Temos dito aqui várias vezes que a sucessão de crises financeiras desde a década de 1970 (este estudo do Banco Mundial contabiliza 117 crises em 93 países, entre finais dessa década e o início do novo milénio) é indissociável da opção política de liberalizar os movimentos de capitais a nível mundial. O discurso neoliberal reinante garantia-nos que ao ‘libertarmos’ os movimentos de capital das ‘amarras’ dos Estados nacionais (a escolha das palavras nunca é inócua) estaríamos a construir um mundo mais próspero: os capitais dirigir-se-iam de onde existissem em excesso para onde fossem mais nessários, promovendo o crescimento global. A história mostrou-se diferente: nenhum estudo até hoje conseguiu mostrar que os países que aderiram ao movimento de liberalização de capitais beneficiaram de maior crescimento; pelo contrário, o crescimento e a estabilidade económicos verificaram-se em países que, neste período, mantiveram um controlo razoável dos fluxos de capitais (sendo a China o caso mais evidente).
Outros países, traumatizados com as crises resultantes da entrada e saídas de capitais em massa, procuraram proteger-se da globalização financeira prosseguindo uma política de acumulação de reservas (forçando a poupança interna, intervindo nos mercados cambiais, investindo fortemente no sector exportador, etc.), que permitisse fazer face a eventuais ataques especulativos. Esta opção, patente em muitas economias emergentes após a crise asiática de 1997/8, revelou-se eficaz para as economias em causa – mas desastrosa para a economia mundial.
A poupança interna nas economias emergentes reflectiu-se no aumento da oferta nas restantes economias, sem reflexos sustentáveis na procura global. Representou também um aumento de liquidez, que permitiu alimentar temporariamente o consumo nas economias deficitárias (a começar pelos EUA), mas pouco estimulou o investimento produtivo. O fraco desempenho do investimento produtivo não é de admirar: a globalização financeira acarretou um aumento do poder negocial do capital face aos Estados nacionais (com reflexos na capacidade de obtenção de receitas e, consequentemente, na pressão crescente sobre as despesas públicas) e face ao factor trabalho (com reflexos negativos no poder de compra dos trabalhadores). Este clima de pressão sobre os rendimentos desfavorece a procura dirigida ao sector real da economia, desincentivando os investimentos neste sector e convidando quem tem poupanças a destiná-las ao investimento em activos financeiros. Simultaneamente, a redução dos rendimentos, conjugada com a disponibilidade de crédito, conduziu ao endividamento crescente de uma parte significativa da população. Ou seja, avolumou-se o peso do sector financeiro e especulativo, ao mesmo tempo que se condicionou a dinâmica de crescimento do sector real da economia.
Neste cenário, as falhas de regulação e de supervisão do sistema financeiro são apenas o catalisador de um processo que encontra as suas origens na transformação do neoliberalismo em ideologia de regime. Faz bem o FMI em vir agora pôr em causa a política de liberalização de capitais, que andou (e ainda anda…) a impor pelo mundo fora como parte dos seus pacotes de ajustamento estrutural. O controlo de capitais não só diminui o poder desestabilizador e de chantagem dos especuladores financeiros, como poderá contribuir para a diminuição dos desequilíbrios macroeconómicos globais (na medida em que torna menos premente a acumulação de reservas nas economias emergentes).
Mas as forças que contribuem para o estado permanente de austeridade vão muito para além disso. O fim dos paraísos fiscais, a taxação das transacções financeiras, a promoção do investimento em capacidade produtiva, a redução das desigualdades sociais e a criação de mecanismos de gestão macroeconómica global são passos necessários para que não continuemos a saltar de crise em crise.
"Mas as forças que contribuem para o estado permanente de austeridade vão muito para além disso. O fim dos paraísos fiscais, a taxação das transacções financeiras, a promoção do investimento em capacidade produtiva, a redução das desigualdades sociais e a criação de mecanismos de gestão macroeconómica global são passos necessários para que não continuemos a saltar de crise em crise."
ResponderEliminarResumindo, tornemos o Capitalismo uma coisa boa, não é verdade? Acreditemos que vão ser feitos esforços a nível mundial para que haja uma maior regulação e se acabem mesmo os paraísos fiscais, não é assim? Lutemos pelo bom Capital, mas baixemos-lhe as calças, bem baixadinhas, para continuarmos a competir nos mercados internacionais, ou o Capital segue para países mais pobres. Viva a esquerda socialista.
A leitura é sua, mas pelo tom do comentário não parece muito interessado/a em aprofundar discussões.
