domingo, 28 de fevereiro de 2010

Economia(s) em Évora amanhã

(clicar para ampliar)
"A prática científica, no que tem de mais valioso, caracteriza-se essencialmente por ser uma reflexão que não parte de 'verdades reveladas' ou 'argumentos de autoridade', está atenta à realidade e submete-se ao argumento lógico, sempre aberta à correcção do erro. A ciência é, em suma, uma reflexão colectiva, um debate aberto, racional, não dogmático. Não se vislumbra, portanto, por que razão a existência de pluralismo haveria de prejudicar esta actividade e não estimulá-la." (Introdução)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Não sei se ria, se chore


Bem sei que a reputação da Economia, da profissão de economista e se calhar de professor de economia já conheceu melhores dias. O público desconfia e com razão. Mas nem eu, que em matéria de economistas e de professores de Economia pensava já ter visto o pior, posso deixar de me escandalizar com o caso mais recente: Carlos Santos, professor de Economia na Universidade Católica.

Entrado de rompante no espaço público como crítico da ortodoxia económica e do neo-liberalismo este professor acabou de ultrapassar o FMI pela extrema-direita. Continua coerente numa coisa: é um crítico do FMI.

O problema não é mudar de ideias… a velocidade e a extensão da mudança é que atordoam. Comparem só o Carlos Santos de 25 de Outubro passado com o de 26 de Fevereiro.

Não sei se há explicação para tão estranho fenómeno, nem me interessa. Só sei que é por estas e por outras que as pessoas têm boas razões para desconfiar de economistas que passam a vida a puxar dos galões científicos para impingir opiniões que o vento leva na primeira guinada.

Várias vezes citamos e linkamos este professor de Economia no Ladrões. Desculpem, não sabíamos que eram opiniões que variavam ao sabor da cotação dos CDSs.

Em quem voto e porquê





A comparação dos discursos de apresentação, sem prejuízo do debate a que assistiremos nos próximos meses, permite fazer luz sobre os propósitos de cada uma das candidaturas e sobre a forma como os dois candidatos se pretendem posicionar sobre os grandes problemas do país.

1. Como nota prévia, adianto que não conheço nenhum dos candidatos pessoalmente. Trabalhei com Fernando Nobre durante a campanha do Miguel Portas e tenho dele a melhor impressão possível. Foi um mandatário dedicado, uma pessoa acessível e entregou-se à campanha da mesma forma abnegada com que se entrega ao activismo da sua vida. Com Manuel Alegre, nunca trabalhei politicamente.

2. Escrevo esta nota prévia para dizer que não são as considerações pessoais que faço sobre cada um que pesam na minha escolha. Manuel Alegre e Fernando Nobre têm ambos percursos de peso, ambos disseram e fizeram coisas com as quais concordo e coisas com as quais discordo. O que é preciso é perceber é qual dos dois pode derrotar Cavaco e qual dos dois daria um melhor Presidente da República.

3. Não a guerras fratricidas - Confesso que alimentava a esperança de que Alegre pudesse ser a candidatura que unisse toda a esquerda. Mas rejeito acusações de divisionismo ou chantagens políticas a Nobre. Fernando Nobre tem todo o direito de ser candidato e toda a gente tem reconhecido que esse direito tem de ser respeitado. Ora respeitado é mesmo respeitado, ponto final. Resta agora assegurar que, das primárias à esquerda, não resulte nenhuma desmobilização. Que as duas candidaturas somem votos para levar Cavaco à segunda volta e, depois, unam votos para o derrotar.

4. Não há cidadãos mais cidadãos do que os outros - Não aceito que nenhum dos candidatos reclame para si o espaço da cidadania, muito menos através de uma oposição, tão demagógica como absurda, entre cidadania entre partidos. Não o aceito em Alegre, não o aceito em Nobre. Alegre, Nobre, Cavaco são três cidadãos iguais, igualmente cidadãos. Espero que todos eles resistam à tentação de ganhar uns votos à custo de um discurso populista que fere a democracia e a própria cidadania que pretende invocar.

5. De todos os candidatos, espero que digam ao que vêm - Não aceito que o discurso sobre as competências do Presidente da República seja desculpa para não falar de nada. Sei, no entanto, que não posso esperar tal simpatia da parte de Cavaco Silva. Já dos outros, espero mais, melhor e menos redondo. Manuel Alegre e Fernando Nobre coincidem na identificação de muitos dos problemas, o que já é bom, mas Manuel Alegre é muito mais claro nas escolhas políticas.

6. "O trabalho precário é um cancro para o desenvolvimento económico do país" - Esta é uma frase do discurso de Manuel Alegre. Quando Manuel Alegre diz o que o João Rodrigues citou aqui , não traça um programa de Governo, que não lhe compete elaborar. Mas resume uma visão sobre a nossa democracia que é definidora de um conjunto de escolhas políticas claras. Essas escolhas, essa clareza, eu não a encontro no discurso de Nobre, por muito que as possa intuir nas suas preocupações.

7. Manuel Alegre define-se inequivocamente como um candidato em confronto com o consenso liberal, na linha, aliás, da intervenção pública que tem tido e das divergências que foi acumulando com o actual Governo. Fernando Nobre, ao fugir dos conceitos políticos, foge também das definições, por muito que diga que não é apolítico. Ora, eu aceito votar em alguém com quem sei que tenho divergências para derrotar a Direita. Não passo cheques em branco a ninguém.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Condicionamentos ideológicos nos media portugueses (II)



Como disse, os jornalistas parecem muito preocupados, e bem, com a alegada interferência do(s) governo(s) nos media. Porém, pouco lhes parecem importar os evidentes enviesamentos ideológicos que caracterizam certos órgãos da comunicação social. Querem exemplos? Podemos começar com o célebre “Plano Inclinado”, da SIC-N, onde os convidados destilam regularmente os seus ataques generalizados à classe política e ao papel do Estado, por exemplo. Será que não há, na sociedade, pessoas prestigiadas e independentes que tenham uma visão positiva da política e dos políticos (ou, pelo menos, não apenas negativa)? Ou que tenham uma visão positiva sobre o papel do Estado? É óbvio que este tipo de programas não é minimamente plural do ponto de vista ideológico, entendido aqui em sentido amplo. Outro exemplo, com um programa muito prestigiado (e com intervenientes de qualidade!), a “Quadratura do Círculo”: será que alguém pensa que o pluralismo ideológico, em Portugal, vai apenas do PS ao CDS-PP? Mas não se pense que isto é um problema da SIC. Não, embora em menor medida, a RTP padece de idênticos problemas: basta pensar na presença regular de Marcelo e Vitorino na RTP para percebermos que também a TV do Estado promove um certo afunilamento ideológico… Ou, na imprensa (Expresso, Correio da Manhã, etc.), veja-se por exemplo a sobre-representação que têm os colunistas com orientações anti-políticos e profundamente críticas face ao papel do Estado na sociedade e na economia, designadamente de inclinação ultra-liberal. Ou ainda, a falta de pluralismo que vemos nas rádios, na TV e na imprensa em matéria de debates sobre economia (política), nos quais estão geralmente sobre-representadas as correntes associadas ao mainstream (neoliberal) da ciência económica e onde outras tendências igualmente relevantes do ponto de vista académico e político (neo-keynesianas, institucionalistas, etc.) estão claramente ausentes ou, na melhor das hipóteses, sub-representadas. Há, obviamente, liberdade de imprensa em Portugal, e essa é uma conquista crucial da democracia. Porém, há condicionamentos ideológicos de vária índole nos media portugueses. Pena é que os jornalistas pareçam só se preocupar com os condicionamentos que possam vir por via das influências dos governos e, pelo contrário, dêem pouco ou nenhum relevo (quando não os promovem eles próprios…) a vários outros condicionamentos (porventura mais graves e profundos) que caracterizam os media. A bem da democracia e do pluralismo, era desejável que não só a ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação) mas também os próprios jornalistas fossem muito mais exigentes neste domínio.

Originalmente publicado no Público de 22/2/2010.

Condicionamentos ideológicos nos media portugueses (I)



De há semanas a esta parte, sobretudo com a divulgação das escutas do “Face Oculta”, o país anda ao rubro com as alegações de que o governo teria um plano para controlar órgãos de comunicação social incómodos usando como instrumento uma empresa privada (a PT) onde o Estado detém uma golden share que, porém, lhe dá apenas direito formal de veto. A situação está longe de estar esclarecida. Porém, como bem sublinhou Rui Tavares, o problema do PS e do governo é que as alegadas maquinações ganham plausibilidade por causa das dificuldades de relacionamento com a comunicação social: ataques do primeiro-ministro a certos media; inúmeros processos do premier a jornalistas e bloggers; etc. Mas ganham também plausibilidade por causa de notícias vindas a público no ano passado e que davam conta de uma eventual utilização da publicidade do Estado para “premiar” ou “punir” órgãos de comunicação social… Independentemente do que falta esclarecer, este caso mostra também que, por um lado, os jornalistas e os órgãos de informação parecem muito preocupados com a possibilidade de governamentalização dos media mas, por outro lado, pouco lhes parecem importar muitos e evidentes enviesamentos ideológicos que caracterizam os mass media portugueses, embora em graus variáveis.

