para família, amigos, para a política do Rio de Janeiro. Sigamos. Por Marielle»

Cecília Olliveira, Marielle Franco, minha vereadora, assassinada

«Não pretendo (...) fingir que sou brasileira e que sinto na pele o que é ter um país sequestrado, dividido e uma democracia em convalescença. Também não quero tentar sequer comparar-me a quem convive quotidianamente com a morte programada e com a violência direccionada que mata centenas de milhares de jovens negros e pobres em nome da luta contra o crime, que se traduz na legitimação de um genocídio que subtrai vidas negras a cada segundo. Mas, assim como hoje em toda a parte, junto a minha voz a todos e a todas que choram e gritam a morte de Marielle. Porque a Maré cheia de futuro e optimismo vazou para o mar/Rio vermelho do sangue dos meus irmãos e irmãs negras desse Brasil. E porque a luta dos negros e negras de todo o mundo é a mesma luta. (...) Porque os negros são os espelhos uns dos outros nos momentos de dor e consternação. Isto não é poesia, acreditem. E tudo isso faz com que eu precise, mesmo não querendo, de roubar essa dor aguda e profunda para me conectar com os meus do outro lado do Atlântico (...) A vereadora Marielle Franco foi executada juntamente com o motorista Anderson Pedro Gomes. Enfrentou a face oculta do poder com a desfaçatez de uma crente nas instituições democráticas. Sorriu e ironizou, dando lições aos detentores de armas de fogo e canetas de pólvora. Contra a violência policial, contra a militarização do Estado, própria das ditaduras e dos fascismos cinzentos que a História já conheceu»

Joacine Katar Moreira, Marielle Franco e a hegemonia do medo

«Negra, favelada, feminista, bissexual e esquerdista, Marielle representa tudo o que a direita brasileira mais odeia. Falava em nome dos invisíveis e denunciava as arbitrariedades daqueles que os esmagavam. Estava-lhe reservado o que o bruto poder do ódio e do privilégio usou para calar Chico Mendes ou fazer desaparecer os meninos da Candelária: quatro tiros na cabeça. (...) As mesmas forças que manipularam o sentimento de indignação com a corrupção para porem os seus corruptos no poder, que usaram a insegurança que a crise alimenta para, através do exército, impor a arbitrariedade como forma normal de agir, que através de uma crise política, social e moral que alimentam estão a capturar e a matar a democracia, ficaram muito chocadas com o aproveitamento político que a esquerda está a fazer desta execução política. Pelo contrário, espero que os que resistem ao regresso ao passado usem este assassinato para dar força à sua luta. Só isso respeita a memória de Marielle. Só isso a mantém lutadora depois da execução. Só isso dá sentido, se algum sentido pode haver, à sua morte. Só assim não terão conseguido calar a voz negra, favelada e feminista que tanto os incomodava»

Daniel Oliveira, Que a morte de Marielle vos atormente tanto como a sua vida

Frases actuais

"Felizes as nações que nos momentos cruciais da sua vida não são obrigadas a escolher e às quais a Providência com desvelado carinho dispõe os acontecimentos e suscita as pessoas de modo tão natural e a propósito que só uma solução é boa e essa a vêem com nitidez no íntimo da sua consciência todos os homens de boa vontade!"

António de Oliveira Salazar,
a 7 de Fevereiro de 1942, aos microfones da Emissora Nacional sobre o facto de não haver oposição à recandidatura de Óscar Carmona às eleições presidenciais (Discursos e Notas Polícicas, volume III, pag 309/318)


Não sei porquê lembrei-me antes da Grécia, em vários momentos da vida da Grécia, e de muitas coisas que se passam por esta Europa, e neste cantinho à beira-mar, sossegado, muito sossegado, face aos tristes destinos à vista.

terça-feira, 20 de março de 2018

Truques e golpes inconstitucionais

De cada vez o Parlamento discute alterações à legislação laboral ou que possam ferir interesses empresariais, os deputados à direita defendem invariavelmente que, antes, a comissão permanente da concertação social deve ser auscultada.

E mais: que o Parlamento deve adoptar legislativamente o que aí se julgar por bom.

O PS, por vezes, resiste a esta lógica de desparlamentarização (ou por outra, de corporativização do Parlamento), mas na prática acaba por seguir este argumento, porque - por razões diversas, nomeadamente comunitárias - não quer mexer muito na legislação laboral adoptada pela direita. E o diálogo social sempre representa... mais tempo. 

Foi isso que aconteceu, também, há dias no Parlamento com os projectos de lei para mudar a legislação laboral.  O Governo, depois de o PS ter chumbado com a direita as iniciativas à esquerda, anunciou que, a 23 deste mês, apresentaria um pacote de medidas laborais, que - presume-se - deverá depois baixar à concertação social.  

Esta atitude revela três coisas:
A primeira, que esta lógica representa uma transferência de assuntos relevantes para o país de um Parlamento democraticamente eleito por mais de 56% do eleitorado de 9,6 milhões de eleitores, para uma instância não eleita, que representa apenas uma pequena parte desse país. Existem menos de 400 mil empresas e, dessas, as associações patronais apenas representam uns 19% das empresas nacionais, mas sobretudo grandes empresas (16% das micro-empresas, mas metade das grandes empresas). Reveja-se o Livro Verde das Relações Laborais (página 310).  E, por acaso - claro está! - as forças mais à direita estão em maioria na concertação social. As confederações patronais tendem a alinhar estrategicamente com a CIP - Confederação Empresarial de Portugal, que marca o ritmo da posição patronal, e - dentre as confederação sindicais - a UGT tende a aceitar geralmente essa intervenção, mediante algumas concessões.

