Este é o meu desejo para 2015: que os portugueses, enquanto comunidade de destino partilhado, se apercebam dos desafios que o futuro colectivamente lhes reserva. E que isso sirva para, finalmente, tomarmos decisões próprias de uma democracia madura – sejam elas em que sentido for (não há decisões relevantes que agradem a todos).
Talvez pareça demasiado desejo para um ano de eleições. Diz-nos a experiência que a sofisticação e a clareza dos debates que importam vai diminuindo na proporção directa do tempo que falta para o dia do voto. Como se não bastasse, o quadro político português é hoje pouco propício a clarificações.
A direita, que nos últimos 40 anos sempre gostou de se apresentar como o lado pragmático e realista do sistema político, nunca foi tão ideológica como hoje. Para esta direita, se a realidade não se coaduna com o modelo que imaginam para o mundo, o erro só pode ser da realidade – nunca do modelo. Por si só, isto bastaria que o seu contributo para a reflexão colectiva que o país necessita fosse sempre dominado por abstracções pouco úteis. Para mais, PSD e CDS estão empenhados em mascarar o falhanço da estratégia de austeridade prosseguida nos últimos quatro anos. Até às eleições, daqui só se pode esperar propaganda e cara de pau (sendo nisto mestre o líder do CDS-PP).
O PS, por seu lado, parece saber bem os desafios que enfrentamos. Tão bem que o seu novo líder não pára de dar sinais contraditórios sobre a estratégia de alianças para um futuro governo, ao mesmo tempo que se abstém de afirmar qualquer coisa de concreto sobre a estratégia de governação que pretende seguir. Ambos são sinais das dificuldades em encontrar um discurso que não comprometa votos - uma preocupação que não se coaduna com um discurso de verdade sobre as escolhas difíceis que temos pela frente.
À esquerda do PS o cenário é só ligeiramente mais favorável a uma clarificação dos desafios que se colocam ao país. Tal como tem acontecido com as esquerdas mais radicais noutros países europeus, PCP e BE vão pondo o dedo na ferida, apontando os constrangimentos que enfrentamos e o que eles significam na prática. No entanto, o seu discurso é facilitado pelo pressuposto de que não terão (tão cedo?) de enfrentar a responsabilidade de governar o país, levando a que o pé fuja demasiadas vezes para a demagogia.
Outros países europeus, perante semelhantes bloqueios nos respectivos sistemas políticos, viram surgir novos partidos e movimentos determinados em fazer da clarificação das escolhas o aspecto central do debate político. Em Portugal ainda não vemos isto acontecer. Invariavelmente, os projectos políticos alternativos que surgem com algum impacto mediático tendem a afirmar-se através de um populismo preguiçoso, assente no ataque à ‘casta dos políticos’ ou, na melhor das hipóteses, na ideia pueril de regeneração do sistema através de novos métodos de organização partidária. A receita vai valendo alguns apoios, mas continuam por enfrentar as questões decisivas: o que fazer perante uma dívida insustentável, como recuperar a perspectiva de um desenvolvimento avançado numa Europa que nos é essencialmente desfavorável, como reagir à chantagem dos poderes europeus, como mobilizar a população para a consciencialização da situação em que nos encontramos.
Vale-nos, assim, a esperança dos choques externos. Começamos 2015 com grandes incertezas sobre o futuro da Europa e do Mundo. Dentro de um mês a Grécia vai a votos, ameaçando desestabilizar a paz podre europeia. A queda do preço do petróleo parece um bálsamo, mas traz consigo instabilidades geopolíticas de consequências imprevisíveis. Nas origens da baixa do preço do petróleo surge uma alteração da política monetária dos EUA, que pode ser o início do fim dos juros baixos - e, com ele, o rebentamento de várias bolhas especulativas. Enfim, o mundo não pára, malgrado a tendência do sistema político português para suspender a realidade sempre que eleições se aproximam.
Haja esperança, 2015 ainda pode vir a ser um ano de clarificação. Boas entradas!
quarta-feira, 31 de dezembro de 2014
terça-feira, 30 de dezembro de 2014
Dois olhares sobre a democracia
O povo grego deve cumprir as reformas, independentemente do resultado das eleições. Disse o ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, em declarações à Associated Press.
Aproveito a citação de Mark Twain, publicada no Público: “If voting made any difference, they wouldn't let us do it.”
Tão claro, não é?
Aproveito a citação de Mark Twain, publicada no Público: “If voting made any difference, they wouldn't let us do it.”
Tão claro, não é?
Empurram?
Há títulos de notícias que são todo um programa. No Público de hoje, que dedica duas páginas à análise da situação na Grécia (decorrente da não eleição, pelo parlamento, de um novo Presidente da República), afirma-se que a consequente convocação de eleições antecipadas está a «empurrar» o eleitorado grego para uma «escolha» (Syriza) que «preocupa a Europa».
Presume-se pois que o povo grego não vai poder expressar, livremente, as escolhas democráticas que se lhe oferecem no contexto actual. Não, o eleitorado grego está a ser «empurrado» - com a antecipação das eleições - para o voto no Syriza. Agora imaginem uma formulação alternativa: «Fracasso da austeridade conduz a Grécia para uma escolha que desagrada ao FMI e Comissão Europeia». Podia ter sido utilizado um título assim? Podia, claro que podia. Mas não era a mesma coisa.
Adenda: Nos comentários ao post, o Rukka sugere uma possibilidade interessante de título para o artigo do Público: «Eleições antecipadas podem levar a Grécia para uma escolha que dê esperança à Europa». E o José Guinote chama oportunamente à atenção para o editorial da mesma edição do jornal, que vale a pena ler na íntegra.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2014
Como é que se se diz democracia em grego?
Confirma-se: a Grécia vai ter eleições legislativas no final de Janeiro. Os gregos vão estar agora ainda mais sujeitos a todas as chantagens. Quem vai ceder?
O povo grego, face à pressão dos especuladores e das instituições europeias, vota maioritariamente nas forças do status quo, apesar da destruição que estas, e a troika, geraram, receando a alternativa num contexto de convocação relativamente impopular de eleições antecipadas?
O Syriza assume, ainda antes das eleições, um qualquer compromisso com as instituições europeias e com as suas políticas ou faz o mesmo depois da vitória, sem contrapartidas visíveis, alinhando, por exemplo, num governo dito de “salvação nacional”, cedendo para manter a Grécia neste euro com os mesmos custos sociais, mais coisa, menos coisa, de sempre?
Perante um governo liderado pelo Syriza, as instituições europeias, e a Alemanha que as comanda, aceitam começar a rever os termos austeritários construídos nas últimas décadas e reforçados nos últimos anos, abrindo um precedente, em nome de uma hegemonia agora benigna, que recompensa a desobediência democrática e europeísta, uma espécie de Plano Marshall, com perdão a sério de dívida e tudo, mas agora sem o equivalente a tanques soviéticos em Berlim ou rebeldes comunistas na Grécia?
O euro cede lugar a uma nova moeda na Grécia, já que uma moeda sem Estado não resiste à desobediência democrática de um Estado realmente existente e dos que querem reformar o que não foi feito para ser reformado, preferindo os poderes europeus na prática expulsar a Grécia para colocar na linha outros eventuais recalcitrantes, sendo que os mecanismos reais e combinados, não intencionais e intencionais, para isto são muitos, da fuga maciça de capitais à situação dos bancos gregos, passando pela decisão do BCE à maneira da que ditou a resolução do BES, ou seja, negando o acesso do sistema bancário periclitante à liquidez do banco central?
Em 2015, a democracia na escala onde esta ainda pode existir vai ser testada e os poderes pós-democráticos com escala europeia também. Em caso de vitória do Syriza, eu apostaria em dois cenários, dado que a reforma progressista das instituições europeias não está disponível (quais os mecanismos?): a cooptação do Syriza ou a saída do euro. Se isto for verdade, os europeístas de esquerda ficarão, por cá, sem programa em caso de vitória do igualmente europeísta Syriza, confirmando que no euro não há espaço para alternativas ao serviço do povo. Seja como for, o mais importante por agora é a solidariedade com o povo grego e com a sua soberania democrática.
O problema é europeu
Fonte: Eurostat (taxa de câmbio de 1995; PIB em volume) |
Quem não se recorda da ideia de que a globalização geraria mais riqueza porque nos abriria novos mercados, que era uma nova oportunidade e que, dessa repartição de rendimento acrescido, todos tirariam proveito?
Estou a ver António Borges nos anos 90, ainda vice-governador do Banco de Portugal, no seu gabinete na Rua do Comércio, muito activo e com aquela confiança dele, a defender esta dama. Quem não se recorda da promessa - quase provocação à esquerda (ainda Borges) - de que o melhor internacionalismo seria abrir os mercados porque era a única forma de distribuir o rendimento entre as diferentes zonas do globo e que os mais pobres entre os mais pobres tirariam proveito disso igualmente? E, claro está, com a comunicação social a macaquear todo esse discurso dominante, simplista e cheio de facilidades.
E os economistas de esquerda mal conseguiram inverter essa dinâmica porque, em parte, sabiam que esse seria, de facto, um dos efeitos, Aliás, essa abertura dos países mais desenvolvidos era mesmo uma das queixas dos países não desenvolvidos, se bem que nada garantisse à partida uma melhor distribuição do rendimento a nível planetário. Do ponto de vista da comunicação, o lado positivo e optimista estava, precisamente, na "abertura" e dos "fim das fortalezas" e dos "muros". A esquerda ficava com as "águas paradas" do imobilismo.
Mas estava na cara de que a abertura dos mercados, o desmantelamento das barreiras alfandegárias - primeiro, ao nível europeu, depois ao leste europeu, aos países terceiros como Índia, Paquistão, acabando com a integração da China no Organização Mundial do Comércio - teriam efeitos gravosos na estrutura do emprego europeu.
