Vários dirigentes políticos, a maioria dos comentadores mediáticos e até algumas pessoas que têm obrigação de saber o que dizem continuam a responder como sempre responderam à questão que está no título deste post. Para eles, Portugal entrou em crise na viragem do milénio porque alguns governantes se deixaram influenciar pelos poderosos deste país, adoptando políticas que os beneficiaram em prejuízo do resto das pessoas e da economia nacional.
Sejamos claros: tem havido em Portugal – como sempre houve e sempre haverá, neste país e em muitos outros – casos evidentes de captura do Estado por interesses particulares. Essas formas mais ou menos directas de corrupção causam dano na economia e são, em qualquer caso, eticamente inadmissíveis. São ameaças à democracia e como tal têm de ser combatidas.
Separemos, porém, a discussão. A questão não é se a corrupção existe. O que está aqui em causa é saber se os privilégios especificamente concedidos a alguns sectores e grupos na sociedade portuguesa explicam a crise que teve início no início do século. A minha resposta é negativa.
Vale a pena termos presente nesta discussão que o aspecto distintivo da crise nacional é a acumulação de uma enorme dívida externa, que teve início em meados da década de noventa. Note-se que não estamos a falar de dívida pública: na verdade, a dívida do Estado em percentagem do PIB esteve em queda até 2000 e depois disso subiu de forma ligeira até à grande crise internacional. A crise da economia portuguesa traduz-se, primordialmente, no crescimento acentuado da dívida privada, especialmente das empresas. Foi o aumento da dívida privada que levou a dívida externa portuguesa para valores próximos do PIB na viragem do século, quando era quase inexistente poucos anos antes.
De acordo com a tese da captura do Estado por interesses particulares, a origem da crise portuguesa está no facto de vários governos terem privilegiado certos grupos económicos, protegendo-os da concorrência e dando-lhe condições especiais para acumulação de lucros através da regulação dos sectores em que actuam. Teria sido assim que se tornaram poderosos as empresas e os grupos dos sectores da banca e seguros, da construção, da distribuição, da energia ou das telecomunicações. De acordo com esta tese, estes grupos tornaram-se dominantes porque tinham proximidade ao poder político, o qual os protegeu da concorrência interna e externa, e os alimentou financeiramente através de contratos públicos chorudos. Vivendo à sombra do Estado, e da regulação que este faz dentro das fronteiras nacionais, os grandes grupos económicos portugueses ter-se-iam sobreespecializado em actividades dirigidas ao mercado interno, menosprezando a disputa de mercados internacionais e a concorrência externa.
Em economês diz-se que a economia portuguesa se sobreespecializou em sectores “não-transaccionáveis” (ou seja, naquelas actividades que não estão sujeitas à concorrência internacional), em prejuízo dos sectores exportadores. E isto é um problema, na medida em que os não-transaccionáveis não permitem obter rendimentos a partir do exterior, mas dão origem a salários e lucros que serão usados em consumo e investimento, o que por sua vez se traduz em mais importações. Além disso, quando empresas daqueles sectores investem têm de pedir dinheiro emprestado, o qual de uma forma ou de outra vem do estrangeiro (agravando assim a dívida externa).
Por outras palavras, foi o predomínio dos sectores não-transaccionáveis que conduziu a que houvesse mais saída do que entrada de dinheiro no país, levando à explosão da dívida externa portuguesa. Até aqui estamos de acordo. A questão é saber o que conduziu ao peso excessivo dos sectores não-transaccionáveis.
Segundo a tese da captura do Estado por interesses particulares como origem da crise, foram os privilégios políticos atribuídos àqueles grupos económicos que explicam a orientação da produção nacional para o mercado interno. A tese é atractiva, sem dúvida. Mas, se analisarmos com atenção, há várias coisas que não batem certo.