ResponderEliminarO tom do seu último parágrafo é que me parece que não mostra interesse em aprofundar a discussão. Lutar pelo fim dos paraísos fiscais? Só pode funcionar com uma pressão internacional, o que é ilusório e não preciso de lhe explicar porquê. Taxação das transacções financeiras? Idem; e digo-lhe mais, se o quisermos fazer num quadro europeu, ficamos (Europa) cada vez mais afastados do crescimento americano e asiático, e quando chegarem as crises ficamos igualmente afectados. Promoção de investimento em capacidade produtiva? Todo e qualquer Estado o pode fazer, mas para isso aumenta a emissão de dívida pública. Sobem-se impostos para compensar? Então de onde virá o Capital estrangeiro de que tanto precisamos para criar riqueza? Criação de mecanismos de gestão macroeconómica global? Venha o FMI com a cara lavada.
ResponderEliminarA realidade é que uma certa esquerda (nomeadamente a esquerda dentro do PS e, para mim muito infelizmente, a facção que domina o Bloco de Esquerda) tem ilusões acerca do combate actual, num quadro internacional capitalista. Tanto palavreado repetido por uma social-democracia derrotada há tantas décadas, para quê, precisamente?
"O fim dos paraísos fiscais, a taxação das transacções financeiras, a promoção do investimento em capacidade produtiva, a redução das desigualdades sociais (...)são passos necessários para que não continuemos a saltar de crise em crise."
ResponderEliminarSubscrevo.
Já quanto a " criação de mecanismos de gestão macroeconómica global"
de que mecanismos está a pensar?
A taxação de transacções financeiras não altera em nada o que causa a baixa das taxas de lucros há 30 anos: a crescente componente orgânica do capital. É este o reformismo que os ladrões têm para oferecer.
ResponderEliminar"a sucessão de crises financeiras desde a década de 1970 (este estudo do Banco Mundial contabiliza 117 crises em 93 países, entre finais dessa década e o início do novo milénio) é indissociável da opção política de liberalizar os movimentos de capitais a nível mundial"
ResponderEliminarO estudo citado limita-se a elencar a fazer uma lista das crises nem sequer fazendo uma contagem das crises por década e muito menos fazendo a associação que se presume aqui. Note-se, aliás, que muitos das crises referidas ocorreram em países onde não existia essa liberalização, bastando referir que muitas das "crises" elencadas estiveram associadas à queda dos regimes do bloco soviético ou em países africanos (como o Zimbabwe ou o Congo) que só com grande esforço poderemos atribuir à "liberalização dos movimentos de capitais". Saliente-se ainda que as crises elencadas são muito dispares entre si quer em termos de gravidade quer em termos do contexto em que ocorreram sendo (no mínimo) excessivamente simplista atribui-las a um qualquer factor único.
Por outro lado, mesmo reconhecendo que essa liberalização pode ter contribuido (mas não sido o único factor) nas crises mais graves nomeadamente na crise asíatica de 97-98 e na actual crise importa não esquecer que o período pós-85 foi um período de inegável prosperidade em termos globais (embora não tanto para a Europa e EUA) para o qual essa liberalização contribuiu.
O objectivo devia ser melhor a coordenação macroeconómica e as regras prudenciais de forma a procurar conciliar essas vantagens com uma menor volatilidade, reduzindo a frequência e sobretudo a gravidade das crises.
"a redução dos rendimentos (associada à disponibilidade de crédito) conduziu ao endividamento crescente de uma parte significativa da população"
Não sei se se verificou uma "redução" dos rendimentos. Mas concordo que se não houvesse crédito não havia endividamento (por definição) mas não compreendo porque razão isso desfavorece a procura dirigida ao sector real da economia. Esse crédito tivesse sido "gasto" em consumo ou investimento (nomeadamente residencial). Questão diferente era da sustentabilidade e do impacto sobre a oferta que decorreria do investimento produtivo.
Uma última nota relativamente à referência "pelo contrário, o crescimento e a estabilidade económicos verificaram-se em países que, neste período, mantiveram um controlo razoável dos fluxos de capitais (sendo a China o caso mais evidente)". Isso sucedeu porque esses países tinham taxas de poupança muito elevadas e com estes controlos conseguiram dessa forma ter capital abundante (e barato) a nível interno que lhes permitiu aumentar a sua oferta e conquistar mercados aproveitando a liberalização. E por conseguinte é um modelo que não pode ser replicado em países, como Portugal, com níveis de poupança actualmente muito baixos.