A segunda, que os deputados de direita até podem estar convencidos de que esse seguidismo do Parlamento é a melhor opção, porque - julgam eles - os empresários conhecem melhor os limites das empresas e, por isso, sabem o que é bom para o país. Mas ao fazê-lo estão a contribuir para uma lógica de corporativização do poder, que tem redundado numa governamentalização do diálogo social. Veja-se neste caderno do Observatório sobre Crises e Alternativas o capítulo dedicado às entorses desse diálogo.

A terceira, é que nada disto é novo. É mesmo muito velho. Releia-se Franco Nogueira, Marcello Caetano e o próprio Oliveira Salazar, para perceber como a Câmara Corporativa de então era gerida em prol do que fosse necessário. Forças hoje à direita herdam este tipo de pensamento com mais de 80 anos (!), sem se aperceber do que acabam por defender! Uma subtracção das duas funções, entregues sem luta, obedientemente, a outra câmara, a bem do que o Governo quer.  

1950
Perante o avanço da oposição antifascista, António de Oliveira Salazar considera que, para que "a Constituição e o regime durem", é necessário abrigar a ditadura de "golpes de Estado constitucionais", através do reforço da Câmara de domínio patronal, a Câmara Corporativa: "Ora, sendo assim e paralelamente a toda a outra acção, inclusivamente a que tenda a evitar o que uma vez chamei a possibilidade de golpes de Estado constitucionais, entendo se devem rever alguns preceitos relativos à Câmara Corporativa" (Discursos e Notas Políticas, volume IV pag 381/411).

domingo, 18 de março de 2018

Já temos o secretário-geral da ONU, o vencedor da Eurovisão e o presidente do Eurogrupo. Não chega?

De acordo com as projecções do Conselho de Finanças Públicas (CFP), dentro de cinco anos a despesa pública primária (isto é, excluindo juros) corresponderá a 38,2% do PIB em Portugal. Se já hoje aquilo que o Estado gasta em proporção da riqueza gerada é inferior à média da UE (44,5%), em 2022 estaremos ainda mais distantes. Por outras palavras, o esforço colectivo em serviços públicos e transferências sociais ficará ainda mais afastado do que é comum nas economias mais avançadas.

Isto para quê? Para cumprir as regras orçamentais da UE, claro está. O que suscita duas questões:

1) Esta retracção permanente do papel do Estado é suficiente para cumprir as regras em vigor?

2) A redução da despesa pública muito para lá do que é a prática corrente nos países mais desenvolvidos é mesmo necessária?

A resposta à primeira questão é negativa. Por muito grande que seja o esforço, as regras da zona euro, tal como existem, não serão integralmente cumpridas. É um facto que os consumos intermédios do Estado têm sido sujeitos a cativações, com impactos evidentes na deterioração dos serviços públicos. É um facto que o descongelamento de carreiras da função pública tem ficado muito aquém do que seria necessário para repor mais de uma década de estagnação nas progressões. É um facto que o investimento público continua a níveis historicamente reduzidos. É ainda um facto que o CFP assume que tudo isto irá continuar até 2022. Ainda assim, de acordo com as projecções, Portugal não conseguirá cumprir pelo menos um dos critérios de "bom comportamento orçamental" (no caso, a obrigação de reduzir o chamado saldo estrutural em 0,6% do PIB em cada ano).

E não é tudo. O relatório do CFP assume que o Estado português não será chamado a socorrer mais nenhum banco, e que não será necessário accionar as garantias que o Estado deu ao sistema financeiro na última década. Assume também que a economia internacional irá evoluir de forma moderadamente favorável (em variáveis como o valor do euro, o preço do petróleo ou o nível das taxas de juro). Ou seja, mesmo que as coisas corram moderadamente bem, só uma alteração das regras orçamentais europeias (ou a sua não aplicação) evitariam o reforço – e não apenas a continuação – do aperto orçamental.

Vamos então à segunda questão: será toda esta pressão orçamental necessária? Na verdade, nas circunstâncias actuais Portugal conseguiria reduzir a dívida pública em percentagem do PIB sem que para tal tivesse de prosseguir com a lógica de degradação dos serviços colectivos e de desqualificação da função pública. De acordo com as projecções do CFP, o crescimento do PIB nos próximos anos será suficiente para que o rácio da dívida pública se reduza, mesmo com saldos orçamentais primários aproximadamente nulos. Isto deveria ser suficiente para acalmar os especuladores internacionais quanto à seriedade da gestão das finanças públicas no país. Mas para a UE isto não chega. As regras impõem saldos orçamentais primários próximos de 4% do PIB, o que significa uma pressão permanente sobre as contas públicas – e uma divergência crescente do bem-estar social em Portugal face à média da UE.

Este é o modelo implícito nas regras que vigoram na zona euro: uma Europa cada vez mais assimétrica e um lugar subsidiário para países como o nosso. Somos muito mais úteis na UE como país sem grandes direitos do que como sociedade evoluída. Até quando aceitaremos isto convencidos que estamos no melhor dos mundos?

Habitue-se


“Custa-me a compreender que no século XXI ainda estejamos a discutir se o proteccionismo compensa, numa logica mercantilista, que pertence ao século XVII”, declarou esta semana ao Negócios o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.

Eu sei que custa, sobretudo quando se deixou persuadir por ficções neoliberais destinadas a elites de países condenados a ficar para trás, mas se olhar para a história da economia política contemporânea com cuidado verá que custa menos. Aliás, não é por acaso que os mais consequentes oponentes de Trump, os da ala social-democrata do Partido Democrata, como Elizabeth Warren e Bernie Sanders, têm sido aparentemente cautelosos neste contexto, já que defendem algum tipo de proteccionismo.

