sexta-feira, 11 de abril de 2025

Dar a ver


Fidelíssimo à injunção que lhe dá título, como se isso fosse possível, não conheço outro filme igual sobre a Segunda Guerra Mundial. Só podia ter sido realizado na União Soviética. Não houve outro país igual, incluindo na responsabilidade pela derrota da barbárie nazi-fascista. 

Estreado em 1985, meia dúzia de anos antes do fim do mundo soviético, num mundo que até por isso se tornou pior, vê-lo é hoje também um dever de memória, da memória que nos muda. Dar a vê-lo é um verdadeiro serviço público. Não admira que os liberais e os fascistas detestem as forças da memória, da cultura, do serviço público que as protege.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Hegemonia


No meio do nevoeiro da “guerra tarifária” lançada por Trump começam a surgir alguns sinais clarificadores, agora que as “tarifas recíprocas” foram suspensas por noventa dias para todos os países que “não retaliaram”, mantendo-se a tarifa de base de 10%, mesmo assim uma mudança de monta. 

A ameaça de tarifas recíprocas parece assim ser um instrumento para obter concessões comerciais dos países considerados aliados, ao mesmo tempo que se procura isolar a China, há muito o inimigo principal para o imperialismo, seja de recorte liberal, seja de recorte neofascista.

De influência mais ou menos marxista, as teorias da hegemonia na economia política internacional sublinham que a perda do lugar cimeiro em termos industriais é um indicador avançado de perda da posição hegemónica, o início de uma fase turbulenta de transição de poder. Sim, a economia é poder e por isso é política. É preciso muita ideologia para ignorar padrões históricos básicos.

Bom, os EUA querem reverter o declínio e querem ser vistos como estando dispostos a fazer de tudo, numa escalada à qual a China tem de responder ou não fosse a principal expressão histórica do “grande levantamento anticolonial” (Domenico Losurdo) que está dando origem a um mundo multipolar.

 A vassalagem da UE realmente existente está, entretanto, garantida, aposto. Ao mesmo tempo, Trump tem um programa de classe interno e que consiste em desmantelar o que resta do Estado regulatório do New Deal, o programa de sempre do neoliberalismo por ali, como sabemos da melhor história. E, na UE, as elites do poder não pensam de forma diferente, variando apenas o ponto de partida institucional em termos de neoliberalização. Haverá mais compras de armas e de gás aos EUA e mais porcaria alimentar e outra a entrar por aí, se depender dos europeístas.

É cada vez mais importante um discurso soberanista, que recuse vassalagens ao imperialismo, incluindo a perigosa corrida armamentista em curso na UE, novo pretexto para escavacar os Estados sociais, afirmando a ideia da multipolaridade e tirando as conclusões que se impõem do ponto de vista da diversificação de relações num idealmente menos globalizado.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Regressão, capitulação


O neoliberalismo armado abre caminho ao neofascismo também na Alemanha, um país com toda uma história. São cada vez mais evidentes os variados mecanismos explicativos, incluindo a capitulação dos social-democratas com bombas, sacrificando a questão social, e dos verdes com bombas, sacrificando a questão ecológica. O antifascismo tem de ter substância programática: “fim do mundo, fim do mês, a mesma luta” faz cada vez mais sentido.

terça-feira, 8 de abril de 2025

Mitos dos liberais até dizer chega


Os liberais até dizer chega parecem-se com alguns dos bilionários que apoiaram Trump sobretudo por causa da sua agenda interna de intensificação da neoliberalização, de resto em curso. Nunca levaram a sério a questão do protecionismo trumpista. Perante a política comercial protecionista, que pode colocar em causa um elemento importante do neoliberalismo externo, descobrem-se subitamente críticos de Trump. Aproveitam para retomar todo um conjunto de mitos sobre a relação entre “comércio livre”, prosperidade e paz, convocando os seus santos padroeiros. 

Citam Milton Friedman, que apoiou a ditadura de Pinochet, Margaret Thatcher, que também o fez, para lá de se ter lançado numa guerra por causa das Falkland, Ronald Reagan, imperialista consumado e que aumentou brutalmente as despesas militares e Fréderic Bastiat, que escreveu umas vulgaridades liberais num tempo de imperialismo colonial, essencial para a expansão do “comércio livre” no longo século XIX.  

Os liberais até dizer chega, em coerência, estão agora na linha da frente da defesa da corrida armamentista na UE, não o esqueçamos. Vale tudo para destruir uma das melhores garantias de paz e de prosperidade partilhada: os Estados sociais robustos. 

De resto, ofuscam outros quatro padrões muito relevantes da história da economia política internacional. 

