terça-feira, 31 de janeiro de 2017
Leituras: Revista Crítica - Económica e Social (n.º 10)
A décima edição da Revista Crítica inclui três estudos inéditos: o primeiro sobre a fuga ao fisco (por Carlos Pimenta), o segundo sobre a convergência e divergência entre os países da União Europeia (por Ernesto Figueiredo), o terceiro sobre as responsabilidades da nova administração da CGD e a estratégia que deve ser seguida na banca pública (por Eugénio Rosa).
Na secção de atualidade é discutida a solução do governo para a redução da TSU patronal em empresas com trabalhadores com o salário mínimo (João Ramos de Almeida) e as contradições entre o discurso de Assunção Cristas e a prática do seu governo (Nuno Serra).
Ainda neste número um dossier sobre a questão do Novo Banco com textos de Ricardo Cabral e Francisco Louçã (que argumentam a favor do controlo público), a apresentação do livro de Michael Lowy (por João Rodrigues) e a reflexão de Renato do Carmo sobre o filme de Ken Loach, «Eu, Daniel Blake». Por último, António Carlos Santos escreve uma recensão sobre «Estado de Crise», de Bordoni e Zauman.
Tal como as edições anteriores, o nº 10 da revista Crítica está disponível aqui, para download gratuito. Boas leituras.
Para organizar as ideias
O Le Monde diplomatique, por seu lado, funciona como um intelectual colectivo, ao serviço do colectivo formado pelos seus leitores. O que é próprio de um intelectual, sobretudo se ele for colectivo e pretender ser útil em vez de olhar para um espelho, é hierarquizar, escolher e saber afastar o que é secundário. É organizar o seu plano, justificar as suas propostas, fazer compreender e mesmo partilhar a sua conclusão.
Serge Halimi, Ser livre, formular um projecto, resistir, permanecer.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2017
Grupinho?
No Público fez-se uma avaliação razoavelmente realista do estado dos líderes do que passa por social-democracia ou social-liberalismo ainda no “poder” (aspas, desgraçadas aspas) por essa Europa do Sul: “um está prestes a abandonar o poder pela porta pequena, outro tem visto a sua governação esmagada pelos sucessivos programas de ajustamento e o mais recente tem um papel interino pouco decisivo.” A europeização realmente existente, como temos insistido, mata o sul e a social-democracia do norte e do sul. Não é defeito, é feitio.
Quando um vende-pátrias como Passos Coelho apresenta a cimeira dos países do sul da zona euro como um “grupinho”, o drama é que o diminutivo tem um certo realismo, dada a fraqueza política deste grupo, incluindo programática, como ficou à vista na passada semana. Esta fraqueza política assenta, em última instância, em economias enfraquecidas face à Alemanha e sem instrumentos para fazer face ao declínio relativo. Passos sabe que a “Europa” está com ele, ou seja, com o seu programa de submissão. Esta é a sua força.
Mas o drama só se acentua quando vemos António Costa, que graças à solução governativa contrasta ainda com alguns dos supostos parceiros do sul, a defender as instituições que são de Passos e que só geram a prazo a política de Passos: o euro, as chamadas “quarto liberdades” do mercado único (ainda se fossem as quatro do Roosevelt de 1941) e a globalização, de que a UE é a expressão no continente. Falar de democracia e aceitar estas estruturas, desenhadas para favorecer a liberdade de um certo capital, é uma rematada contradicção nos termos.
Do aprofundamento da monstruosidade regulatória da União Bancária, feita para reforçar o controlo estrangeiro da banca nacional periférica, a uma articulação entre moeda e orçamento, que os alemães jamais aceitarão e que nunca resolveria o problema de fundo, o resto da agenda europeia de Costa parece ser também a atracção do que resta da social-democracia pela corda que a enforcaria, até porque se eliminariam os últimos vestígios de soberania democrática. É claro que para alguns, caso de Vital Moreira, a social-democracia já pertence ao passado político e daí o seu entusiasmo com as instituições que só favorecem a prazo Passos e a sua política.
Quando as notícias positivas não auguram nada de bom
As boas notícias sobre o desempenho da economia portuguesa não têm parado de chegar. Eis alguns exemplos de dados publicados hoje:
As taxas de juro da dívida dos países periféricos da zona euro têm vindo a subir desde Outubro de 2016. Por contaste, os dados sobre a actividade económica destes países continuam a mostrar melhorias. Isto só em parte constitui um contra-senso. Um dos motivos pelos quais as taxas de juro estão a aumentar consiste na expectativa de que a inflação na zona euro irá subir, acompanhando a melhoria da actividade económica. O aumento da inflação torna mais provável que o BCE reduza as suas políticas expansionistas, que têm contribuído para manter as taxas de juro a níveis reduzidos.
Há outros motivos que explicam a subida das taxas de juro, nomeadamente a incerteza sobre a continuação das compras de títulos de dívida pública pelo BCE (dadas as restrições regulamentares existentes) e a expectativa de subida dos juros nos EUA.
O problema para a economia portuguesa é que os impactos das evoluções referidas são assimétricos. Adivinha-se uma aceleração do crescimento económico no conjunto da UE, mas ele será modesto em países mais endividados e com estruturas produtivas mais fracas. Países com menos crescimento económico terão menor crescimento da inflação, o que não ajuda a pagar as dívidas acumuladas no passado. Também a subida dos juros não será idêntica em todos os países, afectando mais aqueles onde os riscos são maiores (por exemplo, devido à fragilidade dos seus sistemas financeiros). Finalmente, as restrições à acção do BCE penalizam desproporcionalmente os países para quem a intervenção da instituição é mais decisiva.
A economia tem destas coisas: são cada vez mais os sinais de que as coisas estão a melhorar; no entanto, continuamos metidos num molho de bróculos.
- Em dezembro de 2016, a taxa de desemprego estimada situou-se em 10,2 % (10,5% no mês anterior).
- Em janeiro de 2017, o Indicador de Clima Económico do INE aumentou para 1,2 (1,1 no mês anterior).
- Em dezembro de 2016, o Índice de Produção Industrial aumentou 5,1% face ao mesmo período do ano anterior (variação homóloga, VH).
- Em dezembro de 2016, o Índice de Volume de Negócios no Comércio a Retalho aumentou 3,9% (VH).
- Em dezembro de 2016, o Índice de Emprego no Comércio a Retalho aumentou 2,0% (VH).
- Em janeiro de 2017, o Indicador de Sentimento Económico da Comissão Europeia para Portugal registou 109,6 pontos (109,3 pontos em dezembro de 2016).
As taxas de juro da dívida dos países periféricos da zona euro têm vindo a subir desde Outubro de 2016. Por contaste, os dados sobre a actividade económica destes países continuam a mostrar melhorias. Isto só em parte constitui um contra-senso. Um dos motivos pelos quais as taxas de juro estão a aumentar consiste na expectativa de que a inflação na zona euro irá subir, acompanhando a melhoria da actividade económica. O aumento da inflação torna mais provável que o BCE reduza as suas políticas expansionistas, que têm contribuído para manter as taxas de juro a níveis reduzidos.
Há outros motivos que explicam a subida das taxas de juro, nomeadamente a incerteza sobre a continuação das compras de títulos de dívida pública pelo BCE (dadas as restrições regulamentares existentes) e a expectativa de subida dos juros nos EUA.
O problema para a economia portuguesa é que os impactos das evoluções referidas são assimétricos. Adivinha-se uma aceleração do crescimento económico no conjunto da UE, mas ele será modesto em países mais endividados e com estruturas produtivas mais fracas. Países com menos crescimento económico terão menor crescimento da inflação, o que não ajuda a pagar as dívidas acumuladas no passado. Também a subida dos juros não será idêntica em todos os países, afectando mais aqueles onde os riscos são maiores (por exemplo, devido à fragilidade dos seus sistemas financeiros). Finalmente, as restrições à acção do BCE penalizam desproporcionalmente os países para quem a intervenção da instituição é mais decisiva.
A economia tem destas coisas: são cada vez mais os sinais de que as coisas estão a melhorar; no entanto, continuamos metidos num molho de bróculos.
domingo, 29 de janeiro de 2017
Cosmopolitismos há muitos
O de Gunnar Myrdal, o social-democrata que dividiu o prémio Nobel da Economia com Hayek, por exemplo:
“(...) O nacionalismo, como tenho sugerido, tem uma importante função na união das massas, na sua inspiração num propósito comum e numa política unificada e isto torna-se ainda mais importante na ausência de facto de uma comunidade mundial funcional. Mas sinto uma responsabilidade especial em lembrar que uma política económica não se torna racional meramente por apelar a sentimentos nacionais e ainda menos por poder causar danos a outras nações. É crucial sublinhar este aspecto porquanto, por razões naturais, o nacionalismo nos países desprivilegiados contém, não apenas ímpetos positivos de crescimento e bem estar em casa, mas também muito ressentimento contra aqueles países ricos que, até recentemente, têm usado poder para controlar as suas aspirações nacionais.
Há uma regra simples que deve ser observada quando se traça a linha entre o que é, e não é, um nacionalismo são e razoável: um país subdesenvolvido age correctamente se tomar todas e quaisquer medidas que uma avaliação sensata possa provar que melhoram o seu bem estar económico; contudo, deve evitar cuidadosamente quaisquer medidas de política que não sejam nacionalmente benéficas nos seus efeitos globais finais. Adicionalmente, do ponto de vista cultural, esse país deve aprender com todo o mundo: erguer barreiras contra a civilização e os valores dos mais ricos do mundo é uma política derrotista, que um país pobre é o último a poder suportar.
Advogo um nacionalismo racional com a consciência tranquila, dado que estou convicto que o sucesso real de políticas económicas nacionalistas nos países subdesenvolvidos levar-nos-ia mais perto, e não mais longe, da fase em que uma política mundial integrada, baseada na solidariedade internacional, poderia ser eficazmente tentada. É a pobreza em si mesmo que mantém os níveis de cultura baixos nos países subdesenvolvidos. E, gostemos ou não, a solidariedade não é um estado de espírito nutrido pela compaixão condescendente por aqueles que são diferentes; a solidariedade desenvolve-se naturalmente entre iguais ou quase iguais (...)” (págs. 66-67).
“(...) Para falar em termos Hegelianos: o caminho para a integração internacional deve ser procurado através da integração nacional. A adopção de políticas nacionalistas pelos países pobres e um incremento do seu poder negocial, como resultado dessas políticas e do incremento da cooperação entre eles enquanto grupo, constituem uma fase necessária no desenvolvimento de uma mais efetiva e alargada cooperação internacional (...)” (pág. 70).
“(...) O nacionalismo, como tenho sugerido, tem uma importante função na união das massas, na sua inspiração num propósito comum e numa política unificada e isto torna-se ainda mais importante na ausência de facto de uma comunidade mundial funcional. Mas sinto uma responsabilidade especial em lembrar que uma política económica não se torna racional meramente por apelar a sentimentos nacionais e ainda menos por poder causar danos a outras nações. É crucial sublinhar este aspecto porquanto, por razões naturais, o nacionalismo nos países desprivilegiados contém, não apenas ímpetos positivos de crescimento e bem estar em casa, mas também muito ressentimento contra aqueles países ricos que, até recentemente, têm usado poder para controlar as suas aspirações nacionais.
Há uma regra simples que deve ser observada quando se traça a linha entre o que é, e não é, um nacionalismo são e razoável: um país subdesenvolvido age correctamente se tomar todas e quaisquer medidas que uma avaliação sensata possa provar que melhoram o seu bem estar económico; contudo, deve evitar cuidadosamente quaisquer medidas de política que não sejam nacionalmente benéficas nos seus efeitos globais finais. Adicionalmente, do ponto de vista cultural, esse país deve aprender com todo o mundo: erguer barreiras contra a civilização e os valores dos mais ricos do mundo é uma política derrotista, que um país pobre é o último a poder suportar.
Advogo um nacionalismo racional com a consciência tranquila, dado que estou convicto que o sucesso real de políticas económicas nacionalistas nos países subdesenvolvidos levar-nos-ia mais perto, e não mais longe, da fase em que uma política mundial integrada, baseada na solidariedade internacional, poderia ser eficazmente tentada. É a pobreza em si mesmo que mantém os níveis de cultura baixos nos países subdesenvolvidos. E, gostemos ou não, a solidariedade não é um estado de espírito nutrido pela compaixão condescendente por aqueles que são diferentes; a solidariedade desenvolve-se naturalmente entre iguais ou quase iguais (...)” (págs. 66-67).
“(...) Para falar em termos Hegelianos: o caminho para a integração internacional deve ser procurado através da integração nacional. A adopção de políticas nacionalistas pelos países pobres e um incremento do seu poder negocial, como resultado dessas políticas e do incremento da cooperação entre eles enquanto grupo, constituem uma fase necessária no desenvolvimento de uma mais efetiva e alargada cooperação internacional (...)” (pág. 70).
sábado, 28 de janeiro de 2017
O passado é um país que fica do outro lado
A propósito das tendências ditas neo-proteccionistas, quero só deixar por aqui duas notas sobre história económica e das ideias económicas.
Em primeiro lugar, pode dizer-se que no chamado longo século XIX os EUA inventaram o proteccionismo como técnica bem-sucedida para a industrialização, através, entre outros, do relatório sobre as indústrias do seu primeiro Secretário do Tesouro, Alexander Hamilton: a indústria é a base material da independência nacional e não se desenvolve espontaneamente. A guerra civil nos EUA foi depois travada entre o Norte proteccionista e abolicionista e o Sul escravocrata e defensor do comércio livre, o que indica que a história não encaixa bem nas narrativas convencionais. A história do algodão de resto não engana. Os EUA foram fortemente proteccionistas em matéria comercial pelo menos até à primeira metade do século XX, ou seja, até que estiveram prontos para o proteccionismo dos que se sentem mais fortes, também conhecido por comércio livre.
