sábado, 30 de setembro de 2017

Fórum de Outono da Manifesto


«O mundo do trabalho é hoje marcado por transformações muito profundas, que o atravessam em múltiplas dimensões. Do impacto das políticas de austeridade à crescente precarização das relações laborais, das questões do sindicalismo às novas formas de emprego e desemprego, dos impactos da inovação tecnológica e dos desafios imensos que transportam consigo. O trabalho tem futuro? O futuro tem trabalho? Em que moldes? Qual é o lugar do trabalho no mundo que se está a desenhar à nossa frente? Como pensar, politicamente, os desafios que se nos colocam?»

Dando continuidade às «Universidades de Verão», organizadas pela Manifesto ao longo dos anos, o Fórum de Outono constitui-se como um espaço de formação, consciencialização, debate e mobilização. A edição de 2017 é dedicada ao trabalho e ao futuro do trabalho, contando com a participação de diversos oradores nacionais e estrangeiros, entre os quais Ana Drago, Richard Hyman, Daniel Carapau, Rebecca Gumbrell-McCormick, Sérgio Monte, Vivalda Silva, Filipe Lamelas, Maria da Paz Campos Lima, Paulo Areosa Feio, Reinhard Naumann, João Ramos de Almeida, José Luís Albuquerque, Nuno Teles, Porfírio Silva, José Soeiro, Manuel Carvalho da Silva, Tiago Barbosa Ribeiro e Diogo Martins.

O Fórum de Outono da Manifesto realiza-se nos próximos dias 27 e 28 de Outubro, no Auditório da Pousada da Juventude, no Parque das Nações, em Lisboa. A entrada é livre e as inscrições podem ser feitas aqui. Estão todos convidados, apareçam.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Patinagem na maionese

Fonte: INE, Empresas em Portugal
Passos Coelho - e o CDS - têm uma enorme dificuldade em conseguir passar a sua visão estratégica para o país.

Na entrevista ontem dada à TSF, o ex-primeiro-ministro finalmente explicou a razão por que, no final do seu mandato, incluiu o valor de 600 milhões de euros de cortes das pensões, na proposta de OE.

Foi para conseguir a tão almejada sustentabilidade da Segurança Social como alegou o CDS? Era a tal componente da reforma da Segurança Social que Maria Albuquerque disse que era para negociar com o Partido Socialista? Não, não era nada disso:

"Não se trata de ter uma poupança de 600 milhões... Isso foi um valor que, na altura da Troica, era necessário do lado das contas públicas para fechar o objectivo orçamental"
Ou seja, foi um expediente orçamental que não tinha qualquer visão estratégica por detrás. Maria Luís Albuquerque, Cecília Meireles, Passos Coelho, todos aceitaram fazer esta brincadeira: prometer baixar artificialmente o défice que se pretendia atingir e que não se sabia como, atirando a responsabilidade para a oposição... sobre como cortar nas pensões, única reforma que sabiam fazer.

E por estranho que possa parecer, o site da TSF voltou ontem à carga com um título que é uma repescagem da asneira que tentaram passar, mas com dois anos de idade: "Cortar 600 milhões na Segurança Social? É preciso fazer alguma coisa".

Mas esta falta de visão estratégica é ainda mais clara quando Passos Coelho não consegue conciliar os seus "êxitos" na reforma laboral (mais cortes nos rendimentos) com, nomeadamente, o problema da sustentabilidade da Segurança Social.

RBI: Cheques para todos?


Para quem não teve oportunidade de ver, encontra-se aqui (a partir do minuto 34), o «Choque de Ideias» da passada segunda-feira. Ricardo Paes Mamede e Ricardo Arroja discutiram o Rendimento Básico Incondicional (RBI), conseguindo o feito de expor com grande clareza, em apenas 16 minutos, os pontos críticos e os principais argumentos em confronto.

Traduzindo uma ideia simples e sedutora (a atribuição de uma prestação individual e incondicional a todos os cidadãos, num montante que permita uma vida com dignidade), o RBI coloca porém duas questões de vulto à esquerda. Por um lado, uma ambivalência política no mínimo perigosa e, por outro, um problema de concretização dificilmente resolúvel (para não dizer insanável).

Estas questões ficaram claras no debate entre os dois Ricardos. Para Arroja, o RBI tem a vantagem de «defender a liberdade individual», permitindo operar «uma rutura na forma como tradicionalmente pensamos no Estado Social». Ou seja, deixa de se assegurar o financiamento (e funcionamento) dos sistemas de provisão pública de saúde, educação e proteção social, entregando-se o respetivo envelope financeiro às pessoas, que passam a escolher, no mercado, a entidade prestadora do serviço. Para Paes Mamede, que fez as contas, além desta «desestruturação do Estado Social», o RBI assumiria um impacto orçamental muito relevante no nosso país: 24 mil M€ por ano para um valor mensal de 200€ por pessoa (toda a despesa pública em saúde, educação e proteção social), ou 55 mil M€ (acima de toda a despesa corrente do Estado), se o montante rondasse os 400€ mensais.

Deve sublinhar-se contudo, e o Ricardo Paes Mamede refere igualmente esse aspeto, que não estaria apenas em causa a existência de per se dos sistemas de provisão social pública (com os seus equipamentos, recursos humanos e respostas). Com o fim ou o enfraquecimento desses sistemas, era também a sua própria intencionalidade e matriz de princípios (da cobertura territorial à garantia da universalidade e equidade no acesso) que desapareceria. A dualização e estratificação social da oferta e da procura, que agravaria as desigualdades e limitaria a mobilidade social e a igualdade de oportunidades, seria também uma consequência inevitável da reconfiguração do Estado Social com a implementação do RBI. O caso do cheque-ensino e da «liberdade de escolha» na educação (que não por acaso é o exemplo escolhido por Arroja), é bastante elucidativo a este respeito.

Percebe-se pois como o Rendimento Básico Incondicional tem todos os condimentos para se converter numa autêntica passadeira vermelha do projeto neoliberal da direita, associado à erosão e desmantelamento do Estado e das políticas sociais públicas e à criação de mercados (financiados pelo próprio Estado), que potenciam e aprofundam as desigualdades sociais. E não adianta, convenhamos, defender que a implementação do RBI pode passar, à esquerda, pelo reforço de prestações pecuniárias específicas (como o Abono de Família). Se é isso que se pretende (reforçar essas prestações) é isso que deve ser defendido (o reforço dessas prestações). Em contrário, está-se apenas a tentar forjar, desnecessariamente, novas designações para o que já existe (trazendo à memória o «vrrrnhiec» dos Gato Fedorento), ao mesmo tempo que se abrem ingenuamente as portas a uma ideia perigosa.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Sem alternativa que lidere


"O chefe dos liberais discorda de quase tudo o que o Presidente francês, Emmanuel Macron, acabou de propor para uma maior integração no espaço europeu, nomeadamente um orçamento comum. Rejeita “todas e quaisquer transferências financeiras automáticas” entre os membros da zona euro e quer endurecer as regras relativas à disciplina fiscal – o que pode levantar, outra vez, o fantasma do “Grexit” (ver Público).

Macron vai ficar a falar sozinho. Merkel não tem condições políticas internas para apoiar a fuga para a frente do jovem lunático. Nem ela própria as aceita. Com o SPD como parceiro, podia negociar alguma coisa para que o essencial ficasse na mesma. Agora, com os liberais na coligação, é o núcleo duro de uma Alemanha mais encarniçada na aplicação dos tratados que nos vai governar.

Será assim enquanto não houver um país que, consciente de que dentro do euro não há futuro, decida recuperar a sua soberania. Em Portugal, os inquéritos de opinião dizem que preferimos ficar de cócoras porque sair seria uma calamidade. Preferimos a morte lenta à ousadia de construirmos um futuro digno. Mesmo vendo que a UE já está em desagregação. De vez em quando, os partidos da esquerda lá vão dizendo que o euro impede o nosso desenvolvimento. Limitam-se a ir atrás do que o povo vai começando a perceber. Não lideram. E, sem uma alternativa que lidere, não há mesmo futuro digno para todos.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Violação contratual

E agora anunciamos um jornal televisivo em que a informação tem 44 minutos e a publicidade 25 minutos. Não percebeu bem: são vinte e cinco minutos de publicidade NA informação.

Ontem, durante 25 minutos, entre peças e uma entrevista em estúdio a dois cirurgiões, uma clínica de cirurgia plástica foi promovida no espaço dos jornal das 8 da TVI.

