"É cada vez mais evidente que apenas condições económicas excepcionais permitirão a Portugal, mas também à Irlanda, Grécia ou Itália reduzir de forma significativa os elevados "stocks" de dívida pública e privada que acumularam. A recusa em reconhecer a dimensão do problema e em ponderar um programa de reestruturação destas dívidas é dos erros mais graves e dogmáticos da estratégia da Zona Euro, pois não só atrasa o fim deste episódio terrível na história da região como representa um privilégio injustificado para os credores."
Um texto imperdível do jornalista Rui Peres Jorge, com a sobriedade do costume, no Jornal de Negócios de hoje.
segunda-feira, 30 de setembro de 2013
domingo, 29 de setembro de 2013
«Que fazer com este Euro?»: Vídeos do lançamento/debate
Já estão disponíveis os vídeos do lançamento e debate, no passado dia 18 de Setembro, do livro «Que fazer com este Euro? - Portugal na tragédia europeia» (uma co-edição do Le Monde Diplomatique - edição portuguesa - e das Edições 70). Intervenções de Daniel Oliveira, João Rodrigues, Ricardo Noronha e Viriato Soromenho-Marques.
sábado, 28 de setembro de 2013
O segundo resgate ou a tendência dos notáveis do regime para a negação
O Expresso desta semana pergunta a 12 notáveis da nossa praça se Portugal está ou não mais próximo de um 'programa cautelar' ou mesmo de um segundo resgate.
A ideia que ressalta de alguns dos testemunhos - em particular os de João Salgueiro, Francico Balsemão, Ferreira de Oliveira, Miguel Beleza e Mira Amaral - é mais ou menos esta: Portugal pode e deve evitar um segundo resgate, tendo para tal de assegurar a estabilidade política e o cumprimento do Memorando de Entendimento com a troika. Desta forma, Portugal poderá contar com o apoio do BCE e do Mecanimo de Estabilidade Europeu (uma espécie de futuro FMI da UE) para se financiar através dos mercados a taxas de juro sustentáveis, como parece que a Irlanda se prepara para fazer.
Ou seja, o 'programa cautelar' é já dado como inevitável, mas muitos não querem sequer ouvir falar de segundo resgate. Mira Amaral chega mesmo a sugerir que quem fala dessa possibilidade é histérico, enquanto Francisco Balsemão classifica a ideia como uma lamúria contrária ao interesse nacional.
Estas posições, porém, contrastam com as notícias que vão chegando de Bruxelas (Comissão Europeia), Frankfurt (BCE) ou Luxemburgo (MEE). O centro do poder europeu parece cada vez mais convencido que um segundo resgate é incontornável.
As razões não são difíceis de perceber. Como já aqui sugeri, a situação da economia portuguesa é muito distinta da irlandesa no que respeita à capacidade de gerar execedentes para pagar a sua dívida externa. Com uma das maiores dívidas externas da OCDE, uma estrutura económica pouco sofisticada e a perspectiva de longos anos de desemprego de dois dígitos, a ideia de que Portugal tem condições para pagar a sua dívida soa algo fantasiosa aos ouvidos dos investidores internacionais. Daí que as taxas de juro implícitas da dívida pública portuguesa, apesar de oscilações pontuais, se mantenham a níveis insustentáveis.
E isto não é um fenómeno recente: desde finais de 2011 que as agências de rating classificam os títulos da dívida pública de Portugal como 'lixo'. Isto significa, na prática, que uma parte muito relevante dos investidores institucionais (por exemplo, os fundos de pensões) não estão sequer autorizados, pelas suas regras internas, a investir em títulos da dívida portuguesa. E, como vimos esta semana, a tendência não é para as agências de rating reverem as suas classificações em alta. Ou seja, é muito pouco provável que Portugal consiga financiar-se nos próximos tempos através dos mercados em condições razoáveis.
Os notáveis do painel do Expresso parecem querer muito acreditar que o BCE e o MEE apoiarão um regresso do Estado português aos mercados de dívida pública, independentemente de tudo o que acima escrevi. Eu suspeito que estão errados: não creio que o BCE ou o MEE ponham em causa a sua própria reputação enquanto 'falcões' - imagem que sempre procuraram construir - para fazer o jeito a quem não quer reconhecer que o resultado do primeiro resgate é mesmo um segundo resgate. E 'falcões' não compram 'lixo' que os 'mercados' desdenham.
A questão é: a confirmar-se a opção das instituições europeias por um segundo empréstimo e um segundo Memorando, mais ou menos disfarçados, para que Portugal continue a pagar a sua dívida, quantos vão acolher o conselho de Paul Krugman?
A ideia que ressalta de alguns dos testemunhos - em particular os de João Salgueiro, Francico Balsemão, Ferreira de Oliveira, Miguel Beleza e Mira Amaral - é mais ou menos esta: Portugal pode e deve evitar um segundo resgate, tendo para tal de assegurar a estabilidade política e o cumprimento do Memorando de Entendimento com a troika. Desta forma, Portugal poderá contar com o apoio do BCE e do Mecanimo de Estabilidade Europeu (uma espécie de futuro FMI da UE) para se financiar através dos mercados a taxas de juro sustentáveis, como parece que a Irlanda se prepara para fazer.
Ou seja, o 'programa cautelar' é já dado como inevitável, mas muitos não querem sequer ouvir falar de segundo resgate. Mira Amaral chega mesmo a sugerir que quem fala dessa possibilidade é histérico, enquanto Francisco Balsemão classifica a ideia como uma lamúria contrária ao interesse nacional.
Estas posições, porém, contrastam com as notícias que vão chegando de Bruxelas (Comissão Europeia), Frankfurt (BCE) ou Luxemburgo (MEE). O centro do poder europeu parece cada vez mais convencido que um segundo resgate é incontornável.
As razões não são difíceis de perceber. Como já aqui sugeri, a situação da economia portuguesa é muito distinta da irlandesa no que respeita à capacidade de gerar execedentes para pagar a sua dívida externa. Com uma das maiores dívidas externas da OCDE, uma estrutura económica pouco sofisticada e a perspectiva de longos anos de desemprego de dois dígitos, a ideia de que Portugal tem condições para pagar a sua dívida soa algo fantasiosa aos ouvidos dos investidores internacionais. Daí que as taxas de juro implícitas da dívida pública portuguesa, apesar de oscilações pontuais, se mantenham a níveis insustentáveis.
E isto não é um fenómeno recente: desde finais de 2011 que as agências de rating classificam os títulos da dívida pública de Portugal como 'lixo'. Isto significa, na prática, que uma parte muito relevante dos investidores institucionais (por exemplo, os fundos de pensões) não estão sequer autorizados, pelas suas regras internas, a investir em títulos da dívida portuguesa. E, como vimos esta semana, a tendência não é para as agências de rating reverem as suas classificações em alta. Ou seja, é muito pouco provável que Portugal consiga financiar-se nos próximos tempos através dos mercados em condições razoáveis.
Os notáveis do painel do Expresso parecem querer muito acreditar que o BCE e o MEE apoiarão um regresso do Estado português aos mercados de dívida pública, independentemente de tudo o que acima escrevi. Eu suspeito que estão errados: não creio que o BCE ou o MEE ponham em causa a sua própria reputação enquanto 'falcões' - imagem que sempre procuraram construir - para fazer o jeito a quem não quer reconhecer que o resultado do primeiro resgate é mesmo um segundo resgate. E 'falcões' não compram 'lixo' que os 'mercados' desdenham.
A questão é: a confirmar-se a opção das instituições europeias por um segundo empréstimo e um segundo Memorando, mais ou menos disfarçados, para que Portugal continue a pagar a sua dívida, quantos vão acolher o conselho de Paul Krugman?
Culpar o antídoto para ilibar o veneno
«Na ponta final da campanha eleitoral autárquica, as afirmações do Governo tornam cada vez mais claro que o "regresso aos mercados" nunca passou de uma ilusão. A continuação da política deste governo e da troika está a agravar os bloqueios que a economia portuguesa enfrenta. Mas existem alternativas - e são urgentes.
O governo tem vindo a afirmar que as decisões do Tribunal Constitucional (TC) estão a tornar cada vez mais provável a necessidade de um segundo resgate. Ao insistir nesta ideia, o governo tem três objectivos: 1) Desresponsabilizar-se pela crise económica e social que atravessa o país; 2) Justificar as privatizações e os cortes nos serviços públicos e nas prestações sociais que se prepara para anunciar com a proposta de Orçamento de Estado (OE) para o próximo ano; e 3) Ir instalando na sociedade portuguesa a ideia de inevitabilidade da continuação da actual estratégia de governação para lá de 2014. Face a isto, é fundamental compreender e afirmar com clareza que:
O Estado português não conseguirá, tão cedo, financiar-se nos mercados internacionais - mas isto não decorre das decisões do TC
Portugal tem uma dívida pública superior a 130% do PIB, um endividamento externo historicamente elevado, uma estrutura económica débil e um sector financeiro enfraquecido. O país não dispõe de instrumentos de política económica para lidar com estes problemas e quem deles dispõe – ou seja, as instituições europeias - recusa-se a pô-los em prática, preferindo usar o seu poder de chantagem para impor aos países periféricos e, por arrasto, ao conjunto da UE, um modelo de sociedade que não foi sufragado nas urnas.
Nestas condições, a dívida portuguesa é impagável e é isso que explica a persistência das elevadas taxas de juro dos títulos da dívida portuguesa. É por essa razão que o "regresso aos mercados" nunca passou de uma ilusão, usada pelo governo para justificar os sacrifícios até aqui impostos ao país e aos portugueses.
A estratégia do governo e da troika não resolve – antes agrava – os bloqueios que economia portuguesa enfrenta
Segundo o governo, a destruição dos serviços públicos e a desregulação das relações de trabalho são o caminho para sair da crise. No entanto, após três anos de austeridade tornou-se ainda mais claro que esta estratégia não resolve, antes agrava, os bloqueios que a economia portuguesa enfrenta – desde logo, um endividamento insustentável e uma estrutura produtiva débil. Se esta trajectória não for interrompida, Portugal terá uma sociedade ainda mais desigual e entregue às lógicas de mercado. Esse será o único "sucesso" do "programa de ajustamento" do governo e da troika.