Em segundo lugar, os anos trinta do século XX são usados e abusados pela sabedoria convencional. Um dos textos de Keynes, uma defesa da reconfiguração pós-liberal de um sistema socioeconómico que pretendia que fosse mais decente, de 1933, aponta para a necessidade de um maior grau de auto-suficiência nacional. Um texto já aqui várias vezes citado e oportunamente recuperado por Jacques Sapir. Quem tem segurança intelectual e política não cede a chantagens sobre eventuais companhias pontuais, porque sabe os fins que prossegue e sabe que à luz desses fins os ditos fluxos internacionais não são iguais (questão de natureza...). Neste contexto, vale a pena meditar nesta passagem:
“Simpatizo com aqueles que querem minimizar, em vez de maximizar, as interdependências económicas entre as nações. Ideias, conhecimento, ciência, hospitalidade, viagens – estas são as coisas que, pela sua natureza, devem ser internacionais. Mas deixemos que os bens sejam produzidos localmente sempre que seja razoável e conveniente, e, sobretudo, asseguremos que a finança seja nacional. No entanto, aqueles que querem reduzir as interdependências devem ser lentos e cautelosos. Não se trata de arrancar a planta pela raiz, mas de orientá-la lentamente para que cresça noutra direção.”
E lembrem-se que foram as instituições económicas internacionais, de matriz liberal, da altura, do padrão-ouro à liberdade de circulação de capitais, que alimentaram a depressão, a impotência democrática e os fascismo na Europa. Do outro lado, a Norte e a Sul, não tendeu a ser assim. Também em 1933, poucos meses depois de tomar posse, Roosevelt rompeu com a “relíquia bárbara”, a expressão de Keynes para o rígido padrão-ouro, para ganhar margem de manobra nacional em matéria de política económica, sem a qual o New Deal não teria sido possível. Hoje, de novo perante a instabilidade permanente, a questão já não será entre globalizar e desglobalizar, mas sim entre quem vai liderar politicamente uma maior desglobalização, que dimensões deste processo de multifacetado regresso das nações serão privilegiadas e que sectores sociais sairão a ganhar e a perder. Também aqui, não há inevitabilidades.
A luta de classes no Parlamento
Quando ouço dizer que já não há luta de classes, aconselho a assistir a sessões no Parlamento relacionadas com questões laborais. Torna-se tudo muito mais claro.
Anteontem à tarde, em plenário, discutiu-se vários projectos relacionados com o assédio: um do PAN, outro do PCP , outro do PS, e outro do BE.
O assédio é algo que prejudica a vida de um trabalhador. O carácter desigual da relação laboral entre a entidade patronal (ou quem o represente) e o trabalhador torna igualmente desigual a forma de combater um acto injusto, com repercussões na sua vida profissional, que é a parcela da vida humana que o liga à sociedade, que lhe cria amor próprio e auto-estima, a sua vontade de viver com os outros. Quem já passou por situações dessas, compreende melhor. Esvaziamento de funções, procedimentos disciplinares que visam apenas perseguição, deslocação para um posto de trabalho numa sala vazia, sem telefone nem computador ou janela, denegrimento do trabalhador junto dos colegas, boatos postos a correr que nunca se sabe de onde vêm. Tudo isso são formas do mesmo fenómeno.
Ora, em geral todos os deputados estariam de acordo em combater esses fenómenos. Mas o que é interessante é verificar o posicionamento de cada grupo parlamentar nessa equação.
À esquerda, temos os deputados a tentar que a lei defenda quem seja alvo desses maus comportamentos e que se castigue as empresas que os praticam. Mas à direita, temos os deputados a vincar antes:
1) que os projectos "infermam de radicalismos ideológicos perigosos" (Sandra Pereira, deputada do PSD)
2) que os projectos em discussão "promovem falsas queixas" e que vêm "desequilibrar (...) porque as empresas é que tem de provar que não há assédio" (António Carlos Monteiro, deputado do CDS) que, de cada vez que surgir uma queixa, se está "a penalizar a empresa", com "penalização de danos, em vez de ser a Segurança Social" (Sandra Pereira);
3) que "a inversão do ónus da prova, não é compativel com a presunção de inocência" e que se trata de um "acto negativo" e que é necessário que "o ónus da prova recaia sobre o trabalhador" (Sandra Pereira)
4) que isso irá "prejudicar as vítimas" (António Carlos Monteiro);
5) que se deve "tentar que não haja castigos, mas antes sensibilização das entidades patronais" (Sandra Pereira), que se deve ir "pela pedagogia e sensibilização em detrimento da punição" e que haja "diagnósticos, uma melhor compreensão do tema" (António Carlos Monteiro)
Nota:
Pequena nuance no debate seguinte sobre o aumento de três dias no período de férias: os deputados de direita - deputados! - defenderam que esse tipo de temas não devia passar pelo Parlamento, mas antes surgir da discussão em concertação social. Na concertação social, os representantes das empresas, com o apoio de uma das centrais sindicais, estão sempre, de facto, em maioria!
Os projectos foram aprovados ontem pelo Parlamento, com os votos de toda a esquerda. Já os dias de férias foram chumbados com os votos do PS, PSD e CDS.
Anteontem à tarde, em plenário, discutiu-se vários projectos relacionados com o assédio: um do PAN, outro do PCP , outro do PS, e outro do BE.
O assédio é algo que prejudica a vida de um trabalhador. O carácter desigual da relação laboral entre a entidade patronal (ou quem o represente) e o trabalhador torna igualmente desigual a forma de combater um acto injusto, com repercussões na sua vida profissional, que é a parcela da vida humana que o liga à sociedade, que lhe cria amor próprio e auto-estima, a sua vontade de viver com os outros. Quem já passou por situações dessas, compreende melhor. Esvaziamento de funções, procedimentos disciplinares que visam apenas perseguição, deslocação para um posto de trabalho numa sala vazia, sem telefone nem computador ou janela, denegrimento do trabalhador junto dos colegas, boatos postos a correr que nunca se sabe de onde vêm. Tudo isso são formas do mesmo fenómeno.
Ora, em geral todos os deputados estariam de acordo em combater esses fenómenos. Mas o que é interessante é verificar o posicionamento de cada grupo parlamentar nessa equação.
À esquerda, temos os deputados a tentar que a lei defenda quem seja alvo desses maus comportamentos e que se castigue as empresas que os praticam. Mas à direita, temos os deputados a vincar antes:
1) que os projectos "infermam de radicalismos ideológicos perigosos" (Sandra Pereira, deputada do PSD)
2) que os projectos em discussão "promovem falsas queixas" e que vêm "desequilibrar (...) porque as empresas é que tem de provar que não há assédio" (António Carlos Monteiro, deputado do CDS) que, de cada vez que surgir uma queixa, se está "a penalizar a empresa", com "penalização de danos, em vez de ser a Segurança Social" (Sandra Pereira);
3) que "a inversão do ónus da prova, não é compativel com a presunção de inocência" e que se trata de um "acto negativo" e que é necessário que "o ónus da prova recaia sobre o trabalhador" (Sandra Pereira)
4) que isso irá "prejudicar as vítimas" (António Carlos Monteiro);
5) que se deve "tentar que não haja castigos, mas antes sensibilização das entidades patronais" (Sandra Pereira), que se deve ir "pela pedagogia e sensibilização em detrimento da punição" e que haja "diagnósticos, uma melhor compreensão do tema" (António Carlos Monteiro)
Nota:
Pequena nuance no debate seguinte sobre o aumento de três dias no período de férias: os deputados de direita - deputados! - defenderam que esse tipo de temas não devia passar pelo Parlamento, mas antes surgir da discussão em concertação social. Na concertação social, os representantes das empresas, com o apoio de uma das centrais sindicais, estão sempre, de facto, em maioria!
Os projectos foram aprovados ontem pelo Parlamento, com os votos de toda a esquerda. Já os dias de férias foram chumbados com os votos do PS, PSD e CDS.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2017
Ginastas que não caem de pé
Fonte: INE e DGO (para 2015, 2016), em milhões de euros |
E por tudo ser tão estúpido e apenas ter uma lógica política - teve-o desde 1992 em Maastricht, tem-no presentemente na defesa à exaustão de regras sem nexo - é ainda mais idiota ver os tristes e passageiros dirigentes da direita contorcerem-se para arranjar argumentos em seu favor.
Passos Coelho hoje, no Parlamento, no debate quinzenal, criticou a política seguida, para momentos mais tarde dizer que os sucessos se deveram à aplicação da política seguida por si... Assunção Cristas a insistir como uma criança sobre umas décimas do PIB e a querer que o PM reconhecesse o corte no investimento público, quando o maior corte foi feito no seu mandato como ministra, política alicerçada na ideia de que o Estado devia desinvestir para dar lugar ao sector privado e social. Despudor e fragilidade.
Mas era bom que um governo de esquerda tivesse outro pensamento sobre a mesma matéria. Sob pena de, a prazo, vir a padecer dos mesmos discursos contorcionistas e ineficazes.
Virar a página no debate sobre trabalho e competitividade (III)
«Nuno Carvalho, proprietário de um conjunto de padarias a quem uma certa novilíngua gosta de chamar "empreendedor", proferiu declarações à SIC Notícias apelando a uma maior flexibilidade do mercado laboral. Mas sejamos justos com o Nuno, porque ele não teve receio de dizer ao que vinha: quer mais facilidade nos despedimentos, redução no pagamento das horas extraordinárias e alargamento do período de trabalho.
Pelo caminho, admitiu que a subida do salário mínimo afetará 25% da massa salarial da sua empresa. Traduzindo: 25% do montante dos salários pagos pela padaria portuguesa está entre os 530 e os 557€ (o que corresponderá, tendo em conta os salários do Nuno e dos seus acólitos, a uma percentagem bem superior a 25% de trabalhadores a receberem o salário mínimo). O Nuno, que se vê como um messias da iniciativa privada não é, afinal, lá muito inovador. É só mais um indivíduo que teve acesso a capital por via de um amigo e conseguiu fazer prosperar um modelo de negócio baseado em salários baixos. Que grande feito!
Mas o nosso Nuno não ficou por aqui. Ainda teve tempo de debitar um pouco de conhecimento convencional, daquele que envenena a opinião pública e cai sempre bem. Disse o Nuno que era preciso flexibilizar o mercado de trabalho para aumentar a produtividade do país. Só há um problema: Não é verdade. Os estudos realizados apontam exatamente no sentido contrário.
Dois economistas, Servaas Storm e C. Naastepad publicaram um estudo em 2009 na revista Industrial Relations intitulado “Labor Market Regulation and Productivity Growth: Evidence for Twenty OECD Countries (1984–2004)”. Os autores concluem que mercados de trabalho mais regulados e protetores dos trabalhadores favorecem o crescimento da produtividade no longo-prazo».
Diogo Martins (facebook)
Pelo caminho, admitiu que a subida do salário mínimo afetará 25% da massa salarial da sua empresa. Traduzindo: 25% do montante dos salários pagos pela padaria portuguesa está entre os 530 e os 557€ (o que corresponderá, tendo em conta os salários do Nuno e dos seus acólitos, a uma percentagem bem superior a 25% de trabalhadores a receberem o salário mínimo). O Nuno, que se vê como um messias da iniciativa privada não é, afinal, lá muito inovador. É só mais um indivíduo que teve acesso a capital por via de um amigo e conseguiu fazer prosperar um modelo de negócio baseado em salários baixos. Que grande feito!
Mas o nosso Nuno não ficou por aqui. Ainda teve tempo de debitar um pouco de conhecimento convencional, daquele que envenena a opinião pública e cai sempre bem. Disse o Nuno que era preciso flexibilizar o mercado de trabalho para aumentar a produtividade do país. Só há um problema: Não é verdade. Os estudos realizados apontam exatamente no sentido contrário.
Dois economistas, Servaas Storm e C. Naastepad publicaram um estudo em 2009 na revista Industrial Relations intitulado “Labor Market Regulation and Productivity Growth: Evidence for Twenty OECD Countries (1984–2004)”. Os autores concluem que mercados de trabalho mais regulados e protetores dos trabalhadores favorecem o crescimento da produtividade no longo-prazo».
Diogo Martins (facebook)
quinta-feira, 26 de janeiro de 2017
Associação Portuguesa de Economia Política
Foi hoje fundada em Lisboa a Associação Portuguesa de Economia Política. Aqui fica a Declaração de Princípios da nova associação académica plurisdiciplinar.
Os estudos sobre os fenómenos económicos têm vindo a sofrer desde há muito de um estreitamento epistemológico, teórico, metodológico e disciplinar, que reduziu a capacidade para entender o mundo e sobre ele intervir. Escasseiam nas universidades, nos meios de comunicação, nas instâncias de poder político e no debate público em geral abordagens capazes de entender as economias na sua especificidade e complexidade. É este tipo de abordagem que a Economia Política prossegue.
Por “Economia Política” entendemos o domínio científico que se dedica à análise dos processos e resultados económicos nos contextos institucionais, históricos e geográficos respectivos, entendendo os fenómenos económicos como sendo eminentemente configurados por factores de ordem social, política, jurídica, cultural, tecnológica e ecológica.
Porque falta reconhecimento institucional a uma abordagem pluralista ao estudo dos fenómenos económicos quanto às problemáticas, às disciplinas envolvidas, aos referenciais teóricos e às metodologias; porque cresce a ideia de uma responsabilidade ética e social dos cientistas sociais; e porque acreditamos existir massa crítica em Portugal para contribuir para um debate científico necessário, propomos a constituição de uma Associação Portuguesa de Economia Política.