E ainda mais perverso: o desmantelamento dessas barreiras ia ser feito em proveito de grandes conglomerados transnacionais que, assim, deslocalizavam os seus custos "elevados" europeus para zonas de baixos custos, podendo - graças aos desmantelamento alfandegário - vender livremente essas novas mercadorias nos mercados "ricos" europeus, beneficiando de elevadas taxas de lucro, não muito tributadas pelos Estados europeus, graças aos martelados preços de transferência intra-conglomerados difíceis de detectar, à manutenção de paraísos fiscais, de acordos secretos e de políticas fiscais favoráveis, precisamente em nome do emprego europeu.
Nesse contexto, em nada ajudou a criação de uma moeda única coxa, mal desenhada e inconsequente, sujeita às tergiversações dos estados mais poderosos.
O rendimento cresceu pouco e o desemprego cresceu muito. No grafico1, é possível ver, para cada ano, a percentagem de variação face ao ano base 2000.
De 2000 a 2013, o PIB em volume (à taxa de câmbio de 1995) subiu 14,2% na UE a 15 (mais 1356 mil milhões de euros), enquanto o desemprego subiu 56,3% (mais 7,7 milhões de pessoas). Na zona euro original a 12, o PIB subiu apenas 12,2% (mais 913,5 mil milhões de euros), embora o desemprego tivesse subido igualmente 56% (mais 6,6 milhões de pessoas). Os países fora da zona euro original viram subir o seu PIB ganhar peso na UE a 15 (20 para 23% do total), mas a proporção de desempregados na UE manteve-se.
Ou seja, algo de mais poderoso está a influenciar a evolução do desemprego e tem a ver com a inserção da UE no mundo.
E o que mais irrita ainda é que todo a terapia austericida em Portugal - vendida por uma Comissão Europeia fechada sobre si mesmo e sorridentemente submissa - se fez sobre a ideia de que o desemprego em Portugal estava a subir devido a problemas de oferta nacional, a problema de falta de competitividade nacional que requeriam reformas estruturais e, claro está, tudo porque os trabalhadores ganhavam demais. Tão simples. Tão simplório.
O problema não é nacional. E está à vista onde nos levaram. A economia estagnou, o emprego reduziu-se e o desemprego explodiu.
sábado, 27 de dezembro de 2014
A Grécia vai viver
Na segunda-feira vai ser tomada na Grécia uma decisão crucial. Das duas uma: ou Samaras e Venizelos conseguem comprar uma mão cheia de deputado e obtêm os 180 votos para eleger o seu presidente, ou a Grécia vai a votos em Fevereiro.
Nessa eleição de Fevereiro os gregos estão confrontados com uma escolha muito difícil: votar Syriza e confrontar as instituições europeias, ou não votar e consentir na continuação da humilhação e destruição do seu país, enquanto esperam por benesses da UE que Samaras e Venizelos mendigando não conseguiram obter?
Se ganhar as eleições, o Syriza terá também de enfrentar o mesmo tipo de escolha: ceder perante a exibição de instrumentos de tortura que o Banco Central Europeu, a exemplo do que fez no passado não hesitará em fazer de novo, ou manter-se firme na sua decisão de denunciar o memorando e renegociar a dívida?
A expulsão do euro é a espada que os vigilantes da Comissão Europeia e do BCE exibem para intimidar a Grécia. Samaras e Venizelos trataram de manter a Grécia impreparada para esta eventualidade e por isso mesmo a ameaça é credível.
Far-nos-ia muito bem a todos calçarmos por um momento que seja os sapatos dos eleitores gregos e do próprio Syriza para decidir (em imaginação) o que faríamos se estivéssemos na sua situação. Desejamos que os Gregos escolham a dignidade e que o Syriza faça o mesmo? Nesse caso deveríamos nós próprios estar prontos para escolher em Portugal em consonância com o que desejamos que os gregos façam. Estamos mesmo?
sexta-feira, 26 de dezembro de 2014
Pedro Lomba, os louros alheios e a pólvora seca
O truque não é novo. Como aqui demonstrou o Alexandre Abreu, o governo tentou, no início deste mês, apropriar-se dos resultados dos governos de José Sócrates em matéria de combate à pobreza e exclusão, com Passos Coelho a afirmar que «a crise não agravou as desigualdades», registando-se até a «tendência para corrigir algumas delas». Coisa que os dados, evidentemente, desmentem: os indicadores de pobreza e exclusão melhoraram até 2011, tendo regredido desde então.
Desta vez, coube a Pedro Lomba tentar a apropriação de louros alheios, sugerindo que o «crescente número de estrangeiros empregadores, que geram postos de trabalho e que estão a ser um fator de crescimento económico como não acontecia há dez anos» se deve à acção do governo de direita que Lomba integra. Com base em que informação estatística? Com base nos dados dos últimos censos, coligidos pelo INE no início de 2011 (ou seja, quando o actual executivo ainda não tinha sido alçado ao poder).
É claro que estes dados, que registam o aumento, nas últimas duas décadas, de empregadores estrangeiros, são muito convenientes para alimentar a visão, peculiar e absurda, que o Secretário de Estado consolidou acerca dos processos migratórios. Um projecto que tem na ideia de que «Portugal deve seleccionar os imigrantes», apostando na atração de estrangeiros capazes de criar negócios, o seu mais recente desenvolvimento.
Sucede porém que:
1. Pedro Lomba não descobriu a pólvora. Já existe, desde 2010, um programa de «Promoção do Empreendedorismo Imigrante» (PEI), inserido numa política substancialmente mais ampla (e mais decente) de imigração e de acolhimento de cidadãos estrangeiros. Uma política que não se centrava no empreendedorismo (nem na selecção de imigrantes) e que valeria em 2011 a Portugal o segundo lugar, entre 31 países, no MIPEX III (ranking internacional de políticas de integração de migrantes). Uma política que seria de certa forma substituída, na actual legislatura, pelos sinistros «Vistos Gold»;
2. Pedro Lomba parece desconhecer os danos devastadores que a austeridade comporta em termos demográficos. Desde 2011, Portugal atravessa uma situação inédita de acumulação negativa de saldos (natural e migratório): os que cá nasceram são forçados a desistir do país e os que cá entraram ao longo das últimas décadas deixam de encontrar razões para permanecer. E não adianta tentar mascarar o êxodo com a captação, supostamente recente (o que não corresponde à verdade), de «novos perfis de imigração»: o aumento do número de Vistos de Residência, entre 2011 e 2012, por exemplo, respeita fundamentalmente a autorizações por motivo de «estudos, intercâmbio de estudantes, estágio profissional e voluntariado»:
3. O simples facto de se assistir, nos últimos anos, ao retorno de imigrantes para os seus países de origem (ou a sua mobilidade para outras paragens), diz muito sobre a aclamada «transformação estrutural» do modelo económico português, levada a cabo pela maioria de direita nos últimos três anos. Como espera Pedro Lomba que uma economia assente em baixos salários e num elevado custo de vida possa ser atractiva para «imigrantes qualificados e empreendedores», quando nem os imigrantes que o país captou nas últimas décadas é possível reter? Mais, quando nem os jovens qualificados que cá nasceram e estudaram encontram, nessa «nova economia», condições para poder ficar, como desejaria a maioria deles?
O que está em questão parece pois ser apenas mais um episódio do balofo «romance empreendedor». Isto é, mais um passo ilusório na prossecução do «glorioso» projecto económico e social que o executivo do PSD/PP reservou para o país: empobrecer, comer sopa e empreender.
Desta vez, coube a Pedro Lomba tentar a apropriação de louros alheios, sugerindo que o «crescente número de estrangeiros empregadores, que geram postos de trabalho e que estão a ser um fator de crescimento económico como não acontecia há dez anos» se deve à acção do governo de direita que Lomba integra. Com base em que informação estatística? Com base nos dados dos últimos censos, coligidos pelo INE no início de 2011 (ou seja, quando o actual executivo ainda não tinha sido alçado ao poder).
É claro que estes dados, que registam o aumento, nas últimas duas décadas, de empregadores estrangeiros, são muito convenientes para alimentar a visão, peculiar e absurda, que o Secretário de Estado consolidou acerca dos processos migratórios. Um projecto que tem na ideia de que «Portugal deve seleccionar os imigrantes», apostando na atração de estrangeiros capazes de criar negócios, o seu mais recente desenvolvimento.
Sucede porém que:
1. Pedro Lomba não descobriu a pólvora. Já existe, desde 2010, um programa de «Promoção do Empreendedorismo Imigrante» (PEI), inserido numa política substancialmente mais ampla (e mais decente) de imigração e de acolhimento de cidadãos estrangeiros. Uma política que não se centrava no empreendedorismo (nem na selecção de imigrantes) e que valeria em 2011 a Portugal o segundo lugar, entre 31 países, no MIPEX III (ranking internacional de políticas de integração de migrantes). Uma política que seria de certa forma substituída, na actual legislatura, pelos sinistros «Vistos Gold»;
2. Pedro Lomba parece desconhecer os danos devastadores que a austeridade comporta em termos demográficos. Desde 2011, Portugal atravessa uma situação inédita de acumulação negativa de saldos (natural e migratório): os que cá nasceram são forçados a desistir do país e os que cá entraram ao longo das últimas décadas deixam de encontrar razões para permanecer. E não adianta tentar mascarar o êxodo com a captação, supostamente recente (o que não corresponde à verdade), de «novos perfis de imigração»: o aumento do número de Vistos de Residência, entre 2011 e 2012, por exemplo, respeita fundamentalmente a autorizações por motivo de «estudos, intercâmbio de estudantes, estágio profissional e voluntariado»:
3. O simples facto de se assistir, nos últimos anos, ao retorno de imigrantes para os seus países de origem (ou a sua mobilidade para outras paragens), diz muito sobre a aclamada «transformação estrutural» do modelo económico português, levada a cabo pela maioria de direita nos últimos três anos. Como espera Pedro Lomba que uma economia assente em baixos salários e num elevado custo de vida possa ser atractiva para «imigrantes qualificados e empreendedores», quando nem os imigrantes que o país captou nas últimas décadas é possível reter? Mais, quando nem os jovens qualificados que cá nasceram e estudaram encontram, nessa «nova economia», condições para poder ficar, como desejaria a maioria deles?
O que está em questão parece pois ser apenas mais um episódio do balofo «romance empreendedor». Isto é, mais um passo ilusório na prossecução do «glorioso» projecto económico e social que o executivo do PSD/PP reservou para o país: empobrecer, comer sopa e empreender.