O jornal estava a ser apresentado pela Judite de Sousa. No final, houve uma peça de dois minutos sobre o protesto dos desportistas norte-americanos pelas mortes em confrontos com a polícia. Depois, veio a apresentação do livro mais recente de Ken Follet (1 minuto e tal). Madonna e Portugal (outro minuto e tal).

Mas às 20h44, a pivot arranca desta forma: "Neste jornal das 8 abrimos agora espaço para dois reconhecidos cirurgiões portugueses. O interlocutor é o meu colega José Carlos Araújo. Boa noite, José Carlos". E Judite de Sousa escapa-se e não voltará a aparecer mais.

José Carlos Araujo é editor de Sociedade da redacção da TVI e formador no centro de formação de jornalistas (Cenjor). É ele quem faz a apresentação e quem estará a entrevistá-los: "Há quem os trate por médico milagre ou fabricante de sorrisos".

A partir daí, e durante quase meia hora só se fala dos milagres que os dois médicos fazem. Segue-se duas peças de 4 minutos cada, uma para cada médico e, depois, 17 minutos de entrevista em estúdio aos dois médicos En passant surge o nome da Clínica da Face, sendo mesmo disponibilizados preços das operações.

Se isto fosse jornalismo, o interesse público de um trabalho como este seria já suficientemente duvidoso. Mas ainda seriam mais discutíveis os critérios de gestão de tempo. Foi tudo isto uma opção do editor ou de quem coordenava o Jornal das 8? Por que fugiu a Judite de Sousa? Foi uma opção do director de informação? Quanto vale ocupar 25 minutos nesta nova categoria de primetime

As televisões privadas não perdem um momento para atacar os esforços da RTP para captar publicidade. Balsemão - um brilhante gestor que tem o seu grupo em maus lençóis - está sempre a aparecer e a exigir que a RTP se afaste do mercado, sempre a pensar em si, e não nos contribuintes, digo, nos cidadãos. Todos assinaram um protocolo nesse sentido, desde que apoiassem a produção independente. Todos fazem o que podem para limitar a RTP. E agora isto?

Vai ser assim na futura TVI/Altice? Uma coisa é certa: não foi para isto que se privatizou o espaço público de televisão.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

E pur si muove: o mercado de trabalho e as suas estatísticas

1. Há cerca de três anos, quando a destruição de emprego atingia níveis sem precedentes, a emigração regressava a valores dos anos sessenta do século XX, o número de desencorajados aumentava e os desempregados ocupados quintuplicavam face à média dos dez anos anteriores, surgiam dúvidas sobre os números oficiais do desemprego e a capacidade estatística para apreender a efetiva dimensão do fenómeno. No meio do debate, houve contudo quem chegasse a questionar, como João Miguel Tavares e Fátima Bonifácio, a legitimidade científica para proceder a estimativas mais realistas do desemprego: os métodos e os números oficiais eram sagrados e, portanto, andar a juntar-lhe outras coisas uma heresia ou simples endoutrinação (ver respostas aos cronistas aqui, aqui e aqui).

2. Ora, sucede que o INE trouxe, recentemente, más notícias para os vigilantes desta espécie de cânone estatístico do mercado de trabalho. Como o João Ramos de Almeida já aqui assinalou, o Instituto Nacional de Estatística decidiu voltar a publicar dados sobre «desemprego em sentido lato», designando-o agora por «subutilização do trabalho». Para o calcular, regressou no essencial à fórmula utilizada para o efeito até 2010, agregando num único indicador o número oficial de desempregados, os inativos desencorajados e o subemprego (empregados que gostariam de trabalhar mais horas que as que trabalham). Isto é, curiosamente, variáveis tidas em conta nos tais exercícios de aproximação aos valores do «desemprego real».


3. Com efeito, se excluirmos das contas a variável emigração (apesar de o próprio FMI a considerar relevante na análise da evolução do mercado de trabalho), quando comparados, o «desemprego real» e a «subutilização do trabalho» apenas se diferenciam pelo facto de este último indicador não considerar os «desempregados ocupados», que continuam a ser classificados como emprego (ao contrário do que sucedia, em termos estatísticos, antes de 2011). Este é, aliás, o elemento que permite explicar o desfasamento encontrado entre o volume de pedidos de emprego registado pelo IEFP e o número oficial de desempregados publicado pelo INE, sobretudo a partir do início de 2013. Ou seja, num momento em que o número de «ocupados» passa de cerca de 80 mil (4º trimestre de 2012) para 115 mil (2º trimestre de 2013), atingindo os 170 mil no 2º trimestre de 2014.


4. Quer isto dizer que, a par do travão à austeridade imposto pelo Tribunal Constitucional e da própria gestão eleitoral do calendário das legislativas pelo anterior governo (veja-se aqui como o fim da austeridade se inicia neste altura, dando margem para a economia começar a respirar), a recuperação do mercado de trabalho a partir de 2013 se fez também com a desconsideração estatística do aumento das formas «atípicas» de desemprego e com o aumento do número de ocupados, no emprego. Com efeito, o «desemprego oculto» (ocupados, desencorajados e subemprego) atinge cerca de 13% em 2014 (situando-se hoje em 10%), chegando o «falso emprego» (a parcela, no emprego, de «desempregados ocupados») a representar 4% do emprego em 2014 (sendo hoje de 2%).


5. Não surpreende pois que seja neste período, sobretudo entre 2013 e 2015, que a diferença entre as taxas de desemprego «oficial» e «real» é mais acentuada. Se em 2011 era de apenas 7 pontos percentuais, em 2013 supera já os 11 p.p. e aproxima-se, em 2015, dos 12 p.p. A partir de então, com a recuperação efetiva do mercado de trabalho, a diferença entre o desemprego oficial e o desemprego real começa a esbater-se, atingindo em 2017 os 10 p.p. (isto é, menos dois pontos percentuais face a 2015). O que significa que o mercado de trabalho começou não só a absorver o desemprego estatisticamente reconhecido como tal (a respetiva taxa cai de 11,9% em 2015 para 8,8% em 2017), mas também o desemprego oculto, através de uma dinâmica de criação líquida de emprego que não se verificara até então.


6. Os critérios em que assentam as estatísticas do mercado de trabalho suscitam, naturalmente, questões que importa discutir. De facto, um único indicador do desemprego torna-se míope quando se regista um aumento das formas «atípicas» de desemprego como o que ocorreu no período de «ajustamento». Tal como é questionável a inclusão de «desempregados ocupados» no emprego quando se desvirtuam as políticas ativas do mercado de trabalho, como fez o anterior governo, recorrendo de forma abusiva a estágios e programas ocupacionais. Felizmente, como mostram os dados mais recentes, não é só o mercado de trabalho que se está a recompor, de forma gradual e consistente. É também, graças à recuperação oficial, pelo INE, do conceito de «subutilização do trabalho», o modo como se captam, estatisticamente, as dinâmicas do emprego e do desemprego.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Somos todos keynesianos outra vez?

Parece que há uma discussão orçamental suscitada por um útil estudo em torno de simulações dos putativos efeitos de décimas do PIB de necessários aumentos da despesa pública, que tem a virtude de expor pela enésima vez o espartilho de regras europeias cada vez mais “estúpidas”, para usar a elegante fórmula do antigo Presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi. Dos limites ao défice até à redução anual da dívida, que impõe superávites do saldo primário, a estupidez está ao serviço do mais estreito interesse próprio dos credores.

É, neste contexto, possível até achar-se que o eventual debate económico entre membros e apoiantes da actual solução governativa é um debate entre “keynesianos”. Bem mais interessante do que saber se isso é verdade (não é, necessariamente, dado que estamos a falar, por exemplo, de Mário Centeno, que tem visões ditas de mercado para o trabalho, ou de Paulo Trigo Pereira, um adepto da teoria da escolha pública), é saber se é possível ser keynesiano na prática da política económica em Portugal. Não é, obviamente, pelo menos não neste contexto estrutural retintamente anti-keynesiano.

Se há algo que caracteriza a economia política e a política económica keynesianas é a defesa da discricionariedade da política económica, necessária para a tarefa de gerar pleno emprego, através, entre outras, de uma política contracíclica no campo monetário e orçamental. Esta antecipa que os períodos de bonança económica possam gerar fenómenos de consolidação orçamental, o que é muito diferente da actual obrigatoriedade de gerar superávites a todo o custo, como se o saldo orçamental fosse uma escolha do governo e não uma variável em larga medida dependente do ciclo económico.