O proteccionismo faz parte, segundo o economista Ha-Joon Chang ou o historiador Paul Bairoch, da história secreta da construção de qualquer sistema industrial do mundo contemporâneo. É preciso neste contexto relembrar que a história da formação dos EUA como potência industrial até à Segunda Guerra Mundial e mesmo para lá dela é a história do proteccionismo, em linha com os argumentos do primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, Alexander Hamilton, e que incluíam questões de segurança, para lá do célebre argumento da protecção da indústria na infância.

Hoje em dia, e não por acaso, a China é um caso paradigmático de um país que se insere estrategicamente na globalização, escolhendo os fluxos a que se abre e os fluxos a que se fecha, as formas como o faz e os seus tempos. Trata-se de um exemplo em grande escala da lógica do Estado desenvolvimentista, mobilizando intensamente instrumentos de política com efeitos proteccionistas, da política de crédito e subsídios às condições que fixa ao IDE, passando pela política cambial e por um uso selectivo de tarifas. Ainda recentemente, a The Economist assinalava um plano chinês para 2025 e que passa pela criação deliberada de líderes em vários sectores industriais, com recurso a instrumentos de protecção.

É então preciso superar uma falsa dicotomia, que oporia comércio livre a autarcia económica. A realidade é sempre mais complexa. Até porque, como argumentou Friedrich List, o sempre selectivo comércio livre (as patentes o que são?) é tantas vezes o proteccionismo dos mais fortes, ou seja, o proteccionismo dos países que dispõem de empresas capazes de competir nos mercados internacionais. O Reino Unido, por exemplo, só deixou de ser proteccionista na segunda metade do século XIX, quando já tinha toda a força industrial.

Em geral, diria que nos dias de hoje temos mesmo de restringir as regras do comércio e investimento internacionais e alargar as boas e flexíveis práticas de protecção socioeconómica. A proposta de economistas convencionais como Dani Rodrik são sensatas: os países subdesenvolvidos devem poder copiar as práticas de protecção industrial selectiva dos países bem sucedidos; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus standards laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas. Isto para não falar do perigo económico e político da desindustrialização. Trata-se de reconhecer a necessidade de vermos surgirem modelos de desenvolvimento menos extrovertidos e menos desiguais. Desglobalizar é preciso.

Esperança



«Recusamos-nos a aprender com medo. Recusamos que as nossas escolas se transformem em prisões. Não aceitamos menos que um efetivo controlo da venda de armas. E se é isso que é necessário, envergonharemos os nossos decisores políticos, obrigando-os a proteger-nos. Não só nas escolas, mas também nas igrejas, nos cinemas, nas ruas e nas comunidades de cor, que são desproporcionadamente devastadas pela doentia violência das armas.
Os legisladores que são incapazes de garantir a nossa segurança - e que encontram em todo o lado soluções para resolver o problema das armas, menos nas próprias armas - serão cúmplices por cada nova morte que venha a ocorrer. Os políticos que se sentam no Congresso, que estão a trabalhar aqui atrás de nós, terão que decidir pela vida. Para nós esta não é uma questão de tomar partido. A diferença entre a vida e a morte não é uma questão de cosmética. Isto é sobre armas, isto é sobre o nosso valor moral como país. Quando a solução do nosso chefe supremo para o nosso problema com as armas é mais armas, sabemos que existe um problema moral na Casa Branca. Quando os nossos legisladores dão mais valor ao dinheiro da NRA que à vida das crianças, sabemos que temos um problema moral nas salas do nosso Congresso. E quando é inevitável que tudo se repita; quando nas próximas semanas e nos próximos meses mais colegas meus forem abatidos nas suas próprias salas de aula; quando as suas mortes forem encaradas como danos colaterais, nós sabemos que existe um problema moral no nosso país. Deixemos portanto que uma coisa fique muito clara: o direito que têm de possuir uma arma não supera o nosso direito a viver. Os adultos falharam para connosco. E por isso está tudo nas nossas mãos. E se algum eleito se atravessar no nosso caminho, votaremos para que seja derrotado e ocuparemos o seu lugar. Já basta, já basta.»

sábado, 17 de março de 2018

Da ilusória vontade de maior entendimento entre o PSD e o PS

De acordo com uma sondagem do Expresso, «60% dos portugueses querem mais acordos entre PSD e PS, a começar pela Saúde». Os restantes 40% dividem-se, segundo o estudo, entre os inquiridos que consideram «suficientes» os entendimentos em matéria de descentralização e fundos comunitários (12,0%) e os que têm dúvidas, não sabem ou não respondem (que representam 28,6% do total).

Lendo o título, fica-se com a ideia que os tais 60% que querem mais acordos entre o PS e o PSD, pretendem igualmente que esses acordos e entendimentos comecem pelo setor da saúde. Lendo a notícia, contudo, verifica-se que não é bem assim.

A infografia aqui ao lado, que o Expresso utilizou para ilustrar a notícia, é esclarecedora. Tomando os cerca de 60% (59,4%), favoráveis a mais entendimentos, como universo de partida (ou seja, 100%), conclui-se que: 41,3% dos inquiridos gostariam que houvesse um acordo na Saúde; 18% um acordo na Justiça; 17% um acordo na Segurança Social e, por fim, 12% um acordo na educação. Por sua vez, os inquiridos que gostariam que houvesse entendimentos noutras áreas, ou que têm dúvidas, representam cerca de 13%.

Recorde-se porém que estes valores percentuais dizem respeito a um sub-universo da sondagem. Ou seja, dão conta de como se distribuem - por áreas de governação - os inquiridos que gostariam que socialistas e social-democratas se entendessem num conjunto mais alargado de áreas. Por outras palavras, no universo total de inquiridos (que inclui também os que acham «suficientes» os acordos entre os dois partidos na descentralização e na gestão dos fundos comunitários, ou que «não têm opinião, não sabem ou não respondem», o seu peso relativo torna-se bem menor.