As alternativas existem e são urgentes
O caminho da devastação social e económica não se inverterá enquanto não se impuser uma renegociação da dívida pública portuguesa que seja consentânea com uma política de relançamento do emprego, de valorização do trabalho e de restabelecimento dos direitos que asseguram uma sociedade decente. Os portugueses e portuguesas que não se revêem no actual rumo têm de continuar a reunir forças para resistir à estratégia de retrocesso social e para construir as condições para uma alternativa de governação que faça frente à chantagem e devolva ao país um sentido de esperança no futuro.
O Congresso Democrático das Alternativas apela, assim, à mobilização de todas e todos para as iniciativas de protesto que terão lugar no mês de Outubro (nomeadamente, as manifestações convocadas pela CGTP, dia 19, e pelo Que Se Lixe a Troika!, dia 26), bem como para o esforço de clarificação dos propósitos e das implicações da estratégia do governo e da troika.
Ao longo das próximas semanas, o Congresso Democrático das Alternativas irá realizar iniciativas de debate e esclarecimento sobre o livro A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes e sobre a proposta de OE para 2014, culminando numa grande iniciativa pública que terá lugar no dia 31 de Outubro, em Lisboa.»
Comunicado do Congresso Democrático das Alternativas, «O segundo resgate vem a caminho - e a culpa não é do Tribunal Constitucional». Na foto, António Mexia, no Jornal da Tarde do passado sábado (a partir do minuto catorze), a dar o seu despudorado contributo para campanha contra o TC (não sendo menos impressionante a facilidade com que os órgãos de comunicação social continuam a utilizar a expressão «ajuda externa»).
O governo tem vindo a afirmar que as decisões do Tribunal Constitucional (TC) estão a tornar cada vez mais provável a necessidade de um segundo resgate. Ao insistir nesta ideia, o governo tem três objectivos: 1) Desresponsabilizar-se pela crise económica e social que atravessa o país; 2) Justificar as privatizações e os cortes nos serviços públicos e nas prestações sociais que se prepara para anunciar com a proposta de Orçamento de Estado (OE) para o próximo ano; e 3) Ir instalando na sociedade portuguesa a ideia de inevitabilidade da continuação da actual estratégia de governação para lá de 2014. Face a isto, é fundamental compreender e afirmar com clareza que:
O Estado português não conseguirá, tão cedo, financiar-se nos mercados internacionais - mas isto não decorre das decisões do TC
Portugal tem uma dívida pública superior a 130% do PIB, um endividamento externo historicamente elevado, uma estrutura económica débil e um sector financeiro enfraquecido. O país não dispõe de instrumentos de política económica para lidar com estes problemas e quem deles dispõe – ou seja, as instituições europeias - recusa-se a pô-los em prática, preferindo usar o seu poder de chantagem para impor aos países periféricos e, por arrasto, ao conjunto da UE, um modelo de sociedade que não foi sufragado nas urnas.
Nestas condições, a dívida portuguesa é impagável e é isso que explica a persistência das elevadas taxas de juro dos títulos da dívida portuguesa. É por essa razão que o "regresso aos mercados" nunca passou de uma ilusão, usada pelo governo para justificar os sacrifícios até aqui impostos ao país e aos portugueses.
A estratégia do governo e da troika não resolve – antes agrava – os bloqueios que economia portuguesa enfrenta
Segundo o governo, a destruição dos serviços públicos e a desregulação das relações de trabalho são o caminho para sair da crise. No entanto, após três anos de austeridade tornou-se ainda mais claro que esta estratégia não resolve, antes agrava, os bloqueios que a economia portuguesa enfrenta – desde logo, um endividamento insustentável e uma estrutura produtiva débil. Se esta trajectória não for interrompida, Portugal terá uma sociedade ainda mais desigual e entregue às lógicas de mercado. Esse será o único "sucesso" do "programa de ajustamento" do governo e da troika.
As alternativas existem e são urgentes
O caminho da devastação social e económica não se inverterá enquanto não se impuser uma renegociação da dívida pública portuguesa que seja consentânea com uma política de relançamento do emprego, de valorização do trabalho e de restabelecimento dos direitos que asseguram uma sociedade decente. Os portugueses e portuguesas que não se revêem no actual rumo têm de continuar a reunir forças para resistir à estratégia de retrocesso social e para construir as condições para uma alternativa de governação que faça frente à chantagem e devolva ao país um sentido de esperança no futuro.
O Congresso Democrático das Alternativas apela, assim, à mobilização de todas e todos para as iniciativas de protesto que terão lugar no mês de Outubro (nomeadamente, as manifestações convocadas pela CGTP, dia 19, e pelo Que Se Lixe a Troika!, dia 26), bem como para o esforço de clarificação dos propósitos e das implicações da estratégia do governo e da troika.
Ao longo das próximas semanas, o Congresso Democrático das Alternativas irá realizar iniciativas de debate e esclarecimento sobre o livro A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes e sobre a proposta de OE para 2014, culminando numa grande iniciativa pública que terá lugar no dia 31 de Outubro, em Lisboa.»
Comunicado do Congresso Democrático das Alternativas, «O segundo resgate vem a caminho - e a culpa não é do Tribunal Constitucional». Na foto, António Mexia, no Jornal da Tarde do passado sábado (a partir do minuto catorze), a dar o seu despudorado contributo para campanha contra o TC (não sendo menos impressionante a facilidade com que os órgãos de comunicação social continuam a utilizar a expressão «ajuda externa»).
sexta-feira, 27 de setembro de 2013
Limitar a rigidez patronal
O Tribunal Constitucional limitou ontem a rigidez patronal que o governo pretendia introduzir no código de trabalho, preservando assim algumas liberdades laborais. Não acham que falar assim é mais correcto? As palavras são importantes, o enquadramento é decisivo. Uma vitória das classes trabalhadoras que muito deve à luta da CGTP, que recusou um acordo anti-constitucional, e dos partidos de esquerda que lhe deram tradução parlamentar, não sendo indiferentes à sorte de quem trabalha. De resto, sabemos que o aumento da rigidez patronal que o governo pretendia introduzir não travaria as dinâmicas de destruição de emprego, antes pelo contrário, e aumentaria decisivamente a desigualdade na repartição. Uma mensagem importante, ainda para mais quando se tem em conta a rigidez ideológica da troika e o seu intransigente programa de diminuição das liberdades laborais.
quinta-feira, 26 de setembro de 2013
Leituras em tempos financeiros
Comparado com a maioria do comentário económico nacional, o que ainda anda entretido com uma discussão moralista sobre uma variável endógena, o défice orçamental, como se este fosse puro produto da força ou fraqueza políticas, o comentário económico do Financial
Times, em especial o semanal de Martin Wolf, é perigosamente esquerdista. É notável, mas não surpreendente, que junto de um economista liberal britânico, o melhor defensor da globalização que eu conheço, encontremos hoje mais recursos para defender os interesses da maioria dos que por aqui vivem. No
seu artigo de ontem, Wolf volta a insistir num ponto relevante para Portugal: a potência hegemónica da Zona Euro, a Alemanha, também exporta desemprego e bancarrota para as suas periferias e o seu suposto plano de transformar a Europa numa espécie de grande Alemanha é inviável, já que a Zona é demasiado grande para ver o seu crescimento guiado pelas exportações para fora e, de qualquer forma, os eventuais excedentes com o resto do mundo reforçam a tendência do euro para a apreciação, esmagando ainda mais periferias deprimidas por uma austeridade sem fim. Um plano inviável e
que só pode ser recusado a partir das periferias, digo eu. O resto são mesmo moralismos orçamentais de quem usa a austeridade permanente inscrita no euro para destruir o Estado social.
'Buen Vivir' no CIDAC
O CIDAC - Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral prossegue o seu ciclo de iniciativas sobre propostas alternativas de desenvolvimento. Depois de Serge Latouche (decrescimento) e Immanuel Wallerstein (teoria do sistema-mundo), é a vez de debater o conceito e proposta política de 'buen vivir', que enfatiza a dignidade e a harmonia com a natureza em detrimento do crescimento económico. O convidado é Alberto Acosta - economista, professor universitário e ex-ministro das minas e energia no primeiro governo de Rafael Correa. Às três sessões do Círculo de Leitura, orientado por Jochen Oppenheimer, seguir-se-ão um seminário e uma conferência pública pelo próprio Acosta. Em outubro e novembro, com inscrições por e-mail até ao final desta semana. Mais informações aqui.
terça-feira, 24 de setembro de 2013
«Vá visitar os seus impostos!»
O cartaz publicitário de uma agência de viagens sediada em Karlsruhe, cidade independente do Estado Alemão de Baden-Württemberg, não podia ser mais claro, ao promover férias nos «PIIGS» com uma frase seca e lapidar: «Vá visitar os seus impostos!» («Besuchen Sie doch ihre Steuern!» - rodeada das referências a Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha).
De facto, a retumbante vitória de Angela Merkel em muito deve à persistência, junto da opinião pública alemã, da campanha de desinformação em torno do «norte que trabalha» e do «sul irresponsável e esbanjador». Não se esperem, por isso, mudanças de fundo no dictat europeu: para além das razões apontadas pelo João Rodrigues e pelo Daniel Oliveira em dois excelentes posts, este factor de motivação do voto continua a ter uma força determinante. A chanceler já se encarregou, aliás, de dissipar dúvidas que existissem: «nada vai mudar em termos de orientação de política europeia»: o ajustamento assente na austeridade e no esmagamento dos salários (directos e indirectos) é para continuar.
Mas é também por isso que os resultados das eleições alemãs revelam, em segundo lugar, a incapacidade de diálogo e de construção, à esquerda, de uma proposta alternativa para a crise europeia. De uma proposta clara, robusta, metódica e consequente, capaz de derrubar, de forma convincente, a narrativa hegemónica que assim prevalece. Hegemonia no discurso à direita e défice de convergência programática à esquerda: dois sinais importantes das eleições alemãs que importa ter em conta quando se pensa em Portugal.
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
Aqui
As eleições alemãs foram marcadas pela vitória, perto da maioria absoluta, da CDU de Merkel, por um ligeiro crescimento do SPD, pela derrota da esquerda, com a descida do Die Linke, que perdeu mais de um quarto dos votos, e mesmo dos Verdes, mais social-liberais do que outra coisa. E já nem falo da colonização ordoliberal do SPD, que não é de agora. Perante isto,
perante o reforço dos dois partidos da alternância sem alternativa, agora juntos de novo no governo, a derrocada dos liberais, sempre positiva, é um detalhe. No fundo, creio que as eleições alemãs traduzem politicamente o desenvolvimento socioeconómico desigual na Zona Euro, em que aqui tenho insistido: se depender da maioria de uma Alemanha que se sente com força, nada mudará ou mudará o que tiver de mudar para que tudo fique na mesma.