A discricionariedade, a aversão a regras como as fixadas pela integração europeia, é a declinação política do reconhecimento da incerteza radical em relação ao futuro, de natureza não probabilística, por um lado, e das propriedades desestabilizadoras endógenas ao sistema capitalista liberal, onde o pleno emprego raramente emerge espontaneamente, por outro.

De acordo com a economia política keynesiana, o sistema pode ser estabilizado pela criação de condições institucionais anti-liberais, digamos, que militem a favor da maior margem de manobra nacional possível no campo da política económica: ligação entre Tesouro e Banco Central para operar a “socialização do investimento” e a “eutanásia do rentista”, de que falava Keynes, controlos nacionais de capitais, mecanismos internacionais de ajustamento simétrico dos desequilíbrios externos, etc.

E se há algo que marcou a economia política internacional keynesiana na sua construção intelectual original, da crítica do Tratado de Versalhes, em 1919, às propostas em Bretton-Woods, em 1944, foi a ideia de que as relações internacionais entre países credores e devedores devem ser mais equilibradas ou não fosse a dívida o outro lado do crédito. O poder excessivo dos credores leva ao desastre civilizacional, nada mais, nada menos.

Esta ordem europeia foi definida pelos credores. E dentro dela, o ordoliberalismo, a variante neoliberal anti-keynesiana dominante na Alemanha, vence sempre. Ironicamente, a Alemanha foi dos maiores beneficiários, a seguir à Segunda Guerra Mundial, do maior equilíbrio entre credores e devedores, tendo a RFA visto a sua dívida reestruturada de forma significativa. Isto foi motivado obviamente pelo espectro que rondava o capitalismo...


sexta-feira, 22 de setembro de 2017

É isto



(Vídeo de Luís Vargas, no Geringonça)

«Há muito tempo que o PSD não tem discurso. O PSD perdeu o discurso desde o momento em que António Costa inventou esta história da geringonça. O PSD ficou sempre preso a esse passado, a essa "ilegitimidade" deste governo, a esse "direito próprio" de formar governo, embora não tivessem maioria na Assembleia da República. Depois apostou tudo num discurso económico catastrofista. Vinha aí o diabo, íamos parar a um segundo resgate, ia haver sanções, ia haver tudo e mais alguma coisa. Ora isto não resultou e o PSD agora diz: "não, resultou porque eles fizeram o mesmo que nós fizemos". Portanto o PSD tem um discurso perfeitamente contraditório: ora diz que este governo fez tudo mal, e portanto atrasou e com eles teria sido tudo; ora diz que este governo fez tudo bem porque fez tudo o que eles estavam a fazer e não mudou em nada. Os dois discursos não são compatíveis.
Tudo isto poderia passar por um desacordo legítimo de opiniões se não se juntasse aqui um caso, que eu acho que dá outra dimensão ao discurso de Passos Coelho. É o caso de Loures e do apoio do PSD a André Ventura. André Ventura era um candidato apoiado pelo PSD e pelo CDS, que fez declarações nitidamente xenófobas e racistas em relação aos ciganos, que defendeu posições inqualificáveis para quem é do PSD, como a pena de morte, a prisão perpétua, a castração química de pedófilos, tudo matérias que estão a milhas do que é o programa eleitoral do PSD. Assunção Cristas e o CDS decidiram tirar-lhe o apoio e o PSD manteve o apoio. E isto é muito significativo, porque mostra uma coisa: nós já tínhamos tido umas experiências, aqui e ali, deste tipo de discurso, mas eram experiências marginais. E isto é que é importante: é a primeira vez que um partido que é um dos pilares da democracia portuguesa, um dos partidos fundadores da democracia portuguesa, apoia um candidato com este tipo de discurso. Isto tem consequências».

Constança Cunha e Sá (21ª hora, TVI24)

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Bárbaros

Foto de Eddie Adams/AP
Esta foto mudou, em 1968, a ideia que a opinião pública dos Estados Unidos tinha sobre a guerra do Vietname.

Não foram os milhentos bombardeamentos feitos pelos Estados Unidos no Vietname do Norte. Não foram os milhares de mortos de habitantes norte-americanos caídos num longínquo país no Oriente do mundo - diga-se um oriente segundo o ponto de vista ocidental. Não foram os milhares de pobres e negros sacrificados na pira da guerra, nas trincheiras na selva do Vietname. Não foi a hipocrisia dos poderosos que punham os seus filhos a salvo da guerra. Não foram os milhões e milhões de dólares gastos numa guerra sem objectivo, que serviram para encher os bolsos dos vendedores de armas e dos dirigentes corruptos do Vietname do Sul.

Foi apenas um tiro.

Saigão. O general Nguien Ngoc Loan, chefe da polícia nacional do Vietname do Sul, pediu a um soldado para matar  do oficial do vietkong Nguien Van Lem, capturado durante a ofensiva de Tet. Como o soldado hesitasse e mandou-o afastar-se e disparou de imediato o seu revólver sobre a cabeça. Ele caiu, com a cabeça a jorrar sangue. Eddie Adams fotografou-o numa sequência de fotos. O general aproximou-se e disse-lhe: "Eles mataram muita da minha gente e da vossa". E afastou-se.

Foi a crueza da guerra. "É esta gente que estamos a apoiar?" Foi a barbárie. Eis a ideia passada num belíssimo documentário sobre a guerra do Vietname que está o canal ARTE divulga em episódios. Um imenso filme sobre a Guerra, sobre algo que todos devemos afastar das nossas vidas, da Vida.

Um belíssimo e terrível documentário que revela a barbárie e a face civilizada da Guerra: como a política interna dos Estados Unidos determinou muito do destino da guerra naquela zona do planeta e como um país - um país poderoso, imperial - se esteve simplesmente a borrifar para a vida de milhões de seres humanos, desde que nada se soubesse que estavam a morrer americanos.

A Guerra, a barbárie, camuflada em nome de algo abstracto - o combate ao comunismo - que se transformou apenas na simples ideia: como salvar a face - "a credibilidade" dos Estados Unidos.

E vem tudo isto mesmo a propósito das bárbaras declarações do presidente Trump nas Nações Unidas.

Fazem falta mais imagens.

O recente crescimento da economia portuguesa é surpreendente. Até quando durará?

Há 15 trimestres que a economia portuguesa não pára de crescer. Nos últimos três a variação homóloga do PIB (i.e., comparando com igual período do ano anterior) foi igual ou superior a 2%. O crescimento no 2º trimestre de 2017 (2,9%) foi o maior desde o início do século. Este deverá ser o primeiro ano em que a economia portuguesa cresce mais que a média da UE e da zona euro desde o ano 2000.

A melhoria das expectativas económicas de médio prazo é um dos factores apresentados como decisivos para a recente decisão da Standard & Poor’s de subir o rating da dívida portuguesa. A questão que se coloca é: este bom desempenho vai-se manter nos próximos tempos? A resposta passa por perceber o que está na base do crescimento mais recente, em particular dos últimos três trimestres.

Um primeiro factor relevante tem a ver com um efeito do período base: o fim de 2015 e o início de 2016 foram marcados pela desaceleração da economia internacional e em particular da portuguesa, afectada por inúmeros factores de incerteza e também pela queda acentuada do investimento público. Como o PIB não cresceu muito nessa altura, agora nota-se mais a diferença. Acresce que a economia portuguesa ainda não recuperou da profunda crise por que passou entre 2008 e 2013 (o PIB de 2017 ainda estará abaixo do de 2008). Ou seja, parte do que está a acontecer traduz apenas o quão fundo se desceu durante o “programa de ajustamento”.

Um segundo factor é a atenuação no último ano de vários dos factores de incerteza atrás referidos. Alguns desses factores eram internos: a novidade da ‘Geringonça’ e os receios sobre a sua sustentabilidade e opções de governação (alimentados para lá do razoável por uma oposição e um Presidente da República contrariados com a realidade pós-eleitoral); ou as dúvidas sobre a situação da banca nacional e sobre a capacidade de resolver os problemas mais complicados da CGD, do BCP, do BPI, do Novo Banco, etc. Outros factores de incerteza eram externos: as dúvidas sobre a manutenção do rating da agência DBRS (que determinaria o acesso aos fundos do BCE); a pressão e a ameaça de sanções sobre Portugal por parte da Comissão Europeia; a incógnita sobre o impacto internacional do referendo britânico e das eleições americanas e francesas; a ambiguidade sobre a continuação do programa de compra de activos do BCE; etc. No último ano diminuíram fortemente as incertezas e receios associados a estes vários factores internos e externos, criando assim condições mais favoráveis ao investimento.