2015, o ano do contramovimento?
Entretanto, há anos que nos prometem uma viragem: primeiro com Hollande, depois com as eleições na Alemanha, mais tarde com as eleições para o Parlamento Europeu e na Itália, ultimamente com a nomeação de Juncker para presidente da CE. Falemos da última ilusão, porque as anteriores já estão enterradas. A proposta de Juncker para financiamento de um programa de investimentos de grande escala foi construída com base no desvio de muito pouco dinheiro do actual orçamento da UE para, através do BEI, construir um sistema de alavancagem financeira que mobilizaria investimento privado. Ou seja, a proposta de Juncker é uma estrondosa declaração de impotência da CE para utilizar a política orçamental, precisamente quando a Europa vive a sua mais grave crise desde a Segunda Grande Guerra.
Numa conjuntura que ameaça degenerar em deflação, vemos a CE a insistir para que se corte na massa salarial da função pública e nas pensões ("medidas duradouras"), além das chamadas reformas estruturais que mais não visam do que pressionar os salários em baixa. Daí o ataque ao pequeníssimo aumento do salário mínimo. Assim, confrontados com uma gravíssima crise de procura, estes economistas neoliberais mostram, sem qualquer pudor, o seu enviesamento para a oferta. Olimpicamente, ignoram a causa e insistem em medidas que só a agravam, como bem sabemos por experiência dolorosa. Ignorando a natureza endógena do défice, chegam a alertar para a necessidade de serem feitos cortes adicionais "se a recuperação económica abrandar."
Se alguém ainda tem dúvidas quanto à natureza ideológica desta política económica, recomendo a leitura de um artigo sobre as reformas estruturais em França publicado no The Economist (Cycling, but where to?). Em última análise, trata-se de, fria e calculadamente, liquidar o Estado-social na periferia da UE para, fazendo ajoelhar estas sociedades, as submeter ao interesse estratégico das elites empresariais do centro do capitalismo europeu. Com a reconfiguração geopolítica da globalização em curso, com a China a assumir a liderança na Ásia, interessa à Alemanha uma reserva de mão-de-obra barata na própria Europa. É este o destino que os colaboracionistas preparam para o país, sempre em nome dos amanhãs que cantam numa "Europa social" respeitadora dos direitos humanos.
Na encruzilhada em que nos encontramos, o que espanta é haver quem, à esquerda, ignore a poderosa intuição de Karl Polanyi ("The Great Transformation") sobre as divergências de interesses entre sectores da classe capitalista, afastando a finança e os grandes grupos a ela ligados dos empresários e gestores com pouco poder, e sobre a capacidade de sedução ideológica exercida por líderes de direita, demagogos e carismáticos, sobre importantes sectores da classe trabalhadora. De facto, é um grave erro insistir na retórica da luta de classes e da revolução, desvalorizando, ou mesmo repudiando, a luta pela democracia no quadro nacional, como faz alguma esquerda. A tarefa que nos espera em 2015 é a da construção de uma alternativa política capaz de mobilizar o descontentamento, ou mesmo a raiva, transversal a vários sectores do trabalho e do capital, para que a sociedade portuguesa ponha termo ao empobrecimento que a UE nos impôs.
Esta crise foi uma grande oportunidade para o neoliberalismo, mas 2015 pode também ser o ano do contramovimento, para usar um termo de Polanyi.
(O meu artigo no jornal i)
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
E se importássemos milhares de óculos como estes?
O desemprego é uma compulsão para a desvalorização geral de um país e para a desgraça. Mas é uma força poderosa e terrível para revelar a essência do mundo. As palavras dos discursos, as caras que os proferem calmamente, de forma instruída, surgem com novas interpretações. As imagens comesinhas da televisão parecem ganhar traços cínicos e perigosos. O desemprego é uma energia negra que tudo consome.
Por isso, se torna tão actual rever este filme de Carpenter, de 1988, sobre o mundo por detrás do mundo e tudo o que nos leva a ser como somos. "THEY LIVE" mesmo entre nós e passam diariamente mensagens que, inconscientemente, passamos a sentir como inelutáveis. "Reformas estruturais", "reduzir salários", "viver acima das possibilidades", "temos de fazer os que os mercados querem", "não há alternativa".
Pelo menos, até que um dia ganhamos um novo olhar sobre o mundo. E por isso, é tão importante descobrir esse par de óculos.
Para quem não tenha paciência, ver a partir do minuto 32.
Feliz Natal e um 2015 clarificador.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
Marcelo Rebelo Pires de Lima
«Uma coisa é despenalização do aborto, outra coisa é liberalização do aborto. (...) Despenalização da mulher que aborta: a favor. Liberalização do aborto: contra. (...) Se a pergunta fosse: concorda com a despenalização da mulher que aborta num sítio todo badalhoco, sem condições nenhumas, eu votava que sim. Agora, num estabelecimento de saúde autorizado... não!»
«O governo fará tudo o que está ao seu alcance para proteger o interesse dos portugueses. Por isso, decretámos hoje a requisição civil. A TAP assegura serviços de interesse público e de unidade nacional, que não podem ser ignorados e ameaçados por interesses particulares ou determinismos ideológicos e políticos. O interesse público tem de prevalecer face a interesses particulares.»
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
Que seja o maior partido
Também tiro lições a título pessoal. Toda a minha vida adulta andei a ler Hayek, Friedman, a escola de Chicago, o liberalismo político clássico. E depois da crise internacional, mas sobretudo neste mês muito intenso na comissão do GES, tudo isso abalou de uma forma muito profunda as convicções que eu tinha sobre o liberalismo (...) Eu, neste momento, estou com mais do que suspeitas, com a convicção, de que a lógica do liberalismo económico tem uma contradição insanável com a natureza humana. O agente económico deve ter regras fortes e devem existir instituições que forcem a sua aplicação. Caso contrário, a ganância, a prevaricação, o instinto de fuga às regras (…) Se nós olharmos para o que aconteceu em 2007 nos EUA e aqui, houve uma margem de liberdade dada aos agentes económicos, sobretudo financeiros, que pura e simplesmente eles não mereciam. Não estavam à sua altura. Por isso vou fazer-vos uma revelação: eu já não sou liberal. Não chego ao ponto de dizer, como João Galamba, que quero o controlo público da banca… (...) O Estado tem de ter força. Se o Estado não tiver força, é da natureza humana que surjam pessoas que vão prevaricar, vão iludir, vão enganar, vão dissimular, vão martelar contas e isto é mesmo assim. Temos de criar um sistema que torne estas derivas mais raras e pontuais. Por isso é que as minhas convicções liberais estão a desaparecer. E sou contrário a todas as práticas de ocultação.
Excertos da entrevista do Público do passado Domingo a Carlos Abreu Amorim, um “ex-liberal” (este ainda há-de ser o maior partido, ultrapassando o dos ex-comunistas, espero). Já em 2008 aqui tínhamos notado elementos de dissensão. Num país politica e intelectualmente dominado pelo “liberalismo”, ou seja, pelo neoliberalismo que não é um slogan, é sempre reconfortante ver movimentos em contracorrente. Na história das ideias, é sabido que a dúvida instala-se, entre outras, sempre que os liberais decidem ver como é que funciona o capitalismo realmente existente, sobretudo o que não tem freios e contrapesos significativos da base ao topo. A comissão de inquérito ao BES tem tido, entre outros, o mérito de nos mostrar exemplos do que o José Maria Castro Caldas aqui já chamou de psicopatologia das organizações.
Gostaria de deixar duas ou três notas adicionais, não necessariamente discordantes, sobre as razões de Abreu Amorim, começando pela questão da “natureza humana”. Diria apenas que está na nossa natureza sermos produto das instituições, ou seja, muito do que somos depende da natureza das instituições em que interagimos. O problema é que os chamados instintos predador têm ganho demasiado espaço, têm-se tornado habituais neste capitalismo, enquanto que as disposições cooperativas têm sido aí atrofiadas. O problema é institucional, e logo ético-político, portanto. Os mecanismos são mais do que muitos: da concorrência excessiva em demasiados sectores, o que faz com que possa valer tudo, às desigualdades excessivas, também resultado de cada vez mais situações em que os ganhadores levam tudo. Multiplicam-se as situações que corroem o carácter.
De resto, não se trata tanto de o Estado ter desaparecido, já que o Estado é indispensável no neoliberalismo, ou em qualquer outra fase/modelo de capitalismo, mas sim da sua autoridade ter sido colocada ao serviço das forças capitalistas mais predadoras, em especial financeiras, e deslocada para instituições supranacionais sem escrutínio democrático, como o banco central que está em Frankfurt. Hoje, as regras do jogo que sempre estruturam os mercados são demasiado favoráveis à redistribuição de recursos de baixo para cima. Temos então de reinstituir a autoridade do Estado nacional, a autoridade do Estado democrático, do Estado ao serviço da criação de freios e contrapesos, incluindo controlos de capitais, que facilitem a redistribuição de recursos, em sentido amplo, incluindo poder, de cima para baixo. São poucos ainda, da esquerda à direita, os que apostam neste projecto. São poucos ainda os que dão visibilidade e lutam por dar espaço institucional às nossas melhores disposições cooperativas, permitindo o seu florescimento.
Excertos da entrevista do Público do passado Domingo a Carlos Abreu Amorim, um “ex-liberal” (este ainda há-de ser o maior partido, ultrapassando o dos ex-comunistas, espero). Já em 2008 aqui tínhamos notado elementos de dissensão. Num país politica e intelectualmente dominado pelo “liberalismo”, ou seja, pelo neoliberalismo que não é um slogan, é sempre reconfortante ver movimentos em contracorrente. Na história das ideias, é sabido que a dúvida instala-se, entre outras, sempre que os liberais decidem ver como é que funciona o capitalismo realmente existente, sobretudo o que não tem freios e contrapesos significativos da base ao topo. A comissão de inquérito ao BES tem tido, entre outros, o mérito de nos mostrar exemplos do que o José Maria Castro Caldas aqui já chamou de psicopatologia das organizações.
