O documento “Uma década para Portugal”, escrito pelo grupo de economistas que colaboram com o PS, tem de ser lido e relido com muita atenção, não só porque a escrita é deficiente, mas sobretudo por conter uma proposta para a reforma das pensões que parece ter sido propositadamente camuflada.
Refiro-me à subsecção 4.2.2 (pp. 48-9), intitulada “Compromisso de apoio ao rendimento e redução de restrições de liquidez das famílias”, um título que não refere o essencial. Deixemos de lado o vocabulário da microeconomia convencional que sustenta a análise, baseada numa visão problemática da racionalidade dos seres humanos, e
vejamos onde quer chegar.
Muito mais que uma proposta de redução da TSU dos trabalhadores, tendo em vista o relançamento da economia portuguesa pela via do aumento do seu rendimento disponível, pretende-se reduzir as contribuições de trabalhadores com menos de 60 anos, entre 2016 e 2018, para fazer um “ajustamento das pensões num valor actuarialmente neutro para o sistema.”
Assim, a proposta raciocina como se cada trabalhador tivesse uma conta na Segurança Social e, com esta
medida, visse transferida uma parte da sua pensão futura para o presente, ficando livre de decidir onde a vai gastar. Os mais necessitados consumirão o acréscimo do rendimento, o que estimula o crescimento. Os mais abonados
aplicarão o dinheiro “da forma que entendam mais profícua”.
Nada de novo. Foi uma medida desta natureza que Pinochet adoptou, com o apoio dos economistas formados em Chicago, para liquidar o sistema de pensões do Chile, no início dos anos 80. Aí, a mudança foi radical e concentrada no tempo porque se tratava de uma ditadura sanguinária. Contudo, o método é semelhante.
Repare-se que o texto afirma candidamente que “a medida não tem qualquer impacto nos actuais pensionistas, nem nas pensões a pagar nos próximos 5 anos, já que os trabalhadores com idade superior a 60 anos estão excluídos da medida.” Contudo, porque os descontos de um dado mês são receita para pagar as pensões desse mesmo mês, surge naturalmente a pergunta: e quem paga aos actuais pensionistas?
De forma implícita, a resposta está no último parágrafo: a medida “não tem impacto directo nas metas orçamentais, se enquadrada como reforma estrutural ao abrigo do Tratado Orçamental”. Sub-repticiamente, diz-se que os cerca de 1050 milhões de euros (muito subestimados, segundo Bagão Félix) de pensões correntes podem ser pagos com endividamento público, porque se trata de uma “reforma estrutural” acarinhada por Bruxelas.
Porque será que este endividamento não conta? A razão é simples: na perspectiva da UE, todas as medidas que
reduzam ao mínimo os sistemas públicos de pensões de base laboral são boas porque fazem a transição para um modelo radicalmente diferente: pensão pública muito reduzida e incerta porque ajustável à conjuntura, desligada dos salários,
calculada como se fosse uma “capitalização” individual das contribuições, a complementar com uma pensão privada, no caso das classes de maiores rendimentos.
Tal como no Chile, o Estado endivida-se para fazer a transição entre os dois modelos. Claro, como diz o texto (com sublinhado), não há “uma alteração do contrato existente com o trabalhador”. De facto não há, nem para os pensionistas actuais nem para os futuros: as pensões por repartição não são pagas na base de um contrato de direito privado, são uma instituição fundada na lei que sustentou o contrato social do pós-guerra e fez da Europa um capitalismo de rosto humano.
Representando o ponto de vista neoliberal, Pedro Romano (blogue “
Desvio Colossal”) regozija-se: “Tudo somado, só me resta dar os parabéns a quem teve a ideia. (...) Tudo isto sem ferir sensibilidades socialistas e contornando algumas das objecções políticas que seriam levantadas caso o framing fosse outro.” O acolhimento favorável desta medida em alguns sectores do “bloco central” é revelador. Se for incluída no programa eleitoral do PS, será penoso ver alguma esquerda continuar a defender entendimentos com este “socialismo”.
(O meu artigo no
jornal i)