Em terceiro lugar, a economia portuguesa beneficiou de um crescimento sustentado do consumo privado, reflectindo um aumento da confiança dos consumidores, decorrente não só da redução dos factores de incerteza mencionados, mas também da estratégia de devolução de rendimentos e do crescimento do emprego (que é simultaneamente causa e consequência do crescimento da actividade económica). Nos últimos trimestres fez também diferença alguma retoma do investimento público, que deverá crescer significativamente em 2017, embora ficando ainda a níveis historicamente baixos.

Finalmente, a economia nacional beneficiou do crescimento dos principais parceiros comerciais (especialmente na zona euro), que se reflectiu no aumento das exportações de bens e, de forma notória, do turismo.

Irão estes factores – ou outros que os substituam – determinar a continuação do crescimento da economia portuguesa até ao final da década?

Alguns dos factores referidos ainda não esgotaram o seu potencial contributo para o andamento da actividade económica em Portugal. Em particular, o investimento (privado e público) ainda está a níveis muito inferiores aos do período pré-crise (mais de 30% no total, quase 10% se descontarmos a construção), havendo espaço para que cresça nas circunstâncias actuais. Na medida em que o aumento do investimento se verifique e se traduza no aumento do emprego, como é expectável, parte da dinâmica virtuosa poderá continuar a verificar-se nos tempos mais próximos.

Acresce que várias evoluções registadas em 2017 – o vigor da retoma da actividade económica e do emprego, a estabilidade da solução governativa, a saída do Procedimento por Défices Excessivos, a subida do rating da República Portuguesa pela Standard & Poor’s, a descida das taxas de juro sobre a dívida nacional (que decorrem daquelas evoluções), bem como a continuação do bom desempenho da economia europeia – deverão contribuir para a manutenção de um nível razoável de crescimento económico nos próximos trimestres.

Por outro lado, há elementos que fazem prever que o crescimento do PIB possa desacelerar um pouco no próximo ano. Se o bom desempenho recente se deve em parte à mediocridade do período homólogo, da mesma forma o crescimento actual eleva a actividade económica para um nível em que é mais difícil crescer ritmos tão elevados (ou seja, desta vez o efeito do período base será negativo). Além disso, o consumo privado já se encontra em níveis próximos do período pré-crise (apesar do volume de emprego ser ainda bastante inferior), o que sugere que o contributo desta variável para o crescimento poderá desacelerar. Também é difícil imaginar que o turismo continue a crescer de forma significativa nos próximos anos, tendo em conta o fortíssimo aumento recente do número de visitantes e das receitas associadas.

Em suma, as perspectivas para os tempos mais próximos são moderadamente optimistas.

Isto não significa porém que os problemas estruturais que afectam a economia portuguesa estejam resolvidos. Mantém-se uma estrutura produtiva assente em actividades pouco intensivas em conhecimento e muitos exposta à concorrência internacional, um tecido empresarial com debilidades significativas nas capacidades de gestão estratégica, uma população activa pouco qualificada, uma estrutura demográfica desfavorável ao crescimento económico, custos elevados e/ou funcionamento ineficiente de serviços fundamentais para as actividades económicas (energia, financiamento, justiça), um elevado endividamento dos sectores privado e público (que é hoje muito superior ao que era há uma década). A isto acresce a participação numa zona monetária com lacunas fundamentais e que coloca as economias mais frágeis numa posição particularmente vulnerável a crises financeiras internacionais, e cujas regras orçamentais restringem fortemente a capacidade dos Estados para combater as recessões económicas com os poucos instrumentos que têm ao seu dispor.

Neste momento as condições externas são favoráveis, pelo que as fragilidades estruturais da economia portuguesa são pouco evidentes. Oxalá assim continue por mais uns tempos. Mas os problemas estão aí e não devem ser esquecidos. Oxalá não o sejam.

Hoje, lançamento na Gulbenkian: «Trabalho e Políticas de Emprego»


Sessão de apresentação e debate sobre o novo livro do Observatório sobre Crises e Alternativas «Trabalho e Políticas de Emprego: Um retrocesso evitável», coordenado por Manuel Carvalho da Silva, Pedro Hespanha e José Castro Caldas. A obra será apresentada por Eduardo Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República, e por Raymond Torres, Diretor na Fundação Funcas e Conselheiro Especial do Diretor-geral da OIT. É no Auditório 3 da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a partir das 18h00. Estão todos convidados, apareçam.

Capítulos do livro:
«Introdução: Trabalho e políticas de emprego: passado com lastro, presente conturbado e futuro indeterminado» (Manuel Carvalho da Silva, Pedro Hespanha, Nuno Teles e José Castro Caldas)......«O trabalho como variável de ajustamento: da teoria à prática» (Nuno Teles)......«Crise e novas tendências do mercado de trabalho» (Carla Valadas)......«O labirinto das políticas de emprego» (Pedro Hespanha e Jorge Caleiras)......«Emprego e desemprego: o que mostram e o que escondem as estatísticas?» (Jorge Caleiras e José Castro Caldas)......«A grande regressão da negociação coletiva: os desafios e as alternativas» (Maria da Paz Campos Lima)......«A Concertação Social em tempo de crise» (João Ramos de Almeida, Manuel Carvalho da Silva, António Casimiro Ferreira e Hermes Augusto Costa)......«Em jeito de conclusão: o futuro do trabalho e do emprego em aberto» (Pedro Hespanha, Manuel Carvalho da Silva, José Castro Caldas e Nuno Teles).

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Esperar, acabar


O comentador de assuntos económicos do Financial Times, Wolfgang Münchau, tem razão quando afirma que “as eleições alemãs são o Godot de 2017”. Mas como aqui assinalei em 2013, ainda que sem recorrer a uma metáfora literária, já as eleições desse ano o tinham sido.

As duas alas do partido exportador alemão manterão o essencial do arranjo económico e monetário europeu intocado, já que tem servido bem os seus interesses. E se mexerem nele será para reforçar a sua vertente disciplinar, acompanhada de um ou outro incentivo para manter as periferias no redil. Nem têm de fazer grande esforço, já que a “imaginação do centro” ainda tem muita força entre as suas elites.

Entretanto, a confirmarem-se as sondagens, o SPD pagará outra vez um preço eleitoral elevado por não ser mais do que uma das alas do tal partido e uma que já apostou na redução dos direitos sociolaborais. O ordoliberalismo está bem entranhado. Há mais de um século, um social-democrata alemão disse que o movimento seria tudo. Aparentemente, o movimento acabou também ali onde começou.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Vai teimosa e não segura, Assunção sobre Ventura?

Depois de se demarcar (exemplarmente, diga-se) das declarações racistas e xenófobas de André Ventura, e de desvincular o seu partido da coligação com o PSD em Loures (rejeitando fazer parte do «teste Trump» em que Passos Coelho continua empenhado), Assunção Cristas parece não ter sido capaz de ceder à tentação (ou a alguma contestação interna) e decidiu insistir no velho discurso do CDS-PP sobre o Rendimento Social de Inserção, fazendo uma requentada alusão às «pessoas com grandes carros e que vivem do RSI».

Sejamos justos e rigorosos: na sua referência à prestação, a presidente do CDS-PP não só não associa as supostas fraudes dos beneficiários a qualquer minoria ou comunidade étnica específica (ao contrário do que faz Ventura), como expressa de forma clara o entendimento do seu partido sobre o RSI. Segundo Cristas, «o CDS sempre foi a favor a se dar o rendimento a quem dele precisa, mas sempre foi a favor de uma grande fiscalização», opondo-se por isso à «renovação automática» da medida sem um escrutínio da «manutenção das condições de necessidade».

Podemos pois assumir que as declarações de Assunção Cristas, ainda que eventualmente suscitadas pela necessidade de não perder demasiado o pé face à golpada eleitoralista sem escrúpulos em que Passos e Ventura embarcaram, revelam sobretudo o persistente preconceito da direita, que prefere a caridade assitencialista, em relação às políticas sociais públicas. Vale por isso a pena reler o recente artigo de Ricardo Moreira sobre o suposto «regabofe» no RSI e relembrar alguns factos, como a circunstância de «a prestação mais controlada» de todas (mas de reconhecida eficácia na redução da intensidade da pobreza e com reduzidos níveis de fraude) representar apenas «2% do total de despesas da Segurança Social» (tendo sofrido «um corte de -45%» entre 2010 e 2015) e em que cerca de 40% dos beneficiários são «menores ou pessoas com mais de 65 anos, que não podem trabalhar».