Gostaria de deixar duas ou três notas adicionais, não necessariamente discordantes, sobre as razões de Abreu Amorim, começando pela questão da “natureza humana”. Diria apenas que está na nossa natureza sermos produto das instituições, ou seja, muito do que somos depende da natureza das instituições em que interagimos. O problema é que os chamados instintos predador têm ganho demasiado espaço, têm-se tornado habituais neste capitalismo, enquanto que as disposições cooperativas têm sido aí atrofiadas. O problema é institucional, e logo ético-político, portanto. Os mecanismos são mais do que muitos: da concorrência excessiva em demasiados sectores, o que faz com que possa valer tudo, às desigualdades excessivas, também resultado de cada vez mais situações em que os ganhadores levam tudo. Multiplicam-se as situações que corroem o carácter.
De resto, não se trata tanto de o Estado ter desaparecido, já que o Estado é indispensável no neoliberalismo, ou em qualquer outra fase/modelo de capitalismo, mas sim da sua autoridade ter sido colocada ao serviço das forças capitalistas mais predadoras, em especial financeiras, e deslocada para instituições supranacionais sem escrutínio democrático, como o banco central que está em Frankfurt. Hoje, as regras do jogo que sempre estruturam os mercados são demasiado favoráveis à redistribuição de recursos de baixo para cima. Temos então de reinstituir a autoridade do Estado nacional, a autoridade do Estado democrático, do Estado ao serviço da criação de freios e contrapesos, incluindo controlos de capitais, que facilitem a redistribuição de recursos, em sentido amplo, incluindo poder, de cima para baixo. São poucos ainda, da esquerda à direita, os que apostam neste projecto. São poucos ainda os que dão visibilidade e lutam por dar espaço institucional às nossas melhores disposições cooperativas, permitindo o seu florescimento.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
As luvas e os blindados submarinos
Na semana passada, soube-se – com espanto – do arquivamento do inquérito ao negócio de compra dos dois submarinos.
O processo alemão concluiu pela existência de pagamento de “luvas” em Portugal, mas o processo português não conseguiu encontrá-las. Em vez disso, o despacho de arquivamento dá conta de pormenores suficientemente pornográficos que acicatam a curiosidade em ver como foi que o Ministério Público chegou a um desfecho tão decepcionante.
Um dos aspectos escandalosos é que, nem por fraude fiscal, se pôde acusar os – parafreando Ricardo Salgado - três “tipos” da Escom que terão ficado com 15 dos 30 milhões de euros pagos pela firma alemã. Porquê? Porque beneficiaram do Regime Extraordinário de Regularização Tributário (RERT) que os protege de qualquer dessas acusações criminais.
Esses três, que são os principais suspeitos de terem pago as ditas “luvas”, preparavam-se em 2003, 2004 para se lançar em operações semelhantes à dos submarinos, com “carros blindados, fragatas, metralhadoras” (ver minuto 4:00).
E é esse aspecto que me suscitou curiosidade.
Paulo Núncio nasceu em 1968 e é advogado. Formou-se na Universidade Católica em 1992, é militante centrista, pertenceu à sua direcção, foi conselheiro de Paulo Portas, negociou com a troika em nome do CDS. Na década de 90, foi advogado na firma Morais Leitão, Galvão Teles & associados. Esta firma é associada de outra - a MLGT Madeira — Management & Investment - que aparece (ver o livro “Suite 605” de João Pedro Martins) como tendo usado um expediente de clonagem de empresas, com o mesmo nome e números diferentes, criando um "jogo de espelhos" às autoridades. Foi por causa disso que a zona franca da Madeira já foi colocada sob os holofotes das investigações fiscais internacionais, nomeadamente italianas. A MLGT Madeira criou, até Dezembro de 2004, um grupo de 112 sociedades com o mesmo nome, Taggia.
Na revista Offshore Investment Archive, de Maio de 1999, há um artigo assinado por Paulo Núncio, ligado à MLGT Madeira. Núncio desmente.
Em 2002, forma-se o Governo Durão Barroso, com Paulo Portas como ministro da Defesa. É durante o seu mandato, até 2005, que a compra dos dois submarinos é aprovada. O concurso público para a compra dos veículos anfíbios é lançado em 2003. Paulo Núncio surge em 2004 como advogado do fabricante austríaco Steyr (firma mais tarde comprada pela norte-americana General Dynamics).
A 30/11/2004, Jorge Sampaio dissolve o Parlamento. E seis dias depois, Paulo Portas despacha a adjudicação dos Pandur à Steyr. Em Janeiro de 2005, o concorrente finlandês queixa-se judicialmente. Mas a queixa não tem provimento e o contrato é assinado a 15/2/2005, cinco dias antes das eleições legislativas de 2005.
“Paulo Núncio esteve nas contrapartidas”, afirmou a 9/9/2014, na comissão parlamentar de inquérito à aquisição de equipamentos militares, Francisco Pita, o dono da empresa Fabrequipa que, em 2006, ganhou o direito de construir os veículos anfíbios Pandur II, (ver 3:03:00).
Pita foi militante do CDS desde 1974, membro da JC, candidato a deputado por diversas vezes, membro do conselho nacional em 1992, mas que apenas se cruzou com Portas na Universidade Católica (“fomos colegas”) e disse não conhecer nem nunca ter falado com ele sobre o contrato e que Portas está “limpo” no caso dos Pandur.
A candidatura da Steyr suscita dúvidas. A Steyr ganha o concurso público associada com a firma GOM (criada por ex-quadros da Bombardier) que – como conta Francisco Pita – não tinha nem experiência, nem fábrica, mas sim um projecto em power-point e um protótipo, mas sem planos fabris. Depois de um telefonema de “um amigo”, os donos da Fabrequipa - um construtor de semi-reboques - põe-se em campo e acabam por assinar um contrato de fabrico com a Steyr. Mas quando se dirige à comissão permanente de contrapartidas (CPC), o seu presidente, o engenheiro Rui Neves, diz-lhe que não pode ser considerado parte beneficiária do concurso, porque quem tem os direitos das contrapartidas era a firma GOM, nos valor de mais de cem milhões de euros. Por isso, Francisco Pita diz que foi “obrigado a comprar a GOM” (ver 33:30).
Mas a GOM não existia. “Não tinha fábrica, não tinha trabalhadores, vivia nos escritórios de um advogado”. “Ninguém me obrigou entre aspas a comprar a GOM: a GOM estava lá para ser comprada, qualquer empresário, qualquer industrial, qualquer pessoa normal se aperceberia disso. (...) Servia para quê? Servia para vender os direitos que tinha". (ver 1:11:00).
A “empresa” custou “alguns milhões de euros”. Francisco Pita não diz quanto foi ao certo. Mas pagou a quem? Pita esquiva-se. “Aos donos da GOM. Que eram... Agora vou ter de puxar pela cabeça, porque nunca conheci nenhum. Vou dizer porquê. Eu comprei uma empresa chamada GOM a uma offshore que era dona da GOM” (ver 1:12:15). Mas era fisicamente representada por quem? “Pelos advogados”. Mas quem? “Não vou revelar”. Pita é então admoestado a dizer. “Senhor deputado, não me recordo. Peço-lhe desculpa, não me recordo”. (ver 1:30:00). Os deputados aceitaram.
Paulo Núncio aparece quando a Fabrequipa é pressionada a assinar umas claims que Francisco Pita disse não estarem correctas. “De um lado, estava a empresa que queria assinar as contrapartidas como tinham de ser assinadas e do outro estava eu diria uma força enorme que quase estavam a nos obrigar as assinar as contrapartidas (...) Recordo-me que éramos uma 16 pessoas, ingleses, vieram americanos da KPMG, cada um a ditar da sua sapiência. Da minha parte estava a doutora Paula Cristina Lourenço e Germano Marques da Silva (...) Recordo que, do lado das contrapartidas que tinham de ser assinadas – e que eu não quis assinar – estava o dr Paulo Núncio, actual Secretário de Estado do Planeamento Fiscal que representava na altura, se a memória não me falha, a Steyr. Éramos muita gente. Recusei-me a assinar porque achava na altura que as contrapartidas eram uma coisa séria. E sempre achei. As contrapartidas não podem ser vistas como ‘ok, depois nós cumprimos’. Elas têm de ser cumpridas.”
A maioria PSD/CDS recusou a ida à comissão de Paulo Núncio.
A 4/4/2010, o ministério público checo investiga suspeitas de corrupção relacionadas com o caso Pandur II, contratualizados igualmente com a Steyr. A 20/8/2010, o MP português investiga suspeitas de corrupção no caso Pandur II. A 25/1/2011, o juiz Carlos Alexandre decide levar a julgamento todos os arguidos do processo de contrapartidas do caso dos submarinos. A 17/3/2011, o DCIAP pede informações sobre Paulo Portas ao Ministério Público de Munique que acusou dois ex-quadros da Ferrostaal de pagamento de mais de 62 milhões de euros em “luvas” para garantir negócio na Grécia e em Portugal (ver visão 18/12/2014).
A 4/4/2011, a PGR garantiu à comissão de inquérito parlamentar à compra de equipamentos militares, através de ofício classificado de confidencial assinado por Joana Marques Vidal, que "corre termo pelo DCIAP [...] uma averiguação preventiva com o nº 44/11, relativa aos Pandur".
Em Junho de 2011, pela mão de Paulo Portas, Paulo Núncio é nomeado secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
A 17/10/2011, dá entrada no Parlamento a proposta de OE 2012 que integra, encavalitado, a terceira versão do RERT (ver pag338), que concede uma amnistia criminal, mas - ao contrário das duas primeiras versões - sem qualquer obrigação do repatriamento dos capitais em fuga. A nova norma mal é discutida no Parlamento.
E é ao abrigo desse esquema de amnistia que os beneficiários do negócio dos submarinos conseguiram evitar os procedimentos criminais, levando ao arquivamento do inquérito da compra dos submarinos.
A 1/10/2014, o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) abriu um inquérito à aquisição dos Pandur. O inquérito foi aberto na sequência de terem surgido novos elementos, durante uma averiguação preventiva aberta em 2011, que indiciam a prática de eventuais crimes. Nos dias seguintes, os partidos da maioria fecham a comissão de inquérito.
