terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Cacafonias


Primeiro, ouça-se esta curta conversa com João Cravinho tida em 1985 (a partir do segundo 28), ao tempo do primeiro governo Cavaco Silva. Foi há mais de 30 anos e, ao que parece e a julgar pelas afirmações do ministro Augusto Santos Silva - e do senso comum - não se melhorou muito desde então.  

Por isso, tornou-se ridícula a atitude das confederações patronais que reagiram ao modo do século queirosiano, oferecendo a sua disponibilidade para dar umas bengaladas verbais ao ministro. E mais ridícula a atitude do ministro que acabou por ajoelhar diante dos envelhecidos empresários, pedindo desculpa e tornando-se - ele também - um ministro queirosiano e - ainda por cima! - medricas.

É irrelevante discutir quem razão. Toda a gente sabe quem a tem. O que é essencial discutir é as razões dessa realidade, passados que foram mais de 30 anos sobre as declarações de Cravinho, que por sua vez já era uma realidade com várias décadas antes disso. Creio que a atitude dos empresários e do ministro explicam muita coisa.

Claro fica, também, o fracasso estratégico da orientação neoliberal - levada a cabo pelos governos de Cavaco Silva e seguida pelos governos PS e seguintes - de confrontar à força os empresários nacionais com um enquadramento europeu mais exigente, como medida para obrigá-los a crescer mais competitivos. Quase 30 anos de sistema monetário europeu e moeda única não mudaram e, se calhar, fragilizaram mesmo o tecido empresarial.

Mas nem isso empresários e ministro são capazes de dizer.

Desejo

Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Como já é tradição neste dia, lembro o artigo 1º da nossa Constituição. Tenham um bom ano de 2020.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Caridade é vertical

Foto Expresso
De ora em quando, o presidente da República decide fazer aquelas incursões ao mundo real.

Distribui alimentos aos sem-abrigo ou serve refeições aos pobres que vêm procurá-las em diversos locais especializados para esse fim, alguns através daquele esquema re-food que pode ser traduzido por "organização de actuação micro-local, criada para re-aproveitar excedentes alimentares"...

E de cada vez que isso se passa, penso que é a versão actualizada daquele comportamento altaneiro e consistente com a hipocrisia de um regime - como o regime fascista - que criava e reproduzia pobres em sistema, ao mesmo tempo organizava quermesses para afirmar a sua preocupação com a essa condição marginal. Na verdade, essas pessoas promoviam-se mais do que resolviam ou chamavam a atenção para o problema dos pobres, ao mesmo tempo que os enganavam, sorrindo-lhes.

Ministra do Trabalho e PR. Disse bem? do Trabalho?
Perpetuavam, assim, a ideia de que sempre haveria ricos e pobres e de que podiam viver nessa comunhão, felizes. Tinham a estranha percepção de que os pobres eram uns estrangeiros, e que assim tinham de continuar, quando, na verdade, eles viviam em relação simbiótica entre si.

E digo versão actualizada porque, se consultarem as estatísticas, verão que há várias décadas que Portugal democrático mantém - em reprodução sistémica - cerca de 2 milhões de pobres, muitos deles até tendo trabalho. Não se deixa que morram à fome, mas pouco se faz para combater as causas dessa pobreza. Prefere-se distribuir alimentos numa noite. Abraçá-los diante das câmaras. E ir-se embora, para voltar tempos mais tarde e repetir a mensagem. E assim tudo vai se reproduzindo.

Já passaram umas décadas, e tudo continua a ser revoltante. Observe-se os vídeos de arquivo da RTP. E não se fiquem pelas fotografias abaixo expostas. As imagens quase cinematográficas são únicas.

Veja-se em 1968, a chegada e a recepção a Dom Manuel Gonçalves Cerejeira, bem como Gertrudes Rodrigues Tomás e Maria Natália Tomás, esposa e filha de Américo Tomás, presidente da República, para a inauguração da "venda de caridade".


Ou a "venda de caridade" em 1972, no Palácio dos Congressos do Estoril, organizada pelo grupo de mulheres "The American Women of Lisbon", com objetos doados por americanos residentes em Portugal.


Ou aquele que verdadeiramente se chama "o bodo aos pobres", desta vez concedido no Porto, pelo Grupo Onomástico "Os Carlos" que o distribui "à população mais carenciada". Não parece ser o Banco Alimentar da senhora Jonet, embora há mais de 50 anos? E claro que Isabel Jonet se afirma mais adepta da caridade do que da solidariedade, que lhe roubaria a actividade.


Ou em 1960, a inauguração do XI Posto da Sopa dos Pobres, no refeitório da Patriarcado no Campo dos Mártires da Pátria. A inauguração contou com Dom Manuel Gonçalves Cerejeira, cardeal Patriarca de Lisboa, Henrique Martins de Carvalho, o ministro da Saúde e Assistência, António Osório Vaz, Governador Civil de Lisboa, Aníbal David, vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Augusto Silva Travassos, diretor-geral da Assistência presentes na inauguração. E o Cardeal Cerejeira até discursou.


Gostava de terminar com uma citação de Eduardo Galeano:
"Eu não acredito na caridade. Acredito em solidariedade. Caridade é tão vertical. Vai de cima para baixo. Solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro".

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O Natal é vermelho


«Aproximava-se o Natal. Em casa cheirava a frio e a madeira nova. O móvel parecia-me estranho. Era encerado. Uma espécie de cómoda oca. Seria um bar daqueles kitsch? Já não me recordo. Tinha umas chaves. Lá dentro estavam prendas. Apenas uma era minha. Na nossa casa estavam brinquedos dados por camaradas na legalidade para as casas clandestinas em que viviam crianças. Era membro de um comunidade embora não nos conhecêssemos: as crianças das casas clandestinas. Hoje parece-me uma quebra das regras de segurança, a distribuição de prendas. E não percebo como chegaram os brinquedo a cada um de nós. Mas na altura isso fazia-me sentir que não estávamos sozinhos.»

Nuno Ramos de Almeida, O Natal é vermelho (a ler na íntegra aqui)

O lado negro da força

Há um filme que está quase a sair do circuito comercial português. É o filme de Costa-Gavras a partir do livro de Yanis Varoufalis  Adults in the room, sobre o Grexit. Este é o trailer:


É um exercício ingrato adaptar um livro como aquele. Nota-se que a narrativa deu saltos, para que o filme fosse o mais fiel possível (ver os making of aqui e aqui, bem como uma entrevista do realizador).

Apesar de tudo, o filme passa a ideia essencial: a regularização da dívida grega nunca esteve nos objectivos de quem governa a União Europeia; todo a pressão chantagista posta na assinatura de um Memorando de Entendimento entre a troika e o governo grego de Tsipras - cuja aplicação apenas iria agravar ainda mais a dívida - visou obrigar a Grécia a ajoelhar e a submeter-se aos ditames europeus e forçar o povo grego a pagar os empréstimos da troika, concedidos para resgatar de imediato os créditos em risco de quem beneficiou com os desequilíbrios externos e orçamentais gregos, surgidos no passado com a coxa moeda europeia. Ou seja os bancos alemães e franceses. E enquanto isso acontecia, vendiam-se - a baixo preço - os activos gregos a interesses internacionais, como os da Alemanha.    