Ou seja, se acreditarmos que «o CDS sempre foi a favor a dar o rendimento a quem dele precisa», e se considerarmos o agravamento do desemprego e dos níveis de pobreza entre 2010 e 2015 (com uma redução das situações cobertas por prestações de RSI e CSI), teremos que concluir que o corte no número de beneficiários ocorrido nesse período - cerca de 230 mil no total, entre os quais 93 mil crianças e cerca de 10 mil idosos - apenas resultou da «fiscalização e escrutínio da medida», que terá possibilitado a identificação das situações de fraude existentes (como as de «pessoas com grandes carros e que vivem do RSI»). 230 mil beneficiários, 93 mil crianças e 10 mil idosos, é isso, não é Dra. Assunção?

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Apresentar o trabalho


Este livro tem como objeto o trabalho e o emprego, o impacto da crise em termos de desemprego e precariedade, as políticas públicas adotadas ao abrigo do memorando com a Troica, o seu significado e as suas consequências. Mostra que o resgate a que Portugal esteve sujeito fez do trabalho “variável de ajustamento” de um “desequilíbrio” que na sua origem era antes do mais financeiro. Defende que o verdadeiro reequilíbrio passa pela revalorização do trabalho em todas as suas dimensões — retribuição, segurança, autonomia, participação na definição do destino das empresas e de outras organizações.
 

sábado, 16 de setembro de 2017

Bem acompanhado


Rui Tavares afiançou que “nos últimos dez anos cresceu entre nós um discurso eurocético e eurofóbico importado, em boa medida, das críticas dos conservadores britânicos ao projeto europeu”. É que nem em boa medida, nem em má. As direitas portuguesas não podem, a não ser para efeitos de inconsequente snobeira, imitar os conservadores britânicos. Estão na periferia e precisam de um vínculo externo disciplinar de natureza monetária.

Há muito que a direita nacional percebeu bem quem promove externamente o seu projecto interno, sobretudo desde Maastricht: de Cavaco a Passos, passando por Durão, Portas e Cristas. O discurso eurocéptico tem crescido, isso sim, pela esquerda, com base na revalorização da tradição soberanista democrática e popular, de matriz socialista, crítica de uma integração capitalista europeia, cada vez mais claramente austeritária e neoliberal na medida em que se aprofunda o esvaziamento dos poderes dos Estados, em especial periféricos.

Uma tradição socialista que existiu na Grã-Bretanha antes das décadas de refluxo, como atesta este artigo do historiador marxista E. P. Thompson na altura do referendo à permanência na CEE, em 1975: “Estes arranjos convenientes para o capitalismo não podem ser confundidos com o internacionalismo, político ou cultural. Limitar-se-ão a aumentar a distância dos processos de decisão e a mistificar o que sobrar do processo democrático (...) Alguns idiotas nos movimentos trabalhistas acham que o Mercado facilitará as políticas socialistas e sindicais. Fará o oposto. A burguesia ganhará de uma só vez vinte anos de distância”. Estou certo que este tipo de diagnóstico terá de ser recuperado pelo trabalhismo consequente no contexto do Brexit. Por cá, esta tradição, em constante renovação, é tributária da crítica comunista e social-democrata consequente (extremamente minoritária neste último campo, embora seja crescente o número dos que dão razão a João Ferreira do Amaral, um dos seus poucos cultores a partir da crítica keynesiana ao Euro).

Rui Tavares quer promover uma variante europeia do chamado liberalismo do medo (e as referências na área da história que divulga apontam para aí), de acomodação a uma UE supostamente melhorável, que nos garantiria um capitalismo um pouco menos autoritário e “desregulado” (esta última fórmula é geradora de todas as confusões, já que não há capitalismo histórico que não seja regulado). Na realidade, a tralha do mercado único e da moeda única não nos garante nada disso, dadas as tendências pós-democráticas evidentes e dado que as regras que promove se destinam a transferir recursos de dentro para fora e de baixo para cima, ao mesmo tempo que as crises recorrentes que lhes são endógenas alimentam o populismo das direitas, sobretudo perante a inacção de certas esquerdas, conformadas com o papel de apêndice de um euro-liberalismo que as destrói, como se vê com a social-democracia.

Entretanto, nunca dei muito para o peditório catastrofista da economia no campo político e o mesmo se tem passado com as tradições críticas que sigo. Por exemplo, ainda antes da rendição do Syriza, alertei para a força das estruturas de integração e para a fraqueza do discurso europeísta de esquerda e das suas analogias históricas, incapaz de reconhecer a natureza robusta deste processo político regressivo. Creio que nisto não me enganei. E por falar em enganos, creio que sei do que falo no que ao discurso eurocéptico diz respeito, se a introspecção for fonte de conhecimento, já que evoluí nestes anos de uma posição europeísta crítica no diagnóstico, mas pueril na proposta, para uma posição que procura ser mais consistentemente eurocéptica. Há boas razões para tal esforço. E estou bem acompanhado nesta evolução.

Adenda. Na caixa de comentários António Vaz alerta-me para uma omissão na minha tradução de E. P. Thompson e para um erro: faltava movimentos trabalhistas e o texto de E. P. Thompson no Sunday Times é de 1975 (aquando do referendo sobre a permanência) e não do momento da adesão britânica (1973). Corrigido. Aproveito para sublinhar que E. P. Thompson estava mesmo bem acompanhado, já que, por exemplo, a maioria do Partido Trabalhista (2 para 1) foi a favor da saída da CEE numa conferência realizada sobre o assunto antes do referendo nacional, embora o Primeiro-Ministro trabalhista Harold Wilson, acompanhando pela conservadora Margaret Thatcher, por exemplo, tenha sido a favor da permanência, que acabaria por triunfar dessa vez. Tony Benn e a restante ala esquerda do partido, bem como a maioria dos sindicatos, foram contra a permanência. A posição de E. P. Thompson no artigo era bem representativa da tradição eurocéptica do socialismo (e isto antes da natureza neoliberal do na altura chamado clube capitalista ser evidente). Já agora, E. P. Thompson também podia ser bem acintoso nos debates (Althusser que o diga), pelo que optei por deixar estar idiota como tradução de silly…

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Pobreza de propostas

Fonte: DGCI, Autoridade Tributária
Regularmente, sobretudo no debate do Orçamento de Estado, as confederações patronais e empresariais vêm reivindicar uma descida das taxas de IRC.

Ora, as taxas de IRC não são o tema essencial em torno da tributação das empresas.

Antes de discutir as taxas, era essencial entender ao abrigo de que medidas fiscais - sobretudo desde 2000 - as empresas conseguiram reduzir substancialmente os lucros tributáveis, de forma que a matéria colectável - sobre a qual incidem as taxas de IRC - ficou bastante abaixo dos lucros tributáveis. Desde 1994, foram mais de 150 mil milhões de euro, aos preços de 2015.

Este abatimento aos lucros teve, aritmeticamente, uma influência na taxa efectiva de IRC.

Quando se observa a evolução do peso percentual do IRC pago pelas empresas, relativamente tanto aos lucros tributáveis como da matéria colectável, o que se verifica é que as taxas têm vindo a descer. Foi isso isso que aconteceu já em 2015. A taxa efectiva sobre a matéria colectável já, aliás, de 19% em 2015, igual à taxa nominal que a CIP veio reclamar para 2018...

E quando se tem em conta aquele abatimento dos lucros tributáveis ao longo destes 22 anos, a diferença entre a taxa efectiva e a taxa que incidiria sobre o lucro tributável representa um desconto médio anual na taxa efectiva de IRC de 7 pontos percentuais. Em 2015, foi de 3 pontos percentuais.
 
E já nem se discute as medidas altamente favoráveis introduzidas com a reforma do IRC Lobo Xavier, relativamente à dedução de prejuízos fiscais (que beneficiou sobretudo a banca), isenções de tributação, além das dificuldades de tributação decorrentes dos preços de transferência (preços praticados entre filiais de uma mesma empresa transferindo os lucros para zona de tributação mais favorável), transferências para offshores e ainda o escândalo nacional que representa as principais empresas portuguesas terem as suas sedes fora do território nacional, para pagar menos impostos para o colectivo do país...