Em primeiro lugar, os países, do Reino Unido aos EUA, só se tornam defensores do comércio dito livre quando se sentem com capacidades produtivas suficientes, desenvolvidas graças ao protecionismo. O protecionismo foi aí um dos instrumentos para o desenvolvimento de longo prazo. 

Em segundo lugar, a concorrência de todos contra todos, associada ao “comércio livre”, aumenta os desequilíbrios comerciais, a inimizade e o ressentimento, estando associado a conflitos e guerras desde a sua origem até ao seu fim. 

Em terceiro lugar, o protecionismo dos anos 1930 foi uma reação defensiva à Grande Depressão. Esta última foi causada, isso sim, pelo liberalismo económico, dos mercados financeiros sem trela ao padrão-ouro, passando pela austeridade. A superação da Depressão exigiu superar as instituições internacionais do liberalismo económico, que de resto se tinham em larga medida autodestruído. 

Em quarto lugar, o mercado livre é uma pura invenção ideológica. Sendo a economia inevitavelmente um sistema regulatório, que exige sempre a mobilização dos poderes públicos, a questão principal é que grupos vêem as suas liberdades aumentadas e que grupos vêem as suas liberdades diminuídas pelas mudanças nas regras do jogo, ou seja, estamos sempre a redistribuir liberdades, sendo que não há uma métrica única, nem as liberdades são do mesmo tipo.

Não sei, ninguém pode saber, qual a configuração e efeito finais das tarifas de Trump. Sabe-se que parecem contraditórias com a sua agenda interna. Talvez sejam sobretudo um instrumento grosseiro para obter concessões comerciais, como sublinhou Vicente Ferreira ontem. A UE aposta tudo nisso. A China não, até porque sabe que é o alvo principal dos EUA e que isto não começou agora, nem vai acabar aqui.

Realmente, se fosse para reindustrializar, Trump teria de reforçar as capacidades de planeamento do Estado norte-americano, em modo de New Deal, o contrário do que está a fazer, como também assinalou James Galbraith há umas semanas.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Para onde nos leva uma guerra comercial?

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Na semana passada, o anúncio de tarifas comerciais generalizadas por parte dos EUA provocou ondas de choque no resto do mundo. Donald Trump anunciou a imposição de tarifas sobre as importações de mais de sessenta países, que vão dos 10% aos 50%, com o objetivo de atingir saldos comerciais equilibrados ou positivos com todos - isto é, passar a exportar tanto ou mais do que aquilo que importa desses países.

As tarifas mais altas foram aplicadas a países asiáticos, responsáveis por boa parte das importações dos EUA, embora alguns bens específicos - produtos farmacêuticos, semicondutores e alguns minerais - tenham sido excluídos para já. Aos produtos da União Europeia será aplicada uma taxa de 20%. Embora as tarifas tenham sido apelidadas de “recíprocas”, a verdade é que foram anunciadas tanto para países que aplicam tarifas sobre produtos dos EUA como para os que não aplicam nenhumas.

O anúncio foi recebido com preocupação pela maioria dos países e provocou uma onda de pânico nos mercados financeiros. Num índice que mede a incerteza sobre a política económica, noticiado pelo Financial Times, o anúncio de Trump teve o mesmo impacto que a pandemia. Apesar de todas as dúvidas que esta estratégia levanta, vale a pena discutir o que pode estar em causa a curto e a longo prazo.



O que é que as tarifas provocam no imediato?

A incerteza provocada pelas tarifas está em grande medida relacionada com o facto de ser difícil prever que políticas serão adotadas para responder aos impactos expectáveis da guerra comercial. Há dois que têm sido amplamente referidos nos meios de comunicação e nas análises económicas: o impacto negativo sobre o crescimento das economias e o impacto sobre os preços e a inflação.

Por um lado, ao reduzirem o comércio internacional, as tarifas aplicadas por Trump prejudicam as exportações e o crescimento das economias que exportam para os EUA. No caso português, este efeito pode levar a uma quebra das exportações de medicamentos, têxteis, vinho ou calçado para a economia norte-americana. O Banco de Portugal sublinha o peso do mercado norte-americano para empresas do setor dos textêis, vidro, produtos cerâmicos ou cimento e avisa que a guerra comercial pode diminuir em 1 ponto percentual a taxa de crescimento da economia portuguesa.