No filme há contudo um episódio - de que não me recordo de ter lido no livro - em que Varoufakis mostra numa conferência de imprensa na Alemanha, repleta de jornalistas agressivos, imagens da ascensão da extrema-direita grega, não neo-nazi, mas já só nazi. Uma ascensão que, como dizia Varoufakis no filme, era fruto do desastre social criado pela austeridade.

E isso bate certo com o caso português. E com a progressiva penetração da extrema-direita em Portugal.

Feliz Natal


Uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (...) Dado que o mercado tende a criar um mecanismo consumista compulsivo para vender os seus produtos, as pessoas acabam por ser arrastadas pelo turbilhão das compras e gastos supérfluos. O consumismo obsessivo é o reflexo subjectivo do paradigma tecno-económico (...) O referido paradigma faz crer a todos que são livres pois conservam uma suposta liberdade de consumir, quando na realidade apenas possui a liberdade a minoria que detém o poder económico e financeiro (...) A educação será ineficaz e os seus esforços estéreis, se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza. Caso contrário, continuará a perdurar o modelo consumista, transmitido pelos meios de comunicação social e através dos mecanismos eficazes do mercado.

Uma vez mais, excertos da Laudato Si.

sábado, 21 de dezembro de 2019

50 maneiras de deixar o seu amor


"Existem muitas maneiras de matar. Pode se espetar uma faca na barriga de alguém, tirar-lhe o pão, não o curar de uma doença, fazê-lo viver numa má habitação, atormentá-lo no trabalho até a morte, levá-lo ao suicídio, obrigá-lo a ir à guerra, e assim por diante. Poucas destas maneiras são proibidas no nosso Estado."

A citação foi retirada de um post do jornalista Thomas Fischer no Facebook, a propósito da condenação a um ano de prisão do antigo presidente Didier Lombard e  a oito meses de dois directores da France Telecom pelo suicídio de 35 pessoas, no início dos anos 2000, vítimas de assédio em larga escala e institucional.

Os casos surgiram após a privatização da empresa - hoje denominada Orange - que foi acompanhada da intensão de cortar 22 mil postos de trabalho e reafectar outros 10 mil, tendo muitos dos trabalhadores sido transferidos para longe das suas famílias.

Em 2009, uma mulher de 32 anos matou-se no seu posto em Paris. Outra tentou matar-se em Metz, ao saber que ia ser transferida pela terceira vez num ano. Em 2011, um trabalhador de 57 anos matou-se quando chegou ao seu novo posto de trabalho, perto de Bordeaux.

O capitalismo e os mercados (o que quer que isto seja) são perigosos e menos eficazes do que o mainstream político-economico os pintam. Está na hora de refazer a sua história recente. Com exemplos e imagens. Talvez as chefias dos jornalistas comecem a deixar transmitir mais casos desses. 

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Ainda a estranha queda dos privados no PISA 2018

A estranha e acentuada queda dos resultados dos alunos do ensino privado, na mais recente edição do PISA, suscitou um conjunto de análises sobre possíveis explicações para esse descalabro (ver aqui, aqui e aqui). As hipóteses identificadas incidem: numa possível recomposição do perfil socioeconómico dos alunos do ensino privado (que poderá em teoria estar, pelo menos em parte, relacionada com as alterações aos contratos de associação entre 2015 e 2018); na eventual intensificação das lógicas de preparação intensiva para os exames (dada a centralidade atribuída a esta modalidade de avaliação no tempo do ministro Nuno Crato); ou a hipótese, que não deve ser descartada, da existência de «um erro metodológico na análise de Portugal no PISA 2018».

Por falta de informação, é difícil ser-se perentório na recusa ou aceitação plena de qualquer destas hipóteses. A eventual recomposição, entre 2015 e 2018, do perfil socioeconómico dos alunos (no sentido do «empobrecimento») é impossível de precisar: há muito, muito tempo, que não há maneira de dispormos de dados relativos a estes alunos, como os que já existem para os do ensino público (e sabemos muito bem por quê). Terão escolas privadas sido forçadas, com a redução da procura (gerada pela própria crise e pelo rigor na celebração de contratos de associação), a reduzir o valor das propinas, relaxando os mecanismos de seleção dos alunos? Se sim, em que escala? Não sabemos. Terão muitos pais, com a degradação funcional da escola pública empreendida por Nuno Crato, feito um esforço financeiro adicional para inscrever os seus filhos em escolas privadas? Se sim, em que escala? Também não sabemos.

Quanto à intensificação da preparação para os exames, sobretudo pelos privados, faltam estudos que nos pudessem esclarecer. Mas sabe-se, e não é de hoje, da sua propensão para fazer dos exames o foco das aprendizagens (levando até à criação - muito mais improvável nas escolas públicas, pela sua natureza e resiliência institucional - de tempos e espaços próprios dedicados a essa «missão»). Tal como se sabe que há privadas no topo dos rankings, mas cujos alunos têm dos piores resultados no ensino superior (como assinalou o Luís Aguiar-Conraria). E é neste quadro que surge Crato, a hipervalorizar a avaliação externa, afunilar o currículo e a apostar na memorização como tarefa central do aprender. Ou seja, opções incentivadas politicamente e que tendem a colar melhor com a natureza e objetivos das escolas privadas, mas que não potenciam aquilo que o PISA mede: competências. Isto é, a capacidade de resolver problemas novos e relacionar conteúdos, apostando sobretudo na compreensão (e junte-se já agora, a isto que o PISA mede, a menor diversidade de perfis e origens socioeconómicas dos alunos do privado, com óbvias implicações no processo de formação pessoal e na aquisição de competências relacionais, para lá da aquisição de conhecimentos).

Todas estas coisas não são evidentemente novas e apenas há razões para pensar que se possam ter reforçado entre 2015 e 2018. E reconheça-se, portanto (como já se defendia aqui), que se trata de dinâmicas que não parecem ser, por si só ou em conjunto, capazes de explicar por inteiro a dimensão da queda dos privados no PISA de 2018. A menos que, claro está, os necessários dados - de que não dispomos - nos viessem mostrar que sim. Há de facto algo mais que parece estar em falta para compreender a amplitude do estoiro, mesmo que as questões referidas dele façam parte. O que só reforça, por sua vez - como propõe e bem Alexandre Homem Cristo - a necessidade de tirar a limpo se houve ou não um erro metodológico (designadamente na constituição da amostra dos privados) no PISA de 2018.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Fugir a sete pés destes intelectuais públicos


Foram os anos de integração europeia que permitiram a recuperação económica do Reino Unido, agora a terceira economia, muito próxima da França, enquanto a posição de Londres como grande centro financeiro mundial beneficiou do apoio europeu (...) Será que Londres está disposta a sacrificar a sua posição cosmopolita dominante aos interesses do interior, ou seja, de camadas etárias idosas alheadas da nova realidade económica? (...) Ficou à vista que a dupla Corbyn/McDonnell não tinha preparação para afrontar e argumentar com os conservadores formados nas escolas privadas e nas melhores universidades.

O historiador Francisco Bethencourt, Professor no King's College de Londres, escreve sobre as eleições britânicas, em linha com outras intervenções suas, igualmente pretensiosas e de duvidosa utilidade, no Público. Se não existisse e dominasse em certos círculos, a versão caricatural do elitismo euro-liberal, que os excertos acima ilustram, tinha de ser inventada.