A verdadeira mudança, a ocorrer, não será desencadeada à escala europeia, ao contrário do que insistem muitos europeístas. Terá de ocorrer pelas periferias, país a país, ali onde a crise económica e social se faz sentir com uma intensidade impar e onde o esfarelamento das soluções políticas convencionais é plausível a prazo. Mais tarde ou mais cedo, aí será eleito um governo que tenha a coragem de um acto soberano democrático, recusando a chantagem austeritária e desobedecendo às regras europeias que bloqueiam tudo menos o neoliberalismo. Aí sim, as coisas começarão a mudar na escala de que a Europa ainda é feita, por contágio político e por acção inconsciente das forças económicas.
O melhor é então agir sem esperar pela Alemanha, como diz o Daniel Oliveira, agir como se tudo dependesse dos que aqui vivem, sem esquecer as articulações possíveis com outros na mesma situação, mas sem ilusões sobre a sobreposição da escala das solidariedades mais ou menos abstractas com a escala onde ocorrerão as mudanças concretas.
A verdadeira mudança, a ocorrer, não será desencadeada à escala europeia, ao contrário do que insistem muitos europeístas. Terá de ocorrer pelas periferias, país a país, ali onde a crise económica e social se faz sentir com uma intensidade impar e onde o esfarelamento das soluções políticas convencionais é plausível a prazo. Mais tarde ou mais cedo, aí será eleito um governo que tenha a coragem de um acto soberano democrático, recusando a chantagem austeritária e desobedecendo às regras europeias que bloqueiam tudo menos o neoliberalismo. Aí sim, as coisas começarão a mudar na escala de que a Europa ainda é feita, por contágio político e por acção inconsciente das forças económicas.
O melhor é então agir sem esperar pela Alemanha, como diz o Daniel Oliveira, agir como se tudo dependesse dos que aqui vivem, sem esquecer as articulações possíveis com outros na mesma situação, mas sem ilusões sobre a sobreposição da escala das solidariedades mais ou menos abstractas com a escala onde ocorrerão as mudanças concretas.
domingo, 22 de setembro de 2013
Bancocracia
É o título de um trabalho de Paulo Pena na Visão. Relembra o quase colapso do sector financeiro dito moderno e desenvolvido, em 2008, e quem o travou, algo que a sabedoria ainda convencional pretende que se esqueça, porque afinal de contas foi o “despesismo” que nos trouxe aqui ou qualquer variação da mesma fraude que inventem entretanto. O Nuno Teles assinala aí e aqui duas ou três coisas muito importantes: “o sector financeiro, sobretudo a banca, é sem dúvida o mais poderoso da economia portuguesa, e tutela a política económica”; “os mecanismos que deram origem à crise quase não se alteraram”. Os mesmos mecanismos, interesses, ideias e instituições, as mesmas causas, os mesmos efeitos – da desigualdade à crise económica, passando pela geração e transferência de custos sociais de um sector financeiro com rédea solta para o conjunto da sociedade. Até quando?
sábado, 21 de setembro de 2013
Tempo de trilemas
Com o actual caminho, vejo a economia portuguesa ser arrastada por um período muito, muito longo de desemprego elevado e procura baixa. Se Portugal saísse da Zona Euro, os efeitos imediatos seriam muito duros, mas com hipóteses de uma recuperação num ou dois anos. Saber se o país quer ir numa direcção ou noutra é uma decisão política. Mas quanto mais tempo ficarmos neste pântano, mais forte será o argumento para sair (...) Temos de reconhecer que algumas dívidas não podem ser pagas. O pior que se pode fazer com elas é continuar a refinanciá-las e, através de novos empréstimos, aumentar a dívida (...) Reabilitar a democracia, de forma que seja compatível com os mercados e alguma globalização, será um dos principais desafios.
sexta-feira, 20 de setembro de 2013
Afastados da Irlanda estamos nós há muito tempo
Segundo as fórmula simplistas como se faz política e comentário televisivo, temos de escolher entre ser parecidos com a Grécia ou com a Irlanda. As coisas, na verdade, são sempre um pouco mais complicadas do que isso. Dito isto, há um aspeto fundamental em que somos definitivamente mais parecidos com a Grécia do que com a Irlanda: a dívida externa antes da crise.
Como procuramos argumentar aqui e aqui, nas vésperas da grande crise internacional de 2008-2009, o que mais distinguia Portugal - e a generalidade dos países que foram apanhados pela crise do euro - face à média da UE era a dívida externa (e não a dívida pública). Como se pode ver pelo gráfico abaixo, a principal excepção a este padrão era, precisamente, a Irlanda, cujos níveis de endividamento externo não se afastavam da média da zona euro.
Quando os investidores internacionais olham para estes dados vêem, de um lado, países que revelavam há vários anos dificuldades crescentes em equilibrar as suas contas externas (incluindo Grécia, Portugal e Espanha) e, de outro lado, países cujas dificuldades recentes parecem prender-se mais com a sua exposição à crise financeira internacional do que com uma fraca estrutura produtiva (como a Irlanda).
Se as dificuldades são grandes para estes últimos, são incomensuravelmente maiores para aqueles que há vários anos vinham revelando ter uma estrutura económica pouco compatível com os termos da sua participação nos processos de integração europeia e de globalização comercial.
Neste sentido, não nos estamos a tornar mais parecidos com a Grécia: somo-lo há muito tempo.
Como procuramos argumentar aqui e aqui, nas vésperas da grande crise internacional de 2008-2009, o que mais distinguia Portugal - e a generalidade dos países que foram apanhados pela crise do euro - face à média da UE era a dívida externa (e não a dívida pública). Como se pode ver pelo gráfico abaixo, a principal excepção a este padrão era, precisamente, a Irlanda, cujos níveis de endividamento externo não se afastavam da média da zona euro.
Posição do Investimento Internacional em percentagem do PIB, 2007
Fonte: AMECO
Quando os investidores internacionais olham para estes dados vêem, de um lado, países que revelavam há vários anos dificuldades crescentes em equilibrar as suas contas externas (incluindo Grécia, Portugal e Espanha) e, de outro lado, países cujas dificuldades recentes parecem prender-se mais com a sua exposição à crise financeira internacional do que com uma fraca estrutura produtiva (como a Irlanda).
Se as dificuldades são grandes para estes últimos, são incomensuravelmente maiores para aqueles que há vários anos vinham revelando ter uma estrutura económica pouco compatível com os termos da sua participação nos processos de integração europeia e de globalização comercial.
Neste sentido, não nos estamos a tornar mais parecidos com a Grécia: somo-lo há muito tempo.
Bons livros sobre a crise também do outro lado da fronteira
Acaba de ser publicado em Espanha um livro sobre a crise europeia e as alternativas, Fractura y Crisis en Europa, de um conjunto de economistas críticos, colaboradores deste sítio da internet também ele muito recomendável (Econonuestra). As convergências no que se vai fazendo pelo sul da Europa são claras e de louvar. A construção das alternativas, essencial para qualquer projecto político sólido, faz o seu caminho.
Percentagens
Aparentemente, segundo uma sondagem internacional, Portugal é o campeão da austeridade, com 70% dos portugueses a favor de mais
cortes, o que parece estar desalinhado com outras sondagens, mas as coisas são como são os enquadramentos.
Teresa de Sousa, no Público, com a objectividade que se lhe conhece, acha que os portugueses exibem “uma visão realista sobre o que é preciso fazer”, até porque “não houve verdadeiros cortes naquilo que vêem como despesa do Estado (...) [h]ouve redução de salários e de pensões, o que não é exactamente a mesma coisa”. É exasperante ler, nesta fase do campeonato, tais dislates numa notícia de um jornal de referência: pensões e salários são o grosso da despesa pública. Pergunte-se aos funcionários públicos, pensionistas, desempregados ou beneficiários do RSI se não houve verdadeiros cortes.
De resto, os portugueses inquiridos, mas disto não fala Teresa de Sousa, são a favor de cortes na despesa em geral, ou em áreas menores (defesa e infraestruturas de transporte), mas não na educação ou noutras despesas sociais (“bem-estar”), ou seja, pretendem ver o grosso da despesa a salvo da austeridade, defendendo a sua manutenção ou aumento. E ninguém os inquiriu sobre cortes no serviço da dívida, uma componente da despesa cada vez mais importante e a única que se pode cortar sem impactos recessivos. Basta um governo com coragem e que defenda os interesses da maioria dos que por aqui vivem.
Bom, o que o inquérito tem de mais interessante, tendo em conta que o debate nacional sobre a UE e o euro parece ser dominado por gente para quem Bruxelas e Washington substituíram Pequim ou Moscovo, é que uma proeminente maioria de inquiridos portugueses (65%) acha que o euro foi mau para a economia e que 36% é a favor da saída do euro. Isto sim é relevante, até porque estas percentagens têm crescido e estão destinadas a crescer. E ainda falta quem lhes dê uma expressão política mais clara. Tudo começa pela desobediência à troika.
Teresa de Sousa, no Público, com a objectividade que se lhe conhece, acha que os portugueses exibem “uma visão realista sobre o que é preciso fazer”, até porque “não houve verdadeiros cortes naquilo que vêem como despesa do Estado (...) [h]ouve redução de salários e de pensões, o que não é exactamente a mesma coisa”. É exasperante ler, nesta fase do campeonato, tais dislates numa notícia de um jornal de referência: pensões e salários são o grosso da despesa pública. Pergunte-se aos funcionários públicos, pensionistas, desempregados ou beneficiários do RSI se não houve verdadeiros cortes.
De resto, os portugueses inquiridos, mas disto não fala Teresa de Sousa, são a favor de cortes na despesa em geral, ou em áreas menores (defesa e infraestruturas de transporte), mas não na educação ou noutras despesas sociais (“bem-estar”), ou seja, pretendem ver o grosso da despesa a salvo da austeridade, defendendo a sua manutenção ou aumento. E ninguém os inquiriu sobre cortes no serviço da dívida, uma componente da despesa cada vez mais importante e a única que se pode cortar sem impactos recessivos. Basta um governo com coragem e que defenda os interesses da maioria dos que por aqui vivem.