É expectável que as tarifas prejudiquem sobretudo países como a Alemanha, que são responsáveis por um grande volume de exportações para os EUA e cujo modelo de crescimento tem sido assente em excedentes comerciais. Mas tendo em conta que as empresas norte-americanas dependem de cadeias de abastecimento internacionais para obter matérias-primas e produtos intermédios indispensáveis à sua atividade, o impacto também será sentido nos EUA. A incerteza ajuda a explicar a reação de pânico dos mercados financeiros, onde o valor das ações caiu de forma abrupta.

Além dos possíveis impactos sobre as exportações dos países europeus, outro dos efeitos que tem sido referido de forma mais frequente é o potencial de provocar inflação nos EUA. Ao aumentar o preço dos produtos importados, as tarifas aumentam o custo não apenas para as pessoas que os consomem, mas também para as empresas norte-americanas que importam matérias-primas necessárias para a sua produção, o que pode traduzir-se numa subida generalizada dos preços na economia. Se os outros países decidirem aplicar também tarifas sobre produtos norte-americanos, como a China já anunciou, o efeito também se produziria no resto do mundo.

Como os EUA são um dos países com maior poder nos mercados internacionais - uma vez que, para muitos países, as suas exportações para os EUA são uma fonte de receita difícil de substituir - os produtores estrangeiros podem tentar baixar os preços para mitigar o impacto das tarifas e continuar a exportar para o mercado norte-americano. No entanto, é difícil que isso seja suficiente para evitar um impacto inflacionista semelhante a um imposto sobre o consumo, que penaliza mais quem ganha menos

As tarifas nunca fazem sentido?

Se as tarifas provocam efeitos negativos no imediato, isso significa que nunca são úteis? A resposta curta é: não. Ao contrário do que é frequentemente dito nos espaços de comentário económico, as tarifas são um instrumento de política que pode ser útil para atingir determinados objetivos. Para perceber quais, é preciso analisar os impactos que as tarifas produzem para lá do curto prazo.

Ao aumentar o preço de produtos importados, as tarifas desincentivam o seu consumo e favorecem o consumo de produtos produzidos no país que as aplica: na ausência de tarifas, estes não conseguiriam competir com os preços baixos praticados pela concorrência estrangeira, mas, com a aplicação das taxas, passam a ser mais baratos na comparação. Com isto, as empresas norte-americanas podem aumentar as suas vendas no mercado interno, sendo que a contrapartida é que os consumidores norte-americanos passam a pagar mais para consumir o mesmo (ou menos). Assim, a aplicação de tarifas opera uma transferência de rendimento dos consumidores para os produtores nacionais.

A principal utilidade das tarifas é a de proteger as indústrias nascentes de um país da concorrência externa. Há vários motivos para o fazer. Por um lado, o promoção de indústrias sofisticadas é um passo indispensável para o desenvolvimento dos países e a política industrial pode ajudar a desafiar vantagens comparativas - por outras palavras, evitar que economias menos desenvolvidas fiquem presas aos setores de baixo valor-acrescentado em que se encontram especializadas. Por outro lado, o desenvolvimento da capacidade produtiva doméstica reduz a dependência de cadeias de abastecimento internacionais, cuja fragilidade foi exposta pela pandemia.

Os EUA aplicaram tarifas como parte de uma estratégia protecionista num contexto radicalmente diferente. O Reino Unido era a potência dominante e os EUA adotaram medidas de proteção das indústrias nascentes. Essa foi, aliás, a estratégia que todos os países que se desenvolveram de forma sustentada adotaram ao longo da história, como explica o economista Ha-Joon Chang num par de livros indispensáveis para perceber o papel das políticas industriais no desenvolvimento dos países: Bad Samaritans - The Myth of Free Trade and the Secret History of Capitalism e Kicking Away the Ladder - Development Strategy in Historical Perspective.


No entanto, é preciso ter em conta que as tarifas são apenas uma parte de uma estratégia de reindustrialização. Tipicamente, os países que pretendem proteger determinadas indústrias aplicam tarifas dirigidas especificamente a esses produtos, e essa é apenas uma parte da política industrial, complementada por subsídios diretos, acesso a linhas de crédito bonificado ou apoios às exportações, bem como mecanismos para garantir que as empresas beneficiadas reinvestem os ganhos em vez de se limitarem a distribuir dividendos.

Além disso, o impacto das tarifas a médio e longo prazo depende da capacidade das empresas nos EUA passarem a produzir os bens que antes eram importados em quantidade suficiente para dar resposta à procura. E essa capacidade varia consoante o setor. Há indústrias em que a capacidade de produção pode aumentar de forma rápida (ex.: produtos industriais) e outros em que isso é menos provável (ex.: matérias-primas alimentares).