Primeiro, o aumento do peso dos sectores não-transaccionáveis aconteceu em vários países da UE no mesmo período. Por exemplo, entre 2000 e 2007 o aumento do peso destes sectores no PIB em Portugal foi equivalente ao da França e inferior ao do Reino Unido, de Espanha e de Itália. Na verdade, nas vésperas da grande crise internacional, o peso dos sectores não-transaccionáveis em Portugal continuava abaixo destes e de vários outros países da UE. É difícil sustentar que todos estes países sofreram o mesmo processo de captura do Estado por interesses particulares, ao mesmo tempo, da mesma forma e com os mesmos efeitos.
Segundo, analisando com cuidado várias políticas públicas em Portugal nas últimas duas décadas, não é evidente que os sectores transaccionáveis tenham sido sistematicamente preteridos a favor dos não-transaccionáveis. Por exemplo,
neste estudo mostrámos que vários tipos de políticas públicas (subsídios ao investimento, incentivos fiscais de natureza transversal, incentivos fiscais de natureza contratual, etc.) foram sistematicamente dirigidos para empresas da indústria transformadora ou actividades de serviços mais expostos à concorrência internacional (e não para os sectores e grupos económicos supostamente protegidos).
Terceiro, não haveria nenhuma razão óbvia para que os grupos de interesse que capturaram os decisores políticos portugueses estivessem todos ligados a sectores não-transaccionáveis. A história e os estudos comparados mostram-nos que sempre que os Estados quiseram (ou querem, ainda hoje) apoiar empresas nacionais expostas à concorrência internacional, arranjam forma de o fazer.
É um facto que a crise portuguesa surge associada a um aumento acentuado do peso dos sectores não-transaccionáveis. Mas para percebermos por que motivos os sectores menos expostos à concorrência internacional se tornaram mais lucrativos do que os restantes não precisamos de teorias da conspiração. Basta termos em conta três desenvolvimentos marcantes das últimas duas décadas e meia (que se conjugaram no tempo, em parte por um infeliz acaso):
• a liberalização financeira (particularmente acentuada em Portugal pelo processo profundo e acelerado de privatizações após 1989),
• a liberalização comercial (no caso português são particularmente relevantes os acordos comerciais da UE com a China, cujos produtos competem directamente com os nacionais) e
• a adesão ao euro (que no caso português acentuou os efeitos da liberalização financeira e da liberalização comercial, ao facilitar a entrada de capitais no país e ao tornar as exportações portuguesas mais caras – e as importações mais baratas).
Estes factores (desenvolvidos
aqui) são suficientes para explicar o crescimento dos sectores não-transaccionáveis em Portugal (e noutros países): por um lado, a abundância de crédito levou ao crescimento do mercado interno, favorecendo os lucros de empresas que vendem cá dentro e impulsionando as importações; por outro lado, a liberalização financeira e a adesão a uma moeda forte penalizaram a lucratividade das empresas que vendem para fora (ao mesmo tempo que tornavam as importações mais acessíveis).
Em suma, não precisamos de falar em corrupção – que, repito, com certeza existiu – para explicar a crise da economia portuguesa desde a viragem do século.
Nada disto isenta os dirigentes políticos nacionais de responsabilidades. Em última análise, foram os governos que decidiram liberalizar a finança, precipitar a entrada no euro e viabilizar os acordos comerciais da UE com outros países. No entanto, os dirigentes políticos em causa não são exactamente os mesmos que estão na mente de quem apresenta as banais teorias da conspiração para a crise – nem a decisões relevantes são as mesmas.
É fácil perceber por que razão os comentadores da espuma dos dias insistem numa explicação que não cola com os dados disponíveis: dá menos trabalho e serve os propósitos que os movem. Compreender e conseguir explicar a um público alargado as origens complexas da crise portuguesa exige mais esforço do que simplesmente atribuir culpas a esta ou aquela pessoa. Em qualquer caso, o objectivo daqueles comentadores nunca é explicar seja o que for: é manipular a opinião pública para o lado que mais lhes convém no momento. O problema é que se acreditarmos em explicações simplistas nunca perceberemos verdadeiramente o que nos aconteceu. Nem perceberemos o que devemos fazer para evitar que volte a acontecer.