Como disse, a situação relatada está longe de estar esclarecida. De qualquer modo, na sua alocução de quinta-feira passada, o primeiro-ministro já esclareceu o que era possível clarificar apenas com base em declarações suas: disse que nem ele nem qualquer membro do governo deram instruções à PT, ou aos seus administradores, para a compra de órgãos de comunicação (Media Capital/TVI). Note-se que as escutas divulgadas pelo SOL apenas apresentam vários indivíduos, nomeadamente os administradores da PT nomeados pelo governo e seus assessores, alegando que o governo teria um plano para controlar os media através da PT, e sugerindo que as suas acções se inseriam em tal plano e se destinavam a satisfazer os desejos do “chefe”. Ainda não vimos, porém, quaisquer escutas com falas do “chefe” e que evidenciem efectivamente que tal plano do governo existia, era do conhecimento e era dirigido pelo premier. Não significa isto que tal plano não existisse e que, a existir, o governo não tivesse conhecimento dele. Significa que existe também a possibilidade de estarmos apenas perante boys ultra-zelosos e desejosos de agradar ao líder, sobretudo tendo em conta o seu fraco CV para estarem onde estavam… (O despacho do PGR, recentemente divulgado, e onde este justifica a não relevância das escutas, aponta aliás neste sentido). Por tudo isto é que era ainda desejável que Sócrates demitisse o outro administrador que ainda não se demitiu e que representa (mal) o Estado na PT. A partir daqui, o que há ainda a esclarecer terá de basear-se num cruzamento de testemunhos (como, por exemplo, os que resultam das audições em curso no Parlamento) e outras informações (resultantes, por exemplo, do trabalho de uma eventual comissão de inquérito). Certo é que é difícil ir muito mais longe só com as declarações de membros do governo. Uns podem acreditar, outros não, mas é o domínio da crença.

Originalmente publicado no Público de 22/2/2010.

De crise em crise

Temos dito aqui várias vezes que a sucessão de crises financeiras desde a década de 1970 (este estudo do Banco Mundial contabiliza 117 crises em 93 países, entre finais dessa década e o início do novo milénio) é indissociável da opção política de liberalizar os movimentos de capitais a nível mundial. O discurso neoliberal reinante garantia-nos que ao ‘libertarmos’ os movimentos de capital das ‘amarras’ dos Estados nacionais (a escolha das palavras nunca é inócua) estaríamos a construir um mundo mais próspero: os capitais dirigir-se-iam de onde existissem em excesso para onde fossem mais nessários, promovendo o crescimento global. A história mostrou-se diferente: nenhum estudo até hoje conseguiu mostrar que os países que aderiram ao movimento de liberalização de capitais beneficiaram de maior crescimento; pelo contrário, o crescimento e a estabilidade económicos verificaram-se em países que, neste período, mantiveram um controlo razoável dos fluxos de capitais (sendo a China o caso mais evidente).

Outros países, traumatizados com as crises resultantes da entrada e saídas de capitais em massa, procuraram proteger-se da globalização financeira prosseguindo uma política de acumulação de reservas (forçando a poupança interna, intervindo nos mercados cambiais, investindo fortemente no sector exportador, etc.), que permitisse fazer face a eventuais ataques especulativos. Esta opção, patente em muitas economias emergentes após a crise asiática de 1997/8, revelou-se eficaz para as economias em causa – mas desastrosa para a economia mundial.

A poupança interna nas economias emergentes reflectiu-se no aumento da oferta nas restantes economias, sem reflexos sustentáveis na procura global. Representou também um aumento de liquidez, que permitiu alimentar temporariamente o consumo nas economias deficitárias (a começar pelos EUA), mas pouco estimulou o investimento produtivo. O fraco desempenho do investimento produtivo não é de admirar: a globalização financeira acarretou um aumento do poder negocial do capital face aos Estados nacionais (com reflexos na capacidade de obtenção de receitas e, consequentemente, na pressão crescente sobre as despesas públicas) e face ao factor trabalho (com reflexos negativos no poder de compra dos trabalhadores). Este clima de pressão sobre os rendimentos desfavorece a procura dirigida ao sector real da economia, desincentivando os investimentos neste sector e convidando quem tem poupanças a destiná-las ao investimento em activos financeiros. Simultaneamente, a redução dos rendimentos, conjugada com a disponibilidade de crédito, conduziu ao endividamento crescente de uma parte significativa da população. Ou seja, avolumou-se o peso do sector financeiro e especulativo, ao mesmo tempo que se condicionou a dinâmica de crescimento do sector real da economia.

Neste cenário, as falhas de regulação e de supervisão do sistema financeiro são apenas o catalisador de um processo que encontra as suas origens na transformação do neoliberalismo em ideologia de regime. Faz bem o FMI em vir agora pôr em causa a política de liberalização de capitais, que andou (e ainda anda…) a impor pelo mundo fora como parte dos seus pacotes de ajustamento estrutural. O controlo de capitais não só diminui o poder desestabilizador e de chantagem dos especuladores financeiros, como poderá contribuir para a diminuição dos desequilíbrios macroeconómicos globais (na medida em que torna menos premente a acumulação de reservas nas economias emergentes).

Mas as forças que contribuem para o estado permanente de austeridade vão muito para além disso. O fim dos paraísos fiscais, a taxação das transacções financeiras, a promoção do investimento em capacidade produtiva, a redução das desigualdades sociais e a criação de mecanismos de gestão macroeconómica global são passos necessários para que não continuemos a saltar de crise em crise.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Dispensamos os seus remédios, obrigado

Acabei de ouvir Drª Manuela Ferreira Leite: “Não sei se o país vai morrer do mal, se da cura”. Se a cura for a que ela recomenda eu também não sei. E já agora … que cura recomenda a senhora? Redução em passo de corrida do défice e da dívida? Cortes nos salários?

Em que tipo de sociedade queremos viver?

Em clima de quase pré-campanha para as presidenciais de 2011, e pensando nos projectos políticos que nos vão ser propostos, importa perguntarmo-nos em que tipo de sociedade queremos viver.

Num suplemento do jornal The Guardian (20 Fev.) sobre “Ética da cidadania”, o professor Michael Sandel da Universidade de Harvard escreveu uma excelente Introdução que dá uma ideia das suas preferências. Identifico-me muito com o texto e a iniciativa do jornal. Por isso, deixo aqui a minha tradução de um extracto:

Desigualdade, solidariedade, virtude cívica

Em muitos países, a distância entre ricos e pobres está a crescer atingindo níveis que não se viam há muitas décadas. Uma distância demasiado grande entre ricos e pobres danifica a solidariedade que a cidadania democrática requer.

À medida que a desigualdade se aprofunda, ricos e pobres cada vez mais vivem em mundos separados. Os ricos mandam os filhos para as escolas mais qualificadas, deixando as restantes escolas para os filhos das famílias que não têm alternativa. Os ginásios privados substituem os pavilhões gimnodesportivos e as piscinas municipais. Um segundo ou terceiro automóvel põem de lado a necessidade de contar com o transporte público. E por aí adiante. Os abastados desertam dos espaços e serviços públicos deixando-os aos que não têm recursos para outra coisa.

Esta tendência produz dois efeitos nocivos – um orçamental, outro cívico. Primeiro, os serviços públicos degradam-se dado que os que já não os usam cada vez menos estão dispostos a pagar impostos para os sustentar. Segundo, os espaços comuns deixam de ser espaços onde os cidadãos com diferentes percursos de vida se encontram uns com os outros. A retracção do domínio público torna difícil cultivar a solidariedade e o sentido de comunidade de que depende a cidadania democrática.

Por isso, a desigualdade pode ser corrosiva da virtude cívica. Uma política orientada para o bem comum teria como um dos seus principais objectivos a reconstrução da infra-estrutura da vida cívica.”

Insisto, em que tipo de sociedade queremos viver?

Robin dos Bosques aterra na Portela…


… com equipa de assessores do FMI e BCE. Ele vem reduzir o défice e a dívida pública quer “eles” queiram, quer não. Está já convocada uma manifestação de banqueiros e alguns economistas para a Rua do Ouro. Teme-se o congestionamento da passadeira de peões [e a notícia, se existisse, continuaria por aí fora].

A campanha a favor da taxa Robin dos Bosques nasceu no Reino Unido. É preciso globaliza-la. Os governos despejaram biliões no sistema financeiro (o português não foi excepção). Os homens do fraque querem agora o dinheiro de volta. Por que havemos de ser nós a pagar sob a forma de redução dos serviços públicos, dos salários, do investimento público, enquanto a banca e os fundos de investimentos continuam a distribuir bónus e lucros?