O que se pode dizer, em termos globais, é portanto que apenas 25% dos portugueses (e não 41%) gostavam que PS e PSD chegassem a acordo nas políticas de saúde; 11% (e não 18%) que esse acordo fosse alcançado na área da justiça; 10% (e não 17%) que houvesse entendimento dos partidos do bloco central na Segurança Social; e, por último, apenas 7% dos portugueses (e não 12%) vêem com bons olhos um acordo entre PS e PSD na educação. Ou seja, se em abstrato mais de metade dos portugueses (60%) querem que socialistas e social-democratas cheguem a acordo num maior número de áreas, segundo a sondagem do Expresso, quando se passa para o concreto, em termos setoriais, essa vontade parece dissolver-se, atingindo no máximo os 25%. Curioso, não é?

sexta-feira, 16 de março de 2018

Dependência alimentar

Não se percebe muito bem na imagem. Mas de um lado estão bananas da Costa Rica a 1,78 euros/kg e do outro bananas da Ilha da Madeira, a 2,98 euros/Kg.

Muito haveria a estudar sobre a estrutura dos preços destes dois produtos homogéneos.

Mas a tese neoliberal diz que, num mercado globalizado, os custos intermédios tendem a ser semelhantes, à excepção dos custos do trabalho. E que, portanto, essa deve ser a variável a ajustar para que os produtos nacionais sejam competitivos.

Ora, neste caso, admitindo a ideia absurda de que os custos salariais representam metade dos custos de produção (absurda porque são muito menores do que isso), os custos salariais teriam de baixar 40% para que os dois produtos tivessem o mesmo preço em território português...

Peso dos salários nas bananas da Madeira: 2,98 euros x 50% = 1,49 euros
Peso dos salários nas bananas da Costa Rica: 1,78 x 50% = 0,89 euros
Diferença dos salários pagos entre os dois produtos: 1,49 - 0,89 = 0,6 euros
Peso da diferença de salários nos salários dos bananeiros da Madeira: 0,6 / 1,49 x 100 = 40%

E isto é pressupor que os custos intermédios na Madeira teriam de baixar de igual forma os mesmos 40%, o que pode parecer estranho à luz do pressuposto teórico de que nada se pode reduzir nos custos intermédios... Porque se não for possível mexer aí, os cortes salariais teriam de ser ainda mais pronunciados - 80%!

Faz isto sentido?
Ora, não fazendo, isso obriga a que - não se podendo usar outros instrumentos de política económica - Portugal esteja condenado a ficar dependente das bananas da Costa Rica...

Fatalidades a que nos obrigam, em prol de... em prol de quem?

quinta-feira, 15 de março de 2018

Terror



«Ontem à noite, estava no twitter quando li a notícia da morte de Marielle Franco. Na conta dela, o último tuite tinha duas horas. Estava numa sessão com activistas negras. Foi morta quando saiu: 4 tiros na cabeça, disparados de um carro que se pôs ao lado do dela. O motorista também foi morto. Escapou a assessora, cujo estado desconheço. Terão sido disparados pelo menos 9 tiros.
Nunca ouvira falar de Marielle. Mas o simbolismo terrível da execução impôs-se imediatamente. Uma mulher negra e feminista, política de esquerda, vereadora do Rio nascida numa favela, lutando pelos direitos dos pobres e denunciando a violência de Estado e, soube hoje, gay. Um jackpot do ódio de direita. Nas respostas ao ultimo tuite dela, manifestações de dor, terror, mas também ódio e gozo. E uma pergunta pungente: por que dizem que você está morta?
Por que dizem que você está morta. A pergunta de alguém que não pode acreditar em algo tão terrível, que aquela mulher sorridente que momentos antes nos relatava, vibrante e combativa, uma sessão de resistência, tenha acabado, não seja mais. Noutra thread sobre a morte de Marielle, há mulheres a dizer que não conseguem mais ver "Handmaid’s Tale", porque sentem que é aquilo que vai acontecer no Brasil.
Sim, é terror o que esta execução declara. Foi isso mesmo que eu, que não sou brasileira nem grande conhecedora da realidade do Brasil, senti ontem: que se entrou numa outra dimensão. Um assassinato político como este é uma mensagem clara, sem hipótese de confusão. É um acto de terrorismo. E, no entanto, vejo as aberturas dos telejornais portugueses e nenhuma menção. Se tivesse sido um muçulmano a esfaquear ou atropelar alguém numa rua da Europa ou dos EUA era a primeira notícia; se fosse um político europeu ou americano assassinado desta forma, ou mais um tiroteio numa escola dos EUA, seria das primeiras. Mas uma política brasileira da oposição executada a tiro no tumulto que é o Brasil "nosso irmão" não merece menção. Não é nada de especial, pelos vistos.»

Fernanda Câncio (facebook)

Mudança de pele

Houve um momento de ruidoso riso no fim do último programa "O Outro lado", da RTP.

Foi quando vice-presidente do CDS Adolfo Mesquita Nunes escolheu um video. Veja-se o minuto 46'30' e depois o que aconteceu, com as explicações do dirigentes do CDS. E depois volte-se aqui. 

Adolfo Mesquita Nunes é dado como a cara modernizadora do CDS. Se bem se percebe do debate público, porque enquanto secretário de Estado promoveu Portugal no estrangeiro (a explosão do turismo dever-se-ia a ele...) e porque assumiu a sua orientação homossexual. Adolfo dá mostras de ser um jovem à-vontade, com abertura de espírito e sincero. Mas no resto ele revela-se um típico militante do CDS: em momentos de aperto, envereda pela palavra fácil, inconsistente.