Tudo começa pela história recente da economia política. Na realidade, a duvidosa performance económica do Reino Unido das últimas décadas, centrada na City londrina, na financeirização, não pode ser desligada do retrocesso produtivo, do aumento do desemprego e da pobreza nos tempos de Thatcher, das brutais desigualdades, sociais e territoriais, que perduraram ou da crise de 2007-2008, a mais grave desde a Grande Depressão, e das suas múltiplas sequelas. Só quem vive num certo meio social e cultural da capital, centrado nos serviços qualificados, pode ter um diagnóstico tão complacente do ponto de vista socioeconómico. E, sim, a integração europeia, a do mercado único, foi fundamental para esta desastrosa economia política. De resto, esta elite quer aí manter os seus privilégios, a tal posição de Londres, disfarçando mal os seus interesses de classe com uma clivagem etária.

E que dizer do diagnóstico segundo o qual o problema de Corbyn/McDonnell foi o de não terem sido formados por professores como Bethencourt? É simplesmente confrangedor. Apetece lembrar, por exemplo, que o criador do Serviço Nacional de Saúde, logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, foi o Ministro trabalhista Aneurin Bevan, que teve de abandonar a escola aos 13 anos para ir trabalhar nas minas.

O problema de Corbyn, entre 2017 e 2019, foi ter perdido de vista os valores da sua histórica base social de apoio; uma base social de resto prioritária para quem seja socialista. A ideia do segundo referendo resume todo um desacerto político, influenciado pela mobilização euro-liberal, entretanto derrotada.

Até a The Economist, na vanguarda da campanha contra Corbyn, reconhece agora que um Partido Trabalhista ameaçador é o que for capaz de articular patriotismo com a defesa das classes trabalhadoras. Que horror, dirão os elitistas, os tais passageiros frequentes, os vencedores da globalização, alguns dos quais se calhar ainda se julgam vagamente de esquerda. Na realidade, quanto mais insatisfeitos estiverem com a orientação dos partidos de esquerda, melhor.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Esquerda, para onde vais?



(...) se até mesmo as pessoas tão motivadas para ajudar as suas comunidades não estavam interessadas no que o partido tinha para dizer, seria realmente surpreendente que ele parecesse estar a perder eleitores em massa? Mas as nossas conversas também destacaram a falta de raízes do Partido Trabalhista em muitos dos seus supostos territórios mais fortes, e a sua fraca relação com os sucessores contemporâneos do tipo de auto-ajuda da classe trabalhadora sobre a qual o partido foi construído. Para que os trabalhistas tenham alguma esperança de renascimento, é por aqui que têm de começar. (ver aqui)

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Zero à esquerda


Num país sem instrumentos decentes de política económica, furtados ou anulados pela integração europeia, o que se pode esperar na área orçamental, e na melhor conjuntura económica possível neste contexto estrutural, são feitos nulos destes: OE de medidas pequenas para obter excedente histórico. Que eu saiba, o défice ainda é, em grande medida, uma variável endógena, mais dependente do ciclo do que das habilidades ortodoxas de Centeno.

Não surpreende que estejamos perante medidas pequenas, política com p pequeno, furando ainda mais o sistema fiscal com incentivos regressivos para fingir que se está a fazer alguma coisa de socialmente útil em áreas cruciais dos sistemas de provisão; política enviesada, política que no fundo vai servindo os credores, o sistema financeiro e alguns proprietários; política que nesta conjuntura dá pouco ou nada aos de baixo, ainda beneficiando talvez da adaptação regressiva das preferências políticas reveladas por aí.

Por isso, é difícil perceber o que terá levado Manuel Carvalho no Público a alardear hoje uma contradição nos termos: “recuperação da soberania financeira no quadro das regras do euro”. No quadro do euro, não há soberania democrática neste campo que possa realmente ter sido recuperada. Um só exemplo, duas palavras e alguns mil milhões de euros depois: Novo Banco. Susana Peralta, por sua vez, diz-nos aí que a TINA (There is No Alternative) acabou de vez, dada a recuperação de rendimentos. A TINA está viva. Os rendimentos têm recuperado, mas ninguém se esquece dos cortes anteriores; já o investimento público de Costa só deverá igualar o de Passos em 2020. E a dita alternativa converge para zero ao longo do tempo.

Entretanto, numa ala nova do Ministério das Finanças alemão está uma instalação artística que homenageia o zero e que faz lembrar um par de algemas.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Quarta-feira, em Lisboa: apresentação do nº 4 da Manifesto


«Quando este número da Manifesto começou a ser preparado, a atmosfera era já de pré-campanha para as eleições legislativas, com os partidos que integraram a solução política de convergência e compromisso à esquerda a acentuar gradualmente as suas identidades próprias. Prevendo-se já nessa altura que a esquerda, no seu conjunto, saísse vencedora das eleições, sem que o Partido Socialista alcançasse a maioria absoluta – cenário que não deixava de constituir um incentivo adicional para a afirmação da identidade própria e do lugar ideológico de cada candidatura – admitia-se que estariam criadas condições para consolidar e aprofundar a governação à esquerda na próxima legislatura. Tanto mais quanto tinham sido dados passos importantes na tarefa conjunta de recuperar o país das marcas mais violentas deixadas pela austeridade de direita, entre 2011 e 2015. Nesse pressuposto, o cenário de reedição da "geringonça", mesmo que em moldes distintos, passaria pela formulação de políticas públicas nos diferentes domínios e, desse ponto de vista, por uma valorização clara do papel do Estado na transformação e desenvolvimento do país. Isto é, da valorização da centralidade do Estado num combate mais determinado e consistente às desigualdades, na efetiva recuperação, melhoria e expansão dos serviços públicos, e no reforço do seu papel enquanto agente económico. Ou seja, da assunção plena do Estado como parte da economia.»

Do editorial do nº 4 da Revista Manifesto, que será apresentado na próxima quarta-feira, dia 18, por Isabel do Carmo e Nuno Teles. Apareçam.

Working hypotheses


A análise estatística do Financial Times é brutalmente sugestiva: no fundo, quanto mais trabalhadores pouco qualificados existem num círculo eleitoral, maior é a transferência de votos dos trabalhistas para os conservadores. E, já se sabe, a classe trabalhadora inglesa revelou ser maioritariamente a favor do Brexit. Os conservadores serviram de veículo político para expressar esta prioridade.

Para um partido que foi formado pelo movimento operário está em causa, como disse uma antiga deputada trabalhista na BBC, “não meros círculos eleitorais, mas a alma do partido”. Esta desconexão não é de agora e tem causas socioeconómicas e sociopolíticas profundas. O extraordinário influxo de militantes, maioritariamente de classe média, ao partido trabalhista nos últimos anos não se traduziu numa maior mobilização da classe trabalhadora. Esta desconexão foi eleitoral e decisivamente acentuada pela posição do partido em relação ao Brexit, em particular a trágica decisão de não seguir propostas como a do Full Brexit, sítio onde de resto podem continuar a encontrar algumas das melhores análises e propostas.

Daí que seja interpelante a hipótese de termos assistido a mais uma revolta popular contra elites metropolitanas, que infelizmente acabaram por moldar a linha do partido nesta matéria. A liderança de Corbyn não teve a capacidade de contrariar a força destas elites, revelando fraqueza, o que tornou a campanha mediática contra ele mais eficaz.