Bom, o que o inquérito tem de mais interessante, tendo em conta que o debate nacional sobre a UE e o euro parece ser dominado por gente para quem Bruxelas e Washington substituíram Pequim ou Moscovo, é que uma proeminente maioria de inquiridos portugueses (65%) acha que o euro foi mau para a economia e que 36% é a favor da saída do euro. Isto sim é relevante, até porque estas percentagens têm crescido e estão destinadas a crescer. E ainda falta quem lhes dê uma expressão política mais clara. Tudo começa pela desobediência à troika.
Lançamento em Coimbra: «A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes»
A reportagem do lançamento em Coimbra, na passada terça-feira, com entrevistas aos apresentadores (José Reis e Daniel Oliveira) e a dois dos autores (João Rodrigues e Nuno Teles). Encontrando-se esgotado na maior parte das livrarias - e enquanto não é feita nova tiragem - lembramos que o livro pode ser adquirido nas bancas de jornais que vendem o Le Monde Diplomatique de Setembro (edição portuguesa).
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
O fardo e a farsa
A devastação e desagregação da sociedade portuguesa são evidentes e terríveis. Mas mesmo em termos estritamente macroeconómicos, o programa de “ajustamento” implementado pelo governo e pela troika tem sido, pura e simplesmente, uma calamidade. Nos dois anos de implementação do Memorando, a dívida pública passou de 107% para 132% do PIB (ou 123%, descontando os depósitos da administração central). O PIB caiu 5,4%. O desemprego oficial aumentou de 13% para 17%. O investimento caiu cerca de 20%, mesmo contando com a efémera recuperação no último trimestre. A redução do défice externo deveu-se quase exclusivamente à recessão e depende da eternização desta para ser sustentável. E a dívida externa líquida aumentou de 106% para cerca de 123% do PIB.
Foi sempre óbvio que assim seria. Como qualquer economista minimamente capaz sabe, a tentativa de desalavancagem simultânea por parte de todos os sectores da economia (famílias, empresas e Estado) não produz outra coisa que não recessão – e, em termos agregados, impede a redução do fardo real do endividamento de cada um desses sectores. Perante uma situação de sobreendividamento da economia como um todo, a austeridade nunca resolve o problema – apenas o agrava.
Portugal vive hoje uma situação aparentemente paradoxal em que os défices públicos substanciais nada fazem para estimular a economia, pois destinam-se unicamente a pagar juros sobre a dívida pública, sendo na sua vasta maioria canalizados para fora do país – o mesmo sucedendo com o serviço da dívida privada. Tudo isto com o objectivo único de adiar a inevitável reestruturação, de modo a que o governo tenha mais tempo para prosseguir a sua agenda neoliberal e para que se complete a ‘grande substituição’ da titularidade da dívida pública portuguesa, a fim de que a factura da reestruturação seja paga pelos contribuintes europeus e não pelo sector financeiro.
Um governo a sério estaria a negociar a forma de remover este fardo. Este governo, fingindo negociar, não faz mais do que encenar uma farsa.
Open letter to some pieces of shit
«Olá, amiguinhos do FMI. Eu sou o ratinho branco. Desculpem estar a incomodar-vos agora que vocês estão com stress pós-traumático por terem lixado isto tudo. Concluíram vocês, depois do leite derramado: "A austeridade pode ser autodestrutiva." E: "O que fizemos foi contraproducente." Quem sou eu para desmentir, eu que, no fundo, só fiquei com o canto dos lábios caídos, sem esperança? O que é isso comparado com a vossa dor?! Eu só estiquei o pernil ou apanhei três tipos de cancro, mas é para isso que servimos nos laboratório: somos baratos e dóceis. Já vocês não têm esses estados de alma (ficar sem emprego, que mau gosto...), vocês são deuses com fatos de alpaca e gravata vermelha como esses três novos que acabam de desembarcar para nos analisar os reflexos. "Corre, ratinho branco!", e eu corro. Vocês cortam-me as patas: "Corre, ratinho branco!", e eu não corro. E vocês apontam nos vossos canhenhos sábios: "Os ratos sem pernas ficam surdos." Como vocês são sábios! E humildes. Fizeram-nos uma experiência que falhou e fazem um relatório: olha, falhou. Que lição de profissionalismo, deixam-nos na merda e assumem. Assumir quer dizer "vamos mudar-lhes as doses", não é? E, amanhã, se falhar, outro relatório: olha, falhou. O vosso destino, amiguinhos do FMI, eu compreendo. Vocês são aves de arribação, falham aqui, partem para ali. Entendo menos o dos vossos kapos locais: em falhando e ficando, porque continuam seguros no laboratório?»
O título (traduzido) e a crónica de Ferreira Fernandes no DN de hoje (e que nos deixa a pensar na designação a dar a outras «aves de arribação», com uma capacidade de desfaçatez ainda maior ou cujo esforço de dissimulação se revela num tímido - e propositadamente ambíguo - pedido de «bom senso»).
O título (traduzido) e a crónica de Ferreira Fernandes no DN de hoje (e que nos deixa a pensar na designação a dar a outras «aves de arribação», com uma capacidade de desfaçatez ainda maior ou cujo esforço de dissimulação se revela num tímido - e propositadamente ambíguo - pedido de «bom senso»).
Permanecer no euro é o suicídio da nação
Por estes dias, já muitos portugueses perderam as ilusões quanto à mudança que acreditavam poder acontecer na Europa após as eleições alemãs. O embaixador da Alemanha em Lisboa não podia ser mais claro: “De todos os modos, teremos sempre no governo um leque de partidos pró-europeus e apoiantes dos programas de assistência, como o que está em curso em Portugal” (“Jornal de Negócios”, 16 Set. 2013).
À medida que nos aproximamos de mais uma ronda de negociações com a troika, torna-se evidente que o essencial da austeridade não é negociável. Salta à vista que, pelo menos no caso da Comissão Europeia e do BCE, a troika está determinada a impor uma reconfiguração do Estado social para que este deixe de ser o eixo de uma sociedade que aspira a níveis mais elevados de justiça social. O princípio neoliberal da “livre escolha”, na saúde e na educação, é agora abertamente defendido pelo governo e os países onde esta matriz ideológica alcançou o poder são apontados como os bons exemplos que deveríamos seguir.
De facto, a chamada “assistência financeira” ao país não visa colmatar um problema temporário de tesouraria. Tendo constatado os sintomas de um impasse no modelo de desenvolvimento do país, sobretudo desde que se integrou na UEM (défice externo persistente, acumulação da dívida externa, desindustrialização, desemprego elevado), o Memorando impôs-nos uma mudança inspirada nos princípios do Consenso de Washington e no ordoliberalismo alemão. Ao contrário das anteriores ajudas do FMI, esta intervenção da troika atropela a Constituição da República Portuguesa porque condiciona o financiamento à consagração de um modelo social e político de matriz neoliberal que, na sua institucionalização, viola princípios constitucionais basilares.
Ou seja, do ponto de vista do eixo Berlim-Frankfurt, Portugal ainda pode ser um caso de sucesso. Apenas precisa de colocar na Constituição o Tratado Orçamental para impedir políticas orçamentais contracíclicas, reconverter o Estado social num pobre Estado para pobres, destruir a classe média e os mecanismos de ascensão social que a mantêm, reduzir ainda mais 30% aos salários do sector privado (excluindo gestores e administradores), fazer da emigração uma válvula de escape das tensões sociais e, sobretudo, impregnar a sociedade portuguesa de uma sensação difusa, misto de culpabilidade e inevitabilidade. Quando tivermos chegado aí, a economia entrará numa estagnação duradoura, alternando pequenas recessões com períodos de crescimento sem criação de emprego. Portugal será então um país simpático e (ainda mais) barato para os reformados da Europa rica. Não terá dinheiro para manter as infra-estruturas públicas em todo o país, mas cuidará das zonas de acolhimento dos turistas, como se faz em Cuba.
Se continuarmos à espera dos resultados das eleições alemãs, ou das que virão a seguir para o Parlamento Europeu, é este o futuro que nos espera. Um futuro que trai miseravelmente o esforço de sangue, suor e lágrimas das gerações que nos precederam e tornaram Portugal uma comunidade, um Estado-nação com uma cultura de que nos orgulhamos e que enriqueceu a Europa e o mundo. Após décadas de ditadura, o país ainda anda à procura do seu modelo de desenvolvimento, talvez mesmo da sua identidade, possivelmente a de ser um elo de confiança entre a Europa e outros continentes, mas é um país profundamente solidário. Apesar de traído pelas suas elites, europeístas a qualquer preço, talvez Portugal ainda encontre energia para recusar tornar-se numa Detroit do extremo ocidental da Europa. Talvez sejamos capazes de recusar o estatuto de autarquia local europeia que nos preparam, um território empobrecido e sem instrumentos relevantes de política económica. Talvez sejamos capazes de construir uma alternativa política que nos devolva a esperança. Talvez.
(O meu artigo no jornal i)
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
Hoje: «Que fazer com este euro?»
«Os cidadãos portugueses e os de cada vez mais países de uma União Europeia e Monetária disfuncional estão a ser submetidos há mais de dois anos a políticas austeritárias sem vocação nem capacidade para resolver os problemas que os afligem (desemprego, precariedade, pobreza, emigração). Pior ainda, elas agravam todos os desajustamentos que diziam querer corrigir (défice, dívida, crescimento). Perante o estado de degradação do país e os bloqueios institucionais e monetários europeus, as escolhas a fazer não são fáceis. Que implicações terá ficar ou sair da zona euro? Em que condições poderá Portugal seguir uma rota de desenvolvimento sustentável e socialmente justo? Como podem os povos europeus evitar a tragédia que se anuncia?»
Debate em torno de um livro que tem pelo menos dois grandes méritos: o de não fugir de uma discussão que se torna cada vez mais inadiável e o de saber colocar, em diálogo construtivo, linhas de pensamento plurais sobre a moeda única e a integração europeia. É hoje, a partir das 18h00, no Auditório do CIUL (Picoas Plaza), em Lisboa.
terça-feira, 17 de setembro de 2013
Hoje é em Coimbra
«Para reagir à crise é preciso compreendê-la. Este livro ajuda-nos a entender o que mais importa. Este livro mostra-nos também que não há resposta à crise sem escolhas difíceis: sair da austeridade e do memorando, ou insistir cada vez mais no mesmo; renegociar a dívida, ou perder tudo para pagar até o último cêntimo; aceitar o euro tal como existe sem fazer perguntas, ou preparar saídas».