Veremos como serão os próximos episódios.
Actualização: para que escritório Paulo Núncio se tornou consultor após a sua passagem pelo Governo? Morais Leitão, Galvão Meles, Soares da Silva & Associados, onde está igualmente como sócio António Lobo Xavier, ele igualmente militante do CDS. Paulo Núncio dá igualmente aulas do mestrado de fiscalizadade na Universidade Nova de Lisboa e, em 2016, foi distinguido personalidade do ano pela Associação Portuguesa de Fundos de Investimento. O que terá ele feito por isso?
domingo, 21 de dezembro de 2014
sábado, 20 de dezembro de 2014
Se te mexes morres
Esta semana a Assembleia da Republica discutiu a dívida pública, primeiro numa Conferência Parlamentar e depois no plenário. Participei na conferência parlamentar e não me pareceu ouvir ninguém, nem sequer os deputados da maioria, dizer, sem pestanejar, como a Ministra das Finanças, que "no caso português, e nomomento atual, o nível da dívida pública é reconhecidamente elevado, mas sustentável”.
O que ouvi dos que defenderam a necessidade de servir a dívida até ao último cêntimo, inclusive dos deputados da maioria, foram não argumentos de sustentabilidade, mas ameaças: pragas que se abateriam sobre nós no dia que decidíssemos renegociar a dívida.
Se te mexes morres. Da Grécia a Portugal a direita europeia está reduzida à razão da força bruta: se queres fazer pela vida tiramos-te o euro debaixo dos pés. Quanto tempo poderá uma união sobreviver à custa de força bruta?
Manifesto contra a privatização da TAP
«Somos um país com responsabilidades para com a imensa diáspora de cinco milhões de portugueses, dispersos pelos cinco continentes, e para com os que vivem nos Açores e na Madeira, mas também para com os cidadãos das antigas colónias, na América Latina, em África e no Oriente, um espaço de 250 milhões de falantes da mesma língua: o português.
(...) Se a decisão de privatizar tudo e a todo o custo não obedecesse a um plano para afastar o Estado da economia (e, na floresta dos interesses, sem o Estado, o mercado transforma-se numa selva), o Governo devia ter aprendido com as recentes, graves e desastrosas privatizações de sectores estratégicos da nossa economia - que representaram, também, uma alienação da nossa soberania. Os que alimentam o mito conveniente de que os privados nos libertam dos riscos da má gestão pública deviam, no mínimo, sentir-se abalados pelos casos do BPN (os gastos com a intervenção no BPN cobririam mais de 40 vezes a dívida da TAP), do BES ou da PT.
(...) A TAP é património nacional. E o Governo, qualquer Governo, não pode dispor do património do país como se fosse dele. O Presidente da República tem, por isso, nas mãos, e os portugueses, enquanto cidadãos, têm na voz com que podem exprimir o seu protesto, os instrumentos para travar esta decisão danosa para o interesse nacional. (...) Um país que entrega tudo à iniciativa privada, fica privado de iniciativa.»
Do Manifesto contra a venda da companhia aérea portuguesa, «Não TAP os olhos», já subscrito por cerca de 100 personalidades e que pode ser lido na íntegra aqui.
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
Das privatizações de transportadoras aéreas
"O investimento directo estrangeiro pode destruir capacidade produtiva instalada através do "desmembramento de activos". Por exemplo, quando a transportadora aérea espanhola Iberia comprou algumas companhias aéreas na América latina durante os anos 90, trocou os seus aviões velhos pelos novos detidos por estas companhias, conduzindo algumas destas à falência devido à degradação dos serviços prestados e aos altos custos de manutenção."
Ha-Joon Chang, "Bad Samaritans", p. 76.
«Dispensa» massiva de professores: demografia, troika e ideologia
No post da semana passada, procurei demonstrar que a redução brutal do número de docentes no ensino básico e secundário não encontra justificação no proclamado «factor demográfico» (que traduziria o impacto da quebra da natalidade na diminuição do número de alunos), nem num suposto aumento de «eficiência» na gestão dos recursos humanos da educação (dado que a proporção entre alunos e professores evoluiu negativamente em todos os níveis de ensino entre 2010/11 e 2012/13).
De facto, em matéria de «eficiência», a comparação da proporção entre alunos e docentes no período considerado permite-nos confirmar as consequências práticas das decisões da tutela relativamente ao aumento do número de alunos por turma nos diferentes níveis de ensino. Isto é, caso se tratasse efectivamente da obtenção de «maior eficiência», a diminuição do contingente de professores não implicaria um agravamento dessa mesma relação.
Tentemos pois apurar quanto há de «demográfico» na diminuição do número de professores verificada entre 2010/11 e 2012/13 e quanto há de «ofensiva ideológica» à Escola Pública, pela via da diminuição deliberada dos recursos humanos da educação (tendo em vista, para lá da efectivação dos cortes no Estado Social, criar um exército de mão-de-obra desempregada, em condições de ser cooptada, a baixo custo, pelos estabelecimentos do ensino particular e cooperativo).
Assim, face aos constrangimentos de natureza estatística, que inviabilizam cálculos mais específicos (isto é, por ano de escolaridade), assumamos que uma redução do número de professores estritamente associada às quebras da natalidade se traduziria na manutenção dos índices de proporcionalidade entre docentes e alunos registados em 2010/11, nos diferentes níveis de ensino.
Se assim fosse, concluímos facilmente que não teria sido necessário «dispensar» cerca de 2.600 professores no 1º ciclo do ensino básico (mas apenas cerca de 1.500) e 7.000 no 2º ciclo do ensino básico (mas apenas 1.400). E em relação ao 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário, não só não teria sido necessário «dispensar» nenhum professor como a manutenção da proporcionalidade entre professores e alunos obrigaria a contratar cerca de 2.300 novos docentes. O que significa que, globalmente, a estrita aplicação do «factor demográfico» representaria uma redução de cerca de 630 professores e não dos 23.000 que foram efectivamente «dispensados» ao longo deste período.
O despedimento massivo de docentes do ensino básico e secundário explica-se portanto, como demostra o gráfico, fundamentalmente por razões de natureza ideológica, que actuam sob o manto protector da troika e do Memorando de Entendimento assinado em Maio de 2011 (com os seus considerandos sobre «racionalização» de meios e aumento da «eficiência»). E sublinhe-se, igualmente, que não estamos a incluir na análise a devastação ao nível da Educação e Formação de Adultos (que teve o Programa «Novas Oportunidades» como alvo de estimação), nem a considerar a desejável redução do número de alunos por turma, entendendo-a como elemento central no desafio de recuperação do atraso estrutural português, em matéria de educação e qualificações escolares.
De facto, em matéria de «eficiência», a comparação da proporção entre alunos e docentes no período considerado permite-nos confirmar as consequências práticas das decisões da tutela relativamente ao aumento do número de alunos por turma nos diferentes níveis de ensino. Isto é, caso se tratasse efectivamente da obtenção de «maior eficiência», a diminuição do contingente de professores não implicaria um agravamento dessa mesma relação.
Tentemos pois apurar quanto há de «demográfico» na diminuição do número de professores verificada entre 2010/11 e 2012/13 e quanto há de «ofensiva ideológica» à Escola Pública, pela via da diminuição deliberada dos recursos humanos da educação (tendo em vista, para lá da efectivação dos cortes no Estado Social, criar um exército de mão-de-obra desempregada, em condições de ser cooptada, a baixo custo, pelos estabelecimentos do ensino particular e cooperativo).
Assim, face aos constrangimentos de natureza estatística, que inviabilizam cálculos mais específicos (isto é, por ano de escolaridade), assumamos que uma redução do número de professores estritamente associada às quebras da natalidade se traduziria na manutenção dos índices de proporcionalidade entre docentes e alunos registados em 2010/11, nos diferentes níveis de ensino.
Se assim fosse, concluímos facilmente que não teria sido necessário «dispensar» cerca de 2.600 professores no 1º ciclo do ensino básico (mas apenas cerca de 1.500) e 7.000 no 2º ciclo do ensino básico (mas apenas 1.400). E em relação ao 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário, não só não teria sido necessário «dispensar» nenhum professor como a manutenção da proporcionalidade entre professores e alunos obrigaria a contratar cerca de 2.300 novos docentes. O que significa que, globalmente, a estrita aplicação do «factor demográfico» representaria uma redução de cerca de 630 professores e não dos 23.000 que foram efectivamente «dispensados» ao longo deste período.
O despedimento massivo de docentes do ensino básico e secundário explica-se portanto, como demostra o gráfico, fundamentalmente por razões de natureza ideológica, que actuam sob o manto protector da troika e do Memorando de Entendimento assinado em Maio de 2011 (com os seus considerandos sobre «racionalização» de meios e aumento da «eficiência»). E sublinhe-se, igualmente, que não estamos a incluir na análise a devastação ao nível da Educação e Formação de Adultos (que teve o Programa «Novas Oportunidades» como alvo de estimação), nem a considerar a desejável redução do número de alunos por turma, entendendo-a como elemento central no desafio de recuperação do atraso estrutural português, em matéria de educação e qualificações escolares.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
Podemos
Em tempos muito sombrios, o reconhecimento norte-americano do fracasso da sua política face a Cuba, acompanhado do restabelecimento de relações diplomáticas, é uma excelente notícia para o povo cubano, para todos os que sempre contestaram um bloqueio que ainda não foi eliminado. Sê-lo-á, eventualmente. As formas grosseiras de ingerência não vergaram uma ilha que, apesar de tudo, e como se sublinha nesta recente e completa radiografia à formação social caribenha, continua a surpreender no campo socioeconómico, em especial quando comparada com os países que mergulharam sem protecções nas águas demasiado agitadas do capitalismo neoliberal nos anos noventa. A transição pode e dever ser gerida soberanamente e não tem de conduzir a novos pátios das traseiras.
Do petróleo barato à reestruturação da dívida
A queda do preço do petróleo pode constituir um sinal do fim iminente de um período de juros anormalmente baixos. Se assim for, as consequências para a dívida pública portuguesa serão directas e imediatas.