Enquanto as confederações patronais não discutiram a totalidade da política fiscal sobre as empresas, as taxas são sempre o tema mais pobre desse tema.

Falsa questão

Um dos pomos da discórdia sobre as polémicas alterações à legislação laboral em França - e em todo o mundo - prende-se com o novo papel que se pretende dar à negociação a nível de empresa, entre empresários e comissões de trabalhadores de empresa, por contraponto a uma negociação colectiva, representada por sindicatos e confederações patronais.

À pala de uma maior aproximação ao terreno - e realismo negocial -, visa-se remover os "empecilhos" sindicais, desmantelando totalmente os equilíbrios que a lei cria numa relação de poder desigual.

A ideia nem sequer é nova. Cá em Portugal, ela foi reforçada no Código do Trabalho desde 2003; em 2009 (Governo José Sócrates) com a Lei 7/2009 que permitiu a possibilidade de a associação sindical dar às comissões de trabalhadores (CTs) poderes de representação sindical em acordo em empresas de mais de 500 trabalhadores; em 2012 (Governo Passos Coelho/Paulo Portas), com a desarticulação da contratação colectiva e com a lei 23/2012 que baixou aquele limiar para os 150 trabalhadores.

Uma das faces desta posição está presente no Governo, na pessoa do ministro das Finanças. Mas passa muito facilmente na comunicação social - onde são raros os órgãos de comunicação com CTs... - e até se sentiu os acordes deste tema acerca da paralisação negocial na Autoeuropa, como bem se recorda, tudo em defesa de um suposto modelo ideal de inspiração alemã.

Ora, esta é uma falsa questão. Num artigo bastante interessante publicado pela Mediapart, (possivelmente só acessível a assinantes) recorda-se que, sim, os comités de empresa são, de facto, um pilar no modelo negocial desde o início do século 20, mas que têm fortes lacunas. Nomeadamente na cobertura das empresas e dos trabalhadores abrangidos, deixando de fora de uma negociação mais de metade dos trabalhadores. Em Portugal, os números seriam bem mais devastadores.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

A questão laboral na ordem do dia


Parece que as lutas de classes ganharam uma nova dinâmica e, se assim for, o seu desfecho vai determinar o futuro do continente europeu. Nos próximos tempos, a luta social e política terá no seu centro a questão laboral.

De um lado está Bruxelas e todos os governos, partidos e organizações patronais que não querem pôr em causa o modelo de sociedade preconizado pelos Tratados da UE. Para estes, é sagrado que o trabalho é uma mercadoria como outra qualquer e o seu preço deve baixar até se tornar idêntico ao das sociedades pouco desenvolvidas de outros continentes. Daí a necessidade de "flexibilizar" tudo. Se pudessem, acabavam já com o salário mínimo porque o consideram um entrave à baixa do preço da mercadoria até ao ponto de equilíbrio entre a oferta e a procura. Sim, porque se trata de um mercado como qualquer outro.

Do outro lado, estão os sindicatos (apenas os que merecem esse nome), as comissões de trabalhadores, as organizações e movimentos sociais que desde sempre defenderam a dignidade do trabalho, a sua justa remuneração e a progressiva conquista dos direitos sociais, as políticas económicas para o pleno emprego e, muito importante, um Código do Trabalho que defenda nos tribunais os mais fracos da relação laboral.

Em França, Macron aposta tudo nas "reformas estruturais" que eliminem o que ainda impede a total flexibilização do "mercado" do trabalho. Se vencer, teremos a dupla Merkel-Macron disposta a concretizar no século XXI uma sociedade o mais próxima possível do capitalismo do século XIX. Seria a regressão ao capitalismo selvagem de que fala a Rerum Novarum do Papa Leão XIII (1891).

terça-feira, 12 de setembro de 2017

A austeridade ainda anda por aqui?

Governo e oposição dedicam-se a discutir se a austeridade acabou ou não em Portugal. O governo diz que sim. A oposição e os seus escribas dizem que vivemos uma austeridade mal disfarçada, como se vê pelo aumento dos impostos indirectos, pelas cativações nos orçamentos dos serviços do Estado e pela travagem do investimento público.

Neste debate confundem-se, de forma mais ou menos propositada, políticas de austeridade com austeridade orçamental, com contenção orçamental e até com baixo crescimento económico. No entanto, o conceito de políticas de austeridade não é exactamente o que qualquer um quer. A expressão surge no contexto de um debate fundamental no pensamento económico, que não se pode ignorar - e que consiste em saber qual a estratégia mais adequada para lidar com recessões económicas profundas.

Segundo as abordagens de inspiração keynesiana, a saída da recessão requer tipicamente a intervenção das autoridades públicas, sob a forma de facilitação do acesso a liquidez e da adopção de políticas orçamentais expansionistas (mesmo que tal implique incorrer em défices orçamentais e no aumento da dívida pública por períodos longos). De acordo com esta visão, em contextos de recessão o endividamento e as reduzidas expectativas dos investidores sobre o futuro retardam o investimento, prolongando e agravando a crise económica. Nessa circunstância só as autoridades públicas estão em condições de relançar o investimento e de reduzir a incerteza sobre o crescimento futuro.

Por contraste, a estratégia da austeridade defende que o regresso ao crescimento se deve fazer por via de cortes abruptos e permanentes na despesa pública, e pela desvalorização dos salários e dos preços. De acordo com esta estratégia, espera-se que a desvalorização favoreça a competitividade internacional, enquanto a redução permanente dos compromissos do Estado em áreas fundamentais (saúde, educação, protecção social) dê confiança aos investidores de que os seus rendimentos não serão erodidos por via da inflação ou de aumentos de impostos no futuro.

É bastante claro que o governo PSD/CDS seguiu uma estratégia de austeridade. Embora se possa argumentar que grande parte do esforço de consolidação orçamental assentou no aumento de impostos (e só em menor grau na redução da despesa permanente), PSD e CDS promoveram activamente a “redução do peso do Estado” (fórmula eufemística para referir os cortes nos serviços públicos, nas pensões e noutras prestações sociais) e a desvalorização dos salários (desregulando as relações laborais, reduzindo o montante e a duração do subsídio de desemprego, congelando o salário mínimo, cortando os salários dos funcionários públicos, etc.). Estas medidas foram explicitamente defendidas como forma de “relançar a competitividade” e de “reestabelecer a confiança dos investidores” na economia portuguesa.

a afirmação de que o actual governo não abandonou a estratégia de austeridade faz pouco sentido à luz da discussão anterior, por três motivos.

1) Primeiro, o conceito de “estratégia de austeridade” aplica-se ao debate sobre como lidar com recessões. Ora, a economia portuguesa não está em recessão há mais de três anos, pelo que a discussão é conceptualmente deslocada.

2) Segundo, mesmo admitindo que a economia ainda se encontra em crise (ideia que é validada por um ritmo de crescimento insuficiente e um nível de desemprego real elevado), não faz qualquer sentido afirmar que o governo e a maioria que o apoia estão a lidar com essa crise por via da deflação interna. A opção pela chamada “devolução de rendimentos” (reposição dos salários da função pública, fim da sobretaxa do IRS, aumento do RSI e do CSI, fim da CES, etc.), pelo aumento significativo do salário mínimo, pelas alterações do IRS em perspectiva (que incidem o desagravamento fiscal nos grupos de rendimento com maior propensão ao consumo), entre outras, sugerem pelo contrário uma estratégia de estímulo à procura interna, com efeitos expectáveis – e desejados – no aumento da inflação.

3) Finalmente, embora a despesa pública tenha caído em 2016 face ao ano anterior (-3,9%), a estratégia orçamental seguida não assenta em cortes permanentes na despesa (como pressupõe a estratégia da austeridade), sendo expectável que a despesa regresse ao crescimento em 2017. De facto, analisando as rúbricas da despesa pública verifica-se que os salários, as transferências sociais e o consumo intermédio aumentaram tanto em 2016 como (previsivelmente) em 2017. Ora, estas são as despesas mais difíceis de reverter, já que reflectem compromissos assumidos pelo Estado nas áreas mais utilizadoras de recursos públicos (saúde, educação, protecção social, etc.). Por contraste, as rúbricas que determinaram a redução da despesa pública em 2016 têm em comum o facto de corresponderem a variáveis habitualmente voláteis, a saber: Juros (que desceram em 2016 e deverão aumentar em 2017); Investimento Público (que caiu cerca de 30% em 2016 e poderá aumentar numa proporção superior a isso em 2017); e Outras Despesas de Capital (essencialmente determinadas no anos recentes pela intervenção do Estado na banca e que foi muito maior em 2015 do que em 2016 devido à resolução do BANIF).