Não se pode ignorar e apoucar objectivamente, e tantas vezes subjectivamente, a maior mobilização eleitoral de classe da história britânica. Como disse com ironia amarga Titania McGrath no twitter, olhando para as reacções mais estouvadas dos falsos amigos do trabalhismo depois das eleições, onde Paul Mason não podia faltar: “é tempo para a esquerda reflectir sobre o resultado das eleições; falhámos em conquistar as mentes e os corações dos nossos concidadãos e a conclusão que se impõe é que não os apodámos de racistas um número suficiente de vezes”.

Num partido que quer o socialismo, o programa de transição não basta, ainda para mais quando não enfrenta directamente o constrangimento europeu. O primado tem de ser da classe trabalhadora realmente existente, nacionalmente enraizada, base primordial de um bloco hegemónico mais vasto.

domingo, 15 de dezembro de 2019

De um longo sono

Patrões no 4º Congresso dos Jornalistas. Por que os terão convidado e aplaudido?
Há coisas que dizem muito do jornalismo nacional.

Ao fim de 45 anos de democracia e num momento em que a comunicação social se encontra abalada, surge um abaixo-assinado de figuras cimeiras do jornalismo nacional.

Em defesa de quê? Por boas condições contratuais dos jornalistas, nomeadamente nos grandes grupos de comunicação? Contra os baixos salários praticados nos meios de comunicação social? Contra a progressiva e avassaladora desigualdade salarial entre chefes e índios? Contra as opções editoriais dos principais meios de comunicação? Contra a escandalosa desigualdades na distribuição política da opinião praticada nos principais meios de comunicação que leva à fabricação de falsos consensos sociais? Contra a censura interna ou subliminar que se pratica no quotidiano dos meios de comunicação? Contra o medo que se vive de se levantar o queixo em defesa constitucional dos seus direitos laborais ou de participação na gestão de informação? Contra a falta de organização dos jornalistas como classe, a qual permitisse a unidade de todos os profissionais? Contra a correria infernal em que se vive nas redacções que conduz à superficialidade de informação, homogeneizada e mercantilizada? Contra a forte penetração de agências de comunicação, contratadas por empresas, instituições ou personalidades, nas notícias que saiem nos meios de copmunicação social? Contra a venda - eu diria prostituição - dos jornalistas como se de meros suportes publicitários se tratassem, em benefício dos interesses publicitários dos principais grupos de comunicação social que não têm o pudor de dizer que tudo isso é para a salvaguarda dos postos de trabalho de todos? Etc, etc.... ?

Não. Nada disso.

Estas figuras cimeiras do jornalismo nacional acordaram de um longo sono meditativo para defender a directora de informação da televisão pública (RTP), em forte embaraço face à sua redacção, que convocou um plenário para esta 2ª feira. O abaixo-assinado surge dias antes desse plenário.

A redacção, zangada, mal sabe o que a sua directora pensa, porque pouco a vê no quotidiano da sua actividade, já que a directora mal frequenta a redacção. E, a somar a isso, a redacção viu-se, sim, confrontada com a intervenção da sua directora de informação em defesa de uma instituição - onde ela própria já deu aulas -, que estava a ser objecto de trabalho jornalístico pela própria RTP, a quem a directora, antes dos jornalistas da RTP entrarem em contacto com a instituição, aconselhou - como qualquer assessor de imprensa ou amiga da instituição - que não prestasse declarações à reportagem em preparação e que respondesse por escrito. Tudo confirmado pela própria directora de informação - na reunião extraordinária do Conselho de Redacção da RTP - mas tudo em nome da melhor eficácia do trabalho jornalístico da RTP.

E o que diz o abaixo-assinado? Veja-se lá:

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Leituras: Revista Manifesto (nº 4)

Chega amanhã às livrarias e quiosques o quarto número (IIª série) da Manifesto. Pensado com as legislativas no horizonte, e antevendo um cenário de reforço da maioria de esquerda, esta edição dedica o seu dossier à questão do Estado, discutindo a natureza diferenciadora da sua ação e advogando, através das análises que constituem esta secção, um aprofundamento do seu papel e a importância de assegurar, no decurso da próxima legislatura, políticas públicas robustas e relevantes para o desenvolvimento do país.
Para além da entrevista a José Pacheco Pereira, destaque para a análise política das eleições legislativas (artigos de Daniel Oliveira e Manuel Loff), o texto de Matthew Richmond sobre os resultados das eleições na Argentina e o significado que podem assumir para a situação política no Brasil, ou o Ensaio de Diogo Martins sobre os mitos do discurso neoliberal. No Contraditório esgrimem-se argumentos a favor e contra a inclusão de um critério étnico nos Censos de 2021 (Marta Araújo e Rui Pena Pires) e na secção Memória presta-se homenagem a Ruben de Carvalho (João Fernandes) e a António Hespanha, com a republicação do seu texto «O meu trabalho é a política» e os artigos de André Belo e Cristina Nogueira da Silva. Nas Estórias, um poema de Ana Luísa Guimarães e uma reflexão de Manuela Barreto Nunes e Maria José Vitorino sobre bibliotecas e democracia. Os cartoons de Cristina Sampaio e Luís Afonso ilustram este número, que integra ainda um portfólio da autoria de Egídio Santos.
A primeira sessão de apresentação da revista realiza-se na próxima quarta-feira, dia 18, a partir das 18h00, na Livraria Ferin (Rua Nova do Almada, 72), em Lisboa, contando com a presença de Isabel do Carmo e Nuno Teles.

(Para além das livrarias e quiosques, a revista pode igualmente ser adquirida na página da Fórum Manifesto).

Lista de Artigos:

ALEXANDRA LEITÃO, A Educação enquanto direito fundamental e obrigação de serviço público .... ANA LUÍSA AMARAL, Prece no Mediterrâneo .... ANDRÉ BELO, Por terras do Hespanha .... ANTÓNIO FILIPE, O Estado e a Constituição .... ANTÓNIO HESPANHA, O meu trabalho é a política .... Recordando ANTÓNIO MATOS GOMES .... CÉSAR MADUREIRA, Administração Pública e Recursos Humanos .... CRISTINA NOGUEIRA DA SILVA, Estado e antiestadualismo em António Hespanha .... DANIEL OLIVEIRA, Para além do fim da geringonça .... DIOGO MARTINS, Os mitos do discurso neoliberal .... EGÍDIO SANTOS, Portefólio .... FREDERICO PINHEIRO, O Estado sem asas: um balanço da política de privatizações .... JOÃO FERNANDES, Ruben de Carvalho: testemunho a juntar a muitos... .... JOÃO FERRÃO, Estado e administração do território: desembaraçar o novelo racionalista a favor de uma agenda transformadora .... JOSÉ PACHECO PEREIRA (entrevista, por Ana Drago e Nuno Serra) .... JOSÉ REIS, Estado e economia num país vulnerável: como reconstituir o que ficou mais frágil? .... LUÍS FERNANDES, Sobre essa entidade a que chamamos «classes médias» .... LUÍSA SCHMIDT, Políticas ambientais .... MANUEL LOFF, De volta a (um certo) passado .... MANUELA BARRETO NUNES e MARIA JOSÉ VITORINO, Acesso a todos: algumas notas sobre bibliotecas e democracia .... MARTA ARAÚJO, Censos 2021 – «Raça», enterrada viva .... MARTA TEMIDO, O Estado entre o público e o privado na Saúde .... MATTHEW AARON RICHMOND, A opção argentina: o que a esquerda brasileira pode aprender com os seus vizinhos .... NUNO RAMOS DE ALMEIDA, A invisível luta de classes .... RICARDO PAES MAMEDE, O Estado para além das falhas de mercado .... RODRIGO TRANCOSO, As eleições na Madeira e a questão da autonomia .... RUI PENA PIRES, Racismo e estatísticas: nem toda a informação é virtuosa .... TERESA BARATA SALGUEIRO, Mobilidades e transformação urbana. Processos e políticas .... Ilustrações de CRISTINA SAMPAIO e LUÍS AFONSO

Half a dozen notes


1. Aquele que era provavelmente o programa eleitoral socialista mais consistente desde a criação da UE foi posto em causa por um europeísmo que quer repetir referendos até o resultado ser conforme em relação à UE, sendo que a prossecução do tal programa obrigaria a romper com a UE.