Esta Associação pugnará pela construção, consolidação e promoção da Economia Política em Portugal. Promoverá uma abordagem pluridisciplinar e interdisciplinar do estudo da produção das condições da vida em sociedade, tendo como fim último a sua sustentabilidade social, ambiental e económica.
Enquanto associação propõe-se ainda defender e promover no seio das instituições de ensino superior e de investigação os princípios do pluralismo e do pensamento crítico, intrínsecos à Universidade e fundamentais para o debate político democrático. Mais concretamente propõe-se:
1. Fomentar o ensino e a investigação em Economia Política em Portugal enquanto abordagem pluridisciplinar e interdisciplinar;
2. Reivindicar junto das instituições do ensino superior e da investigação científica a criação do domínio científico pluridisciplinar e interdisciplinar de Economia Política, nomeadamente para efeitos de ensino, de financiamento à investigação e de avaliação;
3. Criar espaços para a partilha e discussão de trabalhos de investigação em Portugal no domínio da Economia Política;
4. Promover o debate público, contribuindo com a produção de informação fundamentada e plural sobre os processos e os resultados económicos, à escala regional, nacional e internacional, sobre as políticas públicas e sobre as dinâmicas sociais e formas de acção colectiva que as condicionam.
5. Contribuir para a internacionalização da investigação em Economia Política realizada em Portugal.
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ECONOMIA POLÍTICA
DECLARAÇÃO DE PRINCÍPIOS
Os estudos sobre os fenómenos económicos têm vindo a sofrer desde há muito de um estreitamento epistemológico, teórico, metodológico e disciplinar, que reduziu a capacidade para entender o mundo e sobre ele intervir. Escasseiam nas universidades, nos meios de comunicação, nas instâncias de poder político e no debate público em geral abordagens capazes de entender as economias na sua especificidade e complexidade. É este tipo de abordagem que a Economia Política prossegue.
Por “Economia Política” entendemos o domínio científico que se dedica à análise dos processos e resultados económicos nos contextos institucionais, históricos e geográficos respectivos, entendendo os fenómenos económicos como sendo eminentemente configurados por factores de ordem social, política, jurídica, cultural, tecnológica e ecológica.
Porque falta reconhecimento institucional a uma abordagem pluralista ao estudo dos fenómenos económicos quanto às problemáticas, às disciplinas envolvidas, aos referenciais teóricos e às metodologias; porque cresce a ideia de uma responsabilidade ética e social dos cientistas sociais; e porque acreditamos existir massa crítica em Portugal para contribuir para um debate científico necessário, propomos a constituição de uma Associação Portuguesa de Economia Política.
Esta Associação pugnará pela construção, consolidação e promoção da Economia Política em Portugal. Promoverá uma abordagem pluridisciplinar e interdisciplinar do estudo da produção das condições da vida em sociedade, tendo como fim último a sua sustentabilidade social, ambiental e económica.
Enquanto associação propõe-se ainda defender e promover no seio das instituições de ensino superior e de investigação os princípios do pluralismo e do pensamento crítico, intrínsecos à Universidade e fundamentais para o debate político democrático. Mais concretamente propõe-se:
1. Fomentar o ensino e a investigação em Economia Política em Portugal enquanto abordagem pluridisciplinar e interdisciplinar;
2. Reivindicar junto das instituições do ensino superior e da investigação científica a criação do domínio científico pluridisciplinar e interdisciplinar de Economia Política, nomeadamente para efeitos de ensino, de financiamento à investigação e de avaliação;
3. Criar espaços para a partilha e discussão de trabalhos de investigação em Portugal no domínio da Economia Política;
4. Promover o debate público, contribuindo com a produção de informação fundamentada e plural sobre os processos e os resultados económicos, à escala regional, nacional e internacional, sobre as políticas públicas e sobre as dinâmicas sociais e formas de acção colectiva que as condicionam.
5. Contribuir para a internacionalização da investigação em Economia Política realizada em Portugal.
Contas por fazer
Estão as empresas muito preocupadas com compensações à subida do SMN. Relembre-se que, só entre 2011 e 2015, as empresas e entidades receberam
770 milhões de euros de estágios-emprego e mais 137 milhões de euros em
contratos emprego-inserção. E mais 366,9 milhões para apoios à contratação. Ou seja, em cinco anos receberam 1270
milhões de euros de recursos públicos para usar mão-de-obra barata!
Um poço sem fundo.
Um poço sem fundo.
O europeísmo utópico
Já há algum tempo que o Rui Tavares vem escrevendo artigos em que, de forma crescentemente agressiva, vai rotulando todos os que não estejam disponíveis para continuar a sacrificar a democracia, os direitos do trabalho e o Estado Social em nome de uma União Europeia outra, da qual não temos outro vislumbre senão a imaginação generosa dos que a sonham. Este raciocínio e o rótulo, inicialmente subtil, foi-se tornando crescentemente explícito e já chegou a este grau de clareza:
“Se você defendeu que “não pode haver democracia para lá do estado-nação” ou que “os cidadãos do mundo são cidadãos de lugar nenhum”, você andou a promover ideias nacionalistas. Se sim, parabéns. Você ganhou por agora. Seja de direita, de esquerda, ou nem-uma-coisa-nem-outra, você ajudou a preparar o terreno conceptual para a vitória do presidente do país mais poderoso do mundo. De brinde, talvez lhe saia a presidente da França.”
Rui Tavares, in Público (23/01/2017)
Não farei a maldade de replicar o expediente intelectual do Rui Tavares e acusá-lo de cumplicidade com toda a tragédia económica e social provocada pelas instituições da União Europeia, graças às quais a Europa tem experimentado o pior período económico e social da história do pós-guerra. Sei que o Rui Tavares defende instituições europeias diferentes e políticas europeias diferentes e que o seu projecto político é distinto e até oposto ao de quem domina a Europa.
Também não vou (neste texto) alongar-me sobre esta ideia de que o crescimento massivo da extrema-direita está relacionado, não com as consequências económicas e sociais da globalização liberal, mas com um “terreno conceptual” que as forças que se lhe opõem teriam ajudado a construir, reavivando sentimentos nacionais que (acha o Rui Tavares) teriam desaparecido.
No entanto, não é possível não recordar que a Globalização em geral, e a Integração Europeia em particular, coincidiram com uma gigantesca perda de direitos sociais e do trabalho. Nem que esses direitos foram conquistados no pós-guerra no quadro, veja-se lá, dos Estados-nação democráticos. Será tudo coincidência?
É porque este percurso histórico é tão útil que tenho tanta dificuldade em perceber o paralelismo do Rui Tavares entre a União Europeia e a Sociedade das Nações. Não tanto porque o paralelismo não tem sentido institucional (a Sociedade das Nações deu origem à Organização das Nações Unidas e não à União Europeia ou nenhum dos seus antepassados), mas sobretudo porque os objectivos e filosofia são totalmente diferentes. A União Europeia foi fundada na base da doutrina do Comércio livre e, na fase do Euro, por uma declinação contemporânea do Padrão-ouro, de tão má memória. As fábulas sobre a “Europa dos fundadores” são manifestamente exageradas. A União Europeia nasceu como um projecto liberal e os sucessivos tratados apenas reforçaram e cristalizaram essa identidade.
Mas falemos então das ideias atribuídas aos “nacionalistas” pelo Rui Tavares. A questão de saber se “pode haver democracia para lá do Estado-nação” não é bem a que é actualmente colocada pelo euro-cépticos. A questão, ou as questões, são, do meu ponto de vista, três:
1. Existe, hoje, de facto, democracia fora do Estado-nação?
A resposta é um rotundo não. Na União europeia, as instituições democráticas não têm poder e as instituições com poder não são democráticas. O Parlamento Europeu tem poderes à beira da irrelevância, o BCE tem um poder literalmente ilimitado e isento de qualquer escrutínio democrático e mesmo as chamadas regras europeias servem essencialmente para criar um território de arbitrariedade em que a bonomia das instituições europeias depende da submissão das instituições nacionais (essas, sim, democráticas) a um programa de “reformas estruturais” que ninguém sufragou. Não há democracia na Europa. Em bom rigor, não há sequer Estado de Direito.
2. Existe uma possibilidade plausível de construção de uma democracia transnacional a partir da União Europeia?
A resposta é outro rotundo não. Não porque a União Europeia não tenha mudado. Tem mudado para pior, e vai continuar a mudar, também para pior. Não admira, aliás, que o Rui Tavares não se alongue particularmente sobre o seu plano para a democratização da União Europeia. É que não há plano, não há protagonistas, não há contexto, não há mobilização e não há sequer como. Os tratados da União estão blindados pela regra da unanimidade, já para não falar dessa regra chamada Alemanha. Não vai haver democratização da União Europeia nenhuma. Há anos que a crescenteperda de soberania das democracias nacionais se faz com a promessa de democratização das instituições europeias. Em que se converteu essa promessa? No paleio da “ownership”, ou seja, na apropriação forçada pelos Estados-membros das reformas que Bruxelas impõe.
3. É possível proteger as democracias nacionais existentes enquanto aguardamos por essa democracia transnacional sonhada?
A resposta é um rotundo não e este “não” é provavelmente o mais importante. As instituições europeias em 2015 levaram a cabo um golpe de Estado na Grécia. Confrontadas com o resultado esmagador de um referendo que rejeitou as suas políticas, as instituições europeias arredaram esse momento democrático, recorrendo à chantagem da expulsão.
Esse ultimato coloca a toda a esquerda uma questão inevitável e inadiável: que posição ter perante esse cenário, que hoje sabemos ser possível, para não dizer provável? Uma esquerda que, como o Rui Tavares, divida o campo político entre “nacionalistas” e “cosmopolitas”, optaria por sacrificar os direitos dos seus cidadãos e a sua vontade democrática em nome da pertença à União Europeia, na esperança da sua transmutação futura? Só é possível responder “não” se se estiver, pelo menos, disponível e preparado para um cenário de ruptura com o Euro. E se a resposta for “sim”, então, meus amigos, olhem para a Grécia hoje.
É por estas razões que não partilho as ideias do Rui Tavares sobre Europa e Estado-nação. Mas, além disso, não tenho tanta pressa como ele em provocar uma fractura no campo político que está a reagir à austeridade. Faço política quotidianamente ao lado de gente que, tal como o Rui Tavares, não concebe a saída do Euro como uma possibilidade. E acho contraditório que esta linha na areia seja desenhada por quem tanto escreveu e falou sobre a unidade da esquerda. Basta observar que, se esta doutrina dos “aliados objectivos” tivesse presidido à actuação da esquerda portuguesa nos tempos mais recentes, Passos Coelho estaria hoje a governar o país.
quarta-feira, 25 de janeiro de 2017
Vento significa em latim a passagem do ar
Ler a entrevista de Vítor Bento hoje ao Público é um exercício oriental de contenção da irritação emocional que provoca.
O economista que elogiou desde sempre a adesão do escudo à moeda única, que deu largo apoio à intervenção externa da troika, que abraçou a agenda do Governo PSD/CDS que lhe esteve na base e que, mais tarde, veio desdizer-se chamando a atenção para o fosso que estava a ser criado entre os países do centro e da periferia, parece obliterar o que pensou antes e mesmo o que desdisse em relação ao que pensou.
Bento voltou ao discurso da contenção, à solução de voltar a cortar - não podemos apenas distribuir o que não temos - e que se tem de encontrar a dimensão exacta para o Estado numa circunstância de carências de recursos, sem pensar no que poderia ser a solução para crescer, como se estivéssemos condenados a uma estagnação de longo prazo.
Pequena nota do Facebook apanhada hoje: "13-horas-13: foi o tempo que a minha avó, com 94 anos, passou ontem à espera numa maca nas urgências de sta maria, sem nada decente para comer e com um lençol por cima. É preciso ser saudável, forte e resistente para estar doente, neste país."
Qual é a solução proposta? Mais integração política na UE. Bento "ainda" não é federalista, mas...
... e sem que retire ilações da fractura que aos poucos vai surgindo no terreno do euro e da União Europeia, num quadro de internacionalização da economia que poderá progredir para uma centralidade de cada país ou grupo de países, sem que haja necessidades económicas que justifiquem uma centralização económica e política.
E depois há a velha questão da colocação do Estado no centro das reformas. Mas não lhe parece que o programa foi ineficaz? Devia ter sido a pergunta...
Vítor Bento diz coisas vazias. Género: Antes tínhamos moeda, agora não temos. Antes era possível desvalorizar, agora não é. A sério? Depois, todos os países entraram em austeridade e cortaram na procura externa. Mas austeridade é ainda o que Bento defende na prática. A mesma austeridade que - Bento admite - criou "muita mágoa" e que por causa disso já não se encontram "um consenso para as reformas"...
Mágoa? Pobreza! Que se diga os nomes das coisas.
Consensos? Consensos para o retrocesso social e para o desemprego que se alivia apenas com a emigração jovem!
Brincamos aos remakes ou estamos já a pugnar por um bloco central que está na calha - e na agenda de Marcelo Rebelo de Sousa - mal Passos Coelho saia de presidente do PSD e que tem como meta - Marcelo dixit - as eleições autárquicas deste ano?
O economista que elogiou desde sempre a adesão do escudo à moeda única, que deu largo apoio à intervenção externa da troika, que abraçou a agenda do Governo PSD/CDS que lhe esteve na base e que, mais tarde, veio desdizer-se chamando a atenção para o fosso que estava a ser criado entre os países do centro e da periferia, parece obliterar o que pensou antes e mesmo o que desdisse em relação ao que pensou.