Ou seja, não há nada que indique que a estratégia da austeridade continue presente.

Isto não significa que as críticas que têm vindo a ser feitas ao governo não façam sentido. É um facto que o governo tem adoptado uma política de consolidação orçamental que penaliza uma criação mais rápida do emprego e a qualidade dos serviços públicos. É um facto que o governo não tem usado a folga orçamental de que dispõe para reforçar o orçamento em serviços públicos essenciais, como a saúde e a educação, o que significa que muitas das dificuldades que se agravaram durante o programa de ajustamento não desapareceram (e em alguns casos até podem ter aumentado). É um facto que prioridade atribuída à redução do défice em 2016 se traduziu no nível mais baixo de investimento público das últimas décadas, prejudicando o ritmo de recuperação da economia.

É óbvio que há uma preocupação preponderante no governo – a meu ver excessiva – com a redução do défice. Isto é algo que os partidos de direita não podem denunciar sem caírem no ridículo, dado o seu passado governativo recente. Preferem por isso repetir à exaustão que a estratégia do governo (com o acordo da maioria parlamentar) não é diferente do que PSD e CDS fizeram, ou do que fariam se fossem governo. Mas não é por insistirem à exaustão na mesma ideia que passam a ter razão.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Para tirar o neoliberalismo e o imperialismo das nossas cabeças


É que o neoliberalismo nas nossas cabeças também é isto. É acreditar que o Estado nem funções na regulação deve ter, quanto mais na provisão e na produção – coisa que os privados naturalmente agradecem. É acreditar num relativismo total de valores e finalidades (afora alguns tabus, como o direito à exploração, à propriedade ou ao lucro), forma de desalojar um acervo adquirido de correcção política. E é também acreditar que a liberdade de expressão, em particular a das empresas, pode ser algo de absoluto que não tem de se conciliar com outras liberdades e direitos. Quando pensamos num caso como o dos Blocos de Actividades, todas estas escolhas de sociedade estão convocadas.

Sandra Monteiro, Blocos de actividades para o Estado e para o mercado, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Setembro de 2017.

[O] ponto de equilíbrio da política externa dos Estados Unidos resulta cada dia mais da soma das fobias republicanas (Irão, Cuba, Venezuela),muitas vezes partilhadas pelos democratas, e dos ódios democratas (Rússia, Síria), apoiados pela maior parte dos republicanos. Se existe um partido da paz em Washington, por agora ele é indetectável. O debate presidencial do ano passado sugeria, contudo, que o eleitorado americano pretendia romper com o tropismo imperial dos Estados Unidos. Trump não fez grande campanha sobre temas de política externa. No entanto, quando falou dela foi para sugerir uma linha de conduta bastante oposta à dos poderes instituídos em Washington (militares, peritos, think tanks, revistas especializadas) e à que hoje persiste.

Serge Halimi, Donald Trump ultrapassado pelo partido anti-russo, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Setembro de 2017.

sábado, 9 de setembro de 2017

O Governo que pense bem


Um país que baseia a sua economia nos serviços pessoais, em vez da indústria, está condenado a não se desenvolver. Isso os economistas sabem. É na indústria que a inovação gera aumentos de produtividade significativos e, se o sindicalismo não for tolhido por legislação neoliberal, uma parte desses aumentos traduz-se em subida dos salários reais. Estes aumentam a procura interna que, por seu turno, viabiliza novos investimentos. Gera-se um círculo virtuoso na economia que também acaba por beneficiar os salários dos serviços. Era assim nos primeiros trinta anos do pós-Guerra.

Os processos de inovação, e consequentes ganhos de produtividade, são muito limitados nos serviços de hotelaria, restauração, cabeleireiros, supermercados, comércio a retalho, etc. Nestes, quando a empresa é gerida apenas com a finalidade do rápido enriquecimento dos patrões, um lucro elevado exige o esmagamento dos salários e dos restantes custos associados à mão-de-obra. Para aliciar quem já anda desesperado por não encontrar emprego, estas empresas adoptam uma retórica que facilmente engana os candidatos e redigem contratos que depois não cumprem (ver aqui). As autoridades que têm por missão fiscalizar as condições de trabalho fecham os olhos porque as chefias têm cumplicidades político-económicas e, afinal, "é preciso apoiar quem investe e cria empregos"Este é o funcionamento do capitalismo neoliberal, hoje também na indústria, desde que o capital corrompeu ideologicamente (e muitas vezes também com cargos muito bem pagos) as elites políticas do centrão. E desde que a ameaça do comunismo desapareceu tudo ficou pior.

Quem desculpa isto, com o argumento de que sempre é melhor que o desemprego, está ao nível do pensamento da burguesia industrial do século XIX, ou dos senhores da economia de escravatura. Afinal os escravos até tinham casa e comida garantidos.

Se o actual governo não mudar rapidamente a legislação do trabalho, no sentido de dar mais força aos trabalhadores, e não mudar a orientação das entidades que fiscalizam as condições de trabalho, então a apreciada "paz social" vai desaparecer. O Governo que pense bem porque, como a sabedoria milenar nos lembra, não se pode servir a dois senhores. Ou este governo defende o trabalho, ou é cúmplice do capital e do que Bruxelas ordenar. Que pense bem.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Todo o mundo saúda o novo poder de Luanda (cinco ideias sobre as eleições em Angola)

A Comissão Nacional Eleitoral angolana confirmou agora a vitória do MPLA nas eleições gerais de 23 de Agosto com 61% dos votos, assegurando assim mais de 2/3 dos lugares do Parlamento. Ficam aqui cinco ideias sobre este processo.

1) O MPLA emerge como vencedor indiscutível destas eleições aos olhos da comunidade internacional. É verdade que os partidos da oposição e as iniciativas cidadãs que se constituíram para acompanhar o processo denunciaram várias ilegalidades ocorridas antes, durante e após o acto eleitoral. No entanto, as reclamações apresentadas e as provas que as acompanharam foram, até aqui, todas recusadas pelas autoridades. Tais irregularidades mostram que as eleições foram menos justas e transparentes do que o governo afirma, e sugerem que a vitória real do MPLA pode ser bastante inferior à anunciada (que, convenientemente, dispensa o MPLA de qualquer diálogo com a oposição, até para rever a Constituição). No entanto, apesar de as actas das assembleias de voto terem sido supostamente tornadas públicas no próprio local, nem a oposição nem as iniciativas da sociedade civil apresentaram até aqui uma contabilidade alternativa dos resultados finais. Isto, obviamente, enfraquece a contestação às eleições por parte da oposição, mesmo que não retire legitimidade às reclamações apresentadas.

2) A vitória do MPLA é particularmente notável no actual contexto (mesmo que se viesse a demonstrar ter sido substancialmente inferior aos dados oficiais hoje anunciados). É difícil para qualquer partido em qualquer parte do mundo assegurar vitórias eleitorais sucessivas. Ainda o é mais depois de três anos de uma crise económica profunda, com forte aumento dos preços dos bens essenciais e do desemprego, e a degradação evidente dos serviços colectivos (saúde, educação, fornecimento de electricidade, etc.). A isto se junta o facto de nos últimos anos, graças às redes sociais, se ter generalizado o conhecimento na sociedade angolana acerca da sistemática apropriação indevida de recursos públicos por parte da elite do regime (as imagens de Danilo dos Santos, filho do velho presidente, a comprar um relógio por 500 mil euros no festival de cinema de Cannes é apenas um exemplo entre os casos mais badalados do despudor da cleptocracia instalada). Apesar disto tudo, o MPLA foi provavelmente o partido mais votado nestas eleições. Não é de somenos.

3) Há bons motivos que explicam o desempenho eleitoral do MPLA. Comparado com os partidos opositores (e não só), o MPLA é um partido altamente disciplinado e organizado, assegurando uma presença efectiva em todo o país, desde os musseques de Luanda às regiões mais interiores de Angola. O MPLA conta também com uma quantidade significativa de quadros experientes e bem preparados, tanto do ponto de vista político como técnico (o que em boa parte se explica pelo facto de ser o único partido com experiência de governo e capaz de assegurar o acesso a cargos técnicos no aparelho de Estado). O MPLA tem também a seu favor o facto de surgir aos olhos dos cidadãos como responsável pela paz e a reconciliação nacional desde o fim da guerra civil em 2002.