A taxa Robin dos Bosques é uma taxa de 0.05 % sobre todas as transacções especulativas das instituições financeiras. A taxa é insignificante mas a colecta pode ser gigante. O movimento está a ganhar forma e volume, transcendendo barreiras políticas e ideológicas, ao ponto de já ter suscitado o acordo de Gordon Brown, Angela Merkel, Nicolas Sarkozy, George Soros, Warren Buffet, e muitos outros, incluindo 350 destacados economistas. É isso que é preciso. Campanha pela taxa Robin dos Bosques também em Portugal. Se a taxa se tornar global, ou pelo menos europeia, para que paraíso vão fugir o capital especulativo e os génios da finança que dizem só trabalhar se receberem incentivos milionários?

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

“Mãos limpas” à portuguesa?



"Normalmente, quando se fala de política italiana fora de Itália, pensa-se geralmente em Berlusconi, primeiro, na instabilidade política e na operação “mãos limpas”, depois. Dificilmente um observador estrangeiro irá aprofundar se entre os três fenómenos há, ou não, ligações mais ou menos profundas. Corrupção e instabilidade são considerados como pertencentes à própria natureza da política italiana e nem vale a pena deter-se nos pormenores.

Em Março de 1992, quando as investigações dos juízes contra a classe política italiana começaram a ter um impacto mediático relevante, colocou-se a questão de uma profunda reforma do sistema político italiano.

Os partidos da oposição, em particular o Partido Democrático della Sinistra (PDS – herdeiro do PCI) e o Movimento Sociale Italiano (movimento neo-fascista) logo tentaram de aproveitar-se do novo clima e, encorajados pelos discursos anti-sistema e populistas da imprensa, começam a atacar duramente os partidos da coligação governamental (em particular a Democrazia Cristiana/DC e o Partito Socialista/PSI).
Em volta da corrupção e da crise nas contas públicas, em Itália abriram-se duas frentes de discussão: sobre a reforma do sistema político e do Estado Social. Isto porque, ao lado das investigações dos juízes, chegou também o ataque contra a moeda italiana que saiu do Sistema Monetário Europeu e foi desvalorizada em cerca de 20%.
Em 1993, foi proposto aos italianos o referendo para mudar a lei eleitoral, então muito proporcional, num sentido maioritário. Os media logo apoiaram a viragem maioritária, justificada com a necessidade de “mandar para casa os políticos corruptos”. O PDS, o único partido que parecia sobreviver do terramoto que estava a atingir Itália, também se juntou aos defensores do sistema maioritário. Cerca de 90% dos italianos votaram pela mudança, pouco sabendo de sistemas eleitorais, mas com a ideia de mudar e mandar para casa todos os “políticos corruptos”.

Se a crise política teve como solução a reforma eleitoral, a solução da crise económica foi encontrada numa drástica e dolorosa redução das despesas do Estado e na privatização da grande maioria das empresas públicas.

Por paradoxal que possa aparecer, quem mais aproveitou deste clima de renovação ética foi o próprio Berlusconi o qual, na primavera de 1994, conseguiu ganhar as eleições legislativas. O PDS não tinha percebido que, do clima populista de anti-politica e anti-parlamentarismo, só uma formação conservadora podia tirar vantagens, tal como tinha acontecido na véspera da subida ao poder de Benito Mussolini.

Hoje, em Portugal, parece estar a soprar o mesmo vento de tempestade que atingiu a Itália em 1992, embora os protagonistas e o contexto sejam diferentes. Tentemos de arrumar as ideias: são meses em que o PS está a ser alvo de ataques por parte da magistratura: caso TVI, a questão dos graus académicos de José Sócrates e muitos outros exemplos de pequena e grande corrupção, ou tráfico de influências, que estão a ter grande relevância na imprensa de há meses a esta parte. Internamente, o governo minoritário do PS está sujeito aos vários desafios das oposições muitas vezes coligadas de forma contra-natura; externamente, são os especuladores financeiros que tentam de ganhar terreno (e muito dinheiro) com a instabilidade política (e financeira) portuguesa.

Se, por um lado, é compreensível que o PSD e o CDS tentem aproveitar dos ataques contra o governo Sócrates, já que têm tudo a ganhar com a sua fragilização, é mais difícil perceber a posição do BE, do PCP e do próprio PS, os quais têm tudo a perder com a exacerbação deste clima.

Se o maior concorrente para o governo do PS é o PSD, é evidente que este segundo partido dificilmente poderá ser um aliado de confiança e seria talvez melhor, para o PS, um acordo com a ala esquerda do espectro ideológico. Por outro lado, o BE e o PCP têm tudo a ganhar de um acordo com o PS, já que se o PS não parece muito generoso em termos de políticas de welfare, de certeza que uma aliança entre PSD e CDS não levaria num sentido de politicas sociais mais expansionistas, muito pelo contrário.

É óbvio que um acordo deve ir no sentido de satisfazer todas as partes que o assinam. É também evidente que, por um lado, em termos de “rendimento” eleitoral, o BE e o PCP poderiam vir a perder alguns votos abrandando a atitude “virtuosista”, mas, por outro lado, poderiam alcançar uma maior atenção por parte do Governo para as camadas menos favorecidas da sociedade. O PS, da viragem à esquerda, poderia, por seu lado, ter a considerável vantagem de ter aliados que não concorrem pelo governo e portanto de maior confiança.

A pergunta subjacente é: se o governo Sócrates não conseguir ir para a frente por causa dos ataques nas três frentes (apoio parlamentar, crise económica e corrupção), o cenário que se abriria em Portugal poderá vir a ser semelhante ao italiano de 1992-1994? Temos a certeza de que os três partidos da esquerda portuguesa teriam alguma coisa a ganhar com uma crise política desse género?
Se o Governo Sócrates caísse, é muito provável que os dois assuntos que viriam a ser mais discutidos em Portugal seriam: a governabilidade do pais e a necessidade de reformas económicas que reduzam o défice do Estado. A solução ao primeiro assunto poderá levar a uma lei eleitoral que privilegie os grandes partidos, e a solução ao segundo a uma redução profunda nas despesas sociais do Estado.
Num cenário deste tipo, não se vê como PS, BE e PCP possam ter alguma vantagem. Claro, nada disto pode vir a acontecer e o “caso Italiano” continuar a ser, pura e simplesmente, um conjunto de acontecimentos circunscritos ao período de 1992 e 1994. Mas e se assim não for?"

Bicicleta de André Freire emprestada a Goffredo Adinolfi (ga@goffredoadinolfi.net)
Estudante italiano de pós-doutoramento (sob supervisão de André Freire), a residir em Portugal, investigador sénior do CIES-ISCTE.

Outra economia

"Parece, aliás, que nada se aprendeu com a crise que está longe de ter sido ultrapassada. Toda a gente sabe que a crise foi provocada pela especulação de um sistema financeiro não controlado. Mas um cidadão desprevenido que oiça agora certos economistas e analistas fica com a sensação de que a culpa é dele. A culpa é dele e de outros cidadãos que reclamaram aumentos de salários, saúde pública, pensões, enfim, privilégios impossíveis de assimilar por um sistema que teria funcionado bem se não fosse a loucura dos cidadãos que reclamam os seus direitos. Eles estão aí outra vez, os mesmos tecnocratas do sistema. Com as mesmas receitas e a mesma arrogância de sempre. Criticaram-me por eu ter dito que era preciso outra economia. E até me acusaram de não saber de economia. Mas a economia que nos conduziu ao desemprego, às desigualdades e à precariedade não é a economia que precisamos de saber."

Manuel Alegre por outra economia. Trata-se, também aqui, de criar "as condições concretas para a liberdade".

Água salgada com água doce não é água potável

Em Agosto de 2008 Olivier Blanchard, actualmente economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, publicou um artigo em que celebrava a convergência na teoria macroeconómica. Ele referia-se ao que considerava ser a emergência de um consenso teórico entre os chamados neo-Keynesianos e os “novos clássicos”, ou para usar termos populares nos departamentos de Economia entre a “água doce” (universidades norte-americanas da região dos Grandes Lagos como Chicago, Carnegie Mellon, Rochester, Minnesota) e a “água salgada” (universidades das costas oriental e ocidental como Berkeley, Harvard, MIT, Stanford e Yale).

Este consenso era saudado por Blanchard como o fim de uma batalha que estava a minar a reputação da macro, um triunfo dos “factos”, uma revolução que apesar da “destruição de algum conhecimento”, de algum extremismo e de dinâmicas de “manada”, lhe permitia proclamar que “o estado da macroeconomia é bom”.

O artigo foi publicado dias antes do colapso do Lehman Brothers e da aceleração da Grande Recessão.