José Castro Caldas, economista e investigador do CES.
«A recusa da opressão, da desvalorização económica e da destruição social faz-se com ideias e com ação coerente. E com opções claras. Este é um livro de análise profunda, pensamento original e propostas mobilizadoras. Há, pois, alternativas.»
José Reis, economista e Professor Catedrático da FEUC.
«Este livro é também um tributo ao exercício da cidadania e da cooperação (sim, há mais mundo do que o do «empreendedorismo» e da «competição»… e funciona). Uma cidadania que não é efémera, antes visando um duplo futuro: o da capacitação para a acção que imponha uma sociedade decente e o do legado documental de um livro que será, como me disse um leitor a quem só li o índice, um testemunho para as próximas gerações de que, “no meio disto tudo, não éramos todos parvos”.»
Sandra Monteiro, directora do Le Monde diplomatique (edição portuguesa).
Dos comentários ao livro, que é hoje lançado em Coimbra a partir das 18h00 na Sala Keynes (Faculdade de Economia). Apresentação a cargo de José Reis e Daniel Oliveira, com a presença dos autores João Rodrigues e Nuno Teles. Estão todos convidados.
José Castro Caldas, economista e investigador do CES.
«A recusa da opressão, da desvalorização económica e da destruição social faz-se com ideias e com ação coerente. E com opções claras. Este é um livro de análise profunda, pensamento original e propostas mobilizadoras. Há, pois, alternativas.»
José Reis, economista e Professor Catedrático da FEUC.
«Este livro é também um tributo ao exercício da cidadania e da cooperação (sim, há mais mundo do que o do «empreendedorismo» e da «competição»… e funciona). Uma cidadania que não é efémera, antes visando um duplo futuro: o da capacitação para a acção que imponha uma sociedade decente e o do legado documental de um livro que será, como me disse um leitor a quem só li o índice, um testemunho para as próximas gerações de que, “no meio disto tudo, não éramos todos parvos”.»
Sandra Monteiro, directora do Le Monde diplomatique (edição portuguesa).
Dos comentários ao livro, que é hoje lançado em Coimbra a partir das 18h00 na Sala Keynes (Faculdade de Economia). Apresentação a cargo de José Reis e Daniel Oliveira, com a presença dos autores João Rodrigues e Nuno Teles. Estão todos convidados.
Mitos do cheque-ensino: «a supremacia das escolas privadas» (II)
A ideia de que, em Portugal, o ensino público tem um peso tão esmagador que quase impede a existência do ensino privado associa-se a outra ideia, também ela falsa - e recorrente nos argumentos dos defensores do cheque-ensino - segundo a qual as escolas privadas são melhores que as públicas (como supostamente demonstraria, por exemplo, a diferença obtida nos rankings de resultados dos exames nacionais).
Sucede porém, como bem se sabe, que as escolas privadas escolhem selectivamente os seus alunos, tendo nesse sentido o cuidado de assegurar (por forma a manter e consolidar o seu «prestígio» e posição nos rankings) que os mesmos provém, o mais possível, de famílias de classe alta e média-alta. Isto é, de agregados familiares com elevados níveis de escolaridade e rendimento, capazes de proporcionar aos seus filhos um background familiar e social que claramente favorece o seu desempenho escolar.
Este diferenciação sócio-económica de partida dos alunos do ensino público e privado - resultante da «liberdade de escolha» de que usufruem os colégios e escolas particulares (e que esboroa qualquer tentativa séria de comparação da «eficiência» dos dois sistemas) - não pode, infelizmente, ser exaustivamente apurada. Porquê? Por uma razão simples: porque nem o Ministério da Educação exige às escolas privadas informação sobre o estatuto sócio-económico dos seus alunos (ao contrário do que faz, e bem, relativamente à escola pública) nem as escolas privadas - por razões que bem se entendem - sistematizam e divulgam essa mesma informação. A sobrevivência do mito da supremacia do ensino privado aconselha, de facto, a um cauteloso silêncio estatístico.
Apesar disso, há alguns estudos que permitem - ainda que de modo amostral - confirmar quantitativamente o que todos sabemos. É o caso, por exemplo, do artigo de Manuel Coutinho Pereira, publicado em 2011 no Boletim Económico do Banco de Portugal («Desempenho educativo e igualdade de oportunidades em Portugal e na Europa: o papel da escola e a influência da família»), que analisa dados do PISA de 2006 (a partir dos quais se elaborou o gráfico lá em cima). Nele se demonstra que - ao contrário da ideia que se procura propagar - a suposta supremacia das escolas privadas não resulta de uma espécie de «código genético» deste sector de ensino, mas antes de uma clara «natureza de classe», que explica a sua aparente vantagem comparativa (e que é - mesmo assim - apenas marginal).
Mas quer então isto dizer que se for removida a diferença de origem social dos alunos nada passa a distinguir as escolas públicas das privadas? Não necessariamente. Uma parte da explicação para os distintos resultados escolares tendencialmente obtidos deve-se também ao facto de os estabelecimentos de ensino privado serem em regra de menor dimensão, muitos deles com turmas constituídas com um menor número de alunos e com um funcionamento orgânico mais definido e consolidado. O que deveria obrigar a cessar, de imediato, todas as medidas que instauram o caos e degradam intencionalmente a escola pública.
Sucede porém, como bem se sabe, que as escolas privadas escolhem selectivamente os seus alunos, tendo nesse sentido o cuidado de assegurar (por forma a manter e consolidar o seu «prestígio» e posição nos rankings) que os mesmos provém, o mais possível, de famílias de classe alta e média-alta. Isto é, de agregados familiares com elevados níveis de escolaridade e rendimento, capazes de proporcionar aos seus filhos um background familiar e social que claramente favorece o seu desempenho escolar.
Este diferenciação sócio-económica de partida dos alunos do ensino público e privado - resultante da «liberdade de escolha» de que usufruem os colégios e escolas particulares (e que esboroa qualquer tentativa séria de comparação da «eficiência» dos dois sistemas) - não pode, infelizmente, ser exaustivamente apurada. Porquê? Por uma razão simples: porque nem o Ministério da Educação exige às escolas privadas informação sobre o estatuto sócio-económico dos seus alunos (ao contrário do que faz, e bem, relativamente à escola pública) nem as escolas privadas - por razões que bem se entendem - sistematizam e divulgam essa mesma informação. A sobrevivência do mito da supremacia do ensino privado aconselha, de facto, a um cauteloso silêncio estatístico.
Apesar disso, há alguns estudos que permitem - ainda que de modo amostral - confirmar quantitativamente o que todos sabemos. É o caso, por exemplo, do artigo de Manuel Coutinho Pereira, publicado em 2011 no Boletim Económico do Banco de Portugal («Desempenho educativo e igualdade de oportunidades em Portugal e na Europa: o papel da escola e a influência da família»), que analisa dados do PISA de 2006 (a partir dos quais se elaborou o gráfico lá em cima). Nele se demonstra que - ao contrário da ideia que se procura propagar - a suposta supremacia das escolas privadas não resulta de uma espécie de «código genético» deste sector de ensino, mas antes de uma clara «natureza de classe», que explica a sua aparente vantagem comparativa (e que é - mesmo assim - apenas marginal).
Mas quer então isto dizer que se for removida a diferença de origem social dos alunos nada passa a distinguir as escolas públicas das privadas? Não necessariamente. Uma parte da explicação para os distintos resultados escolares tendencialmente obtidos deve-se também ao facto de os estabelecimentos de ensino privado serem em regra de menor dimensão, muitos deles com turmas constituídas com um menor número de alunos e com um funcionamento orgânico mais definido e consolidado. O que deveria obrigar a cessar, de imediato, todas as medidas que instauram o caos e degradam intencionalmente a escola pública.
domingo, 15 de setembro de 2013
Terça-feira, em Coimbra, numa sala com um nome apropriado
Entretanto, Octávio Teixeira, um dos economistas que há mais tempo identificou as consequências negativas da UEM e de outros arranjos neoliberais para o nosso país, fez uma generosa menção ao livro na sua rubrica da Antena 1.
Compromisso igualitário
No Expresso desta semana, Rui Ramos afiança que a esquerda viola o seu compromisso igualitário ao recusar as taxas moderadoras na saúde, que impeçam um banqueiro de aceder gratuitamente ao SNS, ao recusar o plafonamento na segurança social, que impeça um banqueiro de auferir uma pensão elevada, supostamente paga pelos mais pobres, ou o cheque-ensino, que facilita o acesso por parte dos pobres ao ensino das elites. Como costuma acontecer, Rui Ramos está errado. Repito uma ideia em que aqui tenho insistido: é precisamente em nome do compromisso igualitário que a esquerda deve rejeitar estas propostas da direita intransigente.
Todos devem aceder em condições de igualdade aos serviços provisionados pelo Estado e financiados por impostos progressivos, sem barreiras pecuniárias à entrada: assim aumentam os incentivos para que cada vez mais acedam aos serviços, o que os torna menos vulneráveis politicamente, até porque os programas para pobres tendem a ser pobres programas; os grupos com menos voz beneficiam das exigências de qualidade feitas por quem tem mais voz, o sentimento de comunidade, que quebra barreiras de classe, é favorecido pela partilha de equipamentos e de prestações, etc. São muitos os mecanismos. Para além disso, sem plafonamento, há menos espaço para o capital financeiro crescer e generalizar a sua lógica iníqua, a segurança social tem mais recursos para redistribuir; sem cheque-ensino, o Estado não anda a subsidiar privados, nem a promover polarizadoras lógicas concorrenciais, antes investindo numa escola pública de qualidade para todos. Em geral, o ideal da universalidade garante serviços públicos mais robustos e prestações sociais mais generosas. Tudo é mais redistributivo. Na literatura sobre o tema, que Rui Ramos certamente não desconhece, chama-se a este padrão o paradoxo da redistribuição: os mais pobres ganham mais, o combate à pobreza é mais eficaz, se as políticas e instituições sociais forem tendencialmente para todos.
Serviços públicos universais, gratuitos no acesso, impostos progressivos e compressão salarial antes de tudo isso, graças à contratação colectiva, tão centralizada quanto possível, e a sindicatos fortes, continuam a ser elementos que constroem o chamado multiplicador da igualdade, que também é garantido por uma política económica orientada para o pleno emprego. Estes esquemas, que igualizam oportunidades e capacidades, são, na realidade, o pesadelo dos Rui Ramos e das Fátimas Bonifácios desta vida, os que inventam histórias para promover o seu programa conservador, um programa para uma sociedade com muita classe e com muita ordem.