Discute-se por estes dias na Assembleia da República a questão da dívida pública portuguesa, da sua (in)sustentabilidade e da bondade ou não da sua reestruturação. É talvez o debate fulcral - ou pelo menos um dos debates fulcrais - da economia portuguesa, que não vai deixar de ganhar importância nos tempos que se avizinham.
Aqueles que, tal como eu, defendem a reestruturação fazem-no principalmente por considerarem que a dívida pública portuguesa é impossível de pagar e que, por esse motivo, embora a imposição soberana de uma reestruturação não seja um acto de somenos importância ou isento de consequências, é obviamente preferível à alternativa: manter a economia sujeita à pressão da austeridade e à sangria dos juros durante mais uma série de anos até desembocarmos finalmente no mesmo desenlace.
Em contrapartida, aqueles que se opõem à reestruturação consideram, em primeiro lugar, que as consequências da reestruturação são tão danosas que não devem ser consideradas. Mas uma vez que não podem fugir eternamente à questão da sustentabilidade, têm também de adoptar uma de duas posições: ou que a dívida pública portuguesa pode ser paga; ou então que, embora não possa ser paga, devemos confiar na gradual concessão de reestruturações discretas, em jeito de benesses, por parte dos credores - desde que não se agite muito as águas e que não se ponha em causa o controlo dos credores sobre o processo.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
Aviões, caravelas e o Portugal dos pequenitos
«Pode a importância actual da TAP ser comparada à que "as caravelas tiveram no século XV para os Descobrimentos"? Pode, é um pouco forçado, mas pode. As caravelas não foram feitas pelo Estado, nem a sua tecnologia dependeu de instituições públicas, mas sem o apoio do Monarca a história teria sido bem diferente. (...) Uma das melhores histórias económicas europeias recentemente publicadas defende precisamente a tese de que o Estado foi fundamental para garantir o bom funcionamento das instituições, incluindo os mercados. (...) A Holanda é o caso paradigmático disso. E o Portugal das caravelas não terá ficado atrás. (...) A ideia de que o Estado é um empecilho não faz sentido para além de um determinado limite e a dificuldade é determinar esse limite. No Portugal de Passos e da troika, obviamente, esse limite foi há muito ultrapassado. (...) É bom ter estes temas no topo da agenda política e, se for preciso ir buscar argumentos ao antigamente, que se vão buscar. Claro que nada disto é apenas economia, propriamente dita. É mais.»
Pedro Lains, TAPvelas
«Quanto custa a privatização da EDP, paga pela economia com uma factura energética sufocante? E a privatização da ANA, cujas tarifas triplicaram poucos dias depois da privatização? Quem compensará a perda dos dividendos dos CTT e dos 20% da EDP? Acho interessantíssimo saber quanto perde o turismo nacional por não a ter a TAP a funcionar no fim do ano. Mas quando perderá o turismo nacional quando os novos donos da TAP decidirem que há prioridades mais interessantes ou escalas mais vantajosas do que os aeroportos nacionais? Ou quando a venderem a outros e Portugal ficar sem companhia aérea?»
Daniel Oliveira, E quanto custará não travar a privatização da TAP?
«Na fúria de vender o país a qualquer preço, o governo resolveu vender também a TAP, que é um dos grandes símbolos nacionais. Fá-lo porque só tem por objetivo obter receitas a qualquer preço. É o único critério que o move. Contudo, a TAP é um instrumento fundamental de afirmação da nossa política interna e de todos os países lusófonos. Este governo não tem nenhuma cultura lusófona e não entende, de todo, a importância que têm para Portugal os países independentes que falam a nossa língua. Neste mundo global, onde somos a quinta língua mais falada do mundo, perder o controlo deste instrumento de soberania que é a TAP é de extrema gravidade. (...) Sejamos claros - é algo de antipatriótico que não é aceitável.»
Mário Soares, Uma greve patriótica
Adenda: Para os que ainda acreditam nas virtudes das privatizações para os consumidores, associadas aos impactos positivos na concorrência resultantes da abertura dos mercados, com consequentes descidas no preço dos bens e serviços, a ERSE acaba de confirmar que a conta da luz vai aumentar 3,3% em 2015 (e sobre a relação entre o preço do petróleo e da electricidade, que ora convém enfatizar, ora convém aligeirar, revisite-se este post de António Sousa).
Pedro Lains, TAPvelas
«Quanto custa a privatização da EDP, paga pela economia com uma factura energética sufocante? E a privatização da ANA, cujas tarifas triplicaram poucos dias depois da privatização? Quem compensará a perda dos dividendos dos CTT e dos 20% da EDP? Acho interessantíssimo saber quanto perde o turismo nacional por não a ter a TAP a funcionar no fim do ano. Mas quando perderá o turismo nacional quando os novos donos da TAP decidirem que há prioridades mais interessantes ou escalas mais vantajosas do que os aeroportos nacionais? Ou quando a venderem a outros e Portugal ficar sem companhia aérea?»
Daniel Oliveira, E quanto custará não travar a privatização da TAP?
«Na fúria de vender o país a qualquer preço, o governo resolveu vender também a TAP, que é um dos grandes símbolos nacionais. Fá-lo porque só tem por objetivo obter receitas a qualquer preço. É o único critério que o move. Contudo, a TAP é um instrumento fundamental de afirmação da nossa política interna e de todos os países lusófonos. Este governo não tem nenhuma cultura lusófona e não entende, de todo, a importância que têm para Portugal os países independentes que falam a nossa língua. Neste mundo global, onde somos a quinta língua mais falada do mundo, perder o controlo deste instrumento de soberania que é a TAP é de extrema gravidade. (...) Sejamos claros - é algo de antipatriótico que não é aceitável.»
Mário Soares, Uma greve patriótica
Adenda: Para os que ainda acreditam nas virtudes das privatizações para os consumidores, associadas aos impactos positivos na concorrência resultantes da abertura dos mercados, com consequentes descidas no preço dos bens e serviços, a ERSE acaba de confirmar que a conta da luz vai aumentar 3,3% em 2015 (e sobre a relação entre o preço do petróleo e da electricidade, que ora convém enfatizar, ora convém aligeirar, revisite-se este post de António Sousa).
terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Darwin não mora nas cabeças de Crato e de Passos
A propósito das opções do actual governo no que toca ao financiamento da ciência em Portugal, diz o primeiro-ministro que apenas as instituições "muito boas ou excelentes" terão financiamento do Estado.
Sobre isto, aconselho a leitura do artigo da bióloga Filipa Vala na última edição do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa, que sintetiza os resultados de alguns estudos internacionais de referência sobre política científica. A mensagem é, essencialmente, a seguinte.
Se "o propósito da alocação de fundos é maximizar o impacto científico dos beneficiados como um todo", então "é preferível adotar uma política de 'muitos pequenos', a uma política de 'poucos grandes'". Isto por duas razões.
Primeiro, "se é necessário que uma equipa seja financiada para que haja produtividade com impacto (excelência), não é verdade que a produtividade de excelência dessa equipa aumenta de forma proporcional ao volume de financiamento total."
Em segundo lugar, "uma política de 'muitos pequenos' mantém mais gente no sistema científico e tecnológico, promovendo diversidade de temas e de abordagens e aumentando, assim, a probabilidade de se materializarem soluções inovadoras e descobertas de grande importância. Ou seja, a probabilidade de se materializar excelência."
Às vezes, é mesmo preciso conhecer a teoria darwinista para perceber que a selecção só é útil se estiver garantida à partida uma boa dose de diversidade. De resto, Nuno Crato e Pedro Passos Coelho sempre pareceram ter mais inclinação para o eugenismo do que para o darwinismo.
Sobre isto, aconselho a leitura do artigo da bióloga Filipa Vala na última edição do Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa, que sintetiza os resultados de alguns estudos internacionais de referência sobre política científica. A mensagem é, essencialmente, a seguinte.
Se "o propósito da alocação de fundos é maximizar o impacto científico dos beneficiados como um todo", então "é preferível adotar uma política de 'muitos pequenos', a uma política de 'poucos grandes'". Isto por duas razões.
Primeiro, "se é necessário que uma equipa seja financiada para que haja produtividade com impacto (excelência), não é verdade que a produtividade de excelência dessa equipa aumenta de forma proporcional ao volume de financiamento total."
Em segundo lugar, "uma política de 'muitos pequenos' mantém mais gente no sistema científico e tecnológico, promovendo diversidade de temas e de abordagens e aumentando, assim, a probabilidade de se materializarem soluções inovadoras e descobertas de grande importância. Ou seja, a probabilidade de se materializar excelência."
Às vezes, é mesmo preciso conhecer a teoria darwinista para perceber que a selecção só é útil se estiver garantida à partida uma boa dose de diversidade. De resto, Nuno Crato e Pedro Passos Coelho sempre pareceram ter mais inclinação para o eugenismo do que para o darwinismo.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
O mexilhão e as notícias apressadas
Ou de como o ilusionismo político e o jornalismo apressado podem conspirar contra a compreensão da realidade.
No mesmo dia da semana passada [5 de Dezembro], duas notícias relacionadas e consistentes entre si. Em Braga, num seminário sobre Economia Social, Passos Coelho elogiou a justiça social das medidas tomadas pelo seu Governo, afirmando que no contexto da actual crise, "ao contrário do que era o jargão popular de que quem se lixa é o mexilhão, de que são sempre os mesmos (...) desta vez todos contribuíram e contribuiu mais quem tinha mais, disso não há dúvida". Segundo o primeiro-ministro, "a crise não agravou as desigualdades, houve até uma tendência para corrigir algumas delas".
Exactamente no mesmo dia, corroborando as palavras de Passos Coelho, a Lusa publicou uma notícia que dava conta da publicação de um relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre a evolução dos salários e da desigualdade a nível global (o "Global Wage Report 2014/2015"). Nas versões adaptadas e republicadas tanto pelo Expresso como pelo Jornal de Negócios (que foram as que encontrei), lia-se aí que em Portugal, "nos últimos anos", a desigualdade entre as famílias de maior e menor rendimento ter-se-á reduzido em virtude das primeiras terem sofrido uma maior perda de rendimento. Ou seja, temos as belas palavras do primeiro-ministro, mas temos também, a apoiá-las, os dados sólidos e objectivos do estudo da OIT. Parece que todos teremos sofrido, mas os mais ricos até terão sofrido mais do que os mais pobres. O mexilhão não foi quem verdadeiramente se lixou.