2. A diferença entre os resultados do partido trabalhista em 2017 e em 2019 parece resumir-se de facto a duas palavras: segundo referendo. Foi penoso ontem ver John McDonnell na BBC, o melhor Ministro das Finanças que o Reino Unido nunca terá e um dos grandes responsáveis no topo pela aceitação do segundo referendo, reconhecer que o essencial passou por um Brexit com enraizamento popular.

3. A tragédia do indispensável Jeremy Corbyn é ter sido sempre fiel à tradição eurocéptica, porque radicalmente democrática, do melhor trabalhismo britânico durante décadas até ser arrastado pelos europeístas para uma posição inconsistente, quando tudo o que importava estava em jogo e pelo menos havia que respeitar a vontade nacional-popular.

4. Hoje, anti-socialistas do PS, como Vital Moreira, conseguem descrever um programa básico socialista democrático, adaptado aos tempos de fracasso total do neoliberalismo de Thatcher e dos seus discípulos trabalhistas, como uma “opção esquerdista” e fazem isto sem nunca referirem a posição em relação ao Brexit como causa da derrota trabalhista. Não é tempo de ser rigoroso na defesa de ideias zumbi liberais por cá. E estas ideias no Reino Unido foram derrotadas, como se viu pelo resultados dos liberais e dos que a eles se juntaram vindos da ala anti-socialista do partido trabalhista.

5. Quem interpreta e dirige o sentimento nacional, associado ao cumprimento da vontade popular, ganha.

6. Da Grécia ao Reino Unido, de diferentes formas e em diferentes circunstâncias, o vírus do europeísmo, que atingiu tantos militantes de esquerda, só gera catástrofes relativamente previsíveis.

Estratégias ambíguas nunca foram alternativa


Depois de lerem as notícias sobre as eleições no Reino Unido, voltem a ver o meu Snack sobre o Brexit, sobretudo na parte que diz respeito ao Labour. E sobre o risco de uma desintegração do RU com novo referendo na Escócia. Olhem que vale a pena.

Por ventura

 O site do Público apresenta não uma, não duas, mas três peças sobre o grande evento nacional que é o facto de o deputado André Ventura usar demasiadas vezes a palavra "Vergonha" ou "Vergonhoso".

E são três peças assinadas por três jornalistas diferentes do mesmo jornal, no mesmo dia. Uma, às 15h43 que foi actualizada às 17h01. Outra, às 18h34. E finalmente, uma às 23h39.


Claro que os jornalistas devem relatar o que acontece. E há dias em que acontecem todas as desorganizações na redacção. E claro que há dias em que nada parece acontecer.

Mas na verdade acontecem tantas coisas que os jornalistas se poderiam dedicar ao que é essencial, e não ao superficial. E, muitas vezes, o essencial é - precisamente! - o que não acontece aos olhos de todos. E isso é que deveria ser relevado pelos jornalistas. Mas se calhar o episódio do deputado Ventura demora menos tempo a escrever. E para o resto - o dito essencial - falta tempo, porque o essencial é complicado, complexo, fragmentado e difícil de lá chegar. Falta tempo para o essencial, fica o acessório.  Embora o acessório seja essencial pra um certo discurso. E tudo parece por acaso, por ventura uma brincadeira até.


Que não se argumente que não cabe aos jornalistas ter um olhar sobre a realidade, porque há sempre um olhar - até na escolha de um título ou de uma notícia. E mesmo a ausência de olhar é, em si, o olhar que pretendem que a comunicação tenha. Um olhar vazio, para ser preenchido pelas artimanhas cozinhadas nos gabinetes dos assessores.  

Se assim for, os jornalistas farão aquilo que é suposto fazerem nesta sociedade. Fabricações artificiais de consensos, em torno de supostas verdades consensuais (ou consensualizadas desta forma), que não passam de construções.   

 Tão fácil, por ventura, construir ideias na comunicação social.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Tectos salariais?

Na anterior legislatura, o Governo circunscreveu a sua política salarial à evolução salário mínimo no setor privado. Mas agora anunciou a intenção de lançar uma nova  “política de rendimentos”. 

Pretende-se valorizar todos os salários, com base em referenciais do o salário médio e o peso dos salários no Produto Interno Bruto. Pelo menos, foi o que primeiro-ministro deixou entender numa intervenção que fez.

Surpreende, contudo, que os referenciais fixados para os aumentos salariais até 2023 se revelem, afinal, alinhados com a tendência do mercado, o que estaria longe de presentar um a nova política. Pior: podem mesmo constituir-se  como verdadeiros tectos à revalorização salarial, ao fixar-se limites para essa revalorização, num momento em que o mercado parece - por diversos motivos - estar a fazer subir os salários.

Será assim? 

Mariana Trigo Pereira, José Castro Caldas e Maria da Paz Lima - moderados pela directora do jornal Le Monde Diplomatique - edição portuguesa - vão estar, 3ª feira, no dia 17, às 18h, no CIUL (Picoas Plaza em Lisboa), para debater este tema. A inscrição é gratuita, mas necessária (aqui).

Este debate baseia-se em resultados de projeto "REVAL - Da desvalorização interna à revalorização do trabalho: o caso de Portugal, nomeadamente os publicados no último Barómetro do Observatório sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra e no Le Monde Diplomatique – Ed. Portuguesa de dezembro de 2019. 

Pretende-se que esta troca de ideias possa ser um contributo para a definição de uma nova política de rendimentos.



A UE promove a extrema-direita


O primeiro passo para reduzir a extrema-direita à insignificância seria substituir as políticas de extrema-direita da UE por políticas de pleno emprego e reforço do Estado social. Como isso não vai acontecer ...

Com o vídeo vão sugestões de leitura. Agradeço a partilha.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Corrupção e democracia

Temos de ser claros. A corrupção medra com:

1) o financiamento privado dos partidos;
2) a existência, permanência e manutenção defendida de uma liberalização de movimentos de capitais, nomeadamente para offshores;
3) a ausência de mecanismos de transparência eficaz das decisões políticas;
4) a promiscuidade entre reguladores e regulados, nomeadamente pela manutenção legal de portas giratórias entre eles, que, nalguns casos, se pode traduzir, por uma sintonia de opiniões (veja-se o caso do ministro Siza Vieira) ou num comportamento que se assemelha a uma defesa superstrutural de quem, na realidade, governa
5) a opacidade do sistema financeiro, que obrigatoriamente participa na criação de soluções que agravam a opacidade das transferências financeiras.
6) a incapacidade dos organismos públicos de fiscalização e de acesso a informação útil ou mesmo acesso aos procedimentos de decisão política;
7) enfim, a opacidade das decisões políticas, sem os devidos estudos de impactos diversificados de que as PPP são um exemplo crucial (veja-se a recente decisão política de reduzir essa avaliação quanto às PPP);
8) a ausência de uma Função Pública consistentemente organizada na defesa e preservação do Bem Público e colectivo, com estruturas sólidas, com técnicos conhecedores e experimentados, devidamente remunerados e com meios eficazes, cuja ausência deixa o Estado desarmado;
9) o outsourcing legislativo, entregue a escritório de advogados, em completo conflito de interesses com a defesa dos seus clientes e que constitui uma fonte integrada de litigância de má-fé, em que o produtor da legislação conhece em exclusivo os alçapões legais que ele próprio criou, beneficiando privadamente desse conhecimento;
10) a ausência de um sistema fiscal que seja eficazmente progressivo;
11) a ausência de solidariedade de todos os organismos públicos no combate aos crimes de fraude e evasão fiscais (veja-se a falta de solidariedade do Banco de Portugal na comunicação de crimes fiscais);
12) e, finalmente, a ausência de meios concedidos a quem investiga os crimes de colarinho branco.