Todos devem aceder em condições de igualdade aos serviços provisionados pelo Estado e financiados por impostos progressivos, sem barreiras pecuniárias à entrada: assim aumentam os incentivos para que cada vez mais acedam aos serviços, o que os torna menos vulneráveis politicamente, até porque os programas para pobres tendem a ser pobres programas; os grupos com menos voz beneficiam das exigências de qualidade feitas por quem tem mais voz, o sentimento de comunidade, que quebra barreiras de classe, é favorecido pela partilha de equipamentos e de prestações, etc. São muitos os mecanismos. Para além disso, sem plafonamento, há menos espaço para o capital financeiro crescer e generalizar a sua lógica iníqua, a segurança social tem mais recursos para redistribuir; sem cheque-ensino, o Estado não anda a subsidiar privados, nem a promover polarizadoras lógicas concorrenciais, antes investindo numa escola pública de qualidade para todos. Em geral, o ideal da universalidade garante serviços públicos mais robustos e prestações sociais mais generosas. Tudo é mais redistributivo. Na literatura sobre o tema, que Rui Ramos certamente não desconhece, chama-se a este padrão o paradoxo da redistribuição: os mais pobres ganham mais, o combate à pobreza é mais eficaz, se as políticas e instituições sociais forem tendencialmente para todos.
Serviços públicos universais, gratuitos no acesso, impostos progressivos e compressão salarial antes de tudo isso, graças à contratação colectiva, tão centralizada quanto possível, e a sindicatos fortes, continuam a ser elementos que constroem o chamado multiplicador da igualdade, que também é garantido por uma política económica orientada para o pleno emprego. Estes esquemas, que igualizam oportunidades e capacidades, são, na realidade, o pesadelo dos Rui Ramos e das Fátimas Bonifácios desta vida, os que inventam histórias para promover o seu programa conservador, um programa para uma sociedade com muita classe e com muita ordem.
sábado, 14 de setembro de 2013
Um jornal com princípios, meios e fins
Face ao estaleiro ideológico que tomou conta de Portugal e da Europa, a esquerda tem de arrojar um projecto político verdadeiramente alternativo com viabilidade para poder ser concretizado. Um projecto que defina à partida o tipo de sociedade e de economia que ambiciona para o país, estabelecendo, posteriormente, os meios e os instrumentos mais adequados para o atingir.
Renato Carmo, Os fins da esquerda, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Setembro de 2013.
Renato Carmo, Os fins da esquerda, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Setembro de 2013.
sexta-feira, 13 de setembro de 2013
Mais desiguais
Luís Afonso, no Negócios, a propósito do relatório da Oxfam desta semana sobre a austeridade necessariamente recessiva e regressiva. Nem de propósito, o Pedro Nuno Santos escreveu uma crónica no i sobre a importância económica do combate à desigualdade, contestando Daniel Bessa, um dos tais que tem ideias para manter Portugal no topo da desigualdade, impondo sacrifícios aos outros. Aproveito, já agora, para deixar um excerto do livro A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes que aflora este tema:
A fragilização da ação coletiva do mundo do trabalho, sobretudo dos sindicatos, a par da fragilização do Estado social de pendor universal e de alterações no sistema fiscal (que refletem, por exemplo, a continuada tendência para a redução da tributação dos lucros em sede de IRC, com o pretexto de atrair capital), representam uma fragilização da capacidade redistributiva do Estado e aumentarão as desigualdades socioeconómicas e a exclusão social, num país onde estas eram já elevadas. Hoje sabemos, por estudos empíricos detalhados, que os países mais desiguais têm maiores problemas sociais – menor mobilidade social, maiores taxas de pobreza infantil, menor confiança social e nas instituições, taxas de encarceramento mais elevadas, maior violência social e menor legitimidade das regras, elites mais corruptas, piores resultados escolares, maiores problemas de saúde pública ou maior percentagem da população empregada nas áreas da segurança. Os mecanismos são claros; a responsabilidade da fratura social que está a ser aberta também.
quinta-feira, 12 de setembro de 2013
A riqueza das nações
«A emigração irrompeu nos anos mais recentes, atingindo níveis semelhantes ao grande êxodo registado em Portugal nos anos sessenta. Fontes oficiais e investigadores apontam para que pelo menos 100 mil pessoas estejam a abandonar anualmente o país, o que equivale à saída de uma pessoa em cada cinco minutos e aproxima Portugal das taxas de emigração da Irlanda. "Num país com 10 milhões de pessoas, isto representa uma enorme vaga de emigração", diz Peixoto, sociólogo do Observatório Português da Emigração. A diferença, desta vez, é que ao contrário dos trabalhadores que deixaram o país nos anos sessenta, com baixas qualificações e na sua maioria rurais, os emigrantes de hoje possuem frequentemente graus universitários e elevadas competências profissionais. "Estamos a perder alguns dos nossos melhores e mais brilhantes", diz Peixoto. "As pessoas que estão a sair do país neste momento são jovens, urbanas e escolarizadas".»
Peter Wise (Financial Times), Portugal sees exodus of skilled workers seeking better prospects
Os anúncios sucedem-se, do norte e centro para o sul europeu: «Bélgica procura portugueses para oito mil empregos», «Alemanha procura jovens portugueses que queiram estudar e trabalhar no país», «Noruega procura engenheiros», «Três hospitais de Inglaterra estão em Lisboa à procura de 200 enfermeiros». Portugal é hoje a uma reserva disponível de mão-de-obra qualificada e desaproveitada, que fica à disposição de economias de outros países. De economias que nem sequer precisaram de investir na formação e qualificação daqueles a quem se está a negar um futuro, no seu próprio país.
O gráfico ali em cima, que acompanha a notícia do Financial Times, é uma imagem assaz eloquente do rotundo falhanço da «estratégia de empobrecimento e competitividade», desenhada pelo governo e pela Troika, que assenta em ajustamentos centrados no «factor trabalho», como dizia Cavaco Silva. Nos termos dessa estratégia, a descida dos salários tornaria a economia portuguesa mais competitiva, promovendo o aumento das exportações e fazendo crescer, por essa via, o investimento e a criação de emprego. Se estivesse certa, essa mesma estratégia teria feito com que a linha do desemprego tivesse começado a descer há muito tempo, acompanhando assim a tendência de descida dos custos salariais.
Mas as coisas não se passam, de facto, como o governo supõe. O plano da maioria PSD/PP não só parte de pressupostos errados (os salários não são o problema central do nosso défice de competitividade) como despreza, obstinadamente, a procura interna (que é esmagada pela própria descida dos salários, directos e indirectos, e pelo desemprego). Uma vez falhada a receita, o resultado óbvio consiste no aumento consecutivo do número de pessoas que, perante uma economia tornada deliberadamente medíocre, são compelidos a emigrar, em benefício de países e economias que assim fazem bons «negócios» de ocasião.
Nos tempos das caravelas e da dominação colonial, a riqueza das nações residia essencialmente nas matérias-primas (recursos minerais, vegetais, etc.) que os colonizadores tratavam de explorar e delapidar. Hoje, nos tempos da economia do conhecimento, da inovação e da qualidade, uma parte crucial da riqueza das nações são os seus recursos humanos, sobretudo os mais qualificados. Ora, é justamente essa riqueza que está à mercê dos «novos colonizadores», quase se podendo dizer, por comparação (e passe a piada fácil), que o interesse por especiarias apenas se converteu no interesse por especialistas.
Peter Wise (Financial Times), Portugal sees exodus of skilled workers seeking better prospects
Os anúncios sucedem-se, do norte e centro para o sul europeu: «Bélgica procura portugueses para oito mil empregos», «Alemanha procura jovens portugueses que queiram estudar e trabalhar no país», «Noruega procura engenheiros», «Três hospitais de Inglaterra estão em Lisboa à procura de 200 enfermeiros». Portugal é hoje a uma reserva disponível de mão-de-obra qualificada e desaproveitada, que fica à disposição de economias de outros países. De economias que nem sequer precisaram de investir na formação e qualificação daqueles a quem se está a negar um futuro, no seu próprio país.
O gráfico ali em cima, que acompanha a notícia do Financial Times, é uma imagem assaz eloquente do rotundo falhanço da «estratégia de empobrecimento e competitividade», desenhada pelo governo e pela Troika, que assenta em ajustamentos centrados no «factor trabalho», como dizia Cavaco Silva. Nos termos dessa estratégia, a descida dos salários tornaria a economia portuguesa mais competitiva, promovendo o aumento das exportações e fazendo crescer, por essa via, o investimento e a criação de emprego. Se estivesse certa, essa mesma estratégia teria feito com que a linha do desemprego tivesse começado a descer há muito tempo, acompanhando assim a tendência de descida dos custos salariais.
Mas as coisas não se passam, de facto, como o governo supõe. O plano da maioria PSD/PP não só parte de pressupostos errados (os salários não são o problema central do nosso défice de competitividade) como despreza, obstinadamente, a procura interna (que é esmagada pela própria descida dos salários, directos e indirectos, e pelo desemprego). Uma vez falhada a receita, o resultado óbvio consiste no aumento consecutivo do número de pessoas que, perante uma economia tornada deliberadamente medíocre, são compelidos a emigrar, em benefício de países e economias que assim fazem bons «negócios» de ocasião.
Nos tempos das caravelas e da dominação colonial, a riqueza das nações residia essencialmente nas matérias-primas (recursos minerais, vegetais, etc.) que os colonizadores tratavam de explorar e delapidar. Hoje, nos tempos da economia do conhecimento, da inovação e da qualidade, uma parte crucial da riqueza das nações são os seus recursos humanos, sobretudo os mais qualificados. Ora, é justamente essa riqueza que está à mercê dos «novos colonizadores», quase se podendo dizer, por comparação (e passe a piada fácil), que o interesse por especiarias apenas se converteu no interesse por especialistas.
quarta-feira, 11 de setembro de 2013
Foi ontem...
terça-feira, 10 de setembro de 2013
Foi hoje
Foi hoje que o Nuno Teles se doutorou em Economia pela School of Oriental and African Studies da Universidade de Londres, defendendo com sucesso uma dissertação, orientada por Costas Lapavitsas, sobre financeirização na África do Sul. Parabéns.