Anónimo,
ResponderEliminarPode-se afirmar que «o fim dos paraísos fiscais, a taxação das transacções financeiras, a promoção do investimento em capacidade produtiva, a redução das desigualdades sociais e a criação de mecanismos de gestão macroeconómica global são passos necessários para que não continuemos a saltar de crise em crise», reconhecendo, no entanto, a inviabilidade – não técnica, mas política - destas propostas no contexto actual, não lhe parece? E não estou a ver como é que uma análise da evolução da ‘composição orgânica do capital’ é incompatível (diria mesmo, é dissociável) daqueles elementos. Há uma diferença entre condições necessárias e condições suficientes.
JP Santos,
retire da lista todas as crises que não têm a ver com a globalização financeira e continuará a ter uma associação indesmentível entre liberalização dos movimentos de capitais e instabilidade financeira. Quanto à ‘inegável prosperidade em termos globais’ ela só é verdadeira em termos agregados. Na verdade, o crescimento económico no período estivere fortemente concentrado num número limitado de países (cujo peso populacional arrastou os valores médios globais). Quanto à relação entre poupança e controlo dos movimentos de capitais, parece-me estar a inverter o sentido das causalidades – dificilmente esses países manteriam níveis tão elevados de poupança interna sem controlo dos fluxos financeiros com o exterior.
Investir no sistema produtivo é essencial, especialmente no nosso país que desgraçadameente importa quase tudo o que consome.
ResponderEliminarO Problema é que quem tem capital para o fazer sem se endividar, aplica-o na especulação com elevado lucro.
E como diz o bloco de esquerda e muito bem, tem que existir determinada banca publica que facilite a vida a individuos, associações, cooperativas, etc, que queiram empreender.
O Estado tem que fornecer os meios e incentivos - educação, formação, banca publica, justiça, etc - que permitam a mudança de paradigma
Ricardo Paes Mamede,
ResponderEliminarPessoalmente considero mais importante o número de habitantes do que o número de países e não creio que a liberalização possa, por exemplo, ser apontada como culpada das dificuldades em África.
Quanto à relação entre poupança e movimento de capitais não fiz nenhuma relação de causalidade (que sinceramente a existir não me parece evidente - admito que exista uma relação entre liberalização do mercado de crédito e poupança mas isso é algo de diferente). O que quis dizer foi algo de diferente. Nesses países os controlos de capitais significaram que os elevados níveis de poupança interna foram reinvestidos internamente aumentando a sua capacidade de oferta que foi absorvida pelo resto do mundo. Em países com níveis de poupança mais baixos este efeito de acumulação de capital não teria sido possível.
Rui F,
E porque não tentar antes criar as condições para que os que, como diz, detém capital invistam na chamada (sinceramente não gosto da expressão) "economia real" ?
Expropriar a banca é uma palavra de ordem demasiado forte?
ResponderEliminarCaro Ricardo,
ResponderEliminarAcertou na mouche. Genial. Subscrevo inteiramente o seu artigo.
Ainda acrescento, que segundo o que tenho lido de economistas como Stiglitz, não existem estratégias bem sucedidas de desenvolvimento de países que não tenham proibido ou restringido fortemente o movimento de capitais de curto prazo.
Foi este um dos factores (e a intervenção do Estado entre outros) que permitiu o desenvolvimento económico do Sudoeste Asiático.
Quanto às offshores partilho do mesmo sonho mas não estou confiante. No início da crise a classe política lembrou-se desses refúgios do grande crime organizado e potencial reduto para operações de capital de elevado cariz especulativo. Mas a memória é curta e os contribuintes têm as costas largas (os gestores da AIG que o digam).
MAs é claro que o que importa agora não é isso. São os défices! Os défices! Porque o Estado é demasiado incompetente para gerir as suas contas porque está demasiado ocupado a salvar todo o sistema financeiro mundial.
Agora há que emagrecer o défice do Estado. E mais uma vez quem vai pagar este emagrecimento vão ser os contribuintes.
Se não fossem os contribuintes (ou o Estado) já tínhamos descido às catacumbas do Inferno.
Os défices orçamentais são sintomas (neste caso ainda se torna mais óbvio) e não são um problema em si mesmo, são um reflexo de um problema...
Pensemos nisto por um momento.
Cumprimentos
JP Santos
ResponderEliminarè uma ideia mas como convencer os capitalistas se a especulação dá dinheiro limpo sem pagar praticamente impostos?
É muito mais cómodo para eles manter este status.
Com este estado de coisa resta apenas uma banca que seja "generosa" para com quer quer empreender