4) Por detrás do bom desempenho eleitoral do MPLA há razões muito menos honrosas (confirme-se ou não a existência de fraude generalizada na contabilização dos votos). Os principais órgãos de comunicação social angolanos (a televisão pública, a principal televisão privada, a rádio nacional, o principal jornal diário, etc.) funcionam como extensões do governo e do partido do regime (e não, não é comparável ao que acontece em Portugal). Isto reflecte-se não apenas na fraca cobertura das iniciativas da oposição, mas acima de tudo numa manipulação descarada das notícias (um caso marcante nestas eleições foi a deturpação pela televisão pública de uma entrevista a Marcolino Moco – antigo primeiro-ministro e crítico aberto do regime actual – que obrigou este militante histórico do MPLA a denunciar publicamente o ocorrido no dia seguinte). O desequilíbrio de meios não é apenas mediático, é também financeiro. Utilizando indevidamente os recursos do Estado angolano, o MPLA mobiliza meios para a campanha que estão vedados a outros partidos. A um mês das eleições as principais cidades angolanas estavam completamente repletas de bandeiras e cartazes do partido do regime, quando os partidos da oposição ainda não tinham sequer tido acesso à subvenção pública prevista na lei. Por fim, e seguramente não menos importante, o MPLA usa sistematicamente os meios de propaganda à sua disposição para instigar o medo entre a população com uma mensagem tão simples quanto estarrecedora: se a oposição ganhar vai haver guerra. Para quem a viveu na pele ou ouviu os familiares descrevê-la, é motivo de sobra para pensar duas vezes. E, no entanto, o MPLA é hoje a única força política com acesso aos meios necessários para fazer a guerra.

5) Ao darem o seu aval aos resultados das eleições, classificando-as como livres e justas, os observadores internacionais que acompanharam as eleições angolanas (onde se incluem deputados portugueses) estão a compactuar com práticas que seriam inaceitáveis num Estado de Direito Democrático.  Esses observadores têm seguramente conhecimento do processo eleitoral em todas as dimensões acima descritas. Os motivos que os levam a silenciar as práticas ilegítimas podem ser vários: estão economicamente comprometidos com o regime; acreditam que num país africano não é possível fazer melhor; ou consideram que nenhuma das alternativas está em melhores condições para assegurar um futuro de paz e desenvolvimento para Angola (acredite-se ou não, estes mesmos observadores estrangeiros apelidam de neocolonialista e paternalista quem se atreve a questionar o processo eleitoral angolano a partir do exterior). Seja qual for o motivo para se prestarem ao papel que desempenham neste processo, uma coisa é certa: ao fazê-lo, esses observadores estão a revelar pouco respeito pelos eleitores angolanos, por quem luta pela democracia naquele país e também pelos cidadãos do seu país de origem.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Anomalias?

Ao resistirem à tentação de entrar no governo de Costa, optando por extrair concessões modestas mas tangíveis em troca do apoio parlamentar, o BE e o PCP traçaram um caminho entre o fechamento sectário e a neutralização política, mantendo a oportunidade de colocar em cima da mesa soluções mais radicais [da reestruturação da dívida à saída do Euro] para as dificuldades do país quando a próxima crise da Zona Euro chegar.

Excerto da principal conclusão política de uma análise com fôlego à evolução histórica recente da formação social portuguesa, “anomalias lusas”, publicada pelo historiador irlandês Daniel Finn na que é para mim a melhor revista de pensamento político em sentido amplo do mundo anglo-saxónico, a New Left Review.

A crónica de Owen Jones no The Guardian, talvez suscitada pela leitura deste artigo, ilustra também o renovado interesse no caso português. É uma crónica interessante, mas prejudicada pelos hábitos voluntaristas e europeístas típicos do comentário progressista. Esquece-se das circunstâncias políticas específicas do tempo e do lugar que tornaram possível a actual solução e que tornam difícil a sua repetição noutros contextos, incluindo a extensão do recuo histórico anterior, de resto em larga medida por reverter, dada a natureza necessariamente limitada do que foi conseguido. E lembra-se de colocar às esquerdas contraproducentes tarefas de reforma com escala europeia, que estas não estão em posição de prosseguir nessa escala, e de sobrestimar as mudanças no PS, cujas elites ainda dominantes não fizeram o tipo de ruptura ideológica de Corbyn e companhia com a Terceira Via.

Entretanto, do último número da New Left Review consta também uma extensa entrevista a Catarina Martins que vale a pena ler pelas perguntas e pelas respostas. Se exceptuarmos um momento de injusto paternalismo em relação a um PCP de que está próxima nas áreas fundamentais, incluindo direitos e liberdades, e uma sobrestimação do papel bloquista no arranque da solução governativa, a verdade é que Catarina Martins está em grande forma na avaliação da conjuntura e da estrutura nas várias escalas. Sem ilusões em relação à social-democracia realmente existente, revela uma aguda consciência da economia política europeia.

Com esta direcção, o BE está em condições de evitar o triste destino do Syriza, não se deixando cooptar, nem condicionar por uma certa opinião euro-liberal dita de esquerda, muito presente na comunicação social, mas sem grande relevância política fora dela: intransigência estratégica e flexibilidade táctica, função de uma correlação de forças que pode e deve ser mudada.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Ultra-ultra

Se já se habituara a ouvir falar do regresso das praças de jorna, em que os empregadores tipo contratadores em filmes neorealistas, vinham buscar de madrugada quem achavam que devia trabalhar, esqueça tudo.

Agora - isto é, há uns anos... - há contratos a zero horas. Perfeitamente enquadrados, desde 1996, na legislação britânica. Eles deveriam ser usados para trabalho casual, esporádico, mas o seu uso tem sido abastardado, estandendo-se ao cumprimento de funções permanentes e, dessa forma, encontra-se em expansão, com a cobertura do Partido Conservador. O Labour quer bani-los, até pela perda de receita fiscal - estimada em mais de 6 mil milhões de libras, devido a pagamentos em numerário - mas Theresa May defende-os e mantém-nos.

E, por causa deles e pela primeira vez no Reino Unido, há actualmente trabalhadores em greve no McDonalds, numa paralização coincidente com a realizada nos Estados Unidos e na Bélgica.

A notícia vem debatida no Mediapart. "Com este tipo de contrato, a empresa pode chamar os empregados para trabalhar unicamente quando precisa deles e pagar-lhes apenas segundo as horas de trabalho efectivamente feitas. Além disso, com estes contratos, a empresa não tem qualquer obrigação de dar horas aos assalariados". Mais: o patrão pode informar o assalariado da anulação das suas horas de trabalho no último momento...!

Argumento do lado do patronato. "Os patrões explicam que o assalariado é livre, já que pode recusar uma hora ou duas". Mas "os números oficiais atestam uma outra realidade: Nunca ninguém diz não. A chantagem pelo emprego funciona perfeitamente. 'Não queres trabalhar uma hora ou duas? Ok então não terás contrato'. É assim que tudo se passa no terreno. Não há alguma liberdade para o assalariado!"

E não é por acaso que há greve no McDonalds. É que 90% dos seus assalariados têm este tipo de contrato, aplicando-se já a 2,9% dos activos no Reino Unido (900 mil pessoas em Setembro de 2016, mais 20% do que no ano anterior e 1,7 milhões de contratos firmados, cerca de 6% do total). Os sectores que mais os usam são a restauração (19%), a saúde (13%) e a educação (10%). Com esse tipo de contratos, os trabalhadores ganham uma média de 6 mil libras/ano. Os mais afectados são os jovens e tem pesadas consequências na sua saúde. E não se trata de contratos desejados: 32% dos assalariados com este tipo de contratos afirma que gostaria de trabalhar mais horas, por contraste com a média de 6% no total dos assalariados. 

E, para completar o retrato tipo de quem pratica a fraude fiscal legalizada, a multinacional McDonalds transferiu a sua sede do Reino Unido para a Suíça, fazendo transitar os seus rendimentos de propriedade intelectual - aquela maravilhosa receita de fazer hambúrgueres - através da sua sucursal no Luxemburgo e conseguindo que a taxa de imposto sobre o rendimento passe de 29% para 6%!

Agora somemos este fenómeno à ideia lapidar de que a negociação laboral deve ser feita ao nível da empresa - como defende o Código do Trabalho de Macron ou de Temer ou de Centeno - e temos um caldo social entornado por muitos anos e anos.