Isto, entre outros elementos.

Leia-se de novo o livro escrito por Maria José Morgado e José Vegar - O inimigo sem rosto - ou o mais recente livro de Eduardo Dâmaso - Corrupção.

Enfim, tudo o que já se sabe sobre corrupção, ficou a milhas, ao largo, do que deveria ser decidido e, sequer, de ser uma preocupação.

E agora, prefere-se preguiçosamente a delação premiada, com muitos elementos de duvidosa constitucionalidade e de extremamente perigosa utilização do ponto de vista político e do funcionamento da democracia. Se os organismos públicos não conseguem investigar a corrupção, como vão confirmar as delações? E como vão escapar à orientação da investigação sobre a corrupção feita pelos corruptos e não pelo olhar estratégico dos defensores da democracia?

Vai correr mal, muito mal. Até para o PS! Ou para o futuro do PS.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Super


Com a confiança de quem sabe qual é a natureza da economia política dominante  e das redes sociais que lhe são indissociáveis, Paula Amorim e Miguel Guedes de Sousa abriram um clube para super-ricos em Lisboa.

Para lá do porno-riquismo, Paula Amorim encarna pelo menos três outras dimensões do capitalismo  realmente existente: o capitalismo fóssil, o capitalismo de herdeiros e o capitalismo monopolista, de super-lucros, capaz de todas as arbitragens fiscais, graças à europeização, o nome da globalização mais intensa no continente. É o capitalismo depois do fim da história, sem freios e contrapesos e sem medo.

Numa sociedade cada vez mais intensamente capitalista, onde o nexo-dinheiro se imiscui em cada vez mais esferas da vida, cada vez mais coisas valiosas são sacrificadas, incluindo a verdade cada vez mais subversiva. É que o capitalismo, cada vez menos funcional, exige doses cada vez mais cavalares de intoxicação ideológica para a sua sustentação política.

Nem os jornais ditos de referência escapam a esta exigência. Por exemplo, o jornal que leio, o Público, faz fretes à Galp de Paula Amorim ou a outras empresas e o seu director é capaz de assinalar em editorial uma presente “era em que o discurso político dominante abomina o lucro e desconfia da iniciativa privada”.

O discurso político dominante não faz outra coisa que não seja incensar o capital. Um jornalista tem a obrigação de saber que ainda são minoritários e com escassa capacidade de influência os que podem ver as suas posições assim caricaturadas por um ideólogo, mas talvez os que estão na primeira linha da defesa deste status quo insustentável sintam primeiro o perigo da era que aí vem, já que os super-ricos parecem viver num eterno presente. Talvez tenham boas razões para isto. Talvez não.

Haja optimismo, esperança, fé, o que quiserem, no meio de tantas e tão fundadas razões para se ser pessimista, para se deixar o deprimente realismo capitalista levar a melhor.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Uber Money - a precariedade por trás do algoritmo


Há um par de dias, um artigo publicado no The Guardian por Veena Dubal, professora de Direito na Universidade da Califórnia e colunista do jornal britânico, chamava a atenção para os novos planos da Uber com a criação da equipa Uber Money, cujo objetivo declarado é “fornecer serviços financeiros e tecnologias avançadas” aos seus motoristas. Dubal considera que a empresa se prepara para reproduzir nos EUA o modelo que já está a ser desenvolvido em países como o Brasil, a Índia ou o Perú, em que fornece créditos de curto prazo (os chamados "payday loans") aos motoristas, a serem pagos com horas de trabalho adicionais. Além disso, o objetivo da Uber Money é entrar no ramo dos serviços financeiros e passar a fornecer produtos que vão desde contas bancárias a cartões de crédito - a empresa afirma que pretende "dar às pessoas acesso a serviços financeiros dos quais estavam excluídas."

No entanto, a concessão de empréstimos de curto prazo ou cartões de crédito aos motoristas precários não resolve os problemas de vulnerabilidade económica. Na verdade, o fornecimento de serviços financeiros a pessoas e comunidades marginalizadas com termos abusivos (taxas de juro incomportáveis, prazos de pagamento apertados, entre outros) constitui o que alguns sociólogos têm descrito como processo de inclusão predatória, que reproduz e acentua as desigualdades, como lembra a autora. A precarização como modelo de negócio não é novidade para a "economia da partilha".

Este simbolismo da partilha esconde a natureza das relações laborais por detrás destes serviços. Apesar de ter 4 milhões de condutores em mais de 700 cidades pelo mundo, a Uber apenas emprega oficialmente 22.000 trabalhadores – a empresa consegue este truque ao não reconhecer os condutores dos veículos como trabalhadores da empresa, mas como motoristas independentes. Para efeitos legais, a Uber limita-se a gerir a aplicação digital que coloca em contacto os motoristas com as pessoas que procuram o serviço de transporte, não assumindo responsabilidade pelas condições de trabalho e proteção social dos trabalhadores. Sob a ilusão de se tornarem "os seus próprios patrões" e terem controlo sobre quando e quanto trabalham, os trabalhadores não são reconhecidos como tal e não têm direito a dias de férias, faltas por doença ou subsídios, enquanto a Uber estende o seu domínio sobre todos os aspetos da nossa vida.

Apesar de instituições como o Tribunal de Justiça da União Europeia ou estados norte-americanos como a Califórnia ou Nova Jersey terem classificado a Uber como empresa de transportes e exigido que cumprisse a legislação em vigor, reconhecendo a existência dos motoristas como empregados e assegurando os seus direitos, a verdade é que o modelo se tem mantido.

Ao avançar para o ramo dos serviços financeiros e da gestão de dívidas, a Uber consolida a sua gestão de negócio assente na precariedade e controlo sobre os trabalhadores, aliando ao modelo perverso de exploração laboral a lógica coerciva da dívida. Ao fazê-lo, crê Dubal, "a Uber prova novamente que o seu maior argumento - que proporciona liberdade aos condutores - é também a sua maior mentira." Precisamos de mobilização para a travar.

sábado, 7 de dezembro de 2019

Manhosamente

Daniel Bessa tem sempre aquele condão de lhe puxar o pé para um certo lado da mensagem.

Nesta crónica do Expresso, o economista defende que actualizar os salários com a inflação verificada é sempre melhor do que com a inflação prevista. E é de concordar com ele. Isto é, o valor da inflação verificada deve ser o valor a tomar em conta na actualização de salários. E não um valor que é governamentalmente manipulado, e usado para gerir expectativas.

