Para finalizar esta
curta
série de notas a propósito do
artigo de opinião que Centeno publicou no jornal Público no passado dia 9 de Abril, comecemos por recordar, para nos situarmos, da sua afirmação: “Podemos tomar como exemplo a experiência da Bélgica que reduziu o rácio da dívida pública de 130,5% em 1995, um valor próximo do registado em Portugal em 2016, para 94,7% em 2005”. Ou seja, um recuo da dívida pública em 35,8 pontos percentuais concretizado num período de 10 anos.
A partir daqui, deixo um par de observações a propósito das implicações para o resto da economia belga desta trajetória do seu défice público.
Comecemos por referir que a evolução da
poupança e do investimento está estreitamente relacionada com a interação de uma economia com o resto do mundo. De acordo com a aritmética da contabilidade nacional, a diferença entre poupança bruta interna e investimento total do sector público e do sector privado é igual à capacidade/necessidade de financiamento de um país relativamente ao resto do mundo, ou seja, é igual ao saldo do sector externo.
Assim, de forma abreviada, pode dizer-se que isto acontece porque, se numa economia a despesa de uns é necessariamente a receita de outros, então, em termos agregados, a despesa total é igual à receita total.
Usando uma linguagem mais próxima da análise dos
saldos financeiros sectoriais, pode dizer-se que, se um sector melhora o seu saldo financeiro, ou seja, se aumenta a poupança líquida (saldo entre total do rendimento e total da despesa ou saldo entre poupança bruta e investimento), um ou mais sectores têm de a diminuir no mesmo montante, ou seja, não podem todos poupar simultaneamente, dado que a poupança de uns é a despesa de outros. A lógica impõe que o contrário também seja verdadeiro.
À luz deste quadro conceptual, vejamos então o que aconteceu na Bélgica no período 1995-2005, o intervalo de tempo que Centeno oferece como referência.
Vejamos mais de perto, agora com números do gráfico acima. O que podemos observar?
Em 1995, o défice público era de 4,4% e, no período subsequente (1996-2005), em média anual, desceu para 1,2%; ou seja, o Estado Belga poupou e melhorou a sua posição orçamental em 3,2%. De onde surgiu esta poupança? Como a balança de pagamentos contribuiu com apenas 0,1%, o sector privado viu-se forçado a diminuir a sua poupança nos restantes 3,1%, passando de um saldo anual, em 1995, de 8,8% para um saldo anual médio de 5,7%.
Conclusão: a redução do défice do sector público fez-se à custa do sector privado; dado que a posição do sector externo se manteve praticamente inalterada, o aumento da poupança líquida do sector público resultou quase inteiramente da diminuição da poupança líquida do sector privado. Adicionalmente, esta diminuição da poupança líquida do sector privado não por acaso coincidiu com um aumento do endividamento deste sector em cerca de 29,2 pontos percentuais (91,5% do PIB em 1995 e 120,7 em 2005) o que compara, recorde-se, com recuo da dívida pública em 35,8 pontos percentuais.
Chegados aqui, pergunto-me: É isto que Centeno quer para Portugal? Parece que sim. Por um lado, não pode ser por acaso que a Bélgica é oferecida como exemplo. Por outro, os números apresentados no
Programa de Estabilidade 2018-2022 (PEC) apontam para uma forma de comprimir o défice público que, se descontarmos a ainda maior intensidade do esforço exigido è economia portuguesa, se assemelha muitíssimo ao que foi feito no país dado como referência. Senão vejamos:
Repitamos o processo e vejamos mais de perto, agora com números do gráfico acima. O que podemos observar?
Em 2017, tivemos um défice público de 3% e, para o período subsequente (2018-2022), em média anual, projeta-se um superávite de 0,5%; ou seja, o Estado português planeia poupar e melhorar a sua posição orçamental em 3,5%. De onde surgirá esta poupança? Como a balança de pagamentos contribuirá com apenas 0,3%, o sector privado ver-se-á forçado a diminuir a sua poupança nos restantes 3,2%, passando de um saldo anual, em 2017, de 4,4% para um saldo anual médio de 1,2%.
Conclusão: se tudo correr como Centeno planeia, a transformação do défice do sector público em superávite far-se-á à custa do sector privado; dado que
se prevê que a posição do sector externo se mantenha praticamente inalterada, o aumento da poupança líquida do sector público resultará quase inteiramente da diminuição da poupança líquida do sector privado.
Resumindo, para um governo diminuir o défice rumo a um orçamento equilibrado ou superavitário, tem de cobrar mais dinheiro em impostos do que aquele que devolve na forma de despesa ou investimento públicos. Onde
vai o sector privado obter esse dinheiro dado que está legalmente impedido de o imprimir?
Teoricamente, de um de três modos: ou esse dinheiro resulta de uma economia que cresce apesar de dispor de menos dinheiro, e/ou obtêm-no, sobretudo, a partir de mais exportações líquidas de importações, e/ou pede-o emprestado à banca.
A primeira opção é improvável dado que a velocidade de circulação do dinheiro, embora volátil,
tende a
decrescer com o tempo.
A segunda opção não se materializou na economia belga no período analisado e é também descartada por Centeno: o PEC prevê uma ligeira deterioração da balança comercial ao longo do horizonte de projeção e, por isso, uma igualmente marginal melhoria da balança de pagamentos que, prevê-se, resultará da manutenção dos magros saldos positivos da balança corrente e de capital; como vimos acima, a previsão é que o sector externo compense a drenagem de recursos financeiros que a redução em 3,5% do défice público representará para a economia com apenas 0,3%. Coloca-se a questão de saber se mesmo assim não há aqui algum optimismo:
os sinais que começamos a ter não são animadores.
Esta segunda opção é difícil, entre outras razões, porque pressupõe investimento continuado na mudança estrutural da economia e se materializa apenas no médio e longo prazo. No caso de Portugal a dificuldade é acentuada pelo facto do
investimento ter estado em queda mais ou menos pronunciada durante todo o período 1999-2013 e da inversão registada a partir de 2014 ser muito incipiente; acresce que também não ajuda, muitíssimo pelo contrário, que a zona euro no seu conjunto, e a Alemanha em particular (desconte-se a apologia dos gastos militares e atente-se na análise do centrista
Wolfgang
Münchau), procure resolver o lastro de endividamento deixado pela Grande Crise Financeira de 2007/8 e pelos subsequentes desenvolvimentos europeus através de estratégias de simultânea contenção da procura interna porque, lá está, dado que a despesa de uns é a receita de outros, as exportações de uns têm de ser as importações de outros.
Chegados aqui, resta-nos a terceira opção. Tal como aconteceu na Bélgica, em Portugal, o sector privado, confrontado com uma redução da sua poupança líquida, para manter níveis de consumo e investimento compatíveis com o crescimento da economia vai ter de aumentar o seu endividamento.
É isto que uma parte daqueles que no debate público clamam por menos défice público têm em mente?
Será esta estratégia de ‘consolidação’ orçamental uma boa ideia quando o
endividamento privado ainda representa 171,4% do PIB e o
crédito malparado 13,3% do total do crédito concedido?
“O problema”, como diz
Steve Keen, “em depender de níveis sempre crescentes de endividamento privado devia ser óbvio: esta dependência não pode acontecer porque a dada altura o sector privado se recusará a aceitar mais dívida. É o que em grande medida aconteceu em 2008 e originou a crise económica em resultado da contração da quantidade de dinheiro na economia e da própria economia”.