Claro que os mais desconfiados poderão achar difícil conciliar estes dados com tudo o que sabemos sobre as políticas de austeridade implementadas em Portugal nos últimos anos. Ou sobre a própria economia política da recessão e sobre a forma como o desemprego generalizado pressiona em baixa os salários, o que aliás tem constituído, admitidamente, uma parte central da estratégia do Governo - a funesta "desvalorização interna".
No mínimo, parece estranho.
E é mesmo. Se nos dermos ao trabalho de consultar o dito relatório da OIT (p.24), verificamos que a conclusão que aí se retira relativamente à evolução da desigualdade em Portugal é efectivamente a que indica a notícia da Lusa... só que "os últimos anos", afinal, correspondem ao período 2006-2010.
Infelizmente, os dados sobre desigualdade são relativamente escassos e produzidos com algum desfasamento temporal, ao qual se soma ainda o desfasamento adicional associado ao tempo de elaboração de relatórios deste tipo. Daí que a OIT publique um relatório global "2014-2015" em que a análise da evolução da desigualdade de rendimento no contexto da crise se detenha... em 2010.
Mas por acaso até sabemos um pouco mais sobre a evolução posterior da desigualdade em Portugal. Sabemos, por exemplo, que o coeficiente de Gini (tanto mais elevado quanto maior a desigualdade), depois de ter registado uma notável redução de 38,1 em 2005 para 33,7 em 2010, voltou a subir para 34,2 em 2011, 34,5 em 2012 e novamente 34,2 em 2013. E sabemos também, por exemplo, que a percentagem da população em risco de pobreza (que é também uma medida da desigualdade, uma vez que se trata de pobreza relativa) aumentou de 24,9% em 2009 para 27,4% em 2013. E isto para não falar das centenas de milhar de pessoas que se viram forçadas a emigrar, deixando de contar para estas estatísticas. Os dados não abundam, mas os que existem são consistentes com o que a maioria percebe claramente: tem mesmo sido o mexilhão a lixar-se.
Que o primeiro ministro tem, digamos, uma relação flexível com a verdade é algo já bastante conhecido. Mas dos jornalistas, enquanto baluarte de uma sociedade democrática, espera-se menos pressa e mais cuidado. Especialmente quando estão em causa questões desta importância.
(publicado originalmente no Expresso online em 10/12/2014)
Ajuda grega
A hipótese de antecipação de eleições legislativas na Grécia para o início de 2015 e a mais do que provável vitória do Syriza estão a agitar os especuladores, tendo a bolsa grega desvalorizado 20% na semana passada. Ambrose Evans-Pritchard resume bem a situação num país devastado pela austeridade, pelo “tratamento colonial e pela servidão da dívida” – mais de um quarto da força de trabalho desempregada e uma queda superior a 60% do investimento, por exemplo: perante uma vitória do Syriza, ou as instituições europeias, leia-se os credores, cedem em toda a linha ou a Grécia é obrigada a sair do euro. Quando chegar o telefonema ou carta ameaçadora do BCE, o Syriza deve responder com um “façam o vosso pior”, defende este sempre interessante comentador do conservador Daily Telegraph. Este jogo é condição necessária para se defender a dignidade do povo grego e resgatar a democracia do seu sequestro austeritário europeu. Há pelo menos uma terceira hipótese, a ser trabalhada pelo Financial Times, que é a do Syriza ceder à brutal pressão e ser cooptado pelo status quo em nome de promessas europeias vagas à boleia do seu programa cada vez mais moderado. A Grécia poderá em breve ajudar a clarificar as opções com que as esquerdas estão confrontadas, eliminando muitas fantasias que ainda circulam por aí.
domingo, 14 de dezembro de 2014
Continuar a combater a dívida
Em consequência das petições dirigidas à Assembleia da República, nomeadamente a petição Pobreza não paga a Dívida: reestruturação já!, realiza-se no próximo dia 16 de dezembro de 2014, na Sala do Senado, na Assembleia da República, uma Conferência Parlamentar sobre Dívida Pública.
A Conferência é aberta ao público (sujeita à lotação da sala). As inscrições poderão ser efetuadas aqui:
Participarei no Painel sobre a “Sustentabilidade da Dívida Pública”, às 15 horas. O programa está aqui. É preciso insistir: o Estado português deve preparar-se para a renegociação e reestruturação da dívida.
No dia seguinte, 17 Dezembro 2014, pelas 18:30 horas, na Casa da América Latina, Avenida 24 de Julho nº 118-B, Lisboa, a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida (IAC) promove um debate sobre “Restruturações anti-abutre: Lições da América Latina” com Jorge Argüello (Embaixador da República Argentina) e Eugénia Pires (IAC).
sábado, 13 de dezembro de 2014
António Borges quis nacionalizar as PPPs, o Governo recusou
Num capítulo intitulado “O superministro que perdeu (quase) todas as competências”, Álvaro dá conta da campanha que lhe foi feita na comunicação social dando a entender que, em poucos meses e por causa da sua inexperiência, o seu ministério tinha sido esvaziado. Álvaro Santos Pereira apenas lamenta ter perdido a AICEP para o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
“Neste sentido, não é de todo verdade que António Borges tenha ficado encarregue dos processos das privatizações e das PPPs. Digo isto com muito à vontade, pois sempre tive um grande respeito e a maior consideração pelo trabalho de António Borges. Porém, o certo é que António Borges era um (excelente) consultor de Finanças e não do Ministério da Economia. Embora influente, não só não era um decisor político, como também muitas vezes defendeu algumas opções técnicas que nunca foram para a frente”...
É aqui que entra a divulgação do estranho conselho dado por Borges aos responsáveis do Ministério das Finanças: ...“tal como a possibilidade de o Estado resgatar as concessões das PPPs para depois as vender em bloco a investidores estrangeiros”.
Santos Pereira não avança mais pormenores da proposta, mas supõe-se que ao “resgatar” - leia-se nacionalizar – o Estado estaria em condições de redefinir os termos das concessões e revender os contratos, defendendo melhor a posição do Estado. Ou seja, na prática – e mesmo nos termos da proposta de Borges - poder-se-iam ter reduzido substancialmente os encargos futuros com as PPPs. Mas a ideia não vingou. Porquê?
Diz o ex-ministro: Era “uma ideia interessante na teoria, mas que, na prática, tinha toda uma série de inconvenientes e desvantagens e que, por isso nunca vingou.”
Quais seriam as desvantagens? Um governo de direita realizar nacionalizações? Mas não seria o primeiro na História da Europa. Será que o Governo preteriu o interesse nacional, a chamuscar-se com uma nacionalização? Veja-se o escarcéu feito por causa do BES e da sua recusa em intervir na esfera privada...
Mas se os economistas liberais gostam de optar com base nos custos efectivos do que está em causa, então a nacionalização deveria ter sido encarada de frente.
“O que avançou foi a posição que o Ministério da Economia sempre defendeu, que envolvia uma renegociação com os concessionários de forma a diminuir as taxas de rentabilidade dessas PPPs”, diz o ex-ministro.
Resta saber qual das soluções seria mais vantajosa para o erário público e para o país. Imagino a fraca capacidade de pressionar uma negociação, em condições satisfatórias para os interesses do Estado, se a nacionalização foi posta de lado...
Questione-se o Ministério das Finanças sobre essa proposta de Borges e veremos o que dizem...
Um, dois, três debates
1. Este fim-de-semana terá lugar a Assembleia Cidadã organizada pelo Junto Podemos. Participarei num debate onde procurarei aprofundar a reflexão sobre populismos, confrontações e regimes. Do Ladrões também participará o Jorge Bateira na mesma linha soberanista, necessariamente eurocéptica ou eurorealista, como preferirem.
2. Na próxima terça-feira, dia 16, pelas 14h, terá lugar um seminário no CES sobre o poder pós-democrático da financeirização. Procurarei ir um pouco para lá da ideia de que o neoliberalismo é uma mera expressão ideológica do poder financeiro. Do Ladrões intervêm igualmente o Nuno Teles e o Ricardo Paes Mamede, a que se juntam José Reis, Ana Cordeiro Santos e Mariana Mortágua.
3. Na próxima quarta-feira, dia 17, realiza-se, pelas 18h na FEUC, um debate a propósito do livro A economia política do retrocesso, com João Cravinho. José Reis e eu responderemos por um livro colectivo.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
Da novilíngua em Educação: a «eficiência»
Num ambiente de profundo secretismo, o Ministério da Educação tem andado a negociar «contratos de autonomia» com quinze municípios portugueses. Nesse âmbito, o ministro Nuno Crato pretende transferir para as câmaras competências na gestão dos docentes em cada concelho (com horários zero ou horários incompletos), estimando que a redução de efectivos nesse universo possa situar-se em cerca de 10% nos próximos quatro anos.
Para cumprir esta meta, o ministério terá proposto, aos quinze municípios associados a esta experiência-piloto de «municipalização da educação», um «coeficiente de eficiência», ao abrigo do qual se prevê um incentivo financeiro, na ordem dos 13 mil euros, por cada professor dispensado (por referência «ao número expectável de docentes» por concelho). Segundo o director de uma das escolas envolvidas no processo, o que a novilíngua de Nuno Crato procura ocultar é bastante claro: para o ministério «um concelho é considerado eficiente se tiver menos professores do que os necessários».
Importa pois sublinhar a devastação levada a cabo pelo ministro Nuno Crato nos últimos anos, em matéria redução do número de docentes nas escolas. A justificação que é recorrentemente apresentada aponta, bem o sabemos, para um suposto «factor demográfico». Isto é, a necessidade de despedir professores não teria por base fundamentos economicistas ou ideológicos (ataque ao ensino público em favor dos privados), decorrendo apenas da diminuição do número de alunos resultante da quebra consecutiva da Taxa de Natalidade. Uma fraude argumentativa que os dados do próprio ministério se encarregam de denunciar.