A 12 de Fevereiro passado, como o Ricardo Mamede aqui prontamente assinalou, o mesmo Olivier Blanchard publicou um novo artigo em co-autoria em que escreve: “Foi tentador quer para os macroeconomistas quer para os decisores políticos reclamar para si o mérito da continuada redução das flutuações cíclicas verificada a partir do início da década de 1980 e concluir que sabíamos executar as políticas macroeconómicas. Não resistimos à tentação. A crise obriga-nos claramente a por em questão a nossa avaliação anterior”. No que segue reexaminam-se quer factos, quer teorias. Afinal parece que o estado da macroeconomia não era assim tão bom e que a mistura entre água doce e água salgada nem sequer potável é. A Olivier Blanchard só fica bem o reconhecimento.

O que mais importa é que ambos os artigos são muito instrutivos. Por razões diferentes: o primeiro por clarificar os termos da mistura teórica que governou a política macroeconómica durante vinte anos, o segundo por expor algumas (apenas algumas) das debilidades dessa caldeirada.

Iremos por partes: um próximo post para o primeiro artigo, um outro para o segundo.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

A irrelevância de Sócrates

As acções de Sócrates e o carácter que estas revelariam são escrutinados e debatidos até à exaustão. Fala-se muito do autoritarismo do primeiro-ministro e da sua necessidade de controlo da agenda mediática. Curioso é que muitos dos seus recentes críticos na imprensa passaram anos a entoar loas às suas determinação e coragem "reformistas" contra os chamados "grupos de interesse": estranhamente, o empresarialmente correcto dominante só usa esta expressão para se referir aos sindicatos e às suas lutas. O resto da minha crónica no i pode ser lido aqui.

Governar à Esquerda


Curso: O que fará um governo de esquerda socialista?
27 e 28 de Fevereiro - Liceu Camões

A Cultra promove durante um fim de semana um ciclo de dez debates para discutir práticas políticas possíveis para uma governação à esquerda. As sessões terão duração de uma hora e meia, com um orador (50 minutos), um comentador (20 minutos) e debate (20 minutos). Participam nos debates alguns deputados e especialistas em cada um dos temas de discussão. A entrada é livre.
Liceu Camões, Lisboa

27 de Fevereiro, Sábado

10:00h
1. Na política do trabalho e da segurança social
Orador: Carvalho da Silva, Coordenador Nacional CGTP/IN
Comentadora: Mariana Aiveca, deputada, Conselho Nacional CGTP/IN
Debate

11:40h
2. Na política económica e financeira
Orador: Francisco Louçã, Professor do ISEG e deputado
Comentador: João Ferreira do Amaral, Professor do ISEG

INTERVALO PARA ALMOÇO

15:00h
3. Na política de saúde
Orador: João Semedo, médico, deputado
Comentador: Isabel do Carmo, médica
Debate

16,40h
4. Na política das cidades e ordenamento territorial
Orador: Mário Vale, Inst. Geografia e Ordenamento do Território/UL
Comentador: João Seixas, geógrafo urbanista, ICS/UL
Debate

28 de Fevereiro, Domingo

09:30h
5. Na política do ambiente e energia
Orador: Francisco Ferreira, QUERCUS
Comentador: Rita Calvário, engenheira agrónoma, deputada
Debate

11:10h
6. Na política de desenvolvimento rural e das pescas
Orador: Fernando Oliveira Baptista, Professor ISA/UTL
Comentador: Pedro Soares, deputado, presidente da Comissão Parlamentar de Agricultura e Pescas
Debate

14:30h
7. Na política de igualdade
Orador: Virgínia Ferreira, Professora CES/FEUC
Comentador: Manuela Tavares, UMAR
Debate

16:10h
8. Na política de justiça
Orador: Conceição Gomes, investigadora CES/FEUC
Comentador: Teixeira da Mota, advogado
Debate

17:50h
9. Na política de educação
Orador: António Nóvoa, Professor FPCE/UL, Reitor UL
Comentador: Ana Drago, deputada
Debate

19:30h
10. Na política externa e de defesa
Orador: José Manuel Pureza, Professor da FE/UC, deputado
Comentador: Pezarat Correia, General do Exército
Debate

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Notas sobre sedes de poder

Mais um documento fraquinho. Como fraquinhas têm sido todas as recentes posições colectivas da SEDES. Mais um relambório que mascara mal o projecto de submissão total da sociedade portuguesa às necessidades de uma utopia capitalista: “promover a criação de condições estruturais que permitam a adaptação da economia portuguesa às novas realidades de um mercado global, livre e altamente competitivo.” Esta é a ideia central do documento da SEDES. A economia global “livre” é assim uma espécie de facto da natureza: já aqui tentei desmascarar esta ficção que tem por efeito promover a via chinesa, mas sem política cambial, industrial e de controlo de capitais e do crédito, para um crescimento que nunca chegará.

Não se vê a insustentabilidade socioeconómica e política deste projecto, nem com todos os desequilíbrios que têm sido gerados. Não se vê que a estagnação da economia portuguesa é o resultado de um processo de integração europeu mal conduzido, mas sempre aplaudido, que reproduz dentro da Europa os desequilíbrios nas relações comerciais internacionais e nos fluxos financeiros descontrolados. Passa-se pela maior crise económica das últimas décadas como se não tivesse sido nada ou como se tivesse sido uma coisa que cai do céu, qual choque exógeno. Omissões só proporcionais ao vazio aparente de propostas.

Percebo bem: não convém analisar as causas da crise, das desigualdades socioeconómicas à liberalização financeira e comercial, nem o que evitou até agora a grande depressão: demagogicamente, ignora-se que os aumentos do défice e da dívida pública são a consequência da estagnação prolongada, e em especial da última crise, e não a sua causa. Além disso, num contexto de fragilidade económica, fazer, precipitadamente, da consolidação orçamental o fim último da política económica, pode matar a retoma e colocar-nos de novo nas armadilhas da depressão, como aliás alertam diversos economistas num país onde o debate é mais plural do que aqui: a consolidação orçamental só deve realizar-se, só pode realizar-se, num contexto de crescimento robusto. Esquece-se, adicionalmente, que o Estado predador, que aparentemente se denuncia, é o que resulta sempre, aqui ou em qualquer outro lugar, da aplicação prática das receitas teóricas do liberalismo económico: as parcerias público-privadas e as privatizações de sectores estratégicos são só dois bons exemplos do Estado capturado por uma burguesia crescentemente parasitária.

Sabem o que eu acho? Pelo menos, o seu colega Vítor Bento diz ao que vem com clareza e por isso é o melhor dos economistas-2012 que neste blogue temos criticado: cortes salariais, num país onde o salário mediano anda pelos 700 euros, e o trabalho como simples mercadoria para ser usada e descartada em função das necessidades de uma mítica “economia global livre”. É impressionante como uma ficção grosseira continua a alimentar projectos bem reais de transferência de custos sociais para os trabalhadores. Aceita-se pacoviamente todos os muito políticos constrangimentos europeus como outro facto da natureza. Será que é porque isso facilita a destruição do Estado social e a instituição do desemprego como mecanismo disciplinar, objectivos mal disfarçados por um pensamento económico mágico que tem em Belém o seu centro difusor?

De resto, é sempre interessante ver um antigo líder do lobby da banca subscrever um documento onde se fala vagamente, claro, da “promiscuidade dos interesses”. Que esta gente domine o debate económico como se tivesse chegado ontem ao país diz tudo sobre o consenso medroso e desmemoriado que aqui vigora. A esquerda não pode ter dúvidas: as sedes de poder são o adversário principal no campo das ideias, mesmo que estas não abundem por essas bandas...

Lançamento de dois livros sobre "representação política" II





Caríssim@s,

o lançamento é já na próxima quarta-feira, dia 24, às 18h30m, no auditório do edificio novo da Assembleia da República.

E aproveito já para vos informar do nome dos deputados que irão comentar o livro, o qual se baseia numa análise das preferências, orientações e atitudes de representantes e representados (sobretudo com base em dois inquéritos realizados em 2008, um aos eleitores, outro aos deputados):

Vitalino Canas - PS (a confirmar)
Mota Amaral – PSD
João Almeida - CDS
Ana Drago - BE
António Filipe – PCP
Heloísa Apolónia – Verdes

Apareçam!
São bem vindos!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Espectros

Há um espectro que persegue de novo o mundo do capital financeiro – o espectro da taxação das transacções financeiras. Em 1978, o economista James Tobin, que haveria de ganhar o prémio Nobel, propôs que se aplicasse um imposto modesto sobre as transacções nos mercados internacionais de divisas com o objectivo de reduzir a instabilidade cambial. Tobin limitou-se a aplicar aos mercados cambiais o argumento que Keynes tinha desenvolvido, nos anos trinta, para o mercado de acções. O número de crises financeiras mais do que triplicou desde os anos setenta, quando comparado com o período dos “trinta gloriosos anos” do pós-guerra marcado pelo maior peso da banca publica ou pela existência de controlos generalizados à circulação de capitais.