É por isso que um plano coerente para o desenvolvimento da economia assenta em medidas dirigidas e específicas para promover setores estratégicos (onde muitas vezes o Estado participa diretamente). Nada nas medidas de Trump se assemelha a isto. Pelo contrário, ao aplicar tarifas generalizadas, Trump parece subestimar a dependência que as próprias empresas norte-americanas têm de matérias-primas ou produtos intermédios de outros países, tendo em conta a fragmentação de boa parte das cadeias de produção. Os custos acrescidos para as empresas dos EUA podem reduzir as suas exportações e, com isso, acabar por não melhorar o saldo comercial do país.



O que esconde esta guerra comercial?

Quando anunciou as tarifas, o presidente norte-americano deixou em aberto a possibilidade de conceder um tratamento mais favorável aos países que se comprometessem a comprar mais produtos dos EUA ou a reduzir as suas próprias tarifas, afirmando que “as tarifas dão-nos um grande poder de negociação. Todos os países nos ligaram”.

Neste contexto, há bons motivos para crer que os objetivos de Trump têm pouco a ver com a reindustrialização, sobretudo quando a administração se tem empenhado em aplicar mais cortes à administração pública e a departamentos necessários para coordenar uma estratégia industrial. As tarifas parecem ser sobretudo vistas como uma forma de infligir danos e obter vantagens nas negociações com os países, à semelhança do que já aconteceu, por exemplo, na década de 1970, quando o então presidente Richard Nixon impôs tarifas à Alemanha e ao Japão para os pressionar a desvalorizar as respetivas moedas.

A administração de Trump não tem sido particularmente discreta em relação às concessões que pretende obter. No Reino Unido, um dos objetivos é o de conseguir uma redução dos impostos sobre as multinacionais digitais norte-americanas, algo que o governo de Keir Starmer parece estar disposto a incluir num acordo para evitar ou reduzir as tarifas. Em relação à União Europeia, é provável que as exigências incluam a compra de armamento norte-americano.

As tarifas passam a ser usadas como uma forma de sanção económica. Este choque de Trump depende de uma premissa fundamental: a de que os EUA são indispensáveis para o resto do mundo e de que os outros países não são capazes ou não estão dispostos a contrariar essa situação de dependência, substituindo a procura externa norte-americana por procura interna, o que implicaria a promoção do poder de compra dentro de portas. Resta saber que interesses prevalecem.

domingo, 6 de abril de 2025

Um jornal para não cairmos na armadilha

Dois problemas se colocam de imediato.

Em primeiro lugar, ninguém, nem Montenegro e a direita neoliberal, nem a extrema-direita, acredita que seja possível combinar, de um lado, políticas liberais de redução de impostos e aumentos enormes dos gastos na defesa com, do outro lado, o evitamento de cortes no Estado social. A mesma cantiga soou quando a Troika e os seus representantes nacionais tentaram convencer os cidadãos das virtudes da disciplina e dos sacrifícios da primeira austeridade. São estratégias bem rodadas de fabricação de um consenso austeritário destinado a adormecer protestos sociais em face de uma brutal acumulação de riqueza: no topo da sociedade e no centro europeu. Mas não são verdade, muito menos para a maioria.

Em segundo lugar, qualquer horizonte de «manutenção» dos níveis atuais de despesa e investimento públicos no Estado social significa que simplesmente se desistiu de resolver as terríveis falhas, insuficiências e vetores de degradação com que estes se confrontam há muito. Aliás, os cidadãos que usam os serviços públicos sabem como eles se degradaram no último ano. Portugal não precisa que tudo fique «igual» quando a habitação é indigna ou inacessível para os salários e pensões. Nem pode contentar-se com hospitais e escolas onde todos os dias faltam médicos, enfermeiros, professores, muito menos num momento em que, pasme-se, passaram a ser possíveis grandes investimentos públicos.

(...)

Se refletirmos sobre este círculo vicioso da dependência, agora na perspetiva da imposição dos gastos com a defesa, veremos que o traço comum, ano após ano, é nunca se investir no que intuitivamente sabemos ser prioritário para o bem-estar de todos.

Sandra Monteiro, A construção do medo, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Abril de 2025. 

sábado, 5 de abril de 2025

Bom nome


Peço desculpa aos leitores do blogue, vou tentar não descer ao nível da crónica de hoje de Luís Aguiar-Conraria no Expresso. Prometo ser breve. Com que então CES significa Centro de Encontros Sexuais? 

Conraria sabe muito bem que o Centro de Estudos Sociais, de que sou investigador há quinze anos, lidou de forma exemplar com “indícios de ‘padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES’”, identificados por uma Comissão Independente. Sabe muito bem que esta forma de lidar com um assunto difícil e doloroso, sobretudo para as vítimas, não tem paralelo no sistema universitário português. Conraria sabe muito bem que estes padrões existem em muitas outras instituições. E sabe muito bem que, por exemplo, Boaventura de Sousa Santos já não é investigador do CES. 