Veja-se os seus argumentos noutra parte do programa. A questão em debate era se Assunção Cristas não seria penalizada politicamente por ter sido ministra de um governo que cerceou a despesa pública, quando hoje critica o governo PS por não fazer investimento público.

"AMN: Se há partidos que têm problemas com ministros do governos anteriores é o Partido Socialista. Os ministros socratistas estão lá todos. Se há algum governo que deveria ter vergonha de se voltar a pôr a eleições era a maior parte dos ministros socialistas. 
João Adelino Faria: Mas eu estou a falar da troica e da austeridade que foi impostas aos portugueses...
AMN: Pois, os portugueses sabem como é que a troica cá chegou. Precisamente na sequência dos ministros socialistas que estão todos lá..."

Parece uma típica manobra de diversão. Mas não é séria.  É enganadora. E pressupõe um mau-viver não assumido com o que foi feito, até porque, na realidade, não se mudou de opinião. 

quarta-feira, 14 de março de 2018

Amanhã: "Pensar a Economia"


A primeira sessão do ciclo "Pensar a Economia", dedicada ao Sistema Financeiro será dinamizada por Francisco Louçã. Organizada pelo Coletivo Economia Sem Muros e pela Cultra, a sessão tem lugar amanhã na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Sala 219) pelas 18h00. Estão tod@s convidad@s.

Lógicas cúmplices

Quando todo o processo começou, quase era estranho explicar a pessoas que não tinham contacto com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) que tudo tinha uma lógica. E que a lógica não iria beneficiar os cidadãos.

Mas estava na cara. O SNS sempre foi subfinanciado. Ano após ano, na década de 90 repetiam-se os debates parlamentares sobre o Orçamento de Estado em que se provava que a actividade do SNS no ano seguinte não estava financeiramente coberta. E lá surgia sempre um argumento: "Não há dinheiro". Mas o dinheiro aparecia, depois, noutras rubricas, sem explicação lógica e aprovadas sem uma discussão clara sobre opções. A opacidade democrática no seu melhor.

Depois, iniciou-se esta lógica de moda liberal - sabe-se lá porque pressões estrangeiras, aceites tanto pelo PSD, como pelo PS sem qualquer estudo ou debate, que conviria perceber em que circunstâncias - de que os recursos seriam mais eficientemente geridos se os hospitais se digladiassem e tivessem uma lógica privada de gestão. Agora o estado do SNS já é objecto de uma tese de doutoramento em que se sintetiza o que está a ser feito há muito e com uma certa lógica. Retiro um excerto da edição de hoje do Público:

“O que aconteceu de mais importante neste trajecto de 50 anos foi, em 2002, a empresarialização dos hospitais”, diz Paulo Simões, destacando a introdução dos contratos individuais de trabalho e o fim das carreiras. “Teve um profundo reflexo porque desestruturou as equipas. Ter um lugar num serviço público deixou de ser uma referência. Como me disse um administrador de uma agência governamental, o Estado passou a ter 50 hospitais a concorrer entre si. Passou-se a uma situação de roubar recursos humanos de um lado para outro e os mais favorecidos foram o sistema privado e as parcerias público-privadas que conseguiram captar os jovens mais promissores. Os mais velhos sentiram-se sob um constrangimento enorme e quem pôde foi embora.” Paulo Simões sublinha que “a troika só veio agravar o que já estava no terreno”.

 Fez sentido este processo. Mas deve ser parado, quanto antes.

Jornalismo de «pé de microfone», que apenas faz eco?

Álvaro Santos Pereira, ex-ministro da Economia no anterior governo de direita e atual economista-chefe da OCDE, deu uma entrevista ao ECO. Relativamente a Portugal, sobressaem nessa entrevista duas ideias essenciais: por um lado, a ideia de que «reformas do mercado laboral, entre outras», explicam o crescimento da economia portuguesa nos últimos anos; e, por outro, a ideia de que é importante «continuar a fazer reformas», referindo como fundamentais «as reformas da Justiça e da Educação», que se juntam à «reforma da administração pública» e à necessidade de «manter a sustentabilidade da Segurança Social».

Que um ex-ministro como Álvaro Santos Pereira não queira ir além das parangonas programáticas é natural. Mas que os jornalistas insistam num registo de passividade, dispensando-se de fazer as perguntas óbvias, já se tornou demasiado habitual. Seria assim tão despropositado solicitar ao economista-chefe da OCDE que explicitasse devidamente a relação causal entre as reformas laborais adotadas e o crescimento da economia? Custaria muito perguntar-lhe que medidas concretas tem em mente quando fala das reformas da administração pública, da justiça e da educação? Ou das medidas que permitem, em sua opinião, «manter a sustentabilidade da Segurança Social»? Será que nunca vamos conseguir sair deste registo, em que o jornalista se limita a ser «um estafeta reduzido a um papel de mero transporte [ou] um pé de microfone»? Será mesmo preciso levar à letra, no caso desta entrevista, o nome do jornal que a publica?

terça-feira, 13 de março de 2018

Do «TINA» ao «TIA»: o caso português

«O modelo económico português, que ultrapassa atualmente as taxas de crescimento alemão, é totalmente contrário ao modelo preconizado por Bruxelas. (...) Nenhuma reforma estrutural do mercado de trabalho para cortar direitos dos trabalhadores, nenhuma redução na proteção social, nenhum programa de austeridade como o do Governo anterior, de direita, que tinha congelado o salário mínimo e as pensões de reforma e aumentado os impostos, tudo isso sem qualquer impacto notório na economia. Pelo contrário, assistimos nesse período a um aumento da pobreza.
Desta vez, não foi igual: o salário mínimo foi aumentado em 2016 e em 2017, (...) houve uma redução das cotizações por parte das entidades empregadoras (...) [e] o Governo não hesitou no que toca ao relançamento do poder de compra: aumentou as pensões e os abonos de família, reforçou os direitos do trabalho, reduziu os impostos sobre os salários mais baixos, suspendeu as privatizações... (...) Portugal percebeu que não adiantaria tentar fazer concorrência aos países de Leste com custos baixos e, portanto, passou a investir em maior qualidade tanto na indústria como no turismo. Um ponto que deveria inspirar particularmente a França: o investimento na qualidade da produção e em políticas de estímulo da procura».