No entanto, durante o regime neoliberal, o espectro das taxas Tobin e Keynes sempre foi eficazmente esconjurado por uma santa aliança de reguladores, economistas e financeiros. A hipótese dos mercados financeiros eficientes era o seu cimento intelectual. A realidade encarregou-se de a desfazer e de recuperar a hipótese alternativa da instabilidade financeira, indissociável da finança liberalizada, defendida por economistas marxistas, institucionalistas e keynesianos. Precisamente 350 economistas de 34 países – de José Reis e João Ferreira do Amaral a Joseph Stiglitz e Ha-Joon Chang – subscreveram um apelo a favor da taxação das transacções nos mercados financeiros (via The Robinhood Tax). Até Gordon Brown, que durante mais de uma década foi um acérrimo defensor dos interesses da City de Londres, defende a adopção de uma taxa Tobin. Será desta que temos novidades? Afinal de contas, quantas mais crises financeiras teremos de aguentar até que se comece a reformar a sério o sistema financeiro à escala nacional e internacional?

[Publicado, originalmente, no Arrastão]

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O ressentimento é a tragédia da esquerda

Há cinco anos atrás, Mário Soares foi o candidato do PS e a sua candidatura foi desafiada pela candidatura de outro socialista, Manuel Alegre. A candidatura de Manuel Alegre cresceu e acabou por ditar a derrota e a humilhação de Mário Soares. Entretanto, lendo as suas recentes intervenções, Alegre aposta numa clara plataforma política de combate ao liberalismo económico, de opção socialista, na sua próxima candidatura.

Mas, cinco anos depois, Mário Soares mostra que não esqueceu. E não perdoou. Mas mostra mais do que isso. Mostra que entre o paroquialismo político e a unidade da esquerda com reais possibilidades de derrotar Cavaco, Mário Soares e a sua "entourage" escolheram o primeiro. De acordo com as notícias que têm vindo a público, Soares terá sondado sete (!) nomes para poder atirar contra Alegre.

Fernando Nobre foi quem aceitou. Para isso terá contribuído o espírito de missão e a admirável militância de Fernando Nobre. Mas, aparentemente, contribuiu também a sua inexperiência política. Todos os outros nomes que Soares sondou perceberam imediatamente que não eram os interesses da esquerda que motivavam a candidatura. E por isso recusaram. Nobre não teve a mesma clarividência e por isso acaba instrumento de um desígnio que não é o seu.

Acho que esse desígnio vai falhar. Vamos esperar para ver o que cada candidatura nos traz. Mais do que nomes interessam-me as plataformas políticas que apoiarão as diferentes candidaturas. Por isso, sou cauteloso quanto a apoios explícitos. No entanto, dadas as suas agora claras origens políticas, a candidatura de Fernando Nobre não terá condições para reunir a esquerda. Mais, dificultará a tarefa de quem o pode fazer. Poderá lançar a confusão entre todos aqueles a quem se exige ideias claras. Uma bênção para Cavaco.

Concentremo-nos na Política!


Vivemos tempos maus para o debate político. Num momento em que se discutem escolhas fundamentais para o futuro da nossa economia e do nosso país, a atenção mediática vira-se para a lama que voa em todas as direcções. Infelizmente, a pornografia é sempre mais atraente do que o debate aprofundado sobre alternativas políticas.

Escrevo estas linhas a propósito deste texto do João Galamba. Para dizer que mantenho com ele grandes divergências no plano político, já tive alguns despiques directos com ele no Parlamento e é assim que quero que seja a política. Um combate centrado em ideias e não uma guerra entre assassinos de personalidade. Essa é uma questão decisiva para a democracia, mas também para a mudança. É que a saída dos homens providenciais, pode ser a mudança conveniente para que tudo fique na mesma, ou pior.

É por isso que um dos compromissos fundamentais dos autores deste blog é e será sempre o de nos concentrarmos na desconstrução das escolhas de política económica (e não só) liberal e na proposta de alternativas substanciais. Perdoem-nos os leitores se isto nos faz por vezes parecer alheados dos "debates" da actualidade de curtíssimo prazo. Não é defeito,é feitio.

Heresias de onde menos se espera

Já todos percebemos que ainda não foi desta que uma crise de dimensões dramáticas nos permitiu sair da era do Consenso de Washington. Pelo contrário, a correlação de forças prevalecente permitiu que os esforços para minimizar os impactos económicos e sociais da crise sirvam agora para justificar a continuação da deterioração das condições sociais e da erosão do Estado social.

Mas o tom triunfalista do discurso neoliberal parece ter sido severamente atingido. Até do economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, nos chegam sinais nesse sentido. O indispensável e.conomia.info resume assim um recente texto do autor: «Blanchard defende que a taxa de inflação óptima é de 4% e não de 2% como até agora assumido pela maioria dos bancos centrais, nomeadamente o BCE; que o tamanho dos Estados tem de ser maior – ou pelo menos estar preparado para ser maior – para que existam melhores estabilizadores automáticos; que os bancos centrais têm de encontrar novos instrumentos para a missão que até agora recusaram assumir: combater bolhas especulativas».

É bom saber que já não precisamos de andar a repetir ideias básicas (as mesmas que até há pouco eram sinais de radicalidade). Podemos dedicar-nos a outros temas.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Eurozona: o que fazer da próxima década?


Há dias (14 Fev) o jornal britânico The Observer publicava uma coluna de opinião de Ruth Sunderland onde se afirma:
“A única forma de uma moeda única funcionar no longo prazo é através de uma maior união política e orçamental, e isso é algo que duvido que este país … alguma vez venha a apoiar num referendo.”

Numa posta do Verão passado, chamei a atenção para um artigo da revista The Economist que defendia esta ideia: o apoio da Alemanha aos países em dificuldade financeira implicaria a introdução de um controlo comunitário das contas públicas dos estados-membros muito mais apertado o que, no quadro de uma negociação global, acabaria por levar a um aprofundamento da integração política. Tese do artigo: uma crise de pagamentos conduziria a mais integração e não a menos.

Concordo com a afirmação de Ruth Sunderland e a actual crise está aí para o comprovar, mas não subscrevo a tese da revista The Economist. Pelo seguinte:

1) Não é apenas o Reino Unido que não quer ouvir falar de federalismo. A própria Alemanha não quer ir mais longe na cedência de soberania: a avaliar pela opinião publicada, a maioria dos seus cidadãos não quer. Os alemães têm um Tribunal Constitucional que é o vigilante e garante de que tal não acontecerá. Embora com menor peso político, vários países do Centro e Leste da Europa acompanham a Alemanha nesta recusa de novos passos em direcção a "uma maior união política e orçamental".

2) É verdade que, a pretexto do caso particular da Grécia, se pretende instituir agora um controlo mais apertado da evolução das contas públicas dos países da Eurozona. Porém, esse controlo apenas significa mais pressão política para que o país adopte “medidas radicais” e ponha em andamento as “reformas estruturais” indicadas pelo monetarismo instituído no Tratado de Lisboa (leia-se liberalização dos despedimentos, cumprimento do PEC qualquer que seja a conjuntura, fiscalidade favorável aos rendimentos do capital e aos dos seus gestores, etc). Ou seja, a economia política que nos levou à crise já se recompôs, como lembra hoje Rui Tavares na sua crónica no Público.

3) Independentemente do caso particular da Grécia, e da engenharia financeira e institucional que vier a ser criada para evitar o colapso do euro em caso de necessidade, o certo é que a imposição de políticas de austeridade em toda a Eurozona vai produzir o contrário do que se anuncia. Segundo os últimos dados do Eurostat, quer a economia alemã quer a do conjunto da Eurozona estão totalmente estagnadas. No final de 2009 simplesmente não cresciam (0,1%). Manifestamente, os líderes da UE estão obcecados com o “fetichismo do défice” (ver o que diz Stiglitz sobre isso), e preparam-se para afundar a economia europeia fazendo disparar o já elevado desemprego que temos. A tentativa de nomear Axel Weber (um fundamentalista do monetarismo alemão) para a presidência do Banco Central Europeu só confirma o pior.

4) Temos assim que a actual crise de pagamentos vai ser evitada com recurso a expedientes financeiros e institucionais que não se traduzirão em “maior união política e orçamental”, ao mesmo tempo que se consolida a orientação pré-Keynesiana da política económica na Eurozona … o que trará novas reduções do PIB e a impossibilidade de os países em dificuldade cumprirem o que foi acordado. Para seu espanto, os alemães e os que os acompanham também verão o seu défice crescer. A desorientação das lideranças será evidente no segundo semestre de 2010 quando, tendo dado o seu melhor para relançar o crescimento, tiverem que enfrentar o fracasso da sua fé monetarista, o protesto da rua e os impasses eleitorais.

Em minha opinião, só a construção acelerada de um novo projecto político à esquerda (já em desenvolvimento um pouco por toda a Europa) poderá evitar que Will Hutton tenha razão quando, na mesma edição do The Observer, termina dizendo que a próxima década pode vir a ser realmente muito desagradável.

