sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Bem-vindos ao «cheque-ensino» (II)

 

«É legítimo supormos que todos os estudantes, ao estarem munidos do "vale" que o Estado lhes passou a colocar nas mãos (para que supostamente exerçam em plenitude o seu "direito à liberdade de escolha" em matéria de educação), pretendam frequentar o melhor estabelecimento de ensino da sua área de residência. O que implica, naturalmente, que essa escola tenha de proceder a um processo de selecção dos candidatos. (...) Ora, não é difícil imaginar que os critérios a que presidiria a selecção dos alunos seriam os critérios capazes de assegurar o objectivo de manutenção dessa mesma escola na posição favorável que detém nos rankings, (...) de modo a que não se alterasse o seu potencial de atracção junto dos potenciais alunos, num quadro reforçado de competição entre todos os estabelecimentos de ensino. (...) Esta "selecção natural", feita pelas escolas (e não pelos alunos), seria ainda mais expressiva nos estabelecimentos de ensino privado, designadamente nos mais conceituados, pois a probabilidade de os pais dos estudantes que hoje os frequentam não pretenderem assistir à sua invasão por alunos provenientes de "castas inferiores", seria significativa. (...) Ironia das ironias, o cheque-ensino propiciaria deste modo a materialização efectiva dos argumentos de Milton Friedman acerca da desigualdade de poder de influência social sobre os sistemas públicos de educação.»

Esta é apenas uma das contradições inerentes à implementação generalizada do cheque-ensino, que deu ontem mais um passo entre nós e a que aludi num artigo para o Le Monde Diplomatique (edição portuguesa), de Outubro de 2010. Mas a ilusão da «liberdade de escolha em educação» assenta ainda noutras contradições e mistificações, a que voltarei em próximos posts, como a da suposta supremacia do ensino privado face ao público ou a ideia de que - uma vez munidos do famigerado cheque - todos passam a estar em igualdade de circunstâncias para poder escolher a escola que pretendem frequentar, como se o espaço (físico e social) fosse plano e desprovido de «atritos» e diferenças.

Assinale-se, por agora, que é hoje mais que evidente o cumprimento prévio de uma das etapas essenciais deste processo - a degradação da escola pública - alcançada com êxito pelo ministro Nuno Crato ao longo dos últimos dois anos, no seu desígnio de financiar o ensino privado através do Orçamento de Estado (e ao arrepio do estabelecido no Memorando da Troika, o tal que era para cumprir «custe o que custar»). É isso que significam o despedimento massivo de professores, os sucessivos cortes orçamentais, o aumento do número de alunos por turma ou a criação de giga-agrupamentos escolares, entre outras medidas lesivas da qualidade do ensino. Nuno Crato, o arauto da livre «concorrência entre escolas e entre sistemas», não brinca em serviço: para permitir que colégios e escolas privadas possam generalizadamente competir com a escola pública (e antes de lhes reforçar por este meio o financiamento), tratou antecipadamente de a enfraquecer e deteriorar.

6 comentários:

  1. Nuno, deixo-te um reparo:
    "a degradação da escola pública - alcançada com êxito pelo ministro Nuno Crato ao longo dos últimos dois anos" parece-me um exagero na atribuição de méritos. Tudo o que Nuno Crato fez já estava a ser feito nos 6 anos anteriores, limitando-se a continuar a obra. Sendo que a mais gravosa e estrutural das medidas de combate à escola pública, a alteração do modelo de gestão, estava feita.
    É importante recordar esta parte porque a etapa seguinte, a dita autonomia que tem na mira privatizar a gestão das escolas, faltando para isso apenas a contratação directa de professores, esse grande sonho rodriguista, é já a seguir.

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  2. Parcialmente de acordo, meu caro João José.
    Há pelo dois pontos em que creio o governo anterior deveria ter deixado uma marca diferenciadora: na redução radical dos apoios ao ensino privado (incluindo GPS e afins, que mancham o «fato» socialista); no assumir de alguns princípios cruciais da escola pública (do cumprimento efectivo do princípio da «área de influência» à constituição de turmas heterogéneas, por exemplo).
    Nas restantes matérias, os sinais que foram dados são ambivalentes (pela positiva, por exemplo, a requalificação do parque escolar e a criação da escola a tempo inteiro; pela negativa o processo de avaliação de desempenho e o modelo de gestão).
    Seja como for, julgo sinceramente que não é justo colocar tudo no mesmo saco e dizer que a governação actual é basicamente a continuação da governação anterior. Em matéria de relação com o ensino privado, uma coisa é o laxismo, outra é a defesa determinada dos seus interesses.

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  3. Não te esqueças que o pagamento dos contratos de associação foi crescendo ao longo da década passada.
    A lei de gestão é o alfa e ómega de tudo isto. Sem ela qualquer Crato demorava dois anos até começar a fazer estragos. A avaliação foi uma mera cortina de fumo para a implementar.

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  4. É mesmo assim.

    Quem acha que "tudo o que Nuno Crato fez já estava a ser feito nos [seis] anos anteriores, limitando-se a continuar a obra" (sic!) não merece, de facto, mais do que um Nuno Crato.

    E esta frase cretina é o símbolo perfeito do único papel relevante que a Esquerda portuguesa tem no atual momento político: o fardo da culpa e da cumplicidade pela submissão inerte deste Povo a um prezidento como o Cavaco e a um guverno como o do Passos Coelho!

    Não acorde o Povo português para esta Esquerda indigente e não a remeta, rápidamente, para o caixote do lixo da História, não...

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  5. Não costumo responder a malucos, sobretudo quando estou a ter uma conversa séria com um amigo.
    Mas não deixo de lhe deixar uma sugestão, digamos que clínica: repita 30 vezes: a esquerda é que chumbou o PEC IV, e talvez repare, quando respirar fundo, que os mantras não fazem sentido

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  6. Ora, ora, João José Cardoso,

    então foi preciso o nome de um Hospital de "malucos" (sic) para o fazer quebrar a sua regra de conduta quando está no meio de uma conversa séria entre amigos?

    Não foi minha intenção incomodá-lo, mas fico muito sensibilizado (e nada ofendido, como pode imaginar...).

    Quanto à sua confrangedora sugestão, digamos que clínica, nem será preciso respirar fundo para reparar logo que, tal como os mantras, ela não faz qualquer sentido.

    E tem toda a razão: a Esquerda NÃO chumbou o PEC 4, que cabeça a minha...

    E desculpar-me-á decerto estar aqui a gastar o meu latim com um "não-maluco". Mas há mais "malucos" que lêem este blogue, se é que isso não o molesta, e nem todos são seus amigos, ou conhecidos.

    Cordialmente,

    Júlio de Matos, um seu Criado.

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