E até julgo que intui que não foi por acaso que, num contexto de denúncias diversas de situações de assédio na academia, foi no CES que essas denúncias deram lugar a medidas concretas da instituição. Não é de esperar que instituições que preservam zelosamente ordens hierárquicas e o status quo, desincentivando o pensamento crítico e exigência cidadã, tenham a capacidade e a energia para responder de forma consequente a situações idênticas, sobrando o manto de silêncio, opacidade e complacência cúmplice 

Sabendo isto, porque escolheu mentir, exibindo o seu ódio a supostos “esquerdistas”? Simplesmente porque não tem argumentos para as críticas que alguns de nós lhe dirigimos. Jamais se aguentaria num debate de igual para igual, aliás foge dele como diabo da cruz. Conraria é tão perigoso quanto poderoso. O seu calibre intelectual e moral faz lembrar os autodenominados liberais que se bandearam para o fascismo nos anos 1920, produzindo no processo toda a sorte de mentiras. Já fomos alvos dos seus herdeiros no Parlamento e já lhes respondemos. 

 Não sei o que vai acontecer. Sei que aqui estaremos, com toda a frontalidade, defendendo a integridade e o bom nome de instituições científicas e não só.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Amanhã, em Lisboa


«A democratização do ensino garantiu o acesso a educação para todos, num caminho progressivo, incremental e com evidências notáveis, apesar dos ataques sucessivos à reputação do serviço público de educação. (...) Garantir a igualdade de acesso não significou garantir a igualdade de sucesso. O desafio da inclusão plena é ainda o principal. Em todos os países, mas em Portugal de forma agravada, a condição socioeconómica das famílias e a qualificação académica dos encarregados de educação (em particular das mães) continua a ser o principal preditor do sucesso escolar.»

Em mais uma iniciativa temática, a Causa Pública promove uma sessão de reflexão sobre Educação e Democracia, relevando as conquistas e desafios que persistem, sobretudo na perspetiva da inclusão, ao serviço público de ensino. O seminário tem lugar amanhã, sábado, na Escola Secundária D. Pedro V, em Lisboa, a partir das 10h00. Apareçam.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Viver para contar


O prestigiado Cost of War Project da Universidade Brown dos EUA fez mais uma contabilização reveladora, desta vez dos jornalistas mortos em Gaza: morreram mais jornalistas desde 7 de outubro de 2023 do que em várias guerras somadas, incluindo as duas mundiais.

Infelizmente, os jornalistas por cá andam demasiado silenciosos, seja por medo de represálias em redações com cada vez menos autonomia face a patrões cada vez mais empoderados, seja pela corrosão da cultura profissional por gente que faz da propaganda a Israel modo de vida. As universidades, por exemplo, não são muito melhores.

Segue-se a política do extremo-centro à extrema-direita, passando por setores liberais que se dizem de esquerda: afinal de contas, foram à embaixada israelita em pleno genocídio, num apoio descarado, e foram recompensados por isso do ponto de vista mediático e partidário. 

Pelo contrário, quem tem coletivamente posições consequentes e corajosas sobre a Palestina e outros tópicos de política internacional, no melhor espírito da nossa Constituição, é alvo de campanhas negras com anos. Todos sabem de quem estou a falar neste mundo de pernas para o ar.

quarta-feira, 2 de abril de 2025

A economia precisa da imigração?

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A imigração tornou-se um dos assuntos mais discutidos em Portugal. O debate intensificou-se no último ano, depois do governo aprovar um Plano de Ação para as Migrações em que eliminou as manifestações de interesse, que eram um mecanismo de regularização de pessoas que chegavam ao país. A justificação dada pelo primeiro-ministro foi a de que o país não pode ter “portas escancaradas”, pelo que era necessário “terminar com alguns mecanismos que se transformaram num abuso excessivo da nossa disponibilidade para acolher”.

Apesar disso, as necessidades da economia têm sido evocadas pelo setor empresarial, que conseguiu obter do atual governo um acordo para uma nova “via verde” para as grandes empresas contratarem trabalhadores estrangeiros. Há dois argumentos que sustentam a ideia de que a imigração é indispensável para o funcionamento da economia portuguesa: o de que as contribuições dos imigrantes ajudam a garantir a sustentabilidade da Segurança Social e o de que a imigração é um mecanismo necessário para suprir a escassez de mão-de-obra em diversos setores. Para avaliar estes argumentos, é preciso olhar para a evolução da imigração e da economia nos últimos anos.