Pascal de Lima, O insolente crescimento de Portugal constitui uma afronta ao culto da austeridade (traduzido e publicado no Expresso do passado fim-de-semana, com ilustração de Rodrigo de Matos)

segunda-feira, 12 de março de 2018

Os motores do crescimento português


Ficámos recentemente a conhecer os dados preliminares das Contas Nacionais relativos a 2017. Esses dados permitem-nos fazer um primeiro balanço em relação a como evoluíram na primeira metade da actual legislatura as componentes do produto – consumo privado, consumo público, investimento, exportações e importações – e de que forma contribuíram para o crescimento nestes dois anos, que foi, em termos reais, de 1,6% em 2016 e 2,7% em 2017.

A este propósito, voltou a ganhar vigor um debate que vem grassando há algum tempo acerca de qual tem sido o verdadeiro motor do crescimento da economia portuguesa. Em causa está saber até que ponto é que o crescimento tem assentado mais na procura interna ou na procura externa, mais no consumo ou mais no investimento. A questão não é meramente analítica mas também claramente política: na impossibilidade de argumentar que a política económica deste governo não tem produzido bons resultados, uma parte da direita passou a afirmar que o sucesso verificado se deveu ao governo ter feito o contrário do que anunciara, seguindo uma política económica “de direita” e apostando no investimento e nas exportações em detrimento do consumo privado.

A controvérsia é alimentada adicionalmente por uma questão técnica. É que, das componentes que referi em cima, quatro contribuem positivamente para o PIB mas uma (as importações) contribui negativamente, não havendo consenso relativamente à forma mais correcta de considerar esta última. O INE, por exemplo, agrupa as importações juntamente com as exportações para calcular a procura externa líquida. Já o Banco de Portugal considera que o consumo público e privado, o investimento e as exportações têm todos uma parte importada e por esse motivo “distribui” as importações por cada uma das outras componentes, de modo a aferir o contributo líquido destas. É devido a esta diferença de metodologia que o INE pôde concluir, no Destaque recentemente distribuído e citado nos jornais, que a procura externa líquida teve um contributo negativo (-0,2%) para o crescimento do ano passado, ao passo que o Banco de Portugal, no mais recente Boletim Económico (Dezembro de 2017), projectava para 2017 contributos positivos da procura interna e externa de 1,1% e 1,5% respectivamente. E é também por isso que o Fórum para a Competitividade, um think tank de direita, tem criticado o INE por apresentar os dados do PIB “de forma enganadora, (...) levando os decisores políticos a cometer erros muito graves, de privilegiar a procura interna, quando a chave do crescimento está nas exportações”.

Um mundo à parte

Não há muitas notícias sobre a votação das moções no Congresso do CDS, do fim-de-semana passado. Nem no próprio sítio do CDS...

Sabe-se que as moções não foram debatidas em horário nobre ou que Cristas seixou cair a democracia-cristã. Parece que o essencial foi a votação para os órgãos nacionais do partido e que a moção de Assunção Cristas foi votada de braço no ar e já de madrugada, em alternativa à de Miguel Mattos Chaves.

E no entanto, as moções dizem muito do pensamento de quem está no CDS. Por exemplo, a moção de Mattos Chaves é uma moção estruturada e a pensar no futuro do país, enquanto a moção de Cristas parece um saco de vento, próxima do plafleto de uma arruada do CDS. 

Mas se há um tema que não constou da esmagadora maioria das moções ao Congresso do CDS foi o mundo do Trabalho. Esse não é um tema do CDS. Os mais de cinco milhões de activos são um subproduto das pouco mais de 300 mil empresas portuguesas. A sua ideia - pouco moderna e mesmo arcaica - é de que "as empresas é que criam emprego" e por isso tudo lhes é devido.

No Congresso, apenas a moção dos Trabalhadores Democratas Cristãos chamava a atenção para aquilo que nenhum outro militante centrista pareceu sentir: a actual precariedade das relações laborais neste Portugal cada vez mais estagnado e que conduz ao envelhecimento da população."Deve, pois, o CDS atender aos novos pobres que trabalham e não chegam ao final do mês; aos jovens precários, tantos deles na comunidade científica, que adiam projetos familiares por terem trabalhos precários e mal remunerados".

E no entanto, para quem olhe para a opinião à direita, todos parecem embandeirar em arco com o "novo CDS". Helena Garrido na Antena 1 hoje de manhã, falava de um CDS jovem, liberal e não conservador  - apenas porque Adolfo Mesquina Nunes se assumiu como homosexual e esquecendo os casos em que autores de moção raiam o homofóbico ou o tom de conservadorismo, que nem os defensores pró-vida já assumem. No Observador, quem escreve sobre o CDS vai atrás desta onda criada pelo marketing... (aqui e aqui). Por que razão está a direita a apostar tanto no CDS? Apenas para impedir uma viragem à esquerda do PSD?

O CDS que saiu do Congresso é uma tentativa de tudo ser, sem que seja alguma coisa. E esse é a vantagem de nunca ser poder, senão por arrasto.

