segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O mexilhão e as notícias apressadas


Ou de como o ilusionismo político e o jornalismo apressado podem conspirar contra a compreensão da realidade.

No mesmo dia da semana passada [5 de Dezembro], duas notícias relacionadas e consistentes entre si. Em Braga, num seminário sobre Economia Social, Passos Coelho elogiou a justiça social das medidas tomadas pelo seu Governo, afirmando que no contexto da actual crise, "ao contrário do que era o jargão popular de que quem se lixa é o mexilhão, de que são sempre os mesmos (...) desta vez todos contribuíram e contribuiu mais quem tinha mais, disso não há dúvida". Segundo o primeiro-ministro, "a crise não agravou as desigualdades, houve até uma tendência para corrigir algumas delas".

Exactamente no mesmo dia, corroborando as palavras de Passos Coelho, a Lusa publicou uma notícia que dava conta da publicação de um relatório da Organização Internacional do Trabalho sobre a evolução dos salários e da desigualdade a nível global (o "Global Wage Report 2014/2015"). Nas versões adaptadas e republicadas tanto pelo Expresso como pelo Jornal de Negócios (que foram as que encontrei), lia-se aí que em Portugal, "nos últimos anos", a desigualdade entre as famílias de maior e menor rendimento ter-se-á reduzido em virtude das primeiras terem sofrido uma maior perda de rendimento. Ou seja, temos as belas palavras do primeiro-ministro, mas temos também, a apoiá-las, os dados sólidos e objectivos do estudo da OIT. Parece que todos teremos sofrido, mas os mais ricos até terão sofrido mais do que os mais pobres. O mexilhão não foi quem verdadeiramente se lixou.

Claro que os mais desconfiados poderão achar difícil conciliar estes dados com tudo o que sabemos sobre as políticas de austeridade implementadas em Portugal nos últimos anos. Ou sobre a própria economia política da recessão e sobre a forma como o desemprego generalizado pressiona em baixa os salários, o que aliás tem constituído, admitidamente, uma parte central da estratégia do Governo - a funesta "desvalorização interna".

No mínimo, parece estranho.

E é mesmo. Se nos dermos ao trabalho de consultar o dito relatório da OIT (p.24), verificamos que a conclusão que aí se retira relativamente à evolução da desigualdade em Portugal é efectivamente a que indica a notícia da Lusa... só que "os últimos anos", afinal, correspondem ao período 2006-2010.

Infelizmente, os dados sobre desigualdade são relativamente escassos e produzidos com algum desfasamento temporal, ao qual se soma ainda o desfasamento adicional associado ao tempo de elaboração de relatórios deste tipo. Daí que a OIT publique um relatório global "2014-2015" em que a análise da evolução da desigualdade de rendimento no contexto da crise se detenha... em 2010.

Mas por acaso até sabemos um pouco mais sobre a evolução posterior da desigualdade em Portugal. Sabemos, por exemplo, que o coeficiente de Gini (tanto mais elevado quanto maior a desigualdade), depois de ter registado uma notável redução de 38,1 em 2005 para 33,7 em 2010, voltou a subir para 34,2 em 2011, 34,5 em 2012 e novamente 34,2 em 2013. E sabemos também, por exemplo, que a percentagem da população em risco de pobreza (que é também uma medida da desigualdade, uma vez que se trata de pobreza relativa) aumentou de 24,9% em 2009 para 27,4% em 2013. E isto para não falar das centenas de milhar de pessoas que se viram forçadas a emigrar, deixando de contar para estas estatísticas. Os dados não abundam, mas os que existem são consistentes com o que a maioria percebe claramente: tem mesmo sido o mexilhão a lixar-se.

Que o primeiro ministro tem, digamos, uma relação flexível com a verdade é algo já bastante conhecido. Mas dos jornalistas, enquanto baluarte de uma sociedade democrática, espera-se menos pressa e mais cuidado. Especialmente quando estão em causa questões desta importância.

(publicado originalmente no Expresso online em 10/12/2014)

2 comentários:

  1. Os dados dos coeficientes de Gini para Portugal estão todos enviesados de mais um ano. Por exemplo, os coeficientes 38.1, 33.7 e 34.2 dizem respeito respetivamente a 2004, 2009 e 2012 (e não, como indicado no texto, a 2005, 2009 e 2013); ainda não está disponível o dado para 2013. Há que ler com cuidado a tabela do Eurostat porque a fonte, EU-SILC (European Statistics on Income and Living Conditions) ou a sua comparte portuguesa ICOR (Inquérito às Condições de Vida e Rendimento), fazem no ano N a recolha dos dados do ano N-1 e a tabela do Eurostat tem o péssimo hábito de assinalar o ano do inquérito em vez do ano referente aos dados. Confronte-se com a base de dados do INE.

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  2. Caro leitor,
    Obrigado pelo esclarecimento.
    Parece-me que não põe em causa o meu argumento (que a austeridade em Portugal acentuou a desigualdade na distribuição do rendimento, ao contrário do que pretendem fazer crer o primeiro-ministro e as interpretações apressadas do relatório da OIT), mas é importante que sejamos rigorosos na apresentação e interpretação dos dados, como é importante que estejamos sempre prontos a corrigir o erro.
    Cumprimentos.

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