Um filme rigorosamente a não perder: "Eden à l'ouest"

Sobre a imigração clandestina para a Europa Ocidental, no caso vertente vinda da Albánia, queria recomendar vivamente este filme do Costa-Gavras, que o Elísio Estanque em boa hora recomendou num artigo do Público: podem comprar DVD na Amazon.co.fr.

Pura poesia política: num estilo algo renovado, pelo lado da poesia, mas também com as marcas de sempre do Costa-Gavras, pelo seu empenhamento civico.

Rigorosamente a não perder!
Será que alguma vez chegará ao circuito comercial português?
Espero que sim, bem merece!

Eu pago!

"Depois da Crise Financeira, vários Governos e Autoridades monetárias tomaram medidas para reforçar a transparência dos movimentos de capitais nestas regiões. Em Junho do ano passado, o Banco de Portugal (BdP) avançou com a obrigação de todas as operações com paraísos fiscais superiores a €15 mil terem que ser comunicadas ao Banco Central.

Neste momento, a regra ainda não está em funcionamento porque ainda não teve luz verde da Comissão Nacional de Protecção de dados, uma vez que, segundo revelava esta semana o "Diário Económico", o BdP ainda não pagou a taxa de €100 para dar andamento ao processo."

Expresso, 13 de Fevereiro de 2010

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Carnaval na Babilónia

The Members - Offshore banking business / Pennies in the Pound (1979).
Magnífico 12" dos The Members com a participação dessa lenda viva que é o jamaicano Rico Rodriguez, no trombone, a fazer aqui uma impressionante passagem entre o suporte rítmico e melódico do tema e o fantástico dubmix (Pennies in the Pound, a partir dos 3'12") que constitui a segunda parte deste disco raro e precioso. O som jamaicano estava então no auge e a luta surgia nas ruas, a partir de Brixton e de outras zonas de Londres, com muita festa, muitos sound-systems, Linton Kwesi Johnson e a sua poesia inflamada pelo dub, Cimarons, Matumbi, Tom Robinson... O lema da época era: Rock Against Racism - Reggae, Soul, Rock'n'roll, Jazz, Funk and Punk: Our Music! O espírito era de combate, pois esta foi a primeira vaga a sofrer duramente o embate das políticas da Sra Tatcher. Vale a pena ouvir bem este testemunho da melhor música popular urbana desse período.

Vírus, 8: “Democracia e Serviços Públicos”



A revista em linha Vírus (nº 8, Janeiro/Fevereiro de 2010) acaba de publicar os vários textos revistos das comunicações apresentados aquando do fórum “Democracia e Serviços Públicos” que juntou elementos de várias esquerdas (socialistas, bloquistas, renovação comunista, muitos independentes de esquerda, nos quais me incluo, etc.).

A iniciativa era e é meritória e só é pena que não tenha tido a continuidade que a normalização democrática e as expectativas dos eleitores portugueses (designadamente dos vários partidos de esquerda) exigiam...

Pelo menos ficam para memória futura os textos e as reflexões associadas a esta iniciativa e que o João Teixeira Lopes e a Vírus em boa hora entenderam dar à estampa. São várias a secções incluídas: Economia (com textos de vários membros deste blogue; note-se que o meu, “Convergência das esquerdas e qualidade da democracia”, é sobre política e não sobre economia política, apesar de incluído nesta secção), Educação, Saúde, Trabalho e Cidades. Leituras a não perder, passe a imodéstia.

Construção frágil e pluralismo forte

José Reis publicou, como artigo no Público, um excerto do prefácio à segunda edição do seu último livro – Ensaios de Economia Impura –, um importante contributo para a tradição institucionalista em economia. Uma tradição com muitos adeptos neste blogue. É uma das ironias da história económica que a acção de muitos economistas académicos convencionais tenha sido parcialmente responsável pelo retorno dos padrões de instabilidade que tornaram cada vez mais pertinente a teoria económica crítica, que sobreviveu nas margens da disciplina. É por isso preciso trazê-la para o centro do ensino e do debate sobre as reformas económicas. Quem tem medo do pluralismo? É com muita satisfação que colocamos o artigo à disposição dos leitores:


A teoria económica é, afinal, uma construção frágil


Este livro, que agora se reedita [ed. Almedina, Coimbra], apareceu pela primeira vez em público em Julho de 2007. O tempo passado é escasso, mas a verdade é que aquela data me parece já bem mais distante do que o que resulta do tempo cronológico. De facto, o contexto em que, então, entendi esta publicação era sobretudo o de uma discussão intelectual dentro da economia, enquanto disciplina. Ora, durante esta súbita aceleração da história em que estamos profundamente mergulhados, produziu-se um resultado de monta de que o livro é beneficiário: as questões mais essenciais da economia invadiram a praça pública, deixaram de estar tão confinadas a redutos académicos, foram postas e puseram-se em questão. Assistiu-se a revisões radicais do que se supunha normalizado e até natural. A economia laicizou-se, publicizou-se. A dimensão prescritiva, calculista, finalista que faz a sua popularidade e suscita algum fascínio entre o público não especializado – que vê a economia como critério e argumento final para justificar decisões e definir comportamentos – perdeu significado perante as imensas falhas que originou.

Não me parece exagerado dizer que entre os temas que a crise pôs em primeiro plano estão certamente as relações da economia com os valores, a confiança, a subordinação do económico a padrões morais, a não redução da vida ao mercado. Também se percebeu, com dramática clareza, que a teoria económica que se arroga clarividente, dona de respostas sempre prontas para muitos aspectos da vida – mesmo aqueles em que se torna óbvio que não tem nada a dizer – é afinal, uma construção frágil, recorrentemente desafiada pela renovada complexidade da realidade, que com grande agilidade lhe evidencia os limites e as falhas.

Seria preciso eclodir uma crise tão dramática como aquela que decorre para que isto acontecesse? Seria preciso que a produção de desigualdades, a fortíssima inversão dos padrões de repartição do rendimento, o desapossamento da esperança de gerações inteiras se tivessem disseminado pelo mundo para que, enfim, se rediscutisse na praça pública a economia, o saber económico e o poder económico? Certamente que não. Poderíamos aí ter chegado apenas através de um escrutínio crítico mais profundo. Poderíamos aí ter chegado se a academia onde se ensina economia fosse mais aberta, mais plural, mais crítica e, portanto, mais conhecedora. Também poderíamos aí ter chegado se a vida pública estivesse menos dependente de formas de pensamento monistas, e cultivasse a contraposição e o debate.

É aqui que este livro reencontra o seu lugar, ao propor uma concepção larga da problemática económica. Por estas e outras razões compreendemos hoje melhor que a teoria económica dominante se conta entre os responsáveis pela crise dramática que atingiu as economias capitalistas. Não foram apenas excessos, erros ou defeitos que desmoronaram o sistema bancário e financeiro, com profundas implicações na sociedade e na vida das pessoas (de umas, muito mais do que de outras). Na razão mais profunda da crise estão as convicções que se impuseram sobre o papel e o lugar que cabem ao mercado nas sociedades de hoje. O mercado como instrumento de optimização da sociedade foi uma ideia a que não resistiram mesmo alguns dos que se presumem interessados na justiça social. Mas estes estavam enganados. Ao acomodarem-se a visões quase tão liberais como a dos liberais pensaram que podiam ser eles a fazer da regulação dos mercados um instrumento sofisticado, com que, de maneira subserviente e cerimoniosa, iam aperfeiçoar o capitalismo, que queriam entender como um sistema de concorrência que nada desafiasse. Mas não foi assim.

Por isso, os desafios estão aí. Desafios ao Estado, para que não seja apenas o bombeiro que salva acidentes e socializa prejuízos. Desafios ao mercado, para que se limite ao que é próprio da capacidade de iniciativa – gerar lucros através do exercício da liberdade para criar riqueza e não da submissão à lógica especulativa de todas as esferas da vida em sociedade, incluindo aquilo que, como a educação, a saúde, as poupanças, o bem-estar futuro das pessoas, só a esfera pública pode colocar num contexto onde impere a justiça. São, pois, claras as fronteiras entre o que deve ser próprio da provisão pública e o que é próprio da iniciativa privada. Mas a arbitragem só pode ser feita por um intenso escrutínio colectivo.

Os frutos da controvérsia e da persistência intelectual acabam sempre por chegar e, em geral, eles são benefícios colectivos. O Prémio Nobel da Economia, foi atribuído em 2009 a Elinor Ostrom, da Universidade do Indiana, e a Oliver E. Williamson, da Universidade da Califórnia, Berkeley. São personalidade e perspectivas muito diferentes. Mas têm um forte ponto em comum: interessam-se, numa acepção larga, pelas instituições e pelo modo como os comportamentos e as organizações alternativas ao mercado se tornam relevantes no mundo contemporâneo. Além disso, Elinor Ostrom é uma cientista política, o que bem sublinha como devemos saber atravessar as fronteiras disciplinares instituídas. Trata-se, pois, da consagração de dois pontos de vista com que, ao publicar este livro, me sinto muito comprometido: o ponto de vista da abertura e do pluralismo disciplinar e o da compreensão da dimensão institucionalista da economia. Eis a feliz e mais recente nota de actualidade que posso acrescentar a esta nova edição dos Ensaios de Economia Impura.