Senão é isso, o que dizem as moções ao Congresso do que poderia ser o programa de governo do CDS? Em primeiro lugar, o CDS apostaria numa forte contenção orçamental.  Algo que, a julgar pelo discurso de Assunção Cristas, se trata de uma ideia muito negativa, quando o partido se declara  muito preocupado com a situação nomeadamente da Saúde e Segurança. Ao mesmo tempo que se pugna por esse linhar de passo com a moeda única, outras moções mostram-se euro-cépticas com o rumo de federalização da Europa... 

domingo, 11 de março de 2018

Lutas culturais sensatas

A cultura é demasiado importante para ficar à mercê da uniformização e da exclusão produzidas pelas lógicas puramente comerciais. Daí a importância do apoio e provisão públicas, ajudando a criar lógicas promotoras de uma enriquecedora diversidade artística e da democratização no acesso às actividades culturais.

Apesar da criação de um Ministério, como afirmou recentemente o Manifesto em Defesa da Cultura, “a política cultural do governo do PS não trouxe, no essencial, nenhuma viragem em relação ao desastroso percurso de décadas que nos conduziu até aqui.”

Para lá das questões orçamentais, mas com elas articulada, há também a questão da cultura política neoliberal que se difundiu e que está bem patente nas ofensivas declarações da Directora Regional da Cultura do Centro, ao considerar que os que requerem financiamento público são um “incómodo” para o Estado.

Como afirma Pedro Rodrigues, “talvez o mais sensato fosse deixar a notícia morrer naquele canto da página 20 do jornal de Sábado, mas apesar de tudo parece-me que se justifica que troquemos umas ideias sobre o assunto.” Realmente, insensato seria deixar alastrar este senso comum neoliberal com poder; sensata foi a mobilização, resultante da tal troca de ideias, que está bem patente nesta petição:

“É no mínimo inusitado que uma funcionária do Estado com estas responsabilidades profira tais declarações. Elas ofendem os profissionais que têm trabalhado no serviço público financiado pelo Estado, tentam criar uma clivagem entre estruturas ‘subsidiadas’ e ‘não subsidiadas’ e entre profissionais e não profissionais, amesquinham os próprios funcionários do Ministério e as personalidades convidadas para avaliar as candidaturas apresentadas, contradizem o espírito e a letra da Constituição e do programa do actual Governo e – sobretudo – insultam os cidadãos que são os principais beneficiários das políticas públicas de cultura no nosso país.”

sábado, 10 de março de 2018

Quo vadis, UE?


Ainda há quem pense que as reformas da Zona Euro que estão a ser negociadas são o caminho para dar futuro a esta zona de protectorados da Alemanha. Neste vídeo explicamos que, ao contrário do que os media dizem, a aplicação destas propostas (mesmo que apenas algumas) vai agravar as contradições existentes, apertando o colete de forças sobre as economias e os povos.

A política orçamental continua a ser diabolizada e o faz-de-conta-que-não-sabem que o orçamento do Estado é um resultado do funcionamento global da economia, não dependendo apenas do governo, continua a marcar todas as novas ideias sobre o controlo do défice por via do controle da despesa. Continua o obscurantismo que faz crer aos cidadãos que só pode haver investimento público financiado por impostos, quando o BCE todos os meses cria imenso dinheiro para manter as taxas de juro baixas, apesar de não conseguir alcançar o objectivo de uma inflação perto dos 2%. Não lhes ocorre que o relançamento sustentado de uma economia que esteve em recessão não pode ser feito apenas através da política monetária. Segundo a ortodoxia, evidentemente, a política orçamental é ineficaz.

Propõe-se também uma limpeza de toda a dívida pública do balanço dos bancos, fazendo depender o financiamento de qualquer défice público da emissão de obrigações com um estatuto de maior risco relativamente a um novo tipo de obrigações, a emitir pela UE, garantidas por uma carteira de obrigações dos vários Estados. Repare-se que não é o BCE, como prestamista de último recurso, que garantiria essas novas obrigações. Toda uma engenharia destinada a evitar que os alemães não fiquem assustados com o risco de o BCE monetarizar qualquer défice. E tudo o mais que se propõe é simplesmente trágico. Esta zona euro é mesmo uma aberração histórica.

Tudo o que poderia dar um retoque algo mais progressista à Zona Euro não faz parte das reformas propostas. Felizmente, as eleições em Itália deram o tiro de partida para a fase terminal deste projecto moribundo. Infelizmente, dado que a esquerda entregou a bandeira da luta contra o euro à direita, o fim deste projecto bárbaro será liderado pela direita. Tal como nos anos trinta do século passado, no continente europeu, a esquerda faz haraquiri. Triste.

Do Estado que «asfixia a economia»


«São 5,5 mil milhões de euros de ganho, entre poupança com faltas ao trabalho evitadas pelos cuidados de saúde prestados pelo Estado e o retorno económico desses cidadãos que, não tendo ficado doentes em casa, foram trabalhar, produziram, receberam um pagamento por esse trabalho e gastaram parte em bens de consumo. Explicado assim, em economês de grau zero, parece simples, mas o facto é que estamos muito mais habituados a ouvir falar do que o SNS nos custa, a todos enquanto contribuintes, e também do que o serviço faz menos bem ou onde tem falhas graves. A espaços também vamos ouvindo que este é um sistema insustentável, que representa um fardo financeiro excessivo para o país, que consome recursos que seriam mais bem aplicados noutras áreas e, por último, que estaríamos todos muito melhor com uma passagem mais decidida destas responsabilidades para a esfera privada. 5,5 mil milhões é, para que se tenha noção da grandeza, cerca de metade do orçamento do Estado para a saúde, para o SNS. Dito de outra forma, o SNS consegue "devolver" ao país, à economia, metade do que absorve em dinheiro público, dos contribuintes. Será assim um negócio tão mau como nos tem sido vendido?».