Mitos do cheque-ensino: «o monopólio da oferta estatal» (I)
A ideia de que existe uma hegemonia absoluta da oferta pública em educação é um dos argumentos recorrentemente utilizados pelos defensores do cheque-ensino. De facto, parece ser mais fácil fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha que encontrar, entre nós, um arauto dos interesses privados em educação que ceda à tentação de sugerir, enganosamente, que o Estado tem o monopólio absoluto da oferta educativa.
No Público de ontem, por exemplo, com a falsa candura a que já há muito nos habituou, João Carlos Espada referiu-se uma vez mais ao «monopólio estatal sobre a sociedade civil», para de seguida deixar no ar a ideia de que os serviços educativos não devem continuar a ser «fornecidos universalmente pelo Estado». E, numa linha muito semelhante, o ministro Nuno Crato sustentou, na semana passada, que o novo acordo com o Ensino Particular e Cooperativo tem em vista, entre outros aspectos, abandonar a «preponderância absoluta do papel do Estado». Quem os oiça falar fica pois com a sensação que o Estado tem em Portugal um peso esmagador, asfixiando a existência do ensino privado, quase como se este estivesse interdito a quem o queira frequentar.
Nada mais falso. De acordo com dados do Eurostat, Portugal é não só um dos países europeus (UE15) com maior peso relativo do ensino privado em termos de número de alunos (sendo apenas antecedido pela Bélgica, Espanha e Reino Unido), como esse peso percentual tem vindo a aumentar ao longo da última década (passando de 16% em 2000 para 21% em 2011), contrariando assim a variação - no mesmo período - observada à escala da União Europeia (UE27), de 18% para 17%. Aliás, se considerarmos o alargamento a Leste, a divergência comparativa de Portugal - no que respeita ao peso do ensino privado - torna-se ainda mais expressiva (uma vez que nestes países o sector privado de educação representa, em média, apenas cerca de 5% do total de alunos).
Fomo-nos habituando, desde há muito - e graças a uma persistente campanha que encontra eco fácil na comunicação social - à ideia de que o Estado Social é, entre nós, desmesurado (e até «gordo», dizem). E é a partir dessa ideia que se procura fazer vingar uma outra: a de que o nosso atraso se prende com esse «peso excessivo» do Estado, como se os grandes progressos feitos pelo país nas últimas décadas, em matéria de educação, não se lhe devessem. É destas duas ideias, entre outras, de que se alimenta a ideologia fraudulenta do cheque-ensino.
No Público de ontem, por exemplo, com a falsa candura a que já há muito nos habituou, João Carlos Espada referiu-se uma vez mais ao «monopólio estatal sobre a sociedade civil», para de seguida deixar no ar a ideia de que os serviços educativos não devem continuar a ser «fornecidos universalmente pelo Estado». E, numa linha muito semelhante, o ministro Nuno Crato sustentou, na semana passada, que o novo acordo com o Ensino Particular e Cooperativo tem em vista, entre outros aspectos, abandonar a «preponderância absoluta do papel do Estado». Quem os oiça falar fica pois com a sensação que o Estado tem em Portugal um peso esmagador, asfixiando a existência do ensino privado, quase como se este estivesse interdito a quem o queira frequentar.
Nada mais falso. De acordo com dados do Eurostat, Portugal é não só um dos países europeus (UE15) com maior peso relativo do ensino privado em termos de número de alunos (sendo apenas antecedido pela Bélgica, Espanha e Reino Unido), como esse peso percentual tem vindo a aumentar ao longo da última década (passando de 16% em 2000 para 21% em 2011), contrariando assim a variação - no mesmo período - observada à escala da União Europeia (UE27), de 18% para 17%. Aliás, se considerarmos o alargamento a Leste, a divergência comparativa de Portugal - no que respeita ao peso do ensino privado - torna-se ainda mais expressiva (uma vez que nestes países o sector privado de educação representa, em média, apenas cerca de 5% do total de alunos).
Fomo-nos habituando, desde há muito - e graças a uma persistente campanha que encontra eco fácil na comunicação social - à ideia de que o Estado Social é, entre nós, desmesurado (e até «gordo», dizem). E é a partir dessa ideia que se procura fazer vingar uma outra: a de que o nosso atraso se prende com esse «peso excessivo» do Estado, como se os grandes progressos feitos pelo país nas últimas décadas, em matéria de educação, não se lhe devessem. É destas duas ideias, entre outras, de que se alimenta a ideologia fraudulenta do cheque-ensino.
segunda-feira, 9 de setembro de 2013
Leituras greco-alemãs
Recupero um excelente artigo no The Guardian do final de Agosto, dos que valia bem a pena traduzir, da autoria de Costas Lapavistas, economista marxista grego da Universidade de Londres e um dos impulsionadores dos trabalhos do Research on Money and Finance sobre a reestruturação da dívida grega e a saída da Grécia do euro. A mensagem de Lapavitsas é clara: a Grécia deve recusar mais uma ronda de “ajuda”, expressão que inacreditavelmente ainda infesta a imprensa nacional, dado o desastre depressivo das anteriores, que serviram sobretudo os interesses dos bancos do centro europeu. Esta nova ronda indica, uma vez mais, que as elites europeias farão tudo o que estiver ao seu alcance para que a cadeia não se quebre por um dos seus elos fracos, até porque, como reconheceu recentemente o presidente do Bundesbank, “uma saída teria vastas consequências para os nossos bancos e empresas”. De resto, quando um economista marxista grego se junta a um economista keynesiano alemão, Heiner Flassbeck, o resultado de uma cooperação intelectual frutuosa entre diferentes tradição críticas é um detalhado estudo para a Fundação Rosa Luxemburgo sobre a crise do euro.
domingo, 8 de setembro de 2013
«A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes»: lançamento no Porto a 11 de Setembro
Depois de Lisboa no dia 10 de Setembro (terça-feira), será a vez do Porto no dia 11 (quarta-feira). Coimbra será a seguir. Apareçam. Mais detalhes no sítio do Congresso Democrático das Alternativas.
sábado, 7 de setembro de 2013
Confirma-se...
Os últimos dados do INE confirmam que a economia portuguesa cresceu 1,1% no segundo trimestre face ao primeiro, queda de 2,1% face ao segundo trimestre de 2012, graças sobretudo à procura interna (0,8 pontos vieram daí e 0,3 da procura externa líquida). Estes resultados permitem sublinhar quatro pontos que são todo um programa. Em primeiro lugar, o alívio da austeridade por via constitucional confirma quais são as forças da espiral recessiva e quais as forças que ajudam a quebrar círculos viciosos. Em segundo lugar, sem procura interna não há recuperação económica. Em terceiro lugar, o forte crescimento das importações indica que a dependência da economia portuguesa, ao contrário da fraudulenta narrativa do governo, se mantém, já que a redução do desequilíbrio da balança corrente foi sobretudo resultado da recessão e não de qualquer transformação estrutural da economia: confirma-se pela enésima vez a infantilidade, na melhor das hipóteses, da sabedoria convencional de elites que até parece que acreditam que a capacitação económica de um país pode ser feita sob tutela externa. Em quarto lugar, um país sem instrumentos de política de crédito, comercial, industrial ou cambial, sem capacidade para também promover alguma substituição de importações, não pode esperar subir a escada do desenvolvimento, ainda para mais quando, com realismo, temos a obrigação de saber que os países do centro, e as suas troikas, parecem sempre mais interessados em pontapeá-la.
sexta-feira, 6 de setembro de 2013
«A Crise, a Troika e as Alternativas Urgentes»: lançamento em Lisboa a 10 de Setembro
Editado pela Tinta da China, o livro encontra-se também disponível, a partir de hoje, com o número de Setembro do Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), podendo ser adquirido separadamente (o que, como é óbvio, não recomendamos).
A era dos investidores
Desde Junho de 2011 o governo tem promovido a desacreditação
de todos os serviços públicos: da saúde à educação, da sustentabilidade da
segurança social às “vantagens” da privatização da água. Já faltam menos de
dois anos para as eleições e o governo ainda tem muito para fazer. Vai ser
rápido.
Terão os dois anos anteriores sido suficientes para nos
extenuar ao ponto de não reagirmos? As expectativas em relação ao futuro
perderam-se tanto que a maior parte das pessoas nem ousa pensar em planos. Para
todos nós, um ano passou a ser o longo prazo e cinco anos são o abismo. Até lá,
quantos direitos e serviços perderemos, quantas mais pessoas da nossa família estarão
a passar dificuldades, quantos amigos terão ido embora?
Gaspar tinha razão quando dizia que se estava a entrar numa
nova fase da economia portuguesa, a que ele chamava a fase do investimento. De
facto, haverá uma nova fase de investimento, mas não será o investimento de que
precisamos. Será o investimento dos grupos económicos (essencialmente estrangeiros,
mas também portugueses) a comprarem o que resta do setor empresarial do estado,
a apoderarem-se de bens comuns e naturais, e a criarem sistemas para pobres e
para ricos em todas as dimensões da nossa vivência coletiva.
Será o período em que nós próprios passaremos a vida a ser
investidores. Investiremos na nossa educação ou na dos nossos filhos, para que um
dia consigamos continuar a pagar por novos serviços. Investiremos na nossa saúde
e em seguros, porque um dia eles poderão ser a forma de escaparmos a um setor
público desprovido de condições de qualidade para servir todas as pessoas e de
forma igualmente digna. Investiremos em seguros de poupança reforma para
garantirmos que não ficamos na miséria que nos anunciam para a nossa velhice,
esquecendo irresponsavelmente que a última crise financeira derreteu milhares
de poupanças dessas, nos Estados Unidos e pelo mundo fora.
Até às próximas legislativas as classes altas terão a oportunidade
de investir na privatização das águas, dos correios e da TAP, em cada vez mais escolas
e clínicas privadas. As outras pessoas ganham o direito de lhes pagar por isso.
E quanto mais o sistema privatizado for generalizado, mais fácil será no futuro o discurso de que
o estado terá de proteger essas empresas para proteger o acesso aos serviços.
Enquanto isso, a maioria de pessoas com empregos precários ou sem emprego, que mal têm dinheiro para sobreviver, quanto
mais investir (nem que seja na sua própria vida), serão cada vez mais, na vida económica
e nos media, “os outros”.