De facto, apenas se contabilizássemos o total de alunos matriculados (independentemente da idade) poderíamos falar num «efeito demográfico» susceptível de justificar o grau de redução de pessoal docente nas escolas. Mas isso implicaria uma leitura bastante peculiar dos dados: a de encarar os alunos adultos (que frequentam o ensino básico ou secundário) como evidências da diminuição da natalidade nos últimos anos. Não sendo assim, o que se constata é que - considerando apenas os alunos jovens - a redução do número de professores entre 2010/11 e 2012/13 atinge níveis de variação negativa muitíssimo superiores aos verificados em relação ao número de alunos.
O caso do 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário é particularmente elucidativo. Perante um aumento de 3% no número de alunos matriculados nestes níveis de ensino em 2010/11 e 2012/13, o Ministério da Educação respondeu com uma diminuição - a rondar os 16% - do número de docentes. E, seja como for, em qualquer nível do ensino básico e secundário que se considere, a taxa de variação do número de docentes é sempre superior à taxa de variação do número de alunos.
Perante estes dados, poderá argumentar-se que o «ajustamento» verificado no contigente global de professores se justifica pelo estúpido desinvestimento de Nuno Crato em tudo o que tenha que ver com as «Novas Oportunidades» e a Educação de Adultos (sublinhe-se, a este propósito, que em 2012/13 estavam matriculados cerca de menos 140 mil adultos, face aos dados de 2010/11). Só que, se fosse estritamente esse o objectivo, a proporção de alunos em idade jovem por docente, nos diferentes níveis de ensino, não teria sofrido alterações. O que não aconteceu, como mostra a tabela seguinte:
De facto, se contabilizarmos como alunos apenas a população jovem, regista-se um aumento, em todos os níveis do básico e secundário, dos valores dessa proporção. Ou seja, o universo de alunos reduziu em muito menor grau que o universo de professores. E se dúvidas restassem, os dados globais falam por si: a variação global negativa do número de alunos (jovens) matriculados (na ordem dos -14 mil), entre 2010/11 e 2012/13, é cerca de metade da redução verificada no número de docentes (a rondar os -23 mil). E estamos a falar de uma realidade que reporta a 2012/13, ou seja, que não reflecte ainda o ano lectivo de 2013/14, em que esta dinâmica de destruição do sistema de ensino certamente se acentuou. Uma destruição que Nuno Crato pretende aprofundar nos próximos quatro anos, com os seus cínicos «coeficientes de eficiência», a implementar no âmbito do sinistro projecto de «municipalização da educação».
Para cumprir esta meta, o ministério terá proposto, aos quinze municípios associados a esta experiência-piloto de «municipalização da educação», um «coeficiente de eficiência», ao abrigo do qual se prevê um incentivo financeiro, na ordem dos 13 mil euros, por cada professor dispensado (por referência «ao número expectável de docentes» por concelho). Segundo o director de uma das escolas envolvidas no processo, o que a novilíngua de Nuno Crato procura ocultar é bastante claro: para o ministério «um concelho é considerado eficiente se tiver menos professores do que os necessários».
Importa pois sublinhar a devastação levada a cabo pelo ministro Nuno Crato nos últimos anos, em matéria redução do número de docentes nas escolas. A justificação que é recorrentemente apresentada aponta, bem o sabemos, para um suposto «factor demográfico». Isto é, a necessidade de despedir professores não teria por base fundamentos economicistas ou ideológicos (ataque ao ensino público em favor dos privados), decorrendo apenas da diminuição do número de alunos resultante da quebra consecutiva da Taxa de Natalidade. Uma fraude argumentativa que os dados do próprio ministério se encarregam de denunciar.
De facto, apenas se contabilizássemos o total de alunos matriculados (independentemente da idade) poderíamos falar num «efeito demográfico» susceptível de justificar o grau de redução de pessoal docente nas escolas. Mas isso implicaria uma leitura bastante peculiar dos dados: a de encarar os alunos adultos (que frequentam o ensino básico ou secundário) como evidências da diminuição da natalidade nos últimos anos. Não sendo assim, o que se constata é que - considerando apenas os alunos jovens - a redução do número de professores entre 2010/11 e 2012/13 atinge níveis de variação negativa muitíssimo superiores aos verificados em relação ao número de alunos.
O caso do 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário é particularmente elucidativo. Perante um aumento de 3% no número de alunos matriculados nestes níveis de ensino em 2010/11 e 2012/13, o Ministério da Educação respondeu com uma diminuição - a rondar os 16% - do número de docentes. E, seja como for, em qualquer nível do ensino básico e secundário que se considere, a taxa de variação do número de docentes é sempre superior à taxa de variação do número de alunos.
Perante estes dados, poderá argumentar-se que o «ajustamento» verificado no contigente global de professores se justifica pelo estúpido desinvestimento de Nuno Crato em tudo o que tenha que ver com as «Novas Oportunidades» e a Educação de Adultos (sublinhe-se, a este propósito, que em 2012/13 estavam matriculados cerca de menos 140 mil adultos, face aos dados de 2010/11). Só que, se fosse estritamente esse o objectivo, a proporção de alunos em idade jovem por docente, nos diferentes níveis de ensino, não teria sofrido alterações. O que não aconteceu, como mostra a tabela seguinte:
De facto, se contabilizarmos como alunos apenas a população jovem, regista-se um aumento, em todos os níveis do básico e secundário, dos valores dessa proporção. Ou seja, o universo de alunos reduziu em muito menor grau que o universo de professores. E se dúvidas restassem, os dados globais falam por si: a variação global negativa do número de alunos (jovens) matriculados (na ordem dos -14 mil), entre 2010/11 e 2012/13, é cerca de metade da redução verificada no número de docentes (a rondar os -23 mil). E estamos a falar de uma realidade que reporta a 2012/13, ou seja, que não reflecte ainda o ano lectivo de 2013/14, em que esta dinâmica de destruição do sistema de ensino certamente se acentuou. Uma destruição que Nuno Crato pretende aprofundar nos próximos quatro anos, com os seus cínicos «coeficientes de eficiência», a implementar no âmbito do sinistro projecto de «municipalização da educação».
Metidos num sarilho
Merkel e Schäuble concordam com a Comissão Europeia: a França e a Itália podem adiar o cumprimento do Tratado Orçamental desde que prossigam o caminho das reformas estruturais. Quanto a estas, sabemos bem o que significam. Quem tiver dúvidas pode consultar o "Annual Growth Survey 2015", onde se referem algumas dessas reformas. Por exemplo, promover o emprego exige reformas que acabem com a "segmentação" do mercado de trabalho, quer dizer, a eliminação de direitos, para que a precariedade seja a regra. Um mercado de trabalho sem Código do Trabalho - um mercado como o de uma qualquer mercadoria básica - parece ser o objectivo último desta reforma estrutural. É este o roteiro da UE para promover o emprego.
A política económica "séria", a que é partilhada pelos economistas que trabalham para os governos, CE e BCE, concentra-se nas condições da oferta nos mercados de bens e serviços - custos de produção, burocracia, leis laborais, "activação" dos desempregados, carga fiscal, etc. - e, quando a conjuntura é má, recorre à política monetária (juros, crédito). No seu discurso está sempre presente um pressuposto: a oferta é geradora da respectiva procura. Com base neste e noutros pressupostos (expectativas racionais) há muito criticados, a política orçamental foi desvalorizada com a ascensão do neoliberalismo. É isso que explica a incapacidade da UE para lidar com os efeitos desastrosos da austeridade que adoptou a partir de 2010.
Essa linhagem da teoria económica, na versão alemã do ordoliberalismo, formatou o Tratado de Maastricht e os seus aditamentos, caso do Tratado Orçamental. Como lembra Simon Wren-Lewis ("Why We Need Our Fiscal Policy Instrument Back"), até no auge da crise, em 2009, choveram críticas à decisão da UE de recorrer à política orçamental: "Porque deveriam os governos endividar-se mais quando os consumidores e as empresas tinham de reduzir as suas dívidas? Para os que não fizeram uma cadeira de Economia (o que inclui a maior parte dos jornalistas da política), o discurso dos políticos da direita, dizendo que os governos deveriam actuar como donas de casa prudentes, parecia fazer sentido. A Grécia e a subsequente crise da zona euro só pareciam confirmar esta ideia. O fetichismo do défice generalizou-se.
Perante a ameaça da deflação, e com a política orçamental bloqueada, cabe à política monetária salvar a UE. Sim, com o fim do euro também se afunda esta UE. Aflito, Draghi promete que levará a intervenção do BCE até aos limites da mais flexível interpretação do seu mandato: imitar, em menor escala, os bancos centrais que inundaram de liquidez o sistema financeiro mundial, provocando as bolhas especulativas que estão para rebentar. O que Draghi não pode dizer com clareza é que só uma política orçamental em grande escala pode salvar a zona euro. Ele sabe que, por maior que seja a liquidez nos bancos, as empresas não vão aumentar a procura de crédito para investir quando as vendas estagnaram ou estão em baixa. E também sabe que o grande plano de investimento de Juncker não passa de uma complicada engenharia financeira que visa contornar a impossibilidade, política e legal, de uma política orçamental expansionista com impacto relevante na periferia sul da zona euro. Aliás, o Tribunal Constitucional alemão nunca permitiria a participação da Alemanha numa UE dotada de uma política orçamental digna desse nome.
Em 1971, o economista Nicholas Kaldor percebeu que uma moeda europeia com esta configuração, programada no Relatório Werner, não era viável: "Ela requer um governo comunitário e um parlamento que assumam, pelo menos, a responsabilidade pela maior parte da despesa dos Estados-membros e a financie por impostos, com taxas uniformes, cobrados em toda a Comunidade" ("The Dynamic Effects of the Common Market"). Ou seja, para salvar o euro e esta UE, e na melhor das hipóteses fazer de Portugal uma região assistida, é preciso que aconteça o impossível: instituir rapidamente uma política orçamental europeia. É este o sarilho em que estamos metidos e, por responsabilidade das elites europeístas, o povo português não foi preparado para se livrar dele.
(O meu artigo no jornal i)