1. O que é que se passa com a imigração?

O número de imigrantes em Portugal tem vindo a aumentar na última década: passaram de pouco mais de 400.000 em 2013 para 1 milhão e 40 mil em 2023, representando 9,8% da população residente nesse ano e seguindo uma tendência que se verifica um pouco por toda a Europa.

De uma forma geral, as vagas migratórias costumam estar associadas aos ciclos económicos. Em períodos em que a economia e o emprego crescem, é expectável que a imigração o acompanhe, ao passo que períodos de crise e de aumento do desemprego são muitas vezes acompanhados pelo aumento da emigração de um país. Nesse sentido, o aumento da imigração tem menos a ver com as supostas “portas abertas” e mais a ver com a dinâmica do mercado de trabalho.

A imigração é, em grande medida, uma consequência da evolução demográfica do país, como explicam os economistas Alexandre Abreu e José Reis em dois artigos recentes (aqui e aqui). O aumento da imigração surge após décadas em que o país registou uma redução do número médio de filhos, com tendência para o envelhecimento populacional, e um aumento também significativo da emigração. Embora a emigração tenha tido a sua fase mais intensa no período da austeridade (2011-2014) e diminuído nos anos seguintes, é um fenómeno que persiste, sobretudo entre a população mais jovem, e que também tem sido alvo de debate nos últimos anos.

Depois do país ter registado níveis de desemprego recorde e saldos migratórios negativos durante o período da austeridade, a recuperação de algum crescimento económico e a expansão do emprego inverteram-no: a partir de 2017, têm entrado mais pessoas no país do que aquelas que saem e Portugal registou um novo máximo do emprego, com quase 5,1 milhões de pessoas empregadas no ano passado. É neste contexto que importa analisar os argumentos sobre a relação entre a imigração e a economia.

2. Imigração e Segurança Social

Nos últimos anos, o contributo dos imigrantes para a Segurança Social tem sido indiscutivelmente positivo. Em 2024, as contribuições dos imigrantes para o sistema público de proteção social atingiram um valor recorde de 3,6 mil milhões de euros, prosseguindo a tendência dos últimos anos. As nacionalidades responsáveis por maior volume de contribuições são a brasileira, indiana, nepalesa, cabo-verdiana e espanhola.

O sistema de Segurança Social português funciona de acordo com o modelo “pay as you go”: em cada período, a despesa com pensões de reforma, subsídios de desemprego ou de doença e prestações familiares ou de parentalidade atuais é financiada através da receita obtida nesse período por via das contribuições. A lógica subjacente é de solidariedade intergeracional: as pensões de quem já trabalhou e descontou para o sistema são financiadas pelos descontos de quem trabalha hoje e que, quando se reformar, receberá uma pensão financiada pelos descontos de quem se segue.

Neste contexto, os imigrantes têm tido um contributo líquido positivo. As prestações sociais pagas a cidadãos estrangeiros totalizaram €687 milhões - ou seja, apenas 1/5 das contribuições pagas à Segurança Social. A estrutura etária dos imigrantes ajuda a explicar esta diferença: por serem, em média, mais jovens que a população nacional, a percentagem que recebe pensões de reforma é mais baixa. O contributo para a receita da Segurança Social é um aspeto positivo, mesmo que, ao contrário do que se costuma ouvir, a sustentabilidade da Segurança Social não esteja em causa (sobre este tema, vale a pena ler a economista Maria Clara Murteira, aqui ou aqui).

É importante evitar que estes dados conduzam a argumentos utilitaristas sobre o impacto da imigração. A relação entre descontos e pensões/subsídios pode inverter-se no futuro, nomeadamente quando os trabalhadores imigrantes se reformarem, e isso não constitui um problema, uma vez que se trata de um direito de todos os que trabalham no país. O que é relevante é perceber de que forma é que os imigrantes têm sido integrados na economia e na sociedade.


3. Que economia precisa da imigração?

Comecemos por olhar para os dados do emprego. Em 2023, os trabalhadores estrangeiros representavam 13,4% do total de trabalhadores por conta de outrem, de acordo com os dados do Banco de Portugal. O seu contributo para a taxa de contratação líquida da economia - ou seja, o saldo entre a criação e destruição de postos de trabalho - tem vindo a aumentar e, em 2023, foi mesmo decisivo para o crescimento do emprego em Portugal.