José Reis. Prof. Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Sociais.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

«E se encerrássemos a Bolsa?»


As boas perguntas são as que nos fazem pensar, transportando-nos da esfera do que vemos como natural, inquestionável e imutável, para a esfera da construção, da escolha e do possível. São as que nos mostram que não temos que estar passivamente sentados a consumir sentidos únicos.
No número de Fevereiro do Le Monde diplomatique – edição portuguesa, o economista Frédéric Lordon aplica este raciocínio à Bolsa. Começa por listar os argumentos que poderiam ser usados a favor da sua manutenção para, em seguida, os descontruir e defender o seu encerramento. Com essa medida ganharia a economia e voltaria a associar-se o enriquecimento à remuneração do trabalho, defende.
Fica um excerto; o longo artigo de Lordon pode ser lido no número em banca:
«A Bolsa tem pois a notável característica de concentrar num único lugar a nocividade económica e a nocividade simbólica, coisa em que deveríamos ver razão bastante para encarar a possibilidade de desfechar contra ela alguns ataques sérios. Não dizemos que os argumentos aqui expostos concluem em definitivo a discussão sobre o encerramento da Bolsa, havendo seguramente muitas objecções a refutar para nos convencermos, de uma vez por todas, que se impõe juntar os gestos às palavras. Não é isso, portanto, que dizemos, mas apenas que é tempo, pelo menos, de as pessoas não se coibirem de pensar no assunto.»

As omissões e as opções do conselheiro de Cavaco

Vítor Bento acha que não criámos a "flexibilidade interna" para nos mantermos competitivos e que por isso não beneficiaríamos de um eventual impulso da procura gerado pelos países com excedentes comerciais, como é o caso da Alemanha. A avaliar pelos ganhos recentes de quota de exportação na UE (ver gráfico), a China sairia beneficiada. Já lá vamos. Antes notar que, como assinalou o economia.info, Vítor Bento parece continuar a ter relutância em responder directamente a quem o crítica. Enfim, parece estar a tornar-se hábito numa certa blogosfera económica e até acho que isto revela a natureza pouco plural de uma área, a economia, demasiado disciplinada.

Enfim, apesar de tudo estamos a avançar: já se reconhece o papel do contexto externo nos nossos problemas de inserção. É claro que se continua a insistir na "flexibilidade", palavra que na novilíngua neoliberal quer dizer, no campo das relações laborais, maior facilidade em transferir custos para os trabalhadores sob a forma de horários de trabalho baralhados e mais longos, custos reduzidos no despedimento, salários mais baixos e mais desiguais. Assim soa pior, não soa? É convergir com o capitalismo anglo-saxónico, o que como se vê dá bonitos resultados em termos de relações com o exterior. Notar ainda que o que Vítor Bento no fundo propõe é o que está implícito na arquitectura institucional europeia: com política monetária única e sem política orçamental, a variável de ajustamento é o trabalho, o que, obviamente, fará maravilhas pela motivação e pela dignidade dos trabalhadores...

É claro que não há como iludir a questão: Portugal, no quadro de um euro forte e de uma forte liberalização comercial, tem perdido para países como a China, que têm uma política cambial e industrial agressiva e um regime autoritário bem calibrado para reprimir espertezas sindicais. É todo um modelo. Já que no seu livro, Bento cita Dani Rodrik aqui fica uma citação para Bento retirada do último livro de Rodrik: "o facto de praticamente todos os países avançados terem embarcado no seu crescimento protegidos por barreiras alfandegárias e só terem reduzido a sua protecção subsequentemente oferece uma pista (...) No quadro de um conjunto de regras comerciais sensatas, os países industrializados teriam tanto direito de protecção dos seus arranjos sociais (...) como as nações em vias de desenvolvimento teriam de adopção de práticas institucionais divergentes".

Numa palavra, temos de regressar à intuição de Keynes sobre as virtudes de uma refragmentação controlada da economia mundial. Isto tem de ser feito através de mecanismos de correcção dos desequilíbrios internacionais em matéria de comércio e de investimento, o que terá de passar pela adopção de medidas ditas proteccionistas à escala europeia e nacional. Só assim podemos forjar uma política industrial capaz de beneficiar os sectores de bens transaccionáveis que desejamos promover e de construir um mercado interno europeu mais equilibrado e coeso.

Depende de nós

O presidente do Instituto Português do Sangue lançou um alerta e fez um apelo: por razões aparentemente pontuais, as reservas de sangue existentes apenas cobrem as necessidades de dois dias das unidades de saúde e por isso é ainda mais imprescindível que os cidadãos, em especial os da Grande Lisboa, exercitem a virtude cívica e dêem sangue. Não pode faltar sangue para quem dele necessita. Os portugueses até são relativamente mais generosos do que a média da União Europeia e o país até costuma ser auto-suficiente. A minha crónica no i pode ser lida e comentada aqui.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Um jornal com outros modos

“A lógica é simples. Na doença, as pessoas vêem-se numa situação de extrema fragilidade, uma situação corrosiva para si próprias e para o corpo social. As melhores hipóteses de recuperação do bem-estar dependem da montagem prévia de mecanismos de protecção eficazes, a que todos, sem excepção, tenham acesso. O Estado, através de um contrato social com os cidadãos assente na cobrança de impostos progressivos em troca do fornecimento de serviços públicos adequados às necessidades das populações, organiza a gestão dos recursos, bens e equipamentos que melhor podem garantir a universalidade do acesso e a qualidade destes serviços. Deste modo, o financiamento do serviço prestado é feito em função dos rendimentos de cada um, e não do seu estado de saúde, para que, em contrapartida e sempre que necessário, os cuidados de saúde recebidos dependam apenas do estado de saúde de cada um, e nunca do seu nível de rendimentos. É esta a lógica do Serviço Nacional de Saúde (SNS).”

O resto do artigo da Sandra Monteiro - “Reconfigurações da saúde” - no Le Monde diplomatique – edição portuguesa deste mês pode ser lido aqui. Se estiverem interessados na questão que vem na capa, não percam. Isto e muito mais. O mais só comprando o jornal. Façam-no e vão ver que não se arrependem. O melhor mesmo é assinar. Estão a ver? Ainda dizem que a esquerda é contra os mercados. Nada disso. Mercados, assim no plural, porque mercados há muitos e configurados de muitas formas, nos seus espaços próprios (há muitos bens cuja provisão pode e deve ser instituída de acordo com os melhores princípios socialistas) e povoados por diversas organizações: no Le Monde diplomatique somos uma cooperativa. Há muitos modos de (in)formar.

[Publicado, originalmente, no Arrastão]

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A aposta alemã?

Segundo o The Guardian de hoje, o governo alemão parece não estar muito interessado em participar no plano de salvamento da economia grega avançado pelos franceses. Será que os gregos terão que recorrer ao FMI? O governo grego encontra-se numa situação em que aceita as normais condições impostas por esta organização (cortes na despesa, aumento dos impostos, reformas no sistema de pensões, etc), sem beneficiar de qualquer empréstimo. No mínimo, paradoxal.

Entretanto, esta manobra do governo alemão mostra bem quais as intenções. Finalmente conseguirão o que tentaram nos anos noventa. Uma união monetária sem os países do sul da Europa. Está na altura de estes começarem a articular as suas posições políticas no seio da UE. Caso contrário, podemos começar a pensar o que fazer num potencial cenário de saída do euro.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Diário do Orçamento VI - Um Estado Responsável que exige Responsabilidade


A Assembleia aprovou recentemente uma proposta que fixa prazos na devolução do IVA às empresas, prepara-se para legislar sobre juros de mora nos pagamentos do Estado e criar regras para a definição de prazos de pagamento nos contratos públicos. São medidas que responsabilizam o Estado e criam regras no seu relacionamento com os privados. Só é pena que, em muitas áreas e sobretudo quando as empresas privadas são grandes e musculadas, o Estado seja tímido na defesa do interesse público ou simplesmente na exigência do cumprimento dos compromissos fixados.

Discutir despesa pública é discutir as regras segundo as quais se rege a relação entre o Estado e os agentes privados que executam grande parte dos projectos de investimento público. Essas regras devem partir de alguns princípios, que não têm sido cumpridos,como sejam:

1. Clareza de objectivos - Em primeiro lugar, o Estado deve definir bem o âmbito dos investimentos que tenciona promover. Na construção civil, existe o conceito do "já-agora". O "já-agora", juntamente com o "não pensámos nisto" inflaciona com enorme frequência os orçamentos, muitas vezes multiplicando-os em relação às previsões iniciais. Se há obras cuja necessidade é incerta, isso não impede que estejam especificadas e orçamentadas.