Servir os interesses dos cidadãos é assegurar serviços
públicos de qualidade que garantem igualdade entre todas as pessoas. Isso sim,
é investir: na saúde, na qualificação e no bem-estar da população, que é muito
mais importante para o desenvolvimento da sociedade (e da economia) do que proteger
o investimento privado. Nos próximos meses, a luta pela sua preservação dos
direitos e dos serviços públicos terá de ser mais dura do que nunca!
Bem-vindos ao «cheque-ensino» (II)
«É legítimo supormos que todos os estudantes, ao estarem munidos do "vale" que o Estado lhes passou a colocar nas mãos (para que supostamente exerçam em plenitude o seu "direito à liberdade de escolha" em matéria de educação), pretendam frequentar o melhor estabelecimento de ensino da sua área de residência. O que implica, naturalmente, que essa escola tenha de proceder a um processo de selecção dos candidatos. (...) Ora, não é difícil imaginar que os critérios a que presidiria a selecção dos alunos seriam os critérios capazes de assegurar o objectivo de manutenção dessa mesma escola na posição favorável que detém nos rankings, (...) de modo a que não se alterasse o seu potencial de atracção junto dos potenciais alunos, num quadro reforçado de competição entre todos os estabelecimentos de ensino. (...) Esta "selecção natural", feita pelas escolas (e não pelos alunos), seria ainda mais expressiva nos estabelecimentos de ensino privado, designadamente nos mais conceituados, pois a probabilidade de os pais dos estudantes que hoje os frequentam não pretenderem assistir à sua invasão por alunos provenientes de "castas inferiores", seria significativa. (...) Ironia das ironias, o cheque-ensino propiciaria deste modo a materialização efectiva dos argumentos de Milton Friedman acerca da desigualdade de poder de influência social sobre os sistemas públicos de educação.»
Esta é apenas uma das contradições inerentes à implementação generalizada do cheque-ensino, que deu ontem mais um passo entre nós e a que aludi num artigo para o Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), de Outubro de 2010. Mas a ilusão da «liberdade de escolha em educação» assenta ainda noutras contradições e mistificações, a que voltarei em próximos posts, como a da suposta supremacia do ensino privado face ao público ou a ideia de que - uma vez munidos do famigerado cheque - todos passam a estar em igualdade de circunstâncias para poder escolher a escola que pretendem frequentar, como se o espaço (físico e social) fosse plano e desprovido de «atritos» e diferenças.
Assinale-se, por agora, que é hoje mais que evidente o cumprimento prévio de uma das etapas essenciais deste processo - a degradação da escola pública - alcançada com êxito pelo ministro Nuno Crato ao longo dos últimos dois anos, no seu desígnio de financiar o ensino privado através do Orçamento de Estado (e ao arrepio do estabelecido no Memorando da Troika, o tal que era para cumprir «custe o que custar»). É isso que significam o despedimento massivo de professores, os sucessivos cortes orçamentais, o aumento do número de alunos por turma ou a criação de giga-agrupamentos escolares, entre outras medidas lesivas da qualidade do ensino. Nuno Crato, o arauto da livre «concorrência entre escolas e entre sistemas», não brinca em serviço: para permitir que colégios e escolas privadas possam generalizadamente competir com a escola pública (e antes de lhes reforçar por este meio o financiamento), tratou antecipadamente de a enfraquecer e deteriorar.
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
Resgatar a nossa democracia
O vice-primeiro-ministro e a ministra das Finanças estão a sondar as entidades que compõem a troika para perceber até onde irá a sua boa vontade com vista a suavizar a política de empobrecimento que já conduziu ao desespero muitos milhares de famílias, em Portugal e noutros países, e está a conduzir a uma grave erosão da nossa democracia. As primeiras notícias desses encontros não são animadoras. Olli Rehn e Durão Barroso ter-lhes-ão dito que "as soluções têm de ser encontradas pelo governo de Lisboa e que a paciência dos parceiros europeus tem os limites cada vez mais apertados".Terminada a ronda pelos credores, realizadas as eleições alemãs e as nossas autárquicas, os portugueses serão informados do que os espera em 2014. Ver-se-á então que a breve pausa na descida aos infernos era apenas um compasso de espera no círculo perverso que liga cortes no Estado social, mais recessão, menor receita fiscal e mais despesa em subsídios de desemprego e outros, défice persistente, nova ronda de cortes, ao mesmo tempo que a despesa em juros e o peso da dívida aceleram. Neste contexto, quando o fracasso da política entra pelos olhos dentro, o que mais espanta é ver como as perguntas dos jornalistas e o discurso dos comentadores que passam pelos canais de televisão permanece imune à realidade. Com honrosas excepções, a pertença à zona euro é apresentada como um dado da natureza, sendo o Memorando apenas o início de uma nova etapa da integração europeia que nos obriga a alcançar excedentes orçamentais para reduzir a dívida pública até 60% do produto. O desemprego em massa, a emigração dos mais capazes, a pobreza e a miséria, são as variáveis de ajustamento a que teríamos de nos habituar.
Bem sei que a crença numa mudança na orientação da UE é a esperança a que muitos portugueses e uma parte importante das nossas elites ainda se agarram. Talvez seja mesmo a grande motivação de Paulo Portas no exercício dos poderes alargados que conquistou no actual governo. É certamente o que mais desejam as personalidades mais críticas do PSD. Foi também a essa esperança de mudança na Europa que António José Seguro se agarrou na entrevista que deu esta semana. No entanto, é uma esperança desesperada. Como alguém lembrou num debate sobre os chumbos do Tribunal Constitucional, uma vez chegados ao fim do Memorando, é muito provável que o BCE apresente condições inconstitucionais para aceitar baixar as taxas de juro da dívida portuguesa. Poderá mesmo exigir a assinatura do Partido Socialista num novo Memorando, agora sem troika, na falta da qual não haverá financiamento público ou privado ao Estado português. Será então o PS a alternativa?
O peso do ordoliberalismo na cultura alemã e uma estratégia económica cada vez mais virada para os BRIC não permitem antever grandes mudanças na UE, mesmo que se venha a reeditar a grande coligação CDU-SPD. Afinal, já em 1970 Willy Brandt tinha dado instruções ao seu ministro das Finanças para que colocasse a marca alemã nos planos para uma união monetária para que a sua visão da política monetária prevalecesse. Assim sendo, a diplomacia da mão estendida, pedindo mais tempo para uma redução "estrutural" dos défices através da demolição do Estado social, é não só uma humilhação nacional mas também uma traição ao nosso Estado de direito, democrático e social.
De facto, a alternativa existe, mas, como em todos os casos de mudança de paradigma, só é acessível aos que estiverem dispostos a romper com as ideias velhas. Por exemplo, em vez da moeda única, uma união europeia de pagamentos para os países da periferia que abandonem o euro; financiamento público através do banco central; programa de criação de empregos socialmente úteis. São apenas três dimensões de uma via para o resgate da nossa democracia, antes que nos afundemos na desesperança.
(O meu artigo no jornal i; foto via Aventar)
A debilidade do pensar
«"Sobe e desce", do Diário Económico:
Constitucional bloqueia a reforma do Estado: O Tribunal Constitucional,
liderado por Joaquim Sousa Ribeiro, chumbou a possibilidade de
despedimentos na Função Pública para quem entrou para o Estado antes
de 2008. Mais do que um problema para o Governo, o Tribunal criou um
problema para o País, uma vez que bloqueou a reforma do Estado.
Deve ler-se assim:
1. Constitucional bloqueia [não é a lei, nem a Constituição, é o Tribunal, e o uso do verbo "bloquear" também não é neutro, é valorativo]
2. a reforma do Estado [rótulo governamental para despedimentos na função pública reproduzido acriticamente pelos jornalistas pelo seu valor facial, ou seja, manipulatório]:
3. O Tribunal Constitucional, liderado por Joaquim Sousa Ribeiro, [convém apontar o nome à turba, para a coisa ser bem pessoalizada]
4. chumbou a possibilidade de despedimentos na Função Pública para quem entrou para o Estado antes de 2008.
5. Mais do que um problema para o Governo, o Tribunal criou um problema para o País, uma vez que bloqueou a reforma do Estado. [ideologia pura e repetição de propaganda governamental]
In a nutshell, (eles gostam de inglês), está cá tudo. Como de costume, uma das forças do poder em Portugal é impor as ideias, a linguagem, "mensagens" e manipulações, usando a debilidade do pensar da comunicação social.»
José Pacheco Pereira, O navio fantasma (35)
Nas horas e dias que se seguiram à morte de António Borges foram transmitidos (como é natural que assim seja) alguns excertos de entrevistas dadas pelo economista a diferentes canais televisivos. Lembrei-me então da percepção com que tantas vezes ficava ao assistir a essas entrevistas: a forma acrítica, e até, por vezes, intelectualmente subserviente, com que muitas das suas declarações, sobretudo as mais incendiárias, eram tomadas pelo pivot encarregue de conduzir a entrevista. Isto é, sem que se seguisse a essas declarações um contra-argumento ou - que mais não fosse - um pedido de fundamentação ou exemplificação consistente do que se tinha acabado de ouvir. E António Borges não era nem é, obviamente, caso único.
Na verdade, o problema do pluralismo no debate político-económico (ou melhor, da falta dele, sobretudo na esfera televisiva, com honrosas excepções) não é apenas uma questão das «vozes» que chegam ao espaço público e das «vozes» que são silenciadas (e, com elas, as interpretações alternativas sobre a crise e as suas soluções, igualmente alternativas). O problema do pluralismo é também, e de forma ainda mais insidiosa, o problema do efeito de simples «caixa de ressonância», da passividade com que se aceita (e incorpora) a narrativa económica ainda dominante. Por mais que a própria realidade se encarregue de desmentir, como um rio que simplesmente se limita a seguir o seu curso, essa mesma narrativa.
quarta-feira, 4 de setembro de 2013
Aguenta, aguenta a bancarrotocracia
Em Tesouros do Sul: descubra as diferenças, Pedro Lains apela a que se descubra a diferença entre a nova Secretária de Estado do Tesouro e as/os colegas de Espanha, Itália e França. Tendo em conta os percursos, é caso para dizer que uma carreira feita na banca, mais concretamente no BPI, faz toda a diferença. Embora não deva levar a pensar, creio, em qualquer especificidade nacional em matéria de poder dos bancos, esta nomeação não deixa de ser reveladora da base social de apoio do governo. Do Citigroup de Joaquim Paes Jorge ao BPI de Isabel Castelo Branco, é toda uma economia política com múltiplas escalas.