Bento voltou ao discurso da contenção, à solução de voltar a cortar - não podemos apenas distribuir o que não temos - e que se tem de encontrar a dimensão exacta para o Estado numa circunstância de carências de recursos, sem pensar no que poderia ser a solução para crescer, como se estivéssemos condenados a uma estagnação de longo prazo.
Pequena nota do Facebook apanhada hoje: "13-horas-13: foi o tempo que a minha avó, com 94 anos, passou ontem à espera numa maca nas urgências de sta maria, sem nada decente para comer e com um lençol por cima. É preciso ser saudável, forte e resistente para estar doente, neste país."
Qual é a solução proposta? Mais integração política na UE. Bento "ainda" não é federalista, mas...
... e sem que retire ilações da fractura que aos poucos vai surgindo no terreno do euro e da União Europeia, num quadro de internacionalização da economia que poderá progredir para uma centralidade de cada país ou grupo de países, sem que haja necessidades económicas que justifiquem uma centralização económica e política.
E depois há a velha questão da colocação do Estado no centro das reformas. Mas não lhe parece que o programa foi ineficaz? Devia ter sido a pergunta...
Vítor Bento diz coisas vazias. Género: Antes tínhamos moeda, agora não temos. Antes era possível desvalorizar, agora não é. A sério? Depois, todos os países entraram em austeridade e cortaram na procura externa. Mas austeridade é ainda o que Bento defende na prática. A mesma austeridade que - Bento admite - criou "muita mágoa" e que por causa disso já não se encontram "um consenso para as reformas"...
Mágoa? Pobreza! Que se diga os nomes das coisas.
Consensos? Consensos para o retrocesso social e para o desemprego que se alivia apenas com a emigração jovem!
Brincamos aos remakes ou estamos já a pugnar por um bloco central que está na calha - e na agenda de Marcelo Rebelo de Sousa - mal Passos Coelho saia de presidente do PSD e que tem como meta - Marcelo dixit - as eleições autárquicas deste ano?
terça-feira, 24 de janeiro de 2017
Almas perdidas
Há um dito de Mário Soares, cujo contexto já não recordo, mas acho que foi durante a adesão à CEE ou na entrada do FMI. Teria ele dito algo assim: “Os estudos técnicos apenas justificam as opções políticas”.
Este desprezo pelo pensamento supostamente neutro e frio da “técnica” pode ser próprio de quem tenha preguiça de ler dossiers. E pode ser perigoso porque há opções políticas que nos conduzem ao precipício.
Mas tem um lado interessante: afirma que o que importa é a visão e os horizontes da actuação política. E porquê? Porque o debate técnico nunca existirá como tal – neutro e frio - mas sempre com uma opção política escondida e não declarada. Porque nunca os estudos técnicos serão testados como tal: serão sempre afirmações políticas camufladas de tecnicidade, mascaradas num modelo repleto de pressupostos políticos e falsos sensos comuns transformados, incrustado numa “caixa negra”, fechada aos olhos de todos.
O enviezamento do discurso técnico vem a propósito de muita coisa. E de como, olhando bem, tudo parece ter sempre por detrás apenas... dinheiro. Ou seja, em última instância, como justificar “tecnicamente” que se continue a produzir a transferência de rendimento do Trabalho para os detentores das empresas.
1) Poderia vir a propósito da polémica em torno da TSU. Nunca a TSU foi um bom incentivo à criação de emprego: é apenas dinheiro dado às empresas. E até às grandes empresas que não necessitam dele.
Este desprezo pelo pensamento supostamente neutro e frio da “técnica” pode ser próprio de quem tenha preguiça de ler dossiers. E pode ser perigoso porque há opções políticas que nos conduzem ao precipício.
Mas tem um lado interessante: afirma que o que importa é a visão e os horizontes da actuação política. E porquê? Porque o debate técnico nunca existirá como tal – neutro e frio - mas sempre com uma opção política escondida e não declarada. Porque nunca os estudos técnicos serão testados como tal: serão sempre afirmações políticas camufladas de tecnicidade, mascaradas num modelo repleto de pressupostos políticos e falsos sensos comuns transformados, incrustado numa “caixa negra”, fechada aos olhos de todos.
O enviezamento do discurso técnico vem a propósito de muita coisa. E de como, olhando bem, tudo parece ter sempre por detrás apenas... dinheiro. Ou seja, em última instância, como justificar “tecnicamente” que se continue a produzir a transferência de rendimento do Trabalho para os detentores das empresas.
1) Poderia vir a propósito da polémica em torno da TSU. Nunca a TSU foi um bom incentivo à criação de emprego: é apenas dinheiro dado às empresas. E até às grandes empresas que não necessitam dele.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2017
Na direcção certa
“Depois do que aconteceu na Grécia, qualquer país europeu que se leve a
sério deve estar preparado para o fim do euro ou para sair do euro.” Catarina Martins, em entrevista ao Público, revela estar a aprender com a história recente, que
também ilumina a história mais distante da integração, liderando o seu partido na direcção certa. O plano B toma assim progressivamente o lugar do A, ou seja, da rematada ilusão de que é possível democratizar a principal expressão institucional do imperialismo no continente. Infelizmente, uma ilusão que ainda é alimentada aqui e ali. Uma ilusão que tem de ser combatida. É que todos são poucos para ajudar a construir uma vontade geral nacional e popular no espaço onde ainda pode estar a democracia.
domingo, 22 de janeiro de 2017
sábado, 21 de janeiro de 2017
Lixo económico
Dado que o estudo da OCDE sobre o trabalho em Portugal pertence ao caixote do lixo da história das ideias económicas responsáveis pela crise, sinceramente não percebo o que levou o actual governo a dar dignidade à sua apresentação em Portugal, ainda para mais tratando-se de uma encomenda política do anterior governo, certamente com mão dos seus membros, alguns dos quais estão ligados à OCDE. Será que vale a pena dar espaço aos que apostam em destruir o que resta da economia política social-democrata? É verdade que podem ter conseguido enquadrar a coisa e ter tido ganhos de causa na apoiada regressão da TSU junto de alguns sectores, mas mesmo assim. Infelizmente, em muitas áreas decisivas para esta economia política, o melhor que se pode dizer é que “o governo não vai além, mas não fica aquém da troika”.
Na década de noventa, a OCDE afiançava com toda a convicção ideológica que a redução de direitos laborais e o aumento das respectivas obrigações, por um lado, e o aumento dos direitos patronais e a redução das respectivas obrigações, por outro, criariam mais emprego. Valia tudo para transferir rendimentos de baixo para cima. Os resultados estão à vista. A própria OCDE foi obrigada, em geral e já no novo milénio, a reconhecer que o impacto no emprego da legislação que ainda protege muitos trabalhadores seria negligenciável, começando até a falar do elefante na sala: os efeitos perversos da desigualdade. Pouco importa, tal como o FMI, o que conta são as prescrições em concreto para os países em concreto, sobretudo nas desiguais periferias, confirmando que estas organizações internacionais são a expressão institucional da sociopatia. Pior talvez só mesmo a Comissão Europeia e o BCE, até porque têm poder do mais duro.
Entretanto e nem de propósito, este mês o Le Monde diplomatique – edição portuguesa tem um artigo, da autoria de Diogo Martins, onde este economista divulga literatura sobre o assunto e a sua própria investigação empírica para Portugal, indicando como a criação e destruição de emprego dependem, a nível internacional e em Portugal, fundamentalmente do investimento ou da sua falta, a componente da procura agregada que determina o essencial nesta área e não de variáveis institucionais em que a OCDE insiste para atacar o mundo do trabalho. Estas determinam a maior ou menor desigualdade na repartição dos custos e benefícios da actividade económica. A realidade tem um enviesamento entre o marxista e o keynesiano.
Como as políticas económicas decentes estão proibidas num país sem soberania, não admira que o investimento tenha caído em Portugal para metade, em percentagem do PIB, desde o início do novo milénio. A taxa de desemprego está firmemente nos dois dígitos nos últimos anos, valor nunca registado antes do Euro, quando as relações laborais até eram enquadradas por legislação mais “rígida” (um termo que é toda uma manipulação ideológica, de resto). Lembrem-se que Portugal foi dos países que mais reduziu, nestes anos do Euro, a protecção aos trabalhadores em nome da desvalorização interna, ou seja, da transferência de recursos de baixo para cima. Dá que pensar, não dá? Enfim, a OCDE bem que pode ser também enviada para o caixote do lixo da história.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2017
Da ascensão relativa da extrema-direita, numa Europa dividida e sombria
Em artigo recente no Financial Times, que vale muito a pena ler e a que cheguei através do Ivan Nunes, Tobias Buck pergunta: por que é «uma década após o início da crise, a Espanha ainda não assistiu ao surgimento de um partido populista de extrema-direita como a Frente Nacional em França, a um movimento anti-imigração como a Alternativa para a Alemanha, ou a um movimento anti-União Europeia como o UKIP, no Reino Unido»?
Focando-se na recente história política do país e o seu perfil de desenvolvimento relativamente tardio, Buck resiste às leituras simplistas e encontra numa teia mais complexa e diversa de fatores a razão pela qual não surgiu até agora, em Espanha, nem um partido de extrema-direita nem movimentos relevantes contra a Europa e a imigração. Entre esses fatores, assinala a memória (e a vivência) ainda fresca da ditadura e do fascismo, a adesão à UE (e o ciclo de crescimento que a mesma impulsionou), ou a especificidade das recentes vagas de imigração (mais voláteis e que não disputam, como sucede noutros países, o recuo dos benefícios de um Estado Social menos desenvolvido e menos «incrustado»). Isto é, traços que coincidiriam em ampla medida com uma análise que tomasse como objeto o caso português.
Ao desenvolver o argumento, Tobias Buck faz referência aos interessantes resultados do inquérito realizado em setembro de 2016 pela YouGov/Demo e que apontam para «uma Europa mais sombria e dividida», na «era do medo» que estamos a atravessar. Refletindo os diferentes matizes, à escala nacional, em termos de expressão dos movimentos de extrema-direita, xenófobos e eurocríticos (por boas e más razões, naturalmente), o estudo assinala a existência de distintas vontades e expetativas quanto ao processo de integração europeia.
Como seria de esperar, o Reino Unido lidera a rejeição da UE, com 46% a defender a saída e 23% a optar por ficar, mas com uma redução dos seus poderes. Em França, sobressai a opção por permanecer, mas com um reforço dos poderes dos Estados membros, defendido por 1 em cada 3 inquiridos (e situando-se em 22% o peso relativo dos que defendem a saída). Na Alemanha, ficar na UE constitui a resposta dominante, mas com uma divisão equitativa entre os que querem que a Europa tenha menos poderes e os que desejam que os seus poderes sejam reforçados. No caso de Espanha, ficar na UE constitui a opção da maioria dos inquiridos (54%), mas com um peso maior dos que defendem a redução dos seus poderes (31%) face aos que defendem o reforço do poder da União (23% do total).
O cálculo da média simples destes resultados sugere algumas conclusões adicionais: manter o atual estado de coisas não parece ser uma opção a considerar (apenas 10% dos inquiridos a escolhem), à semelhança da solução federalista, com a constituição de um governo único europeu (a que aderem apenas 11% dos inquiridos). E se a vontade de permanecer na UE recolhe a opinião favorável de 43% dos inquiridos, entre eles apenas 16% defende que essa permanência se traduza num reforço dos poderes europeus. Isto quando quase 1 em cada 4 (24%) defende, no longo prazo, a saída da União.
Era bom que este inquérito fosse realizado regularmente e se estendesse aos 28 Estados membros da UE. De facto, custa bastante a perceber que o Eurobarómetro não inclua esta questão concreta nas sondagens e inquéritos de opinião que realiza regularmente.
Focando-se na recente história política do país e o seu perfil de desenvolvimento relativamente tardio, Buck resiste às leituras simplistas e encontra numa teia mais complexa e diversa de fatores a razão pela qual não surgiu até agora, em Espanha, nem um partido de extrema-direita nem movimentos relevantes contra a Europa e a imigração. Entre esses fatores, assinala a memória (e a vivência) ainda fresca da ditadura e do fascismo, a adesão à UE (e o ciclo de crescimento que a mesma impulsionou), ou a especificidade das recentes vagas de imigração (mais voláteis e que não disputam, como sucede noutros países, o recuo dos benefícios de um Estado Social menos desenvolvido e menos «incrustado»). Isto é, traços que coincidiriam em ampla medida com uma análise que tomasse como objeto o caso português.
Ao desenvolver o argumento, Tobias Buck faz referência aos interessantes resultados do inquérito realizado em setembro de 2016 pela YouGov/Demo e que apontam para «uma Europa mais sombria e dividida», na «era do medo» que estamos a atravessar. Refletindo os diferentes matizes, à escala nacional, em termos de expressão dos movimentos de extrema-direita, xenófobos e eurocríticos (por boas e más razões, naturalmente), o estudo assinala a existência de distintas vontades e expetativas quanto ao processo de integração europeia.
Como seria de esperar, o Reino Unido lidera a rejeição da UE, com 46% a defender a saída e 23% a optar por ficar, mas com uma redução dos seus poderes. Em França, sobressai a opção por permanecer, mas com um reforço dos poderes dos Estados membros, defendido por 1 em cada 3 inquiridos (e situando-se em 22% o peso relativo dos que defendem a saída). Na Alemanha, ficar na UE constitui a resposta dominante, mas com uma divisão equitativa entre os que querem que a Europa tenha menos poderes e os que desejam que os seus poderes sejam reforçados. No caso de Espanha, ficar na UE constitui a opção da maioria dos inquiridos (54%), mas com um peso maior dos que defendem a redução dos seus poderes (31%) face aos que defendem o reforço do poder da União (23% do total).