No entanto, o peso no emprego varia muito consoante o setor de atividade: os trabalhadores de nacionalidade estrangeira concentram-se em atividades como a agricultura (onde representam 41% dos trabalhadores), a hotelaria e restauração (onde são 31% do total), as atividades administrativas ou a construção (onde representam, respetivamente, 28% e 23% do total). Ou seja, encontram-se sobretudo em setores que pagam salários mais baixos e onde os níveis de precariedade e de informalidade são elevados.

Além disso, há um desfasamento entre as qualificações das pessoas que chegam ao país e os trabalhos que encontram: quatro em cada dez imigrantes com formação superior são sobrequalificados para as funções que desempenham. Embora esta seja uma situação bastante frequente no mercado de trabalho português, a disparidade mantém-se: no caso dos trabalhadores nacionais, cerca de 27% são sobrequalificados, e no caso dos imigrantes a percentagem é de 39%.


Esta dinâmica tem reflexo na desigualdade: em 2023, o salário mediano dos trabalhadores estrangeiros era de €769 (muito próximo do salário mínimo desse ano), enquanto o dos trabalhadores nacionais era de €902, sendo que a tendência se verificava na esmagadora maioria dos setores de atividade. Além disso, um em cada três trabalhadores estrangeiros tinha um contrato temporário, mais do dobro do que se verificava entre os trabalhadores portugueses (16%), de acordo com uma análise da Pordata. E o risco de pobreza e exclusão social entre os estrangeiros residentes no país era de 31%, bastante acima do da população nacional (19,8%).

É difícil não relacionar os fluxos migratórios com o padrão de especialização da economia portuguesa. Embora Portugal seja muitas vezes descrito como um caso de sucesso na última década, o modelo de crescimento da economia portuguesa baseou-se na expansão de setores de baixo valor acrescentado, intensivos em trabalho e assentes em baixos salários, como o turismo, o alojamento e a restauração. A dependência destes setores implica uma dependência de mão-de-obra barata.

Além disso, este modelo de crescimento tem efeitos perversos. O impacto mais imediato é nos preços da habitação: os preços das casas têm crescido a um ritmo muito superior ao dos salários de quem vive e trabalha no país. A população imigrante é particularmente vulnerável a este problema: a percentagem de pessoas a viver em casas sobrelotadas é de 10,8% no caso dos cidadãos nacionais e 23,8% no caso cidadãos de fora da União Europeia, de acordo com o Eurostat.

Mas há outros impactos relevantes. Ao levar a um aumento dos preços do imobiliário e de outros bens e serviços nas principais cidades, a sobrecarga turística faz aumentar os custos para todas as outras atividades económicas e prejudica a competitividade dos setores mais expostos à concorrência internacional, como argumenta o economista Ricardo Paes Mamede. Esta dinâmica pode contribuir para o declínio de setores industriais com maior incorporação de conhecimento e tecnologia e maior potencial produtivo, tornando-se um problema para o desenvolvimento da economia a médio prazo.

Em resumo, a resposta à pergunta inicial não é simples: embora seja verdade que alguns setores parecem aproveitar-se de trabalhadores imigrantes para manter um modelo de salários baixos e más condições de trabalho, em especial na agricultura e no turismo, também é verdade que os trabalhadores de outras nacionalidades têm assegurado o funcionamento de setores essenciais, como a própria agricultura ou os cuidados.


4. Economia e integração

Até aqui, a discussão esteve centrada no contributo da imigração para a economia. No entanto, seria um erro analisar este tema com base nesse critério. Todas as pessoas têm direito à mobilidade e este direito aplica-se tanto aos cidadãos estrangeiros que emigram para Portugal como aos cidadãos portugueses que emigram para outros países, por motivos económicos, familiares ou outros. Receber bem quem chega a um país é um princípio que não pode depender de uma análise cust-benefício.

A verdade é que o problema dos baixos salários, da precariedade e das dificuldades no acesso à habitação têm algo que os une: são comuns a quem já vivia no país e a quem chegou nos últimos anos. Dificultar a regularização de quem chega ao país só acentua a sua vulnerabilidade e a exposição a condições de precariedade ou informalidade no trabalho. E a nova “via verde” não parece resolver este problema, visto que, na negociação com as associações patronais, o governo suavizou bastante os critérios: a exigência de contratos de trabalho permanentes foi eliminada, abrindo a porta à precariedade, e não foram definidos critérios para o “alojamento adequado” que as empresas devem garantir.