Mas Bessa acaba por usar esta verdade, para sujeitar os salários - precisamente - ao valor que mais prejudica os trabalhadores.

Do que me lembro do passado desde Miguel Cadilhe como ministro das Finanças, quando havia inflações consideráveis, as negociações na função pública - que serviam de referência ao sector privado - eram feitas com base na inflação prevista porque os governos esperavam ou queriam que a inflação baixasse ou queriam poupar com os trabalhadores ou queriam desvalorizar o valor dos salários ou tudo junto. E dessa forma, os trabalhadores iam perdendo poder de compra, porque interessava que assim acontecesse. E essas negociações eram sempre contestada pelas estruturas sindicais precisamente porque não tinham em conta a inflação verificada.

Agora que a inflação prevista é superior à inflação verificada, também mercê de uma tendência de subida dos salários, Bessa vem dizer que "inaceitável é, de forma manhosa, se pretenda mudar de critério todos os anos, usando a taxa de inflação que, em cada momento, cada um considere mais conveniente". Isto baseado em 14 anos de negociação do sector bancário, ou seja, de um sector particular (como o bancário), com menos de 10 mil trabalhadores face a um outro com mais de 600 mil. E "manhosamente" vem advogar que a negociação deve ser feita usando a inflação verificada.

Por coincidência, o artigo de Bessa surge ao lado de um artigo sobre um novo livro de Piketty dedicado às desigualdades e de um outro em que se aborda que, mesmo que um banqueiro tenha praticado crimes fiscais, isso não lhe retira a idoneidade para exercer essa actividade.

A estranha queda do ensino privado no PISA 2018

Um dos dados mais surpreendentes do recente relatório PISA consiste na quebra, muito significativa, dos resultados do ensino privado em Portugal entre 2015 e 2018. Em média, os alunos do privado descem de 541 para 493 (-48 pontos), aproximando-se assim do valor registado em 2018 pelo ensino público (492), que por sua vez diminui apenas 2 pontos face a 2015. A queda do ensino privado verifica-se, além disso, em todas as dimensões de competências avaliadas: -42 pontos na leitura; -46 a matemática e -55 em literacia científica (quando no ensino público as variações são, respetivamente, de -3, +4 e -6 pontos). Em suma, os alunos do ensino privado revelam, entre 2015 e 2018, uma descida muito acentuada do nível de competências adquiridas nos domínios considerados.


A estranheza que esta evolução suscita é dupla: não só entre 2000 e 2015 o ensino privado sempre assumiu valores bastante acima dos registados no ensino público (ao contrário do que sucede em 2018), como o nível de competências dos seus alunos chegou a estar acima da média do privado na OCDE (entre 2009 e 2015), para se situar agora bem abaixo do valor obtido a essa escala. Ao contrário, de facto, do que sucede com o ensino público português, que não só tem vindo a melhorar consistentemente no PISA desde 2000, como supera a média da OCDE desde 2015.

A alteração relativa do perfil socioeconómico dos alunos do privado, entre 2015 e 2018, é uma das possíveis hipóteses explicativas desta evolução recente. E, de facto, alguns indicadores sugerem uma mudança nesse sentido, mantendo-se contudo a vantagem comparativa do perfil desses alunos face aos que frequentam a escola pública (que obtém, desse ponto de vista, resultados no PISA comparativamente melhores que os alunos do privado, em 2018).


Uma outra hipótese explicativa consiste em admitir que se tenham intensificado, em muitas escolas privadas, as lógicas de «preparação intensiva para os exames», em linha com a sobrevalorização desta modalidade de avaliação durante o consulado de Nuno Crato. Ou seja, de lógicas que em certa medida favorecem a obtenção de bons resultados nos exames (como os rankings sugerem, apesar das diferenças de perfil socioeconómico), mas que comportam o risco de uma menor preparação dos alunos quando se trata de avaliar competências (que é o que o PISA faz). Contudo, tal como a anterior, também esta hipótese parece ser curta para explicar a dimensão do descalabro. Uma coisa é todavia certa: a tese, há muito em voga, da suposta supremacia do ensino privado face à escola pública parece ter sofrido, com o PISA de 2018, um novo e forte abalo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

É o medo que sustenta a UE


A UE está num impasse e não sabe como enfrentar a próxima recessão. Não é possível avançar para um Estado federal, nem sequer para mecanismos de redistribuição do rendimento em montantes significativos, ... e o regresso às moedas nacionais é tabu.
O medo é essencial à estratégia de governação do euro. Aliás, é o medo que sustenta a UE.

Um jornal que também expõe fracturas


“O que se passa com a universidade passa-se com os hospitais, a agricultura, os bombeiros, a escola, o estado das pontes. Em França, do mesmo modo que noutras paragens. Passados trinta e cinco anos de privatizações, de recuo da gratuitidade, de diminuição das prestações sociais, de controlos miudinhos em todas as áreas – obrigada, Internet –, chegámos a uma sociedade sob pressão, atordoada, no osso, que está a esgotar as suas últimas reservas. Uma sociedade com sectores inteiros que estão a sucumbir. A intervalos regulares, esta sociedade mostra o seu esgotamento, exprime a sua cólera. Pé ante pé, ela resiste à violência que os partidos de governo teimam em infligir-lhe, apesar de todas as alternâncias política.”
Serge Halimi, “Uma chacina”, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Dezembro de 2019.

“Se não desarmarmos as políticas neoliberais austeritárias com políticas públicas e um Estado social robusto, os neoliberais autoritários aí estarão, já dentro do Parlamento, prontos a explodir o que restar de políticas públicas e de Estado social. A fractura social é uma fractura exposta. Senta-se à mesa das famílias, arrasta-se pelas ruas, desespera nos locais de trabalho, quebranta nos hospitais. E tem de ser reduzida, estancada, já no próximo Orçamento do Estado.”
Sandra Monteiro, “Uma fractura social exposta”, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, Dezembro de 2019.

Para lá de excertos dos dois editoriais, que podem ser lidos na íntegra no sítio do jornal, deixo por aqui o resumo do número de Dezembro:

“Na edição de Dezembro, a economista Ana Cordeiro Santos analisa o agravamento que a crise da habitação traz à crise da reprodução social, e o que é preciso fazer para inverter a situação. José Castro Caldas trata de uma outra crise, a do trabalho e dos salários, para compreender que políticas de recuperação de rendimentos podem reverter o lastro do «ajustamento interno». Gonçalo Leite Velho e Filipa Vala reflectem sobre o programa do governo para a Ciência e Ensino Superior, mostrando como a insistência no modelo liberal de financiamento e produção do conhecimento compromete a própria inovação. Manuel Pedro Ferreira traz-nos José Mário Branco, abrindo as portas do seu arquivo.

 No internacional, destaque para a dramática situação no Chile, com um artigo do escritor Luis Sepúlveda, para o golpe de Estado na Bolívia e para a sublevação na Argélia. A relação das mudanças de regime com os grupos que as preparam, nesta era da desestabilização pela «não-violência activa», dá-nos uma dimensão global destes processos. Na Europa, indagamos as «viragens» na política externa francesa e analisamos o processo norte-irlandês no contexto do Brexit. Questionamos ainda o que está por detrás de casos de «epidemia» de administração de Ritalina nas escolas. E muito mais.”