Paulo Tavares, Afinal, o SNS vale o que pagamos

sexta-feira, 9 de março de 2018

«Memorizar e debitar» (reloaded): a educação segundo Crato

De quando em quando, Nuno Crato dá sinais de vida. Desta vez, com um artigo no Observador, aparentemente motivado pelo discurso de António Guterres na sessão de atribuição do doutoramento honoris causa pelo IST.

Pergunta Crato se «gostaria algum de nós de ser tratado por um médico que, na universidade, tivesse aprendido Literatura Germânica, não tivesse prestado grande atenção à Anatomia nem à Histologia, mas que tivesse sido fantástico a "aprender a aprender"?». Ou se gostaria algum de nós de «andar num avião mantido por uma equipa de mecânicos que, na sua escola de formação técnica, tivessem estudado Anatomia Patológica, nada sobre motores nem sobre aeronáutica, mas que fossem extraordinários a "aprender a aprender"?». Exagero? «Não», diz o ex-ministro da Educação: «pensemos na mensagem que, no limite, se está a transmitir aos estudantes: aprendam a aprender, não interessa tanto o que aprendem».

Garanto-vos que não faço por isso, mas quando a argumentação chega a este nível vem-me à memória uma recordação de infância: a imagem de vendedores de banha-da-cobra, alçados em carrinhas de caixa aberta, com o frasquinho numa mão e o microfone na outra, a convencer os incautos que têm a solução para todos os males. Ou, numa versão mais atual, os anúncios televisivos a frigideiras anti-aderentes, com o número para as encomendas a passar no rodapé do ecrã durante o engodo. A dúvida com que ficava ao reparar no empenho dos vendedores de banha-da-cobra é a mesma que me assalta com Nuno Crato: acredita mesmo no que diz ou está conscientemente a ludibriar as pessoas?

Será que o ex-ministro Nuno Crato acha mesmo que o que está em causa é a opção entre «conteúdos» e «aprender a aprender»? Terão as matérias programáticas das disciplinas desaparecido e ninguém deu conta? Em que consistirá na prática o programa do «aprender a aprender»? Não perceberá o ex-ministro que os conteúdos continuam lá e que a diferença reside no modo como são tratados, bem como nas finalidades que se pretendem atingir com os processos de ensino e aprendizagem? Que os «conteúdos» servem para «aprender a aprender» e não, simplesmente, para «memorizar e debitar»? Que uma coisa é «aprender a decorar» e outra é «aprender e problematizar»? Perceberá Nuno Crato a diferença entre o papaguear mecânico de uma tabuada e a ideia de que a mesma traduz a soma sucessiva de um algarismo? Ao vir com esta conversa requentada, terá Nuno Crato a expetativa de poder regressar à 5 de outubro com a sua agenda retrógrada, depois de ter ouvido Rui Rio no encerramento do 37º Congresso do PSD?

Pensamento light

A poucos dias do Congresso do CDS, a dirigente do CDS deu anteontem uma entrevista à RTP.

Para um partido que não chega aos 10% da intenção de voto, mas que afirma querer liderar a direita, estar-se-ia à espera de ideias mais consistentes sobre o pensamento do CDS. Mas da conversa percebeu-se que o mandato governamental do CDS de 2011/15 ainda está mal digerido e que as grandes linhas de pensamento económico ainda andam muito baralhadas pelo Largo do Caldas. E que o seu discurso está muito colado à espuma dos dias, a surfar os temas mais mediáticos. 

A pobreza do pensamento centrista é visível na moção de Cristas ao Congresso. Aliás, convida-se a que se leia as diversas moções para perceber que o CDS tem um pensamento incoerente e inconsistente, variado mas indistinto, sobre temas essenciais e estratégicos, e que por isso lhe é mais fácil surfar o dia-a-dia. Uma delas, considera mesmo que "a nova vaga de emigrantes deve ser vista como uma afirmação da capacidade e do engenho de Portugal no mundo" ou que "Portugal tem de assumir uma política activa para o crescimento da natalidade, financiada pelo Estado e não pelas empresas". Mas ao mesmo tempo, mantendo o esforço para cumprir a regra orçamental de reduzir a dívida pública até 60% prevista no Tratado Orçamental, o que é mais uma quadratura do círculo improvável. Mas tudo isto merece um estudo mais detalhado, proximamente. 

O discurso televisivo de Assunção Cristas é mais um exercício, aliás, de quadratura do círculo: camufla o que correu mal, puxa de galões que não são os seus, tudo baralha, sem que o entrevistador a tenha confrontado.

Primeiro. Para Cristas, não houve austeridade: houve necessidade. Na realidade, necessidade foi o que levou ao empréstimo de curto prazo que - nunca é por acaso - trouxe agarrado um conjunto de políticas, fortemente ideológicas, assumidas pela direita (CDS inclusive). Outras políticas poderiam ter sido adoptadas, mas a direita quis aquelas, que fracassaram estrondosamente.

As políticas adoptadas geraram uma montanha de 1,5 milhões de desempregados. Mesmo do ponto de vista orçamental, foi um fiasco: entre 2011 e 2013, dos 20 mil milhões de euros de austeridade (entre cortes na despesa pública e aumento da receita fiscal), o défice apenas se reduziu em 6 mil milhões por causa da recessão provocada. Por cada 1 euro retirado ao défice, retirou-se 1,25 euros ao PIB. Aliás, Cristas a certa altura afirmou aquilo que a esquerda costuma repetir sobre o fracasso das medidas adoptadas: "Mesmo na dívida, diminuiu em percentagem do PIB. Nós continuamos endividados, continua a haver um agravamento da dívida".