O cálculo da média simples destes resultados sugere algumas conclusões adicionais: manter o atual estado de coisas não parece ser uma opção a considerar (apenas 10% dos inquiridos a escolhem), à semelhança da solução federalista, com a constituição de um governo único europeu (a que aderem apenas 11% dos inquiridos). E se a vontade de permanecer na UE recolhe a opinião favorável de 43% dos inquiridos, entre eles apenas 16% defende que essa permanência se traduza num reforço dos poderes europeus. Isto quando quase 1 em cada 4 (24%) defende, no longo prazo, a saída da União.
Era bom que este inquérito fosse realizado regularmente e se estendesse aos 28 Estados membros da UE. De facto, custa bastante a perceber que o Eurobarómetro não inclua esta questão concreta nas sondagens e inquéritos de opinião que realiza regularmente.
Resgatar a soberania para alcançar o pleno emprego
Só quando formos capazes de constituir uma ampla frente política que proponha aos portugueses a alternativa "Soberania e Democracia com Pleno Emprego", então seremos capazes de dissipar o medo que ainda tolhe muitos e começar a construir a esperança num futuro melhor.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2017
"Tenho horror a pobre!"
Na audição a Carlos Santos Ferreira da comissão parlamentar de inquérito à recapitalização da CGD e à gestão do banco, às páginas tantas diz o ex-presidente da CGD:
- Hoje em dia as pessoas têm Multicare, ou Médis ou de outras... - numa alusão a um seguro de saúde.
- Quem tem - comentou algum deputado, talvez João Galamba.
E Carlos Santos Ferreira aquiesceu:
- Quem tem...
Na verdade, nem todos têm. Segundo os dados mais recentes da Associação Portuguesa de Seguradores (companhias de seguros) de Setembro de 2016, apenas 856 mil pessoas estavam cobertas individualmente com seguros de saúde. A somar a esses, havia ainda menos de 50 mil apólices de grupo com um total de 1,4 milhões de pessoas cobertas. Ao todo, havia cerca de 2,2 milhões de pessoas cobertas. Menos de 25% da população que pagaria às seguradoras algo como 470 milhões de euros. E se considerarmos que parte desses seguros de grupo serão pagos por entidades patronais, então a parte dos portugueses que subscreve individualmente é bem menor - menos de 10%. O prémio médio por pessoa segura é de 276 euros anuais, o que dá uma ideia de quem os poderá pagar.
Carlos Santos Ferreira está longe de ser a encarnação do personagem de "Sai de baixo" que Miguel Falabella interpretou: o rico brasileiro Carlos Augusto "Caco" Antibes que, a torto e a direito, manifestava o seu ódio social - "Tenho horror a pobre!"
Mas a forma liberta com que se referiu aos seguros de saúde, e a uma subscrição generalizada que agora "as pessoas" farão, indicia a bolha em que vive certo tipo de "pessoas". E como essa bolha pode prejudicar a sua visão geral da realidade social ou de um projecto para a saída do país, o que eu poderia propor era uma iniciativa pedagógica em que essa elite social-político-financeira pudesse cair de repente, de pára-quedas, no mundo "das pessoas", da maioria das "pessoas", tal como aconteceu a a Michael Douglas no filme "O Jogo" de David Fincher. E que essa aula pedagógica pudesse durar o tempo suficiente, sem ter algum relógio de ouro que a safasse rapidamente do suave inferno em que "as pessoas" vivem hoje (1h48).
- Hoje em dia as pessoas têm Multicare, ou Médis ou de outras... - numa alusão a um seguro de saúde.
- Quem tem - comentou algum deputado, talvez João Galamba.
E Carlos Santos Ferreira aquiesceu:
- Quem tem...
Na verdade, nem todos têm. Segundo os dados mais recentes da Associação Portuguesa de Seguradores (companhias de seguros) de Setembro de 2016, apenas 856 mil pessoas estavam cobertas individualmente com seguros de saúde. A somar a esses, havia ainda menos de 50 mil apólices de grupo com um total de 1,4 milhões de pessoas cobertas. Ao todo, havia cerca de 2,2 milhões de pessoas cobertas. Menos de 25% da população que pagaria às seguradoras algo como 470 milhões de euros. E se considerarmos que parte desses seguros de grupo serão pagos por entidades patronais, então a parte dos portugueses que subscreve individualmente é bem menor - menos de 10%. O prémio médio por pessoa segura é de 276 euros anuais, o que dá uma ideia de quem os poderá pagar.
Carlos Santos Ferreira está longe de ser a encarnação do personagem de "Sai de baixo" que Miguel Falabella interpretou: o rico brasileiro Carlos Augusto "Caco" Antibes que, a torto e a direito, manifestava o seu ódio social - "Tenho horror a pobre!"
Mas a forma liberta com que se referiu aos seguros de saúde, e a uma subscrição generalizada que agora "as pessoas" farão, indicia a bolha em que vive certo tipo de "pessoas". E como essa bolha pode prejudicar a sua visão geral da realidade social ou de um projecto para a saída do país, o que eu poderia propor era uma iniciativa pedagógica em que essa elite social-político-financeira pudesse cair de repente, de pára-quedas, no mundo "das pessoas", da maioria das "pessoas", tal como aconteceu a a Michael Douglas no filme "O Jogo" de David Fincher. E que essa aula pedagógica pudesse durar o tempo suficiente, sem ter algum relógio de ouro que a safasse rapidamente do suave inferno em que "as pessoas" vivem hoje (1h48).
Os perigos do europeísmo
Como tenho aqui insistido, o europeísmo é hoje fundamentalmente uma versão do elitismo liberal, cujos sinais de decadência são visíveis nos truques retóricos a que é obrigado a recorrer: o de que existiria uma Europa social é um dos meus preferidos. A sua maior realização é, na realidade, a destruição da social-democracia europeia. Por exemplo, a exigência de acesso ao mercado único por parte do trabalhismo britânico seria risível se não fosse um trágico sinal de naufrágio ideológico de um partido que noutros tempos olhava justamente para o mercado comum, ainda antes do Acto Único, como um inimigo das reformas socialistas, entendidas como processo de controlo político democrático da economia.
Numa análise ao discurso de Theresa May, Jacques Sapir recorda que o mercado único é um rolo compressor da diversidade política, a expressão institucional do pensamento único, bloqueando a escolha democrática sobre a economia, sendo tristemente parodoxal que sejam os conservadores que rompam com isto, em nome obviamente dos valores e dos interesses que são os seus:
“Ao materializar uma estratégia de ruptura e ao mostrar que sabe o que faz, Theresa May torna clara a fraqueza e a impotência da UE. Esta última é não só nefasta e perigosa para os países-membros, com excepção da Alemanha, como é incapaz de impedir que um país saia e que saia para com isso beneficiar.”
As direitas sabem o que fazem. Os europeístas de esquerda não. Entretanto, um dos truques ideológicos mais recentes consiste em gritar Le Pen e, desde esta semana, Trump aos que pela esquerda criticam a UE pelo que é realmente: um veículo da dominação do capital alemão. Triste. A família Le Pen prospera graças a este arranjo, como mesmo alguns conservadores notaram há já várias décadas atrás. Se esta chantagem fosse aceite, a esquerda perderia a sua razão de existir, já que toda a iniciativa política ficaria nas mãos das várias direitas, o que de resto já é uma realidade em muitos países.
O perigo cada vez maior do europeísmo é arrastar sectores das esquerdas para a ideia de que este arranjo disfuncional pode ser aprofundado com base no que não pode deixar de ser o reforço do militarismo do directório de potências centrais à boleia da russofobia, por um lado, e do putativo desinvestimento político e militar norte-americano nas suas criações institucionais europeias da Guerra Fria, por outro, acicatando rivalidades inter-imperialistas. Uma ideia tão perigosa quanto destinada a fracassar fragorosamente num arranjo neoliberal que só se sustém baseado na manipulação do passado e no medo do futuro.
Numa análise ao discurso de Theresa May, Jacques Sapir recorda que o mercado único é um rolo compressor da diversidade política, a expressão institucional do pensamento único, bloqueando a escolha democrática sobre a economia, sendo tristemente parodoxal que sejam os conservadores que rompam com isto, em nome obviamente dos valores e dos interesses que são os seus:
“Ao materializar uma estratégia de ruptura e ao mostrar que sabe o que faz, Theresa May torna clara a fraqueza e a impotência da UE. Esta última é não só nefasta e perigosa para os países-membros, com excepção da Alemanha, como é incapaz de impedir que um país saia e que saia para com isso beneficiar.”
As direitas sabem o que fazem. Os europeístas de esquerda não. Entretanto, um dos truques ideológicos mais recentes consiste em gritar Le Pen e, desde esta semana, Trump aos que pela esquerda criticam a UE pelo que é realmente: um veículo da dominação do capital alemão. Triste. A família Le Pen prospera graças a este arranjo, como mesmo alguns conservadores notaram há já várias décadas atrás. Se esta chantagem fosse aceite, a esquerda perderia a sua razão de existir, já que toda a iniciativa política ficaria nas mãos das várias direitas, o que de resto já é uma realidade em muitos países.
O perigo cada vez maior do europeísmo é arrastar sectores das esquerdas para a ideia de que este arranjo disfuncional pode ser aprofundado com base no que não pode deixar de ser o reforço do militarismo do directório de potências centrais à boleia da russofobia, por um lado, e do putativo desinvestimento político e militar norte-americano nas suas criações institucionais europeias da Guerra Fria, por outro, acicatando rivalidades inter-imperialistas. Uma ideia tão perigosa quanto destinada a fracassar fragorosamente num arranjo neoliberal que só se sustém baseado na manipulação do passado e no medo do futuro.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
A culpa dos juros é toda da geringonça. Mas só às vezes.
Para sabermos se as taxas de juro da dívida pública portuguesa estão a subir ou descer não precisamos de seguir as informações financeiras - basta consultar as redes sociais. Se os juros estiverem a subir, não faltarão alarmes sobre os impactos devastadores que o governo apoiado pelas esquerdas está a ter no país. Se estiverem a descer, os mesmos observadores atentos e preocupados tiram férias das redes sociais.
O Fabian Figueiredo procurou ir além do habitual maniqueísmo, escrevendo um texto no esquerda.net intitulado "Porque subiram os juros da dívida pública portuguesa?". A pergunta foi colocada a seis economistas (de esquerda, claro está), quatro deles autores deste blog. Ficam abaixo as respostas que dei às quatro questões colocadas.
1. Porque sobem os juros da dívida pública portuguesa?
A evolução dos juros de títulos negociados nos mercados financeiros é sempre determinada por um conjunto de factores objectivos e subjectivos, uns deles de carácter geral outros de natureza idiossincrática. Logo, raramente conseguimos atribuir de forma inequívoca a variação dos juros a este ou aquele factor. A subida dos juros da dívida portuguesa desde final de 2015 parece estar associada a quatro factores principais: i) o crescente reconhecimento da fragilidade do sistema bancário português, ii) a entrada em vigor das regras da União Bancária da UE (que criam riscos acrescidos para os investidores privados), iii) as dúvidas sobre o empenho das autoridades da UE, em particular do BCE, para evitar uma nova escalada de juros em Portugal e, mais recentemente, iv) as perspectivas de um aumento das taxas de juro nos EUA (que afasta os investidores privados dos mercados de dívida europeus).
2. A que se deve a disparidade dos valores dos juros em relação a Espanha e/ou Irlanda?
Há três factores principais: i) as economia irlandesa e espanhola são estruturalmente menos frágeis do que a portuguesa, ii) os "programas de ajustamento" a que foram sujeitos tiveram como preocupação central o saneamento do sistema bancário nacional (o que não se verificou em Portugal) e iii) sempre que há instabilidade nos mercados financeiros, os elos mais fracos são sempre os primeiros a sentir o efeito de movimentos de cariz especulativo.
3. A subida dos juros deve-se ao facto de em Portugal o governo ser suportado pelo Bloco de Esquerda e PCP?
A base de apoio parlamentar do governo pode ter influenciado a evolução dos juros numa fase inicial por duas vias: i) a hostilidade com que foi recebida pela Comissão Europeia e ii) a dificuldade que alguns analistas externos tiveram em perceber a natureza e o alcance dos acordos estabelecidos. Em qualquer caso, não creio que este factor seja essencial para compreender a evolução dos juros sobre a dívida pública portuguesa no último ano e meio.
4. A nacionalização do Novo Banco pode influenciar os juros da dívida pública?
Tendo em conta a relevância do Novo Banco no sistema bancário português e os potenciais impactos da solução encontrada nas contas públicas, este processo pode sempre influenciar os juros da dívida. Isto é verdade qualquer que seja a solução encontrada - venda, resolução ou nacionalização. Os impactos podem ser minimizados se a solução encontrada for devidamente justificada e comunicada.
O Fabian Figueiredo procurou ir além do habitual maniqueísmo, escrevendo um texto no esquerda.net intitulado "Porque subiram os juros da dívida pública portuguesa?". A pergunta foi colocada a seis economistas (de esquerda, claro está), quatro deles autores deste blog. Ficam abaixo as respostas que dei às quatro questões colocadas.
1. Porque sobem os juros da dívida pública portuguesa?
A evolução dos juros de títulos negociados nos mercados financeiros é sempre determinada por um conjunto de factores objectivos e subjectivos, uns deles de carácter geral outros de natureza idiossincrática. Logo, raramente conseguimos atribuir de forma inequívoca a variação dos juros a este ou aquele factor. A subida dos juros da dívida portuguesa desde final de 2015 parece estar associada a quatro factores principais: i) o crescente reconhecimento da fragilidade do sistema bancário português, ii) a entrada em vigor das regras da União Bancária da UE (que criam riscos acrescidos para os investidores privados), iii) as dúvidas sobre o empenho das autoridades da UE, em particular do BCE, para evitar uma nova escalada de juros em Portugal e, mais recentemente, iv) as perspectivas de um aumento das taxas de juro nos EUA (que afasta os investidores privados dos mercados de dívida europeus).