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Não há jovens globais, não há política global


A propósito de Greta Thunberg, Rui Tavares (RT) escreveu hoje no Público que toda a política é global. Mas está errado. Na política, como em toda a realidade, há diferentes escalas, e interdependências entre elas com intensidade variável. A política é multinível (local, regional, nacional). O que existe de político acima do nacional é do domínio das relações inter-nacionais. Uma coisa é o activismo de Greta que, sendo actividade política, tomou uma dimensão internacional. Outra coisa é a deliberação, legislação e execução das políticas e, essas, são nacionais porque é a esse nível que estão institucionalizadas.

RT mistura tudo, de tão deslumbrado que está com a campanha de Greta (e da equipa que tem por trás) que, é preciso reconhecer, acelerou a consciencialização dos cidadãos quanto à urgência da mudança, embora de uma forma muito vaga, recuperável pelos interesses instalados enquanto “capitalismo verde” que é a lógica da UE. Na segurança que lhe dá o credo cosmopolita, RT afirma que os argumentos dos soberanistas de esquerda, no meu caso portanto, “são repetições de um dogma que não se preocupavam em demonstrar, requentando teses direitistas do período de entre-guerras”. Não sei a que dogma e teses RT se refere, mas parece-me que a sua fé cosmopolita lhe filtra a realidade e o impede de ver algo bem concreto, algo que os soberanistas de esquerda tomam a sério: não há – e nunca houve – democracia sem soberania. Quando os povos colonizados lutaram pela sua independência, lutaram pela condição básica de poderem decidir livremente da sua organização social, lutaram e morreram pelo direito de exercerem a soberania, pelo direito de poderem fazer escolhas autónomas, e de assumirem as suas consequências, boas ou más.

Pelo contrário, RT não tem nenhuma base histórica para dar força ao seu argumento de que à escala nacional “pouco se poderia fazer”. A fé de RT na escala global é tão grande que nem se dá conta (ou dá, mas recalca) da impotência da ONU e do seu Secretário-Geral para acelerar o processo da transição energética. Nem dá conta de que o que pouco, e demasiado lentamente, se vai decidindo resulta de compromissos ao nível inter-nacional (por este dias em Madrid), exactamente àquele nível que RT apaga com a palavra “global”. Aliás, a campanha de Greta não terá sido mais do que espectáculo mediático – onde os interesses dominantes gostariam de a aprisionar – se não houver uma pressão muito maior dos cidadãos nacionais – só na cabeça de um globalista é que há cidadãos globais – sobre os seus governos.

Sim, há interdependências entre escalas. Portanto, quanto maior for o número de jovens por todo o mundo a manifestar-se, maior é a expressão mediática da pressão política e, esperemos, mais mobilizáveis serão os jovens portugueses para a concretizarem em Portugal. Mas RT tem a obrigação de perceber que as manifestações que se fazem fora de Portugal não exercem pressão significativa sobre o nosso governo. Essa pressão vem/virá dos portugueses (na rua e nas redes sociais), dos nossos partidos (na Assembleia da República e nos media tradicionais) e, eventualmente, de alguma diplomacia europeia. Em última análise, será na escala nacional que as políticas de resposta à emergência climática se concretizarão, melhor ou pior.

Quando RT nos diz neste artigo que, no caso de Greta (como no de Malala com a educação das meninas), estamos perante uma “política global”, está a usar o termo “política” num sentido que omite a natureza institucional da política; o termo “global” oculta o enraizamento da política em sistemas socioculturais concretos, aí onde se joga a eficácia de toda esta mobilização. Os jovens de que fala RT, “já nascidos numa cultura e numa esfera de comunicação muito integrada”, quando emigram, ainda têm saudades da família, da terra onde cresceram e dos amigos que deixaram para trás. Pelos testemunhos que tenho lido e ouvido, incluindo o de familiares, percebo que não lhes é indiferente a sorte da comunidade que foram obrigados a abandonar. São jovens abertos a outras culturas, com vontade de conhecer mais mundo, mas são jovens com raízes. Não são “jovens globais” porque isso não existe.

Eu, enquanto soberanista de esquerda, vejo esse activismo como algo positivo, algo que dá força aos que lutam pelos mesmos valores nas comunidades onde vivem, onde elegem quem os representa e que, eventualmente, executarão as políticas que respondem aos seus anseios. É simplesmente isto que RT desvaloriza: a soberania do povo exercida democraticamente. Em nome de uma "política global" sem povo, sem parlamento e sem governo, vem dizer-nos que o problema só pode ser resolvido à escala “da humanidade inteira”. À escala de um todo, “do único auditório que o pode resolver”. Nisto, RT assume com muita clareza o seu ‘holismo’, aquilo que, em filosofia das ciências, é uma forma de reducionismo: as partes ficam subsumidas no todo (neste caso, imaginário). Um reducionismo pós-moderno, típico de neoliberais progressistas que, dizendo-se de esquerda, analiticamente depreciam a única fonte que pode legitimar o poder político, um povo que vive num território delimitado. A “política global” de RT é uma ilusão. E uma lástima.

Agora sim, os «alunos de Crato» nos resultados do PISA?

Quando em 2016 foram divulgados os resultados do PISA 2015, com Portugal a melhorar face a 2012 em todas as dimensões (leitura, matemática e literacia científica), a direita apressou-se a colher os louros, creditando esses avanços à maioria que governou o país entre 2011 e 2015. O próprio Nuno Crato não hesitou em auto-condecorar-se, aludindo à introdução de exames finais no 4º e 6º ano e às «novas metas curriculares», tendo Passos Coelho então sugerido ao novo ministro, Tiago Brandão Rodrigues, que refletisse sobre esses resultados «muitíssimo bons» e repensasse, por isso, «algumas das decisões já tomadas» pela maioria de esquerda na área da educação.

Sucede porém, como se demonstrou aqui, que os alunos portugueses que integraram o PISA de 2015 não foram abrangidos - dada a cronologia do seu percurso escolar, descoincidente com a introdução dessas medidas - nem pelos exames do 4º e 6º ano nem pelas «novas metas curriculares» de Nuno Crato. Ou seja, os «muitíssimo bons» resultados de 2015 poderiam dever-se a muita coisa, mas não, seguramente, ao suposto efeito positivo dessas medidas emblemáticas da PAF. Os «alunos de Crato» não tinham ainda, desse ponto de vista - e nesse ano de 2015 - passado pela avaliação de competências do PISA (Programme for International Student Assessment).


Com a divulgação dos resultados de 2018, em que Portugal piora na leitura e na literacia científica face a 2015 (mantendo o valor registado nesse ano no caso da matemática), seria tentador enveredar pela lógica retorcida e enganadora a que a direita deitou mão há três anos e atribuir a Nuno Crato a responsabilidade pela quebra nos resultados. Contudo, e sendo certo que os «alunos de Crato» estão já presentes neste exercício da OCDE (que, tal como os anteriores, aplica o questionário a alunos com 15 anos, avaliando as competências adquiridas ao longo de todo o seu percurso escolar), importa preservar a noção de que «não se pode dizer que foi esta medida ou este programa que determinaram os resultados, que são antes fruto de um efeito cumulativo de políticas que, embora por vezes de sentido contrário, têm gerado práticas orientadas para o sucesso escolar», como bem referiu o Secretário de Estado João Costa. E não esquecer também já agora, nesta linha, que foi na tal «década perdida», segundo Crato, que os avanços de Portugal no PISA foram mais significativos.