Uma economia que promova uma boa integração tem de ser construída sobre alicerces muito diferentes. É preciso defender os direitos de quem trabalha e reforçar a capacidade de fiscalização, fornecendo os meios necessários à Autoridade para as Condições do Trabalho para combater situações de incumprimento ou aproveitamento dos empresários e garantir que os direitos são cumpridos com todos. É necessário inverter a tendência de desinvestimento nos serviços públicos - desde a saúde à educação ou aos transportes - que marcou a última década e que tem levado a uma perda de qualidade destes serviços, contribuindo para alimentar tensões sociais. 

Além disso, é preciso ter uma discussão séria sobre o padrão de crescimento da economia portuguesa, que promove a criação de emprego mal pago e pouco qualificado, e sobre as estratégias para reduzir a dependência do tipo de setores intensivos em trabalho, em que a imigração é frequentemente vista como uma oportunidade para comprimir direitos laborais.

Boa parte dos problemas no acolhimento da população imigrante é consequência da forma perversa como a economia a tem integrado. O foco deve estar na construção de uma economia mais justa para todos os que cá vivem. Mais do que saber do que precisa a economia que temos, devemos preocupar-nos em saber de que economia é que precisamos.


Ainda temos uma Constituição


A 2 de abril de 1976, faz hoje 49 anos, a Assembleia Constituinte aprovava, após dez meses de trabalho, a Constituição da República Portuguesa. 

É a mais brilhante codificação de uma relação de forças social e político-ideológica da história deste país. Como afirmou Álvaro Cunhal, “a Constituição da República aprovada em 2 de abril de 1976 é um fiel retrato da revolução portuguesa”. 

Retrato de uma democracia política, económica, social e cultural, sem separações artificiais. Retrato de uma revolução democrática e nacional de recorte antifascista, da soberania democrática às alterações nas relações de propriedade, expressão consequente da subordinação do poder económico ao poder político, passando por um Estado social robusto, centrado no direito do trabalho. 

Repito o que escrevi no Le Monde diplomatique – edição portuguesa de janeiro: 

Apesar das sucessivas revisões, que a amputaram de muitas das conquistas socialistas, a Constituição da República Portuguesa (CRP) contém uma base, tão antifascista quanto anti-imperialista, para uma alternativa. Tem, simultaneamente, o conteúdo necessário, o programa necessário e a possibilidade de concretização. Porque é (ainda) letra e não apenas desejo. 

Num certo sentido, isto mesmo foi notado por Francesca Albanese, relatora especial das Nações Unidas para a Situação dos Direitos Humanos nos Territórios Palestinianos Ocupados desde 1967, aquando da visita que fez a Portugal, no início de Outubro de 2024. Numa conferência, realizada na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, esta intrépida defensora do povo palestiniano convocou precisamente o número 2 do artigo 7.º da Constituição portuguesa, criticando a atitude complacente do governo do país em relação ao genocídio sionista, parte do alinhamento de fundo com o sistema imperialista comandado pelos Estados Unidos. 

“Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos”, diz a Constituição portuguesa. 

Esta posição constitucional anti-imperialista tem uma declinação soberanista, ligando as liberdades democráticas a direitos sociais e laborais amplos e à subordinação do poder económico ao poder político. Esta subordinação exige, como é claro na Constituição, uma economia mista, onde a propriedade pública de setores estratégicos é a base material de uma genuína autoridade de um Estado dotado de instrumentos de política económica, orçamental e monetária, sem os quais a soberania democrática é uma miragem. De que mais precisamos para travar a viragem direitista? De organização e força políticas alinhadas com o melhor espírito do constitucionalismo radicalmente democrático.

terça-feira, 1 de abril de 2025

Pobres debates


Um dos vários efeitos perversos dos investimentos milionários nos aparelhos ideológicos é o de favorecer um enquadramento do “debate” político pelo prisma dos interesses dos que são relativamente mais ricos: sejam mais velhos ou mais novos, estes querem reduções de impostos, não querendo saber dos serviços públicos, que de resto não usam, sempre mais progressivamente redistributivos quanto mais universais. 

Como argumentou detalhadamente Vicente Ferreira na última campanha eleitoral para as legislativas, mobilizando ampla evidência empírica disponível, a orientação de política fiscal liberal é socialmente injusta e economicamente contraproducente. Mas os liberais até dizer chega, presentes em demasiados partidos, existem para servir os de cima e para enganar os de baixo. 

Sem soberania monetária, num quadro orçamental constrangedor, num contexto de aposta na corrida armamentista, estas propostas de redução de impostos alimentam um círculo vicioso que erode o Estado social. E é precisamente para isso que estas ideias são financiadas por milionários, como Carlos Moreira da Silva. Este financiador da IL, perdão, do menos liberdade, é Presidente da Business Roundtable Portugal, cujo nome é todo um programa antinacional, dos barrigas contra os magriços.