2. A que se deve a disparidade dos valores dos juros em relação a Espanha e/ou Irlanda?
Há três factores principais: i) as economia irlandesa e espanhola são estruturalmente menos frágeis do que a portuguesa, ii) os "programas de ajustamento" a que foram sujeitos tiveram como preocupação central o saneamento do sistema bancário nacional (o que não se verificou em Portugal) e iii) sempre que há instabilidade nos mercados financeiros, os elos mais fracos são sempre os primeiros a sentir o efeito de movimentos de cariz especulativo.
3. A subida dos juros deve-se ao facto de em Portugal o governo ser suportado pelo Bloco de Esquerda e PCP?
A base de apoio parlamentar do governo pode ter influenciado a evolução dos juros numa fase inicial por duas vias: i) a hostilidade com que foi recebida pela Comissão Europeia e ii) a dificuldade que alguns analistas externos tiveram em perceber a natureza e o alcance dos acordos estabelecidos. Em qualquer caso, não creio que este factor seja essencial para compreender a evolução dos juros sobre a dívida pública portuguesa no último ano e meio.
4. A nacionalização do Novo Banco pode influenciar os juros da dívida pública?
Tendo em conta a relevância do Novo Banco no sistema bancário português e os potenciais impactos da solução encontrada nas contas públicas, este processo pode sempre influenciar os juros da dívida. Isto é verdade qualquer que seja a solução encontrada - venda, resolução ou nacionalização. Os impactos podem ser minimizados se a solução encontrada for devidamente justificada e comunicada.
A concertação torpedeada pelo CDS
Ouvi esta manhã a dirigente do CDS, nas apressadas entrevistas de dez minutos na SIC notícias, dizer que o seu partido defende a Concertação Social.
A nova dirigente centrista já nos habituou que tem palavra fácil e uma capacidade enorme de se esquecer de passado recente em que ela foi governante. E um desses casos é, precisamente, o do salário mínimo nacional (SMN).
Ao ler as actas da comissão permanente da Concertação Social, verifica-se que o ministro do CDS Pedro Mota Soares usou os parceiros sociais a bel-prazer da agenda política do governo, colocando uns temas a discussão e esquecendo outros. O SMN foi olimpicamente omitido e obliterado da concertação durante anos, ao arrepio da vontade dos parceiros! E quando o foi, porque lhe convinha, fê-lo à margem da concertação social, falando com quem quis. Já há quase um mês divulguei estes dados num outro post (aqui).
Desta vez, fica só um excerto. De quando o Governo negociou o aumento do SMN para 2015 sem convocar a Comissão Permanente da Concertação Social! E depois ai Jesus que há quem nunca assine acordos...
A nova dirigente centrista já nos habituou que tem palavra fácil e uma capacidade enorme de se esquecer de passado recente em que ela foi governante. E um desses casos é, precisamente, o do salário mínimo nacional (SMN).
Ao ler as actas da comissão permanente da Concertação Social, verifica-se que o ministro do CDS Pedro Mota Soares usou os parceiros sociais a bel-prazer da agenda política do governo, colocando uns temas a discussão e esquecendo outros. O SMN foi olimpicamente omitido e obliterado da concertação durante anos, ao arrepio da vontade dos parceiros! E quando o foi, porque lhe convinha, fê-lo à margem da concertação social, falando com quem quis. Já há quase um mês divulguei estes dados num outro post (aqui).
Desta vez, fica só um excerto. De quando o Governo negociou o aumento do SMN para 2015 sem convocar a Comissão Permanente da Concertação Social! E depois ai Jesus que há quem nunca assine acordos...
terça-feira, 17 de janeiro de 2017
4º Congresso dos jornalistas: a fera amansada
Não me apetecia escrever sobre isto. Mas acho que deve ficar descrito.
De 6ª feira a domingo, e apesar da falta de tempo para os congressistas falarem (leia-se aqui), foi traçado um retrato pesado do que se passa nas redacções deste país.
Redacções depauperadas, despidas de pessoal mais velho, afastado por diversas razões; ritmos insanos de trabalho que mal dá tempo para pensar; uma multiplicação de plataformas para que se deve trabalhar, a um ritmo maluco, que cada vez mais transforma as redacções em linhas de montagem; uma agenda omnipresente que homogeniza a informação; um esvaziamento de conteúdo crítico das notícias produzidas, em detrimento de um trabalho jornalístico profundo, com investigação mais lenta que ponha em causa os verdadeiros problemas e que ainda por cima – como foi afirmado por directores de informação – até tem mercado; a fragilização contratual das redacções e a redução brutal dos salários, desadequada à qualificação crescente dos profissionais; precariedade que gera medo, pela perda do emprego, que pode ser substituído em elevada rotatividade por mão-de-obra jovem, mobilizada para a “produção de conteúdos”; e a cada vez maior interferência nesses conteúdos por parte das administrações, das direcções de informação, num progressivo condicionamento da informação; tudo isso faz perigar o trabalho jornalístico.
No Congresso participaram em média uns 300/400 jornalistas e bastantes dezenas de estudantes de comunicação, numa classe de 6 mil jornalistas.
E de cada vez que havia um depoimento, a descrever o que se vivia, as palmas elevavam-se numa ovação.
Os registos emocionais conquistavam a plateia. Parecia uma catarse, longamente acumulada e necessária de ser feita. Uma catarse que importava ser afunilada pelo Congresso, para um ponto, de modo a que se forjasse as condições de inversão deste terreno inclinado.
Mas os jornalistas não são dados a posições de força. Nem em defesa do respeito próprio. Os jornalistas têm um receio endémico que os leva a fazer coisas e a não fazer outras, tudo na direcção de uma letargia individual, de se deixar espezinhar em nome de qualquer coisa egoísta, sem orgulho de classe, sem nobreza de alma. Em geral, não se dão ao respeito.
E o que se passou no último dia de congresso foi um exemplo flagrante.
De 6ª feira a domingo, e apesar da falta de tempo para os congressistas falarem (leia-se aqui), foi traçado um retrato pesado do que se passa nas redacções deste país.
Redacções depauperadas, despidas de pessoal mais velho, afastado por diversas razões; ritmos insanos de trabalho que mal dá tempo para pensar; uma multiplicação de plataformas para que se deve trabalhar, a um ritmo maluco, que cada vez mais transforma as redacções em linhas de montagem; uma agenda omnipresente que homogeniza a informação; um esvaziamento de conteúdo crítico das notícias produzidas, em detrimento de um trabalho jornalístico profundo, com investigação mais lenta que ponha em causa os verdadeiros problemas e que ainda por cima – como foi afirmado por directores de informação – até tem mercado; a fragilização contratual das redacções e a redução brutal dos salários, desadequada à qualificação crescente dos profissionais; precariedade que gera medo, pela perda do emprego, que pode ser substituído em elevada rotatividade por mão-de-obra jovem, mobilizada para a “produção de conteúdos”; e a cada vez maior interferência nesses conteúdos por parte das administrações, das direcções de informação, num progressivo condicionamento da informação; tudo isso faz perigar o trabalho jornalístico.
No Congresso participaram em média uns 300/400 jornalistas e bastantes dezenas de estudantes de comunicação, numa classe de 6 mil jornalistas.
E de cada vez que havia um depoimento, a descrever o que se vivia, as palmas elevavam-se numa ovação.
Os registos emocionais conquistavam a plateia. Parecia uma catarse, longamente acumulada e necessária de ser feita. Uma catarse que importava ser afunilada pelo Congresso, para um ponto, de modo a que se forjasse as condições de inversão deste terreno inclinado.
Mas os jornalistas não são dados a posições de força. Nem em defesa do respeito próprio. Os jornalistas têm um receio endémico que os leva a fazer coisas e a não fazer outras, tudo na direcção de uma letargia individual, de se deixar espezinhar em nome de qualquer coisa egoísta, sem orgulho de classe, sem nobreza de alma. Em geral, não se dão ao respeito.
E o que se passou no último dia de congresso foi um exemplo flagrante.
segunda-feira, 16 de janeiro de 2017
Para não sermos marionetas
Cada eleição, ou quase, é apreciada através do prisma da Rússia. Quer se trate de Trump nos Estados Unidos, de Jeremy Corbyn no Reino Unido, ou de candidatos tão diferentes como Jean-Luc Mélenchon, François Fillon ou Marine Le Pen em França, basta duvidar das medidas tomadas contra a Rússia, ou das conspirações atribuídas a Moscovo pela Central Intelligence Agency (CIA) – uma instituição que todos sabem ser infalível e irrepreensível –, para se ser suspeito de servir os desígnios do Kremlin. Num clima como este, mal se ousa imaginar a torrente de indignação que teriam suscitado a espionagem pela Rússia, em vez dos Estados Unidos, do telefone de Angela Merkel, ou a entrega pela Google a Moscovo, em vez da Agência Nacional de Segurança Americana (NSA), de milhares de milhões de dados privados recolhidos na Internet (...) Vladimir Putin não ignora que Washington pode inflectir a política de um outro Estado. Na Primavera de 1996, um presidente russo doente e alcoólico, artesão (corrupto) do caos social no seu país, de facto só sobreviveu a uma impopularidade descomunal graças ao apoio declarado, político e financeiro, das capitais ocidentais. E a um providencial enchimento das urnas. Boris Ieltsin, o menino bonito dos democratas de Washington, Berlim e Paris (apesar de ter feito disparos de canhão contra o Parlamento russo, provocando a morte de centenas de pessoas), foi portanto reeleito. A 31 de Dezembro de 1999, Ieltsin decidiu transmitir todos os seus poderes ao seu fiel primeiro-ministro, o delicioso Vladimir Putin…
Excerto do oportuno editorial de Serge Halimi num número de janeiro, que aqui divulgo com algum atraso, com muito para ler sobre política internacional, mas também sobre economia política nas várias escalas: da crise do jornalismo à estagnação dita secular, passando pela desmontagem do diagnóstico que atribui o desemprego ao excesso de direitos laborais (é o investimento ou a falta dele, obra da austeridade permanente, que determina o essencial nesta área, indica-nos Diogo Martins num artigo inserido num dossiê sobre a corrosão do trabalho).
domingo, 15 de janeiro de 2017
Inconsistências
Critica-se, e bem, a inconsistência da posição do PSD face à descida da TSU paga pelos patrões. Acontece que em política a avaliação das consequências tem primazia em relação à avaliação das motivações. A putativa mudança da posição do PSD teria consequências positivas, permitindo travar a redução da TSU, acordada entre o governo e os representantes dos patrões e lembrando ao governo que a maioria na AR depende dos acordos com as forças de esquerda. Estes acordos tinham precisamente permitido travar o uso da TSU. Na falta de instrumentos decentes de política, esta arriscava-se a servir para o que a imaginação de alguns economistas de mercado quisesse. Quem não tem visões de mercado nesta área só pode alinhar com o que João Ramos de Almeida e Maria da Paz Campos Lima escreveram esta semana no Público sobre a necessidade de um maior equilíbrio nas relações laborais.
Entretanto, alguns defensores da descida da TSU têm convocado as instituições particulares ditas de solidariedade, como parte do argumento, de resto contrariado pelos dados disponíveis sobre a evolução do emprego, segundo o qual aumentos razoáveis do salário mínimo são um perigo para a economia, neste caso para o emprego na tão incensada economia dita social. Vale mesmo tudo. É preciso dizer que tais instituições são sobretudo uma quinta coluna na guerra contra o Estado social, na linha de um mecanismo conhecido, o que separa a provisão, privada, do financiamento, eventualmente público. Pior só mesmo as parcerias público-privadas na saúde ou a ADSE. A discussão sobre o salário mínimo serve para ilustrar outra dimensão desta quinta coluna: as relações laborais assentes na compressão salarial e na precariedade são parte do processo. Isto está mesmo tudo ligado. Não se preocupem, já que com a ajuda da UE o branqueamento pode continuar: agora chama-se investimento social à desorganização deliberada e subsidiada da provisão pública.
Enfim, seja como for, estou convencido que a autonomia política face aos interesses de classe é mesmo muito relativa. Assim, pode ser que o PSD ainda acabe por dar uma ajuda na subsidiação dos patrões medíocres.
Entretanto, alguns defensores da descida da TSU têm convocado as instituições particulares ditas de solidariedade, como parte do argumento, de resto contrariado pelos dados disponíveis sobre a evolução do emprego, segundo o qual aumentos razoáveis do salário mínimo são um perigo para a economia, neste caso para o emprego na tão incensada economia dita social. Vale mesmo tudo. É preciso dizer que tais instituições são sobretudo uma quinta coluna na guerra contra o Estado social, na linha de um mecanismo conhecido, o que separa a provisão, privada, do financiamento, eventualmente público. Pior só mesmo as parcerias público-privadas na saúde ou a ADSE. A discussão sobre o salário mínimo serve para ilustrar outra dimensão desta quinta coluna: as relações laborais assentes na compressão salarial e na precariedade são parte do processo. Isto está mesmo tudo ligado. Não se preocupem, já que com a ajuda da UE o branqueamento pode continuar: agora chama-se investimento social à desorganização deliberada e subsidiada da provisão pública.