2. Monitorização - Essa clareza é fundamental para que haja uma monitorização adequada dos contratos e, em caso de incumprimento, condições para que os termos dos contratos sejam impostos, doa a quem doer. Claro que isto implica que cesse a candura com que sucessivos governos têm tratado as grandes empresas, o que contrasta, aliás, com os abusos em relação às pequenas. Um Estado responsável que exige responsabilidade, porque coloca o interesse público primeiro.

3. Transparência - A regra na celebração dos contratos tem de ser o concurso e o ajuste directo, uma rara excepção. O lançamento de concursos obriga o Estado a fixar critérios e torna as suas decisões escrutináveis. É uma regra de bom governo. A decisão do PS, no anterior mandato, de elevar desmesuradamente o montante mínimo para que os investimentos sejam sujeitos a concurso é o contrário dessa regra. O crescimento da utilização do ajuste directo é uma política incorrecta que lança ainda mais nevoeiro sobre uma área das políticas públicas em que os exemplos de promiscuidade entre interesses políticos e interesses privados se têm multiplicado.

4. Concorrência - Mas a importância dos concursos não tem só a ver com a transparência. É uma regra elementar de estímulo à concorrência. Não só obriga as empresas a disputarem esses concursos e introduz uma pressão para a baixa dos valores de adjudicação como permite criar critérios que discriminem positivamente empresas que tenham desempenhado contratos anteriores com rigor e competência.

5. Segurança Jurídica - A clareza nos objectivos e a celebração de concursos têm como objectivo assegurar a segurança jurídica do Estado e impedir que os recursos públicos sejam sequestrados por derrapagens orçamentais intermináveis. Isso significa que o Estado só renegoceia contratos em situações absolutamente excepcionais e quando estiver envolvido um alargamento objectivo e indiscutível do caderno de encargos. É insuportável que o Estado renegoceie contratos em seu prejuízo porque a parte privada invocou consequências negativas decorrentes da crise financeira mundial, como aconteceu em processos negociais recentes, denunciados pelo Tribunal de Contas.

6. Partilha de Riscos - O corolário destas ideias pode ser resumido na seguinte ideia: o paradigma que tem de nortear todos os contratos públicos é o da partilha de riscos. O Juíz Jubilado do Tribunal de Contas Carlos Moreno disse que não conhecia um único contrato em que os privados tivessem perdido dinheiro. Isso não é normal. O que é normal é que a actividade económica comporte riscos e a contratação pública não pode ter como regra que o Estado os assume a todos e os privados têm lucro garantido. Os investimentos têm de ser adjudicados pelos valores de concurso e se das circunstâncias alheias ao contratado resultarem benefícios para os privados, tanto melhor. Se resultarem prejuízos, é a vida. Isso quer dizer que as empresas se protegerão nos valores que colocam a concurso? Seja. Será certamente mais transparente e sempre melhor para o interesse público.

Que espaço resta à direita para se afirmar?

Perante os comportamentos erráticos dos mercados financeiros, que num dia condenam um país à insolvência irreversível para logo a seguir o considerarem uma fonte de risco residual, foram muitos os comentadores e ‘analistas’ locais que alinharam na histeria, precipitando-se a acusar o actual governo de ser a fonte da desconfiança dos ‘mercados’.

Apontaram ao governo o crime da sempre mal explicada ‘ausência de reformas estruturais’. Alimentaram a especulação (e o negócio de quem vive dela) afirmando que a proposta de orçamento para 2010 não dava ‘garantias suficientes’. Esta parece ser a estratégia que boa parte da direita quer seguir para se afirmar como alternativa de poder. Eu sugiro que mudem de estratégia. É que as acusações não são sustentadas pelos factos.

Todos sabemos que nos anos que precederam a crise internacional o défice orçamental caiu a pique (de 6,1% do PIB em 2005 para 2,6% em 2007). A ideia, que a oposição de direita repete à exaustão, de que tal se deveu a um aumento dos impostos simplesmente não encontra fundamento nos números: o contributo da quebra da despesa para esta evolução (por exemplo, através do congelamento dos salários dos funcionários públicos) foi pelo menos tão importante quanto o aumento de receita.

Se isto não bastasse para demonstrar o seu empenho com a ‘consolidação orçamental’, o governo do PS foi responsável por algumas das ‘reformas estruturais’ com maior impacto na sustentabilidade das finanças públicas a prazo. A reforma da segurança social (aumento da idade de reforma, indexação da mesma à esperança média de vida, indexação do crescimento das pensões ao crescimento económico, etc.), a reforma da administração pública (e.g., introdução de um sistema de avaliação que torna mais lentas as promoções, admissão de um novo funcionário por cada dois que saem, redução do número de chefias) ou a alteração da lei laboral foram tão relevantes que levou os organismos internacionais mais ciosos da disciplina orçamental (OCDE, FMI) a elogiar recorrentemente estas reformas, e várias personalidades da ala conservadora a reconhecer que nenhum governo de direita conseguiria ir tão longe.

Mas o empenho do governo não se revela apenas nas ‘reformas estruturais’. Dificilmente os ‘mercados financeiros’ poderiam esperar sinais mais claros do que aqueles que foram dados desde o início da crise até à actualidade. No ano de 2009, quando os governos de todo o mundo anunciaram intervenções sem precedentes nas economias, o contributo da quebra da receita para o aumento do défice orçamental português foi maior do que o aumento da despesa. O investimento público ficou aquém do inicialmente previsto, ajudando a que os 9,3% de défice em 2009 parecessem modestos face aos 11,2% da Espanha, 11,3% dos EUA ou os 12,1% do Reino Unido. A proposta de Orçamento de Estado para 2010 não fica atrás (e.g., novas privatizações, cortes no investimento público, congelamento de salários, reforço das já referidas reformas da administração pública e da segurança social). Se nas eleições legislativas passadas a oposição de direita ainda podia argumentar com as ‘obras públicas faraónicas’ ou com a necessidade de impor portagens nas SCUT, até essas críticas o governo neutralizou nas mais recentes propostas orçamentais.

A oposição de esquerda pode acusar o governo de não taxar as mais-valias bolsistas, de não ter a coragem de aumentar a justiça fiscal através do impostos directos (e, de pelo contrário, apostar em impostos recessivos como o IVA para controlar o défice), de manter e reforçar situações de precariedade laboral inadmissíveis em sectores como a educação ou a saúde, de atribuir demasiada importância à pressão exercida pelas agências de ‘rating’ reduzindo as medidas de estímulo à economia e de apoio ao desemprego antes de tempo, ou de proceder a privatizações e a parcerias com privados que alimentam interesses particulares sem garantias de benefícios públicos.

Enfim, o governo deixa muito espaço à sua esquerda. Já a direita vai continuar a ter muita dificuldade em encontrar espaço para se afirmar.

Cuidar do espaço público

Num tempo de crise que é ao mesmo tempo económica, social e de confiança na probidade de altos responsáveis do Estado Português, não acredito que os problemas se resolvam com intervenções isoladas. Requerem um projecto político global que responda aos desafios com que estamos confrontados em várias frentes.

Um projecto político de esquerda credível, que confronte a política económica monetarista que a União Europeia institucionalizou, que questione o crescimento consumista ecologicamente insustentável, que mobilize a consciência colectiva para a imperiosa necessidade de respeitar não só a lei mas também normas morais que preservem o espaço público, é um imperativo nacional.

Tendo presente o que actualmente se passa no espaço público em Portugal, deixo alguns tópicos para reflexão retirados de um livro de David Marquand (p. 135) que merecia ser traduzido:

- Acreditar na existência de um interesse público, distinto dos interesses privados, é essencial para que se desenvolva um espaço público.

- O espaço público é, num sentido particular, o domínio da confiança. A confiança pública tem uma relação de simbiose com a contestação, debates e negociações, e os valores da equidade e da cidadania que constituem a sua essência.

- Sendo assim, o espaço público deveria ser protegido da permanente ameaça de intromissão a partir dos mercados e de domínios privados.

- A lei, aplicada por uma magistratura independente, imbuída de autoridade, e uma administração pública profissional, independente dos partidos, têm papéis cruciais a desempenhar na protecção do espaço público contra essas intromissões.

- Os bens públicos não devem ser tratados como mercadorias ou equivalentes. Indicadores de desempenho construídos de forma a imitar os indicadores usados no domínio dos mercados são, por conseguinte, inadequados para o espaço público e prejudicam mais do que ajudam.

Quando o Partido Socialista se propôs “modernizar” Portugal estava a dizer-nos que iria fazer precisamente o contrário do que acima se enuncia, na linha do Novo Trabalhismo de Tony Blair. Para David Marquand, o Novo Trabalhismo foi um desastre político, económico e social para o Reino Unido.

Em Portugal, a herança socialista não será muito melhor. Com a agravante de, tal como lá, nos faltar um projecto político alternativo, de governo, que valorize o espaço público e, assim, nos dê condições para ter esperança numa vida boa para todos.