Enfim, seja como for, estou convencido que a autonomia política face aos interesses de classe é mesmo muito relativa. Assim, pode ser que o PSD ainda acabe por dar uma ajuda na subsidiação dos patrões medíocres.
sábado, 14 de janeiro de 2017
Jornalismo da crise e crise do jornalismo
Ainda a propósito do 4º Congresso dos Jornalistas, a que o João Ramos de Almeida fez referência no post anterior e que decorrerá até ao próximo domingo, vale a pena revisitar o estudo realizado pelo próprio e pelo José Castro Caldas, dedicado às «Narrativas da crise no jornalismo económico», e que foi publicado em 2016 nos Cadernos do Observatório sobre Crises e Alternativas.
Entre os diversos e mais urgentes problemas a que os profissionais do setor e restantes congressistas deveriam dedicar a sua atenção constam dois temas tratados nesse estudo e que temos recorrentemente assinalado neste blogue: o défice de pluralismo no debate político-económico (mais vincado nas televisões e que praticamente não se alterou desde o início da crise financeira de 2008), e a questão da persistência das narrativas hegemónicas sobre a crise e as formas de a superar. Isto é, as tais ideias feitas que continuam a «arrastar-se nos corredores dos media e afins», como dizia recentemente Pedro Lains.
Sobre estas questões, duas notas a reter no referido estudo do José Castro Caldas e do João Ramos de Almeida: a ideia de que as narrativas não deveriam ficar «imunes ao desenrolar dos acontecimentos, ou aos "factos"» (mesmo quando abalam «crenças prévias muito enraizadas (...) de indivíduos que desempenham, ou desempenharam, papéis cruciais na produção de narrativas e na gestão política da crise»), e a noção de que a procura de soluções «envolve necessariamente a afirmação de novas interpretações» e de «novos diagnósticos», sendo que «o primeiro passo para essa afirmação é o conhecimento, o escrutínio e a caracterização do discurso sobre a crise que predominou e ainda predomina no espaço público».
Primeiras notas sobre o 4º Congresso dos Jornalistas
Ontem estive no 4º Congresso dos Jornalistas, supostamente o órgão máximo dos jornalistas, que decorre até domingo no S. Jorge em Lisboa.
É sempre bom que os jornalistas encontrem vontade para se juntar e discutir os seus assuntos, o que não acontecia há... 19 anos. Mas há formas e formas de o fazer. E era bom que se retirasse lições para o futuro.
O 4º Congresso dos Jornalistas nasce de um equívoco. A realização do congresso foi uma promessa feita na campanha eleitoral pela actual direcção do Sindicato dos Jornalistas. Para a direcção, era uma promessa a concretizar, mas havia ao mesmo tempo algum receio de que corresse mal. A direcção do Sindicato, com a preocupação de alargar o congresso a todos os jornalistas, delegou essa tarefa - para dizer rapidamente - numa organização externa à direcção do Sindicato. A comissão executiva da comissão organizadora não conta com as entidades que promoveram a realização do congresso: o sindicato, Casa da Imprensa e Clube dos Jornalistas.
E se a preocupação inicial era a de que o congresso não fosse apenas dos sindicalizados, o congresso tornou-se quase um congresso sem orientação sindical.
Na minha opinião, o congresso deveria ter sido um congresso sindical, com longos debates sobre o estado da arte, em que se ouvisse e se discutisse soluções. Mas foi montado como uma mistura entre conferência sobre o jornalismo e um congresso académico, onde se ouvem comunicações (umas dezenas) e em que se deixa pouco tempo para os jornalistas falar: foi-lhes reservado, na melhor das hipóteses, 7 horas em 22 horas nas sessões do congresso (isto não contando com a de discussão e votação das propostas apenas com 3 horas...). Os congressistas foram, na prática, sentados como público.
Há vários sinais desta ausência de orientação sindical:
É sempre bom que os jornalistas encontrem vontade para se juntar e discutir os seus assuntos, o que não acontecia há... 19 anos. Mas há formas e formas de o fazer. E era bom que se retirasse lições para o futuro.
O 4º Congresso dos Jornalistas nasce de um equívoco. A realização do congresso foi uma promessa feita na campanha eleitoral pela actual direcção do Sindicato dos Jornalistas. Para a direcção, era uma promessa a concretizar, mas havia ao mesmo tempo algum receio de que corresse mal. A direcção do Sindicato, com a preocupação de alargar o congresso a todos os jornalistas, delegou essa tarefa - para dizer rapidamente - numa organização externa à direcção do Sindicato. A comissão executiva da comissão organizadora não conta com as entidades que promoveram a realização do congresso: o sindicato, Casa da Imprensa e Clube dos Jornalistas.
E se a preocupação inicial era a de que o congresso não fosse apenas dos sindicalizados, o congresso tornou-se quase um congresso sem orientação sindical.
Na minha opinião, o congresso deveria ter sido um congresso sindical, com longos debates sobre o estado da arte, em que se ouvisse e se discutisse soluções. Mas foi montado como uma mistura entre conferência sobre o jornalismo e um congresso académico, onde se ouvem comunicações (umas dezenas) e em que se deixa pouco tempo para os jornalistas falar: foi-lhes reservado, na melhor das hipóteses, 7 horas em 22 horas nas sessões do congresso (isto não contando com a de discussão e votação das propostas apenas com 3 horas...). Os congressistas foram, na prática, sentados como público.
Há vários sinais desta ausência de orientação sindical:
sexta-feira, 13 de janeiro de 2017
Conseguir a quadratura e o círculo
Como «não se quer ser muleta, é-se contra coisas boas, consideradas como coisas boas pelo país e até propostas pelo próprio partido em vários momentos da sua vida. É incompreensível, acho que é um momento de delírio, é a perda de pé do anterior Governo. Quando o PSD mostrou que era tão partidário da descida dos custos unitários de trabalho, e de uma desvalorização nesse sentido, por essa via, que achava que devia baixar a Taxa Social Única para os patrões, digamos assim, desde que isso fosse compensado com o aumento da taxa sobre os trabalhadores» (António Lobo Xavier).
«O PSD, por razões meramente de taticismo político, por mais nada, digamos que resolve pôr em causa, parecendo que agora mudou para o "quanto pior melhor". Por que é o que isto vai provocar. Pode pôr em causa o aumento do salário mínimo, pode pôr em causa milhares de postos de trabalho no país, de muitas empresas e de muitas instituições que não têm condições económicas para sobreviverem pelo facto de isso acontecer. E eu penso que isto é um mau sinal para a sociedade: termos um partido liderado por alguém que está tão, digamos, acossado internamente que, para tentar sobreviver no meio dos ataques todos de que é alvo, radicaliza-se e chega a um ponto de uma irresponsabilidade desta natureza, pondo em causa tudo o que - aliás - sempre defendeu no passado. É um mau sinal para a estabilidade económica do país» (Jorge Coelho).
«Vamos admitir que o acordo cai, o que quer dizer que a responsabilidade é do PSD. Ninguém vai atribuir a responsabilidade ao PC e ao Bloco de Esquerda, que sempre tiveram esta posição. E portanto os patrões vão ter muito que agradecer ao PSD. É o efeito de uma política que não tem futuro, que afunila cada vez mais - e não é de agora, é já de há muito tempo - e como não tem saída a não ser o cataclismo (e podemos discutir se o cataclimo tem algum sentido ou não), precisa do cataclismo já. Esta atual direção do PSD várias vezes recuou quando é muito pressionada pela opinião pública. Porque a gente pensa que não, mas aquilo é tudo pelos jornais, no pior sentido da palavra... E portanto se houver uma forte pressão no sentido de criticar esta medida não é impossível que recuem, porque já recuaram várias vezes em medidas deste género» (José Pacheco Pereira).
Como é natural, não é fácil nem frequente conseguir-se o unanimismo na Quadratura do Círculo. O PSD, porém, com a sua proposta de chumbar a descida da TSU no âmbito do acordo alcançado na Concertação Social, conseguiu - com as suas contradições - fazer o pleno na edição de ontem do programa. Vale a pena ver e ouvir.
O presente envenenado de um eventual resgate europeu da banca portuguesa
O Rui Peres Jorge (RPJ, jornalista do Jornal de Negócios) escreveu o melhor texto que li sobre o Novo Banco (NB). Alerta-nos para um facto básico: "o que as ofertas conhecidas até agora nos dizem é que o terceiro maior banco nacional, já aliviado de muitos passivos e perdas, com mais de seis mil colaboradores, 20% de quota de mercado e a maior carteira de clientes empresariais não vale nada!".
Este paradoxo só pode ser compreendido se assumirmos que não é apenas o NB que está em causa. Não há propostas de jeito para o NB porque ninguém espera que os bancos em Portugal tenham lucro elevado no futuro previsível. Isto por causa do crédito mal-parado que os bancos têm em carteira, mas também porque toda a economia está endividada e as perspectivas de crescimento são fracas (por vários factores, incluindo uma estrutura produtiva débil, que não se muda do dia para a noite).
RPJ sugere que a solução passa por um "programa de recuperação específico para o sistema financeiro" conduzido pelo Mecanismo de Estabilidade Europeu (MEE), à semelhança do que aconteceu em Espanha. Percebendo o argumento, vejo nisto dois problemas fundamentais:
1) não estamos hoje onde a Espanha estava em 2011: embora ainda haja muito crédito mal parado nos bancos portugueses, o Estado já teve de assumir grande parte das perdas e terá de assumir ainda mais até que um programa desta natureza possa ser implementado; por outras palavras, os nossos maiores problemas hoje são o elevado peso da dívida pública e as fracas perspectivas de crescimento - e em relação a isso a intervenção do MEE dirigido à banca de pouco valeria;
2) a julgar pelas posições que vão sendo assumidas pelo presidente do MEE sobre a actual experiência governativa portuguesa, tal programa viria quase seguramente acompanhado de exigências no sentido do prosseguimento do programa da troika no nosso país.
Ou seja, embora partilhe do diagnóstico elaborado pelo RPJ, não creio que a solução que propõe seja a mais adequada - ou sequer aceitável. Os problemas da economia portuguesa continuam a ser os mesmos: no curto e médio prazos, como reduzir o peso da dívida pública; no longo prazo, como compatibilizar uma estrutura produtiva débil com a participação numa zona monetária dominada por economias muito mais avançadas, sem que sejam criados mecanismos compensatórios. Isto implica enfrentar a necessidade de reestruturar a dívida pública e de alterar as regras de funcionamento da zona euro (ou desmantelá-la).
Se as coisas apertarem nos próximos tempos (o que não é de todo de excluir), a solução proposta por RPJ vai atrair muita gente, que vai querer convencer-nos de que se trata da melhor opção para o país. Na prática, arriscar-se-ia a ser mais um presente envenenado.
Este paradoxo só pode ser compreendido se assumirmos que não é apenas o NB que está em causa. Não há propostas de jeito para o NB porque ninguém espera que os bancos em Portugal tenham lucro elevado no futuro previsível. Isto por causa do crédito mal-parado que os bancos têm em carteira, mas também porque toda a economia está endividada e as perspectivas de crescimento são fracas (por vários factores, incluindo uma estrutura produtiva débil, que não se muda do dia para a noite).
RPJ sugere que a solução passa por um "programa de recuperação específico para o sistema financeiro" conduzido pelo Mecanismo de Estabilidade Europeu (MEE), à semelhança do que aconteceu em Espanha. Percebendo o argumento, vejo nisto dois problemas fundamentais:
1) não estamos hoje onde a Espanha estava em 2011: embora ainda haja muito crédito mal parado nos bancos portugueses, o Estado já teve de assumir grande parte das perdas e terá de assumir ainda mais até que um programa desta natureza possa ser implementado; por outras palavras, os nossos maiores problemas hoje são o elevado peso da dívida pública e as fracas perspectivas de crescimento - e em relação a isso a intervenção do MEE dirigido à banca de pouco valeria;
2) a julgar pelas posições que vão sendo assumidas pelo presidente do MEE sobre a actual experiência governativa portuguesa, tal programa viria quase seguramente acompanhado de exigências no sentido do prosseguimento do programa da troika no nosso país.
Ou seja, embora partilhe do diagnóstico elaborado pelo RPJ, não creio que a solução que propõe seja a mais adequada - ou sequer aceitável. Os problemas da economia portuguesa continuam a ser os mesmos: no curto e médio prazos, como reduzir o peso da dívida pública; no longo prazo, como compatibilizar uma estrutura produtiva débil com a participação numa zona monetária dominada por economias muito mais avançadas, sem que sejam criados mecanismos compensatórios. Isto implica enfrentar a necessidade de reestruturar a dívida pública e de alterar as regras de funcionamento da zona euro (ou desmantelá-la).
Se as coisas apertarem nos próximos tempos (o que não é de todo de excluir), a solução proposta por RPJ vai atrair muita gente, que vai querer convencer-nos de que se trata da melhor opção para o país. Na prática, arriscar-se-ia a ser mais um presente envenenado.
Democracia nas escolas
«Este ano comemoramos quarenta anos da aprovação da Constituição da República Portuguesa e trinta anos da Lei de Bases do Sistema Educativo, documentos estruturantes da nossa Democracia.
Com o 25 de Abril, em todo o território nacional, as escolas foram, com dinâmicas e especificidades várias, um dos espaços onde de forma mais expressiva e alargada se aprendeu e viveu a experiência da participação democrática. Esse caminho de aprendizagem envolveu todos os seus atores – docentes, alunos, pais e encarregados de educação, funcionários, cidadãs e cidadãos empenhados – e teve os seus momentos altos, oscilações e também desencantos.
Depois de uma inovadora e inédita experiência de autogestão, o modelo de gestão democrática das escolas foi adquirindo maturidade, designadamente através da eleição dos Conselhos Diretivos e do envolvimento dos diferentes atores educativos.
Apesar dos princípios consagrados na Lei de Bases dos Sistema Educativo, assistimos a uma crescente desvalorização da cultura democrática nas escolas e à anulação da participação coletiva dos professores, dos alunos e da comunidade educativa. Verifica-se, pelo contrário, uma tendência para a sobrevalorização da figura do(a) diretor(a) de escola ou de agrupamento de escolas, sendo, ao mesmo tempo, subalternizado o papel de todos os outros órgãos pedagógicos, e desencorajada a participação de outros elementos da comunidade escolar. Esta situação é igualmente reveladora da erosão da identidade de cada escola quando esmagada pelo peso da estrutura de direção unipessoal de governo dos agrupamentos.
Quatro décadas passadas, vale a pena continuar a lutar pela Escola Pública, enquanto lugar de aprendizagem para todas e todos e paradigma de construção de uma cidadania democrática. A Democracia é o pulmão do nosso Estado de Direito, não deve ser apenas ensinada pelos manuais, mas exercida e vivida em cada espaço coletivo, a começar pelo trabalho quotidiano das turmas de cada escola.
Quanto mais democrática, participativa e inclusiva for a Escola, melhor será o futuro da Democracia. Neste sentido, lançamos um apelo para um amplo debate por um modelo de direção e gestão alternativo, condição de uma Escola Pública com qualidade democrática, científica e pedagógica, capaz de compatibilizar os desafios da aprendizagem para todos e todas com práticas inovadoras de cidadania crítica e emancipatória.»
Os subscritores do Manifesto pela Democracia nas Escolas debatem amanhã, 14 de Janeiro, entre as 15h30 e as 18h00, modelos de gestão escolar. A sessão realiza-se no Auditório da Escola Secundária Rainha Dona Leonor, em Lisboa.
quinta-feira, 12 de janeiro de 2017
Esponjas sobre o passado
Há dias tornou-se pública a intenção do governo de discutir o direito dos trabalhadores a desligar o telefone ao seu empregador fora do horário de serviço.
O ministro Vieira da Silva disse estar atento à discussão internacional, mas remeteu o assunto para a contratação colectiva.
Uma fonte oficial disse: “Esta é, por excelência, uma matéria que pode ser negociada no âmbito da contratação colectiva, sem prejuízo de poder ser debatida com os parceiros sociais no âmbito da CPCS”.
Ora, este tema tem todo o ar de ser um assunto perigoso.
A lei é clara e define o que é tempo de trabalho e tempo de descanso. Comunicações de serviço são trabalho e como tal devem ser tratadas. Os tribunais devem respeitar a lei e nada é necessário para clarificar este aspecto.
Mas à boleia das novas tecnologias, da robótica - que permitem um contacto mais próximo e variado entre empregador e empregado, entre assalariados responsáveis e subordinados - é possível que se esteja a abrir um capítulo em que a contratação colectiva venha a impor condições mais recuadas e prejudiciais aos trabalhadores, à sua vida, à vida social, do que a própria lei. E isso é possível desde que se criou o Código do Trabalho em 2003.
Até já se vem dizer que, muitas vezes, é do interesse do próprio trabalhador atender, porque se mostra disponível ao empregador e isso pode ser útil para a sua progressão na carreira... Ou seja, parece que não há progressão na carreira sem prolongamento não remunerado do horário de trabalho.
Ora, o problema das clarificações à lei é que, em geral, quando isso acontece, representa como se uma verdadeira esponja passasse sobre eventuais conflitos que possam estar a ser dirimidos em diversas sedes. Se a lei precisou de ser clarificada é porque antes não era clara. O passado ilegal é então limpo e tudo se arruma apenas para o futuro. Este tipo de estratagema legal já aconteceu muitas vezes em questões fiscais com alterações à lei, introduzidas no Orçamento de Estado. E à sua boleia fizeram-se autênticos perdões fiscais encapotados a contribuintes graúdos que estavam em litígio com a interpretação legal da Autoridade Tributária. E o Governo passou por ter sido um defensor dos princípios e das regras, mostrando-se duro com os poderosos...
Outra hipótese - em caso da clarificação legal ser mais penalizadora para o trabalhador - é servir de guião de leitura da própria lei actual, aquando de uma decisão sobre casos passados. Faz-se tábua rasa do passado e passa a vigorar o futuro.
Por isso, muito cuidado com assuntos que parecem tão aliciantes para a defesa do trabalhador.
O ministro Vieira da Silva disse estar atento à discussão internacional, mas remeteu o assunto para a contratação colectiva.
Uma fonte oficial disse: “Esta é, por excelência, uma matéria que pode ser negociada no âmbito da contratação colectiva, sem prejuízo de poder ser debatida com os parceiros sociais no âmbito da CPCS”.
Ora, este tema tem todo o ar de ser um assunto perigoso.
A lei é clara e define o que é tempo de trabalho e tempo de descanso. Comunicações de serviço são trabalho e como tal devem ser tratadas. Os tribunais devem respeitar a lei e nada é necessário para clarificar este aspecto.
Mas à boleia das novas tecnologias, da robótica - que permitem um contacto mais próximo e variado entre empregador e empregado, entre assalariados responsáveis e subordinados - é possível que se esteja a abrir um capítulo em que a contratação colectiva venha a impor condições mais recuadas e prejudiciais aos trabalhadores, à sua vida, à vida social, do que a própria lei. E isso é possível desde que se criou o Código do Trabalho em 2003.
Até já se vem dizer que, muitas vezes, é do interesse do próprio trabalhador atender, porque se mostra disponível ao empregador e isso pode ser útil para a sua progressão na carreira... Ou seja, parece que não há progressão na carreira sem prolongamento não remunerado do horário de trabalho.
Ora, o problema das clarificações à lei é que, em geral, quando isso acontece, representa como se uma verdadeira esponja passasse sobre eventuais conflitos que possam estar a ser dirimidos em diversas sedes. Se a lei precisou de ser clarificada é porque antes não era clara. O passado ilegal é então limpo e tudo se arruma apenas para o futuro. Este tipo de estratagema legal já aconteceu muitas vezes em questões fiscais com alterações à lei, introduzidas no Orçamento de Estado. E à sua boleia fizeram-se autênticos perdões fiscais encapotados a contribuintes graúdos que estavam em litígio com a interpretação legal da Autoridade Tributária. E o Governo passou por ter sido um defensor dos princípios e das regras, mostrando-se duro com os poderosos...
Outra hipótese - em caso da clarificação legal ser mais penalizadora para o trabalhador - é servir de guião de leitura da própria lei actual, aquando de uma decisão sobre casos passados. Faz-se tábua rasa do passado e passa a vigorar o futuro.
Por isso, muito cuidado com assuntos que parecem tão aliciantes para a defesa do trabalhador.
quarta-feira, 11 de janeiro de 2017
Solidez
Faleceu anteontem Zygmunt Bauman, o sociólogo da chamada “modernidade líquida”. Neste contexto, quero apenas chamar a vossa atenção para um artigo de José Castro Caldas, publicado há uns anos na Revista Crítica de Ciências Sociais, onde aquele que é talvez o principal contributo de Bauman é oportunamente articulado com a análise de Keynes sobre a liquidez, e as suas ilusões, nos mercados financeiros: a economia política só faz sentido se for parte da teoria social crítica.
Sabendo nós que vivemos, nas últimas décadas, na era da financeirização do capitalismo, não admira que a instabilidade e a volatilidade, sempre selectivas, sejam uma dimensão cada vez mais relevante de relações sociais de resto cada vez mais desiguais. E não admira que cresça o numero dos que agora exigem mais segurança e estabilidade: mais segurança social e laboral e maior controlo político dos mercados e dos seus agentes, que só podem ser assegurados pelos Estados soberanos, terão de ser parte das sólidas respostas de redução decente da liquidez. Se Marx e Engels afirmaram que no capitalismo em estado puro tudo o que é sólido se desfaz no ar, então é caso para dizer que muito do que já foi sólido terá de ser refeito no chão...
terça-feira, 10 de janeiro de 2017
Todos dias há uma apropriação de valor
Não, não vou falar da apropriação da figura do Mário Soares pela direita.
Quero contar algo que se passou há pouco tempo. Só para dar a ideia da realidade laboral em Portugal e de como a Justiça abandonou a sua posição de ser o elemento de equilíbrio na relação laboral, por natureza desequilibrada.
Uma empresa, integrada num grupo económico internacional, tem mais de 470 trabalhadores e paga anualmente uma massa salarial de 20 milhões de euros. Destes, a administração recebe quase um milhão. A diferença entre o salário mais baixo e o mais alto é várias dezenas de vezes. Em 2015, a empresa registou um EBITDA – Lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização – de mais de 30 milhões de euros. No total, o grupo teve 40 milhões. Ou seja, a empresa é essencial para o grupo.
Nessa empresa, trabalha-se em regime de turnos, sem dias fixos de descanso complementar e obrigatório. São sete horas por dia, com uma hora de almoço, durante cinco dias por semana em média. Três, cinco ou sete dias consecutivos, seguidos de dois dias de descanso.
Agora conheçamos o Manuel. É um dos seus trabalhadores há muitos anos. Recebe o seu ordenado base mais um subsídio de isenção de horário de 20% do ordenado base, que foi imposto pela empresa como parcela do salário, como forma de não pagar horas extraordinárias ou suplementares, mas que é passível de ser retirado a qualquer instante e de forma unilateral pela empresa. Basta querer.
Ao longo de anos, o Manuel foi destacado para trabalhar além do horário de trabalho. E conforme o registo, fê-lo em muitos dias de trabalho suplementar e ou de descanso. E nunca lhe foi pago mais por isso.
Acontece que o Manuel, depois de muito se queixar, decidiu ir para a Justiça. Reuniu as provas que conseguiu arranjar, e pediu à empresa o pagamento, digamos, de 15 mil euros em dívida. Este era um montante por defeito: era aquilo que pôde provar.
Foi um choque. A empresa, como todas as outras do sector, não está acostumada a que os seus trabalhadores a ponham em tribunal.
Claro está, a queixa foi contestada: 1) que parte dos créditos exigidos tinham prescritos; 2) que as provas apresentadas não eram “documentos escritos pela entidade empregadora” e que por isso não eram “idóneos”; 3) que o Manuel não tinha direito a trabalho extraordinário porque tinha isenção de horário e que o trabalho nocturno já estava incluído no ordenado, combinado aquando da sua contratação; 4) que há uns anos a empresa até fora inspecccionada sobre o trabalho nocturno e nada tinha sido detectado: só tinha sido multada por falta do registo do intervalo nas refeições... e, finalmente; 5) que o Manuel não tinha direito ao pagamento de trabalho extraordinário porque desde as alterações do Código de Trabalho de 2009 as empresas de laboração contínua podem deixar de ter descanso semanal ao domingo, pelo que ele não tinha direito a dois dias de descanso semanal obrigatório.
Alegações estafúrdias, mas alegações. E ao fim de mais de um ano, chegou o dia da primeira audiência do julgamento.
Eis o filme do acontecimento:
Quero contar algo que se passou há pouco tempo. Só para dar a ideia da realidade laboral em Portugal e de como a Justiça abandonou a sua posição de ser o elemento de equilíbrio na relação laboral, por natureza desequilibrada.
Uma empresa, integrada num grupo económico internacional, tem mais de 470 trabalhadores e paga anualmente uma massa salarial de 20 milhões de euros. Destes, a administração recebe quase um milhão. A diferença entre o salário mais baixo e o mais alto é várias dezenas de vezes. Em 2015, a empresa registou um EBITDA – Lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização – de mais de 30 milhões de euros. No total, o grupo teve 40 milhões. Ou seja, a empresa é essencial para o grupo.
Nessa empresa, trabalha-se em regime de turnos, sem dias fixos de descanso complementar e obrigatório. São sete horas por dia, com uma hora de almoço, durante cinco dias por semana em média. Três, cinco ou sete dias consecutivos, seguidos de dois dias de descanso.
Agora conheçamos o Manuel. É um dos seus trabalhadores há muitos anos. Recebe o seu ordenado base mais um subsídio de isenção de horário de 20% do ordenado base, que foi imposto pela empresa como parcela do salário, como forma de não pagar horas extraordinárias ou suplementares, mas que é passível de ser retirado a qualquer instante e de forma unilateral pela empresa. Basta querer.
Ao longo de anos, o Manuel foi destacado para trabalhar além do horário de trabalho. E conforme o registo, fê-lo em muitos dias de trabalho suplementar e ou de descanso. E nunca lhe foi pago mais por isso.
Acontece que o Manuel, depois de muito se queixar, decidiu ir para a Justiça. Reuniu as provas que conseguiu arranjar, e pediu à empresa o pagamento, digamos, de 15 mil euros em dívida. Este era um montante por defeito: era aquilo que pôde provar.
Foi um choque. A empresa, como todas as outras do sector, não está acostumada a que os seus trabalhadores a ponham em tribunal.
Claro está, a queixa foi contestada: 1) que parte dos créditos exigidos tinham prescritos; 2) que as provas apresentadas não eram “documentos escritos pela entidade empregadora” e que por isso não eram “idóneos”; 3) que o Manuel não tinha direito a trabalho extraordinário porque tinha isenção de horário e que o trabalho nocturno já estava incluído no ordenado, combinado aquando da sua contratação; 4) que há uns anos a empresa até fora inspecccionada sobre o trabalho nocturno e nada tinha sido detectado: só tinha sido multada por falta do registo do intervalo nas refeições... e, finalmente; 5) que o Manuel não tinha direito ao pagamento de trabalho extraordinário porque desde as alterações do Código de Trabalho de 2009 as empresas de laboração contínua podem deixar de ter descanso semanal ao domingo, pelo que ele não tinha direito a dois dias de descanso semanal obrigatório.
Alegações estafúrdias, mas alegações. E ao fim de mais de um ano, chegou o dia da primeira audiência do julgamento.
Eis o filme do acontecimento: