quarta-feira, 31 de janeiro de 2018
Questões mais ou menos triviais
A nova suspeita de que há decisões judiciais que são compradas e vendidas é potencialmente a enésima ilustração de uma velha ideia bem actual, mas talvez trivial, de economia moral, segundo a qual para que haja uma esfera mercantil em que os preços moldam os comportamentos é absolutamente necessário que haja esferas onde os preços o não fazem, sendo recusados.
O que talvez seja menos trivial é a ideia, da tradição crítica da economia moral, enquanto área que cruza história, economia ou filosofia políticas, segunda a qual a esfera mercantil pode em certas circunstâncias políticas, típicas por exemplo da época histórica neoliberal onde o dinheiro é incensado, corroer os valores, as instituições e as práticas não-mercantis, tornando tudo tudo mais indecente e disfuncional: dos perigos da hegemonia da mentalidade de mercado, denunciados por Karl Polanyi nos anos quarenta aos riscos dos mercados em expansão não conhecerem limites morais, denunciados mais recentemente por Michael Sandel.
De resto, as sociedades mais desiguais, onde o poder do dinheiro está mais concentrado, têm uma maior propensão para corromper indivíduos e instituições, para fazer desaparecer uma necessária separação de esferas. Complementando um historiador desta tradição, em livro acabado de sair, o problema da desigualdade económica não pode ser apenas visto pelo prisma mais ou menos utilitarista da distribuição de rendimentos de baixo para cima ou de cima para baixo entre indivíduos que cuidam do seu interesse próprio definido de forma estreita. Também tem de ser colocado no contexto dos seus efeitos numa comunidade, nos hábitos, e logo no carácter, favorecidos. Nada é neutro no capitalismo.
terça-feira, 30 de janeiro de 2018
Responsabilidade intelectual
Vital Moreira é naturalmente incapaz de encontrar explicações para o reconhecido declínio da social-democracia europeia que não passem pela identificação de processos supostamente irreversíveis e consequentemente é incapaz de pensar em como reverter tal declínio.
É que pensar a reversão é ir contra o essencial do que Vital Moreira passou a pensar como desejável: da Terceira Via blairista e das suas engenharias mercantis à economia política ordoliberal, inscrita na constituição informal europeia de matriz tão pós-democrática quanto anti-keynesiana e que foi desenhada precisamente para destruir a social-democracia, como por várias vezes por aqui e por ali defendi. Na medida em que as ideias contam na história, intelectuais como Vital Moreira são também responsáveis pelo declínio.
Já agora, e no que ao PS diz respeito, é de notar que é de facto uma das excepções, com os trabalhistas britânicos de Corbyn, convém lembrar, que confirma a regra. Ao contrário destes, não ocorreu por cá qualquer recomposição ideológica, protagonizando o mesmo PS uma solução governativa limitada, mas necessária, fruto da derrota das classes populares nos anos de chumbo da troika, da qual também está dependente. Eles que pensem no bloco central, ou que ajam muitas vezes como se estivessem no bloco central, o que Vital Moreira certamente prefere, e pode ser que passem a fazer parte da regra. A esquerda, por sua vez, não deve ter medo, antes orgulho, de ser acusada de populista pela sabedoria convencional.
É que pensar a reversão é ir contra o essencial do que Vital Moreira passou a pensar como desejável: da Terceira Via blairista e das suas engenharias mercantis à economia política ordoliberal, inscrita na constituição informal europeia de matriz tão pós-democrática quanto anti-keynesiana e que foi desenhada precisamente para destruir a social-democracia, como por várias vezes por aqui e por ali defendi. Na medida em que as ideias contam na história, intelectuais como Vital Moreira são também responsáveis pelo declínio.
Já agora, e no que ao PS diz respeito, é de notar que é de facto uma das excepções, com os trabalhistas britânicos de Corbyn, convém lembrar, que confirma a regra. Ao contrário destes, não ocorreu por cá qualquer recomposição ideológica, protagonizando o mesmo PS uma solução governativa limitada, mas necessária, fruto da derrota das classes populares nos anos de chumbo da troika, da qual também está dependente. Eles que pensem no bloco central, ou que ajam muitas vezes como se estivessem no bloco central, o que Vital Moreira certamente prefere, e pode ser que passem a fazer parte da regra. A esquerda, por sua vez, não deve ter medo, antes orgulho, de ser acusada de populista pela sabedoria convencional.
segunda-feira, 29 de janeiro de 2018
Falhas de mercado
Há uma ideia que a direita gosta de defender, mas que o faz invariavelmente de forma superficial. É aquela que estabelece uma relação causal entre a subida do Salário Mínimo Nacional (SMN) e o aumento do desemprego. Ainda recentemente o Observador deu enorme destaque a um artigo com essa ideia.
Genericamente, esta tese está espaldada em intervenções do BCE, da Comissão Europeia, o FMI ou da OCDE. Ultimamente, depois do fracasso das políticas recessivas, a Comissão Europeia (aqui) já admite que, afinal, o aumento do SMN não afecte a competitividade. O seu presidente Juncker é favorável ao Pilar Europeu dos Direitos Sociais que integra, entre outros, a defesa de salário mínimo. Mesmo a OCDE, já aceita que o SMN pode combater ajudar os trabalhadores com piores condições negociais.
Mas em Portugal, como é visível naquele artigo, de Carlos Guimarães Pinto, docente universitário, doutorando em Economia e investigador no Centro de Economia e Finanças da Universidade do Porto, ainda se argumenta na base do “vamos partir tudo”. Apoiando-se numa lógica tipicamente de caixa empresarial, que raia a chantagem (tal com foi usada recentemente na Autoeuropa), a conclusão é simples: se reduzem os lucros das empresas, o emprego será cortado. Os trabalhadores podem ser tentados a pedir um aumento do SMN, mas isso só subirá a probabilidade de ficarem desempregados. Se aceitarem salários mais baixos, o emprego subirá.
E para o provar, não tem pejo em martelar a história económica recente (como se verá adiante).
Ora, quem defende estas ideias não quer entender que o SMN - ou a subida do seu valor - não é uma medida para estimular a procura, para criar emprego ou uma vingança política bolchevique, um preconceito teórico, ou uma intervenção abusiva do Estado que impede o mercado de retomar o ponto de equilíbrio gerador de emprego. Trata-se antes de uma decisão política, necessária para combater uma das falhas de mercado: a de que as pessoas, mesmo trabalhando em empresas, ganham tão mal que continuam pobres. Tem tudo a ver com a dignidade humana.
Pior: não querem entender que a subida do SMN é já a última medida de salvaguarda da protecção dos trabalhadores pobres, depois de todo um ideário económico ter desarticulado os dispositivos legais e institucionais que permitiam um maior equilíbrio da relação empregado/empregador e, com ele, uma maior igualdade na distribuição do rendimento criado. Ao desestruturar esse edifício, deixaram a nu a integridade das falhas de mercado.
Isso aconteceu sobretudo desde 2003. E foi aplicado de forma metódica:
Genericamente, esta tese está espaldada em intervenções do BCE, da Comissão Europeia, o FMI ou da OCDE. Ultimamente, depois do fracasso das políticas recessivas, a Comissão Europeia (aqui) já admite que, afinal, o aumento do SMN não afecte a competitividade. O seu presidente Juncker é favorável ao Pilar Europeu dos Direitos Sociais que integra, entre outros, a defesa de salário mínimo. Mesmo a OCDE, já aceita que o SMN pode combater ajudar os trabalhadores com piores condições negociais.
Mas em Portugal, como é visível naquele artigo, de Carlos Guimarães Pinto, docente universitário, doutorando em Economia e investigador no Centro de Economia e Finanças da Universidade do Porto, ainda se argumenta na base do “vamos partir tudo”. Apoiando-se numa lógica tipicamente de caixa empresarial, que raia a chantagem (tal com foi usada recentemente na Autoeuropa), a conclusão é simples: se reduzem os lucros das empresas, o emprego será cortado. Os trabalhadores podem ser tentados a pedir um aumento do SMN, mas isso só subirá a probabilidade de ficarem desempregados. Se aceitarem salários mais baixos, o emprego subirá.
E para o provar, não tem pejo em martelar a história económica recente (como se verá adiante).
Ora, quem defende estas ideias não quer entender que o SMN - ou a subida do seu valor - não é uma medida para estimular a procura, para criar emprego ou uma vingança política bolchevique, um preconceito teórico, ou uma intervenção abusiva do Estado que impede o mercado de retomar o ponto de equilíbrio gerador de emprego. Trata-se antes de uma decisão política, necessária para combater uma das falhas de mercado: a de que as pessoas, mesmo trabalhando em empresas, ganham tão mal que continuam pobres. Tem tudo a ver com a dignidade humana.
Pior: não querem entender que a subida do SMN é já a última medida de salvaguarda da protecção dos trabalhadores pobres, depois de todo um ideário económico ter desarticulado os dispositivos legais e institucionais que permitiam um maior equilíbrio da relação empregado/empregador e, com ele, uma maior igualdade na distribuição do rendimento criado. Ao desestruturar esse edifício, deixaram a nu a integridade das falhas de mercado.
Isso aconteceu sobretudo desde 2003. E foi aplicado de forma metódica:
sábado, 27 de janeiro de 2018
Noite e nevoeiro
«Em 27 de janeiro de 1945, o exército soviético libertou o mais tenebroso dos campos de extermínio construídos pelo regime nazi: Auschwitz-Birkenau. Foi há muito tempo? Não, foi no tempo da vida de muitos de nós. Naquele dia eu tinha 3 anos de idade, a mesma idade de milhares de meninos assassinados nos campos nazis.
Em 1955, Alain Resnais realizou um extraordinário filme sobre os campos: Nuit et Brouillard - Noite e nevoeiro. O título do filme inspira-se na obra de Jean Cayrol, Poèmes de la Nuit et du Brouillard, que por sua vez repete o nome do decreto nazi de 7.DEZ.1941 – Nacht und Nebel-Erlass – que determinou a prisão, a deportação para os campos e a eliminação física daqueles que o regime considerava indignos de pertencerem ao povo alemão: judeus, ciganos, homossexuais, membros da Resistência...
A prisão, o transporte e a eliminação dos prisioneiros ocorriam, geralmente em segredo, durante a noite, para que não houvesse testemunhas e fosse mais fácil eliminar as provas do crime. Nas roupas, os prisioneiros tinham gravadas as letras NN. Quando, no fim da guerra, se descobriram os registos dos Serviços de Segurança alemães, nem sequer os locais das sepulturas estavam anotados, constavam apenas os nomes e as iniciais NN, noite e nevoeiro. “Mesmo uma paisagem tranquila, mesmo um prado com voos de corvos, com colheitas e fogueiras … podem conduzir simplesmente a um campo de concentração.”
Quando o filme de Resnais começa, ouvimos estas palavras, ao mesmo tempo que deslizamos o olhar por essa paisagem bucólica, seguindo o percurso de um travelling, longo e lento, como tantos travellings de Resnais. As cores da paisagem são suaves. A música de Hans Eisler é harmoniosa, delicada. A voz do narrador regista nomes: Stutthof, Oranienburg, Neuengamme, Bergen-Belsen, Ravensbrück, Dachau e o mais sinistro de todos, Auschwitz, onde, só ali, os nazis assassinaram mais de um milhão de prisioneiros. Tinham passado dez anos sobre a descoberta dos campos.
Projetados por arquitetos e engenheiros, organizados como se fossem cidades, horrendas cidades, os campos possuíam casas de habitação, bordéis, hospitais e até, suprema ironia, prisões. E banhos públicos de cujos chuveiros não jorrava água, mas um gás mortal, Zyklon B. Eram lugares sem lugar, construídos com a única finalidade de produzir o extermínio total dos seus habitantes/prisioneiros. Resnais mostra-nos tudo: os despojos do presente e os corpos perdidos do passado. Mas nunca deixa de nos colocar perante a evidência de que não estamos a ver nada da autêntica realidade dos campos. “É em vão que tentamos descobrir os restos desta realidade dos campos”, diz o narrador. “Deste dormitório de tijolo, destes sonos ameaçados, não podemos mostrar senão a casca, a cor”.
Imaginar o inimaginável, pensar o impensável, eis o objetivo de Noite e Nevoeiro. Sem nunca banalizar o horror, o filme diz-nos que filmar os campos é uma obrigação ética, estética e política. E desafia-nos para uma reflexão sobre o nosso próprio olhar e a nossa condição de espectadores, apelando à urgência de uma memória que não seja a simples reatualização do passado, mas que contribua para criar uma cultura ética e política que previna novas feridas e não permita que ninguém, nós incluídos, se exima de uma responsabilidade histórica que não prescreve. Por isso, o apelo final é dirigido a todos nós: “A guerra adormeceu com um olho sempre aberto. ... 9 milhões de mortos assombram essa paisagem. … Quem de entre nós vela este estranho observatório para prevenir da vinda de novos carrascos? Terão eles um rosto diferente do nosso? … Estamos aqui e olhamos estas ruínas como se o velho monstro concentracionário estivesse sepultado sob os escombros …, nós, que fingimos acreditar que tudo isto pertence a um só tempo e a um só país. E que não olhamos à nossa volta e não ouvimos que os gritos ainda não se calaram.”
O filme cala-se com este apelo e não nos concede o luxo de esquecer. Pensar a Shoah a partir do presente, pensá-la como um capítulo não fechado da História, tornou-se uma exigência da moderna consciência histórica. Seja escrita em nome do rigor da ciência ou da subjetividade da arte, a História só pode ser feita, como em Noite e Nevoeiro, contra o esquecimento e em nome do que pode tornar-nos mais humanos.»
Abílio Hernandez (facebook)
sexta-feira, 26 de janeiro de 2018
Hoje, Conversas no Mercado: «O que é a integração?»
«Quando é que o país de acolhimento deixa de ser estrangeiro? Quais as etapas até podermos dizer "estamos integrados"? O que significa estar integrado?».
Estas são algumas das questões de partida para a primeira sessão do ciclo Conversas no Mercado, promovido pela «Pão a Pão - Associação para a Integração de Refugiados do Médio Oriente» e que conta com a participação de Iman Bugaighis (Conselho Nacional de Transição Líbio), Rana Uddin (representante da comunidade bangladeshi de Lisboa), Anabela Rodrigues (Solidariedade Imigrante) e Pedro Calado (Alto Comissário para as Migrações). O debate será moderado por Francisca Gorjão Henriques (presidente da Associação Pão a Pão) e tem início marcado para as 18h30 no Mercado de Arroios, em Lisboa. A entrada é livre, apareçam.
Estas são algumas das questões de partida para a primeira sessão do ciclo Conversas no Mercado, promovido pela «Pão a Pão - Associação para a Integração de Refugiados do Médio Oriente» e que conta com a participação de Iman Bugaighis (Conselho Nacional de Transição Líbio), Rana Uddin (representante da comunidade bangladeshi de Lisboa), Anabela Rodrigues (Solidariedade Imigrante) e Pedro Calado (Alto Comissário para as Migrações). O debate será moderado por Francisca Gorjão Henriques (presidente da Associação Pão a Pão) e tem início marcado para as 18h30 no Mercado de Arroios, em Lisboa. A entrada é livre, apareçam.
A globalização não é um dado da Natureza
Há quem julgue que o capital produtivo não tem pátria e que muda de país com muita facilidade ao menor sinal de que o governo vai diminuir a desigualdade na distribuição do rendimento. Mas não é assim. Os estudos de Ha-Joon-Chang documentam que alguns países infractores das regras do Consenso de Washington, as que definiram os contornos da globalização económica e financeira a partir dos anos 80, conseguiram desenvolver-se. Pelo contrário, os que foram "ajudados" pelo FMI e pelo Banco Mundial e tiveram que se submeter à cartilha neoliberal, tiveram taxas de crescimento muitíssimo inferiores às do período de 1960-80.
quinta-feira, 25 de janeiro de 2018
Bravo, Centeno?
A primeira reunião do chamado Eurogrupo, dirigirida pelo chamado Presidente, Mário Centeno, foi resumida por uma imprensa extasiada através da replicação do comentário de Moscovici: “bravo, Centeno”; seguem-se golos, Ronaldo, etc.
Os centenistas lá tentam dar alguma substância à propaganda. Rui Tavares, por exemplo, alardeia o facto de Centeno ter anunciado que estão abertas as negociações para um alívio da dívida grega. Lendo a última declaração do chamado Eurogrupo sobre a Grécia constatamos referências vagas a “medidas de alívio da dívida, se necessário”, mas só depois da conclusão formal do programa punitivo da troika. A pressão é a mesma de sempre. E o governo grego lá vai obedecendo.
E lendo a penúltima declaração sobre a Grécia, na anterior presidência, “a das mulheres e dos copos”, do chamado Eurogrupo, constatamos que a referência vaga a “medidas de alívio da dívida” já lá estava. Não há grande novidade, portanto, apenas o efeito da passagem do tempo depois do esmagamento, em 2015, do que podia ter sido novo.
Já agora, lembro o que escrevi aqui sobre este tema, em resposta a Tavares, em Maio de 2016:
E depois há o alívio da dívida grega, agora prometido lá para 2018, numa discussão envolvendo apenas os credores, com o governo grego a assistir: o que não pode ser pago, não será pago, claro, e até já sabemos isso de anterior reestruturação grega [a de 2012, lembram-se?]. Mas as condições da próxima reestruturação serão igualmente definidas pelos credores, nos seus tempos e nos seus interesses, o que é muito diferente de uma reestruturação liderada pelo devedor, que exigiria rupturas com esta ordem monetária europeia, facto hoje conhecido. A dívida é um instrumento para impor conformidade com esta ordem monetária pós-democrática. O governo grego conformou-se. Isto parece ser também razoavelmente factual.
Agora, pode acrescentar-se o seguinte: é também preciso que mude o pessoal euro-liberal que toca o sininho para que a ordem continue na mesma.
terça-feira, 23 de janeiro de 2018
Ida ao pote n ponto zero
O Presidente da República e militante do bloco central foi dar visibilidade no fim-de-semana passado a uma iniciativa de uma tal plataforma para o crescimento sustentável, um tanque de ideias ligado ao PSD, todo modernaço, já nem sei em quantos pontos zero é que vão, e todo preocupado com populismos e proteccionismos, apresentando mais um manifesto neoliberal para os esconjurar (se alguém tem dúvidas sobre este termo, pode ler neoliberalismo para totós).
Recusando natural e explicitamente o chamado Estado mínimo, querem um Estado que no decisivo campo das funções sociais esteja ao serviço da chamada liberdade de escolha, nome de código para a promoção dos capitalismos educativos, da doença e do casino pensionista. No fundo, ir ao pote, com uma retórica que faça parecer que o velho acabou de nascer: o estado financia pelo menos parcialmente e os privados provisionam e capitalizam, numa lógica toda concorrencial e de mercado.
No Reino Unido, um dos países que esteve na vanguarda destas engenharias, os resultados estão cada vez mais à vista. Até a The Economist fala do fim de uma era, a propósito do colapso de um dos grandes mastodontes empresariais, que cresceu à boleia da confiança nos privados para desempenharem funções sociais e públicas, da gestão das prisões aos hospitais. Cá querem aprofundar uma agenda privatizadora que realmente rebentou. Falhar pior. Por lá, a agenda nacionalizadora de Corbyn é popular. O Brexit só ajudará, claro.
Entretanto, liderado por Jorge Moreira da Silva, este tanque apresenta-se limpo, cheio de preocupações ambientais, com base na ideia de que não há custos sociais gerados pelas forças de mercado que não possam ser resolvidos por essas mesmas forças de mercado, com uns toques e apoios estaduais, promovendo um capitalismo esverdeado.
Estamos portanto perante uma das facções mais modernaças e extrovertidas das direitas, tão euro-fundamentalista quanto uma parte da esquerda, mas geralmente mais consciente do que isso implica a prazo em termos de economia política.
Recusando natural e explicitamente o chamado Estado mínimo, querem um Estado que no decisivo campo das funções sociais esteja ao serviço da chamada liberdade de escolha, nome de código para a promoção dos capitalismos educativos, da doença e do casino pensionista. No fundo, ir ao pote, com uma retórica que faça parecer que o velho acabou de nascer: o estado financia pelo menos parcialmente e os privados provisionam e capitalizam, numa lógica toda concorrencial e de mercado.
No Reino Unido, um dos países que esteve na vanguarda destas engenharias, os resultados estão cada vez mais à vista. Até a The Economist fala do fim de uma era, a propósito do colapso de um dos grandes mastodontes empresariais, que cresceu à boleia da confiança nos privados para desempenharem funções sociais e públicas, da gestão das prisões aos hospitais. Cá querem aprofundar uma agenda privatizadora que realmente rebentou. Falhar pior. Por lá, a agenda nacionalizadora de Corbyn é popular. O Brexit só ajudará, claro.
Entretanto, liderado por Jorge Moreira da Silva, este tanque apresenta-se limpo, cheio de preocupações ambientais, com base na ideia de que não há custos sociais gerados pelas forças de mercado que não possam ser resolvidos por essas mesmas forças de mercado, com uns toques e apoios estaduais, promovendo um capitalismo esverdeado.
Estamos portanto perante uma das facções mais modernaças e extrovertidas das direitas, tão euro-fundamentalista quanto uma parte da esquerda, mas geralmente mais consciente do que isso implica a prazo em termos de economia política.
segunda-feira, 22 de janeiro de 2018
Economia política encontra-se
Por coincidência, no ano em que se assinala os 200 anos do nascimento de Karl Marx, a recém-criada Associação Portuguesa de Economia Política realiza (Lisboa, ISCTE, 25-27 Janeiro) o seu primeiro encontro anual. Um dos conferencistas estrangeiros convidados é Ben Fine, precisamente um dos principais economistas políticos marxistas mais relevantes da actualidade, sendo co-autor daquela que é, do que eu conheço, a melhor introdução a O Capital de Marx. A sua tradução portuguesa será aí lançada.
Fine é um economista político do desenvolvimento, que, entre outras, tem dado contributos significativos na área dos sistemas de provisão, ou seja, da miríade de instituições, valores e relações que moldam a produção e distribuição de bens no capitalismo, um quadro que alguns de nós temos usado para analisar o capitalismo em Portugal.
Numa associação interdisciplinar e pluralista haverá espaço para muitas abordagens e temas, ou não fosse este encontro subordinado ao tema “A Economia enquanto Realidade Substantiva”, remetendo explicitamente para a abordagem institucionalista de Karl Polanyi, outro dos pontos intelectuais de encontro de cientistas sociais que estudam a evolução histórica do capitalismo, enquanto processo social e político de provisão.
Obviamente, as dezenas de comunicações já estão registadas, a Escola de Inverno já está cheia, mas há sempre espaço para inscrições de última hora para quem queira assistir à conferência. Até lá.
Fine é um economista político do desenvolvimento, que, entre outras, tem dado contributos significativos na área dos sistemas de provisão, ou seja, da miríade de instituições, valores e relações que moldam a produção e distribuição de bens no capitalismo, um quadro que alguns de nós temos usado para analisar o capitalismo em Portugal.
Numa associação interdisciplinar e pluralista haverá espaço para muitas abordagens e temas, ou não fosse este encontro subordinado ao tema “A Economia enquanto Realidade Substantiva”, remetendo explicitamente para a abordagem institucionalista de Karl Polanyi, outro dos pontos intelectuais de encontro de cientistas sociais que estudam a evolução histórica do capitalismo, enquanto processo social e político de provisão.
Obviamente, as dezenas de comunicações já estão registadas, a Escola de Inverno já está cheia, mas há sempre espaço para inscrições de última hora para quem queira assistir à conferência. Até lá.
sexta-feira, 19 de janeiro de 2018
A máquina de lavar roupa
No debate quinzenal de 9/1/2018, o primeiro-ministro desvalorizou uma pergunta do Bloco de Esquerda sobre a qualidade de emprego que está a ser criado (36'30''). E, baseando-se nos dados do INE, questionou uma análise feita pelo Observatório sobre Crises e Alternativas, em duas publicações (aqui e aqui), porque baseada numa "metodologia" que empola os números da precariedade. Disse ele:
"Os números do INE não consentem duas interpretações. 70% dos novos contratos de trabalho são contratos sem termo, não são contratos precários, são contratos de trabalho definitivos. O estudo que cita é um estudo que deve ser analisado, primeiro porque não se refere apenas ao período destes dois anos, mas mais extenso; e segundo pela metodologia própria com que trabalha que é uma metodologia onde não identifica contratos de trabalho, mas trabalhadores [aqui alterei o que o primeiro-ministro disse porque, obviamente, não era isso que ele queria dizer] e em que, por isso, há porventura um empolamento daquilo que são os contratos precários por via da multiplicação de contratos na mesma pessoa. Agora, os dados oficiais, formais, do INE dizem que, nestes dois anos, são 76%. E mais: tem vindo a melhorar porque os dados de 2017 já dizem que 78% do emprego existente em Portugal é sem ser contrato a termo e, portanto, emprego com maior qualidade.Mas não é inteiramente assim. Vamos por partes.
quinta-feira, 18 de janeiro de 2018
Atitudes que persistem
Confesso que tenho cada vez mais dificuldade em compreender o que leva ainda tantos comentadores críticos da zona euro a contribuir para a notícia falsa de que há um “debate europeu” em curso, do qual poderá sair uma qualquer reforma da arquitectura da zona euro favorável aos subalternos, isto se nos esforçarmos intelectualmente muito e fizermos propostas muito construtivas e tudo.
Esta atitude é filha de ilusões sobre a natureza da UE, potencialmente democrática e deliberativa, onde venceriam os melhores argumentos, dada a razoabilidade das elites do poder. Esta atitude persiste porque aquilo que passa por esfera pública transnacional é no seu melhor necessariamente monopolizada por intelectuais/académicos, naturalmente cada vez mais desligados dos eventuais movimentos de massas cá em baixo e muito propensos a valorizar ideias que supostamente resolvem problemas, apelando ao interesse próprio esclarecido das elites, até por causa dos incentivos existentes. As elites do poder chamam-lhes um figo. Os que apontam para os problemas que estão mesmo nas estruturas irreformáveis, os verdadeiramente críticos da UE, são bem menos úteis e, só por si, ignorados com relativa facilidade. E isto para usar e adaptar uma distinção já clássica de Robert Cox nos primórdios da economia política internacional.
Reparem que não se trata de defeito da UE, mas antes parte do seu feitio, desta lógica multi-escalar, uma máquina de cooptar e de anular potenciais intelectuais críticos e orgânicos, perigosos quando integrados em blocos contra-hegemónicos de base nacional. As ideias europeístas supostamente críticas são também filhas da fraqueza dos quadros teóricos mobilizados e nunca se transformam em força material porque não penetram nas massas, estando destinadas a ficar perdidas nos corredores de Bruxelas, que foram de resto desenhados para isso. As ideias dos grupos dominantes, por sua vez, têm todo o poder institucional do seu lado.
Esta atitude subestima ainda o mais importante nas relações internacionais, num quadro tão assimétrico e institucionalizado: o poder, de base geopolítica e de classe. O euro-keynesianismo só terá eventualmente alguma hipótese de despontar se servir para esconjurar espectros reais. Os espectros são fracos e antes disso há mais alternativas de política no bem municiado arsenal plutocrático de quem manda numa integração de resto anti-keynesiana desde que conta, ou seja, desde os anos oitenta, precisamente quando as elites perderam o medo do colapso.
Enfim, já se pagou muito caro por esta atitude intelectual e política, mas vão ser necessárias ainda mais derrotas, pelos vistos, embora seja realmente difícil no futuro próximo vir a repetir a performance da esquerda grega. Mas lá está, a farsa é se calhar muito mais variada do que a tragédia.
Pragmatismo
A Direita sempre foi muito mais pragmática do que a Esquerda. Traça de forma clara os seus objectivos e actua em conformidade. De cada vez, encontra um valor moral para justificar o seu objectivo, mesmo que, no tempo, esses valores mudem para preservar o mesmo objectivo.
Um caso exemplar foi a posição do CDS em torno daquilo que apelidou de Geringonça. Ou melhor, um governo baseado num apoio parlamentar em que nenhum dos partidos apoiantes ganhara as eleições.
Paulo Portas foi o difusor dessa palavra, logo após as eleições de 2015, que pretendia ridicularizar a "manobra" feita através da criação de uma "frente dos perdedores", com partidos... de esquerda, aliás, das"esquerdas radicais". E fazendo-se esquecido que governos assim são prática corrente na Europa.
Em finais de 2015, o discurso do CDS insistiu e repetiu que o governo do Partido Socialista era um governo com "um primeiro-ministro não eleito". Ver aqui, ao minuto 22. Telmo Correia, em nome do grupo parlamentar do CDS, encerra a 3/12/2015, o debate do programa do Governo, gerando um burburinho imenso. Disse ele, reagindo ao barulho: "Não é?". Mais burburinho. "Eu digo não eleito, porque o contrário de não eleito é eleito. É quem ganhou as eleições para primeiro-ministro. E esse chama-se Pedro Passos Coelho e está ali sentado. Pensei que não havia dúvidas sobre isso". Palmas do PSD e CDS.
Nuno Magalhães, na sua missão de assegurar a ponte entre o dirigente demissionário Paulo Portas e o seu substituto, não caiu nessa ideia. Mas Assunção Cristas, na sua primeira grande intervenção à frente do CDS, desde 14/1/2016, no encerramento na especialidade do OE para 2016, a 23/2/2016, frisou precisamente o facto do governo ser "minoritário, apoiado na união das esquerdas que não se sabe quem está com quem e em que momento. (...) Quem apoia e quem defende este Orçamento?" (ver aqui, aos 2h43m).
Verdade seja dita que o CDS, rapidamente, não alimentou o tema. E deixou o PSD a fazer o discurso amargo, ressabiado.
Mas espantosamente, passados dois anos de manutenção de um governo supostamente instável, o CDS parece ter ficado convencido e passou a apoiar a possibilidade de um acordo parlamentar de partidos que não ganharam as eleições que viabilize um governo... de Direita. Disse-o Assunção Cristas hoje: Como demonstraram as eleições de 2015,
Um caso exemplar foi a posição do CDS em torno daquilo que apelidou de Geringonça. Ou melhor, um governo baseado num apoio parlamentar em que nenhum dos partidos apoiantes ganhara as eleições.
Paulo Portas foi o difusor dessa palavra, logo após as eleições de 2015, que pretendia ridicularizar a "manobra" feita através da criação de uma "frente dos perdedores", com partidos... de esquerda, aliás, das"esquerdas radicais". E fazendo-se esquecido que governos assim são prática corrente na Europa.
Em finais de 2015, o discurso do CDS insistiu e repetiu que o governo do Partido Socialista era um governo com "um primeiro-ministro não eleito". Ver aqui, ao minuto 22. Telmo Correia, em nome do grupo parlamentar do CDS, encerra a 3/12/2015, o debate do programa do Governo, gerando um burburinho imenso. Disse ele, reagindo ao barulho: "Não é?". Mais burburinho. "Eu digo não eleito, porque o contrário de não eleito é eleito. É quem ganhou as eleições para primeiro-ministro. E esse chama-se Pedro Passos Coelho e está ali sentado. Pensei que não havia dúvidas sobre isso". Palmas do PSD e CDS.
Nuno Magalhães, na sua missão de assegurar a ponte entre o dirigente demissionário Paulo Portas e o seu substituto, não caiu nessa ideia. Mas Assunção Cristas, na sua primeira grande intervenção à frente do CDS, desde 14/1/2016, no encerramento na especialidade do OE para 2016, a 23/2/2016, frisou precisamente o facto do governo ser "minoritário, apoiado na união das esquerdas que não se sabe quem está com quem e em que momento. (...) Quem apoia e quem defende este Orçamento?" (ver aqui, aos 2h43m).
Verdade seja dita que o CDS, rapidamente, não alimentou o tema. E deixou o PSD a fazer o discurso amargo, ressabiado.
Mas espantosamente, passados dois anos de manutenção de um governo supostamente instável, o CDS parece ter ficado convencido e passou a apoiar a possibilidade de um acordo parlamentar de partidos que não ganharam as eleições que viabilize um governo... de Direita. Disse-o Assunção Cristas hoje: Como demonstraram as eleições de 2015,
É sempre salutar mudar de opinião. E passar a apoiar a importância de uma Geringonça de direita...
“mais importante do que saber quem fica em primeiro lugar nas eleições, o que é importante é saber que partidos é que é que conseguem ter uma maioria parlamentar de, no mínimo, 116 deputados”.
quarta-feira, 17 de janeiro de 2018
É o poder, estúpido
A Comissão Europeia estuda o problema das notícias falsas (fake news), depois de uma conveniente interferência russa nos processos eleitorais, quando interferência eleitoral - abusiva, mentirosa e até chantagista - foi algo que nunca chocou à Comissão Europeia fazer, vidé casos da Grécia e Reino Unido. Os diferentes documentos comunitários que vão sendo conhecidos misturam, contudo, o conceito de falsidade com o de desinformação, o que representa uma ideia bem mais lata do que apenas o combate à falsidade: integra já um âmbito bélico ao conceito.
"Notícias falsas consistem na disseminação intencional de desinformação através de plataformas sociais online, difusão de notícias por órgãos de comunicação ou impressão tradicional"
"Notícias falsas representam um conceito mal definido que abrange diferentes tipos de deturpação ou distorsão da realidade na forma de notícias"
O próprio conceito de notícias falsas torna este combate num terreno altamente movediço, minado e perigoso, em que rapidamente se resvala do ataque ao aumento industrial do tráfego de plataformas, ao cerceamento através da lei daquilo que poderão ser narrativas contrárias às oficiais. Exagero? Basta verificar que o ataque às noticias falsas é apresentado em diversos países como uma forma de combate ao populismo - outro conceito mal definido... -, ao extremismo - outro conceito mal definido, pelo menos a julgar pelo uso do CDS quanto ao PCP e BE... - e aos riscos que causa à democracia - outro conceito mal definido por estes documentos.
Será por acaso que surge todo um debate sobre as notícias falsas ilegais e as legais?
Uma larga distinção pode contudo traçar-se entre a falsa informação que contém elementos que são ilegais sob a legislação nacional ou comunitária, e as notícias falsas fora do âmbito dessas leis" (idem)
Ilegais serão as mentiras, a difamação. Mas e as legais?
O recém-nomeado embaixador norte-americano Pede Hoekstra, apesar de ter sido gravado e filmado a dizer que o movimento islâmico queria lançar o caos na Europa, negou-o até à última, afirmado tratar-se de... notícias falsas. O presidente francês quer fazer aprovar leis que impeçam o surgimento, divulgação e difusão de notícias falsas, que permita aos juízes retirar conteúdos em linha ou bloquear acesso aos sites. "Se queremos proteger as democracias liberais, devemos ter forte legislação", diz Macron. Como escreve a Veja,
"um órgão estatal ficaria encarregado de vigiar as transmissões para detectar tentativas desestabilizadoras controladas ou influenciadas por outros países. Mas quem tiver o poder de retirar conteúdos do ar o fará de forma isenta? Qual o risco de que essa prática esbarre na censura pura e simples? O governo francês, é óbvio, não sabe dizer. Além do risco, há o perigo de que reportagens e posts verdadeiros sejam confundidos com notícias falsas e deletados".
A Alemanha está a preparar uma lei que castigue quem difundir notícias com "mentiras e difamações". Um grupo de trabalho, criado no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral brasileiro, chegou a propor a possibilidade de se retirar conteúdos colocados por perfis falsos, ainda que as informações divulgadas sejam verdadeiras". Pretende criar-se uma norma punitiva de quem fabrique notícias falsas ou as propague "com o intuito de influenciar os eleitores". Foi já feito um pedido de cooperação com o FBI norte-americano "para que
especialistas venham ao Brasil nos próximos meses compartilhar a
experiência das eleições americanas de 2016". Isto soa-lhe familiar?
Presidente militante
Marcelo Rebelo de Sousa sobre a eleição de Rui Rio, daquele que foi o seu ex-secretário-geral quando Marcelo foi presidente do PSD.
E esse jogo é para ele uma brincadeira. E Marcelo irá brincar com a realidade até que a realidade se encaminhe para os seus desígnios. E é tão óbvia esta tendência para rebaixar o nível da discussão política, ao nível do que possa ser apreendido pelos meios de comunicação social, que se torna patético que esta personagem que é Presidente da República se dedique à intriga quando tudo está por fazer, sem que ele saiba muito bem, além das generalidades, o que deveria ser feito.
"Só posso dizer aquilo que tenho dito desde o início do meu mandato. A democracia ganha em ter um governo forte, uma forte área da governação, e uma oposição forte para poder ser uma alternativa no momento do votos dos portugueses. Aquilo que já pensava no passado, penso também para o futuro e desejo naturalmente felicidades ao novo líder do PSD."Sente-se o esforço de Marcelo Rebelo de Sousa para fazer um aviso ao povo da direita, ao mesmo tempo que diz uma banalidade política.
E esse jogo é para ele uma brincadeira. E Marcelo irá brincar com a realidade até que a realidade se encaminhe para os seus desígnios. E é tão óbvia esta tendência para rebaixar o nível da discussão política, ao nível do que possa ser apreendido pelos meios de comunicação social, que se torna patético que esta personagem que é Presidente da República se dedique à intriga quando tudo está por fazer, sem que ele saiba muito bem, além das generalidades, o que deveria ser feito.
terça-feira, 16 de janeiro de 2018
A desigualdade, causa e consequência da crise
Discute-se também a desigualdade que sustenta e reproduz o poder dos de cima, mais interessados em discutir a pobreza e alimentar a cultura do assistencialismo do que em falar das leis e instituições estruturantes de um sistema que produz pobreza e doença em grande escala.
Questão central: no discurso dos economistas dos media não entra o conceito de poder e de classes.
Variedades de plutocracia
A caracterização da política económica da administração Trump tem motivado muitos debates, alimentados não só pela dificuldade genérica em enquadrar este presidente nas categorias tradicionais da política norte-americana como pelas inconsistências entre o discurso, a prática, as promessas e as concretizações. Neste contexto, a caracterização recentemente sugerida por Nouriel Roubini – Trump como um pluto-populista, ou um plutocrata sob uma capa populista – parece-me sintética e acertada. Tanto nos protagonistas (com a administração com a mais íntima relação de sempre com a super-elite empresarial) como no conteúdo (da desregulação financeira e ambiental à reforma fiscal), a Trumponomics realmente existente tem tido como fio condutor o reforço dos mecanismos de transferência do rendimento de baixo para cima e em particular para os muito ricos, a coberto de um discurso populista.
O populismo de Trump é, claro está, um populismo xenófobo e reaccionário – triádico, na tipologia proposta por John Judis que o João Rodrigues aqui tem trazido: procura mobilizar as classes médias e populares contra a ameaça do ‘outro’ (os imigrantes, os beneficiários de apoios sociais, os outros países) para quem é remetida a culpa pela degradação das condições de vida, em contraste com o populismo diádico progressista, que procura defender as classes populares das elites que as subordinam. Em todo o caso, em matéria de política económica, o populismo triádico de Trump é mais discursivo do que efectivo: apesar do discurso abertamente racista e de algumas medidas pontuais odiosas, Trump não alterou significativamente a política de imigração, por exemplo, tal como não alterou significativamente a orientação da política comercial livre-cambista, aliás largamente favorável aos interesses das empresas norte-americanas. Já a componente plutocrata vai avançando decisivamente: estima-se que 60% dos ganhos proporcionados por esta reforma fiscal serão capturados pelos 1% mais ricos da população norte-americana, agravando simultaneamente a elevada desigualdade e o défice federal.
Mas não é só na versão trumpista que encontramos uma fusão tóxica entre política-espectáculo e distribuição de baixo para cima. Aqui mais perto, e depois de ter conseguido suscitar entusiasmos pouco avisados entre algum centro-esquerda aquando das eleições presidenciais, é Macron quem tem vindo a implementar reformas fiscais e regulatórias que beneficiam sobremaneira os mais ricos e vulnerabilizam os trabalhadores, a despeito de um discurso e imagem pretensamente pós-ideológicos mas mais adequadamente caracterizados como uma perfeita expressão do extremo centro, para usar a expressão de Tariq Ali. Também neste caso, segundo um estudo acabado de publicar, as medidas com impacto sobre o rendimento das famílias que entrarão em vigor em 2018 beneficiarão principalmente os 2% mais ricos.
O viés plutocrático destes dois actores políticos tão distintos em termos de estilo, que segundo certas narrativas constituiriam exemplos paradigmáticos das alternativas políticas com que nos confrontamos, demonstra bem como esta é na realidade uma falsa e insuficiente escolha. Ao mesmo tempo, mostra também a dimensão do recuo histórico das alternativas progressistas e do muito trabalho que estas têm pela frente.
Epílogo?
«James M. Buchanan (1919-2013, Nobel da economia em 1986) é nome a reter. Com o alargamento do sufrágio eleitoral nos Estados Unidos, ao longo do século XX, tornaram-se cada vez maiores as forças a pedir mais redistribuição. Era preciso contrariá-las. Buchanan deu das principais armas para convencer os muitos, isto é, também alguns daqueles que perdiam com menos distribuição. A segurança social é um esquema "ponzi", entre gerações, chutou, logo seria necessário acabar com ela. Os burocratas e sindicalistas seguem os seus próprios interesses, argumentou, logo todos ganham em votar contra eles. E por aí fora. Passos, com a ajuda da Troika, vendeu deste peixe e parte grande do povo, embora cada vez menor, foi comprando. E até aqueles que ganharam alguma coisa, enquanto proprietários ou empresários, não sendo os grandes, grandes, terão chegado à mesma conclusão, quando viram que os filhos apanhavam de tabela, nas rendas mais altas, nos ordenados mais baixos, na necessidade de sair para o estrangeiro. O ciclo parece ter chegado ao fim. Rio poderá ter sido mais um prego nessa caixa que se fecha. Terá mente e força?»
Pedro Lains (facebook)
Pedro Lains (facebook)
segunda-feira, 15 de janeiro de 2018
Emprego da retoma em debate amanhã
Foi também convidada a deputada comunista Rita Rato, mas por dificuldades de agendamento parlamentar não vai ser possível contar com a sua presença, o que muito se lamenta.
Este vai ser o Barómetro que vai estar em debate. E este também sobre a estagnação da produtividade. E que teve já uma reacção do próprio primeiro-ministro no último debate quinzenal de 2017. Disse António Costa, em resposta a uma pergunta do Bloco de Esquerda:
Este vai ser o Barómetro que vai estar em debate. E este também sobre a estagnação da produtividade. E que teve já uma reacção do próprio primeiro-ministro no último debate quinzenal de 2017. Disse António Costa, em resposta a uma pergunta do Bloco de Esquerda:
"Os números do INE não consentem duas interpretações. 70% dos novos contratos de trabalho são contrato sem termo, não são contratos precários, são contratos de trabalho definitivos. O estudo que cita é um estudo que deve ser analisado, primeiro porque não se refere apenas ao período destes dois anos, mas mais extenso; e segundo pela metodologia própria com que trabalha que é uma metodologia onde não identifica contratos de trabalho, mas trabalhadores e em que por isso há porventura uma empolação daquilo que são os contratos precários por via da multiplicação de contratos na mesma pessoa. Agora os dados oficiais, formais, do INE dizem que, nestes dois anos, são 76%. E mais: tem vindo a melhorar porque os dados de 2017 já dizem que 78% do emprego existente em Portugal é sem ser contrato a termo e portanto emprego com maior qualidade. Não está tudo acabado, claro que não. E é por isso que disse que o desígnio para este ano tem de ser o melhor emprego. Porque além de ter mais emprego, temos de ter melhor emprego. Um emprego mais digno, com salário mais justo e de maior qualidade. É esse emprego para que vamos trabalhar."
Como se vê, há muito para debater. Apareçam!
Tudo em ordem?
Enquanto privatiza o que há para privatizar e aplica o resto do pacote austeritário da troika, Euclid Tsakalotos, formalmente Ministro das Finanças grego, tem obviamente tempo para participar no chamado debate, desta feita no Financial Times, sobre a arquitectura da Zona Euro, tomando de forma sempre ideologicamente reveladora os EUA como referência para “completar a zona euro e banir o espectro do populismo”. É claro que o modelo de transferências não impediu os populismos, sempre no plural, não se esqueçam, nos fracturados EUA.
Enfim, assim se confirma a total cooptação do que foi na Grécia a esquerda dita radical, uma lição, enquanto se espera por um não-lugar indesejável (a distopia dos Estados Unidos da Europa). Por estas e por outras, tenho insistido que o europeísmo é um dos principais mecanismos de destruição da esquerda social-democrata no continente. É um mecanismo eficaz, como se vê também no centro que na realidade comanda qualquer processo europeu, a Alemanha, onde o processo de resto já tem décadas e onde as duas alas do cada vez menos dominante partido exportador chegaram a mais um acordo de governo.
Entretanto, cereja em cima do bolo da elite do poder, a que tornou a social-democracia num apêndice inofensivo e a que por cá também se imagina no centro a mandar, o euro-liberal Centeno lá foi chamado a presidir ao chamado Eurogrupo, com sininho e tudo. Uma decisão sábia, realmente, como disse de forma reveladora o inenarrável Juncker. Tudo em ordem, aparentemente. Cuidado com as aparências.
Enfim, assim se confirma a total cooptação do que foi na Grécia a esquerda dita radical, uma lição, enquanto se espera por um não-lugar indesejável (a distopia dos Estados Unidos da Europa). Por estas e por outras, tenho insistido que o europeísmo é um dos principais mecanismos de destruição da esquerda social-democrata no continente. É um mecanismo eficaz, como se vê também no centro que na realidade comanda qualquer processo europeu, a Alemanha, onde o processo de resto já tem décadas e onde as duas alas do cada vez menos dominante partido exportador chegaram a mais um acordo de governo.
Entretanto, cereja em cima do bolo da elite do poder, a que tornou a social-democracia num apêndice inofensivo e a que por cá também se imagina no centro a mandar, o euro-liberal Centeno lá foi chamado a presidir ao chamado Eurogrupo, com sininho e tudo. Uma decisão sábia, realmente, como disse de forma reveladora o inenarrável Juncker. Tudo em ordem, aparentemente. Cuidado com as aparências.
domingo, 14 de janeiro de 2018
Antes e depois
Onde pára o desemprego jovem?
1. A capa do Público da passada segunda-feira e o Expresso de ontem dão conta de um aumento do desemprego jovem (15 a 24 anos) de 24,6 para 25,6% entre setembro e outubro, ao arrepio do que estaria a verificar-se na generalidade dos países europeus (chegando o Público a afirmar que Portugal é o país da UE28 em que o desemprego jovem mais aumenta).
2. O aumento de 1 ponto percentual noticiado pelo Público e pelo Expresso resulta da comparação entre o valor definitivo registado em setembro e o valor provisório de outubro (ambos divulgados em dezembro). Contudo, sabendo que o INE tem revisto em baixa as estatísticas mensais de desemprego e caso tivesse sido considerado o valor definitivo de outubro - divulgado no dia a seguir à notícia do Público e quatro dias antes da notícia do Expresso - o alegado aumento do desemprego jovem passaria a ser dez vezes menor: +0,1 pontos percentuais, que resultam da diferença entre uma taxa de 24,5% em setembro e 24,6% em outubro (surgindo novembro já com um valor provisório mais baixo, a cair para os 23,7%).
3. Deve acrescidamente sublinhar-se que existe uma tendência para que o desemprego jovem aumente entre setembro e outubro, refletindo a situação de muitos jovens que terminam ciclos de estudo e formação e que, nessa altura, se encontram disponíveis para ingressar no mercado de trabalho. Deste ponto de vista, aliás, o aumento do desemprego jovem de 2017 é um dos dois mais baixos registados nos últimos dez anos, em que o peso relativo dos jovens desempregados desceu em apenas três deles (2010, 2013 e 2016), como mostra o gráfico seguinte:
4. Numa escala temporal mais ampla (que recorre à comparação da média dos onze primeiros meses de cada ano), refira-se aliás que a tendência tem sido a de um ritmo de diminuição do desemprego jovem superior ao do desemprego: -6 pontos percentuais entre 2013 e 2015 (neste caso certamente inflacionado pelo volume da, então, criação artificial de emprego) e -8 pontos percentuais entre 2015 e 2017. Isto quando a taxa de desemprego apenas cai -4 pontos percentuais em cada um dos períodos. Em termos europeus, a mesma tendência: tendo disparado entre 2011 e 2013, o desemprego jovem tem descido a um ritmo mais expressivo em Portugal que na Europa, ao contrário do que sugerem as recentes e circunstanciais notícias do Público e do Expresso.
5. Quer isto dizer que não há problemas com o desemprego jovem em Portugal? Seguramente que não. Desde logo, porque continuamos a registar, apesar da recuperação, taxas de desemprego neste grupo etário que são das mais elevadas da Europa (apenas superadas por países como a Espanha ou a Itália), persistindo igualmente problemas de precariedade e baixos salários (acentuados pelo facto de uma parte considerável da criação de emprego se verificar em setores onde essas questões têm maior relevo). O que não é possível é sugerir, a partir daí, que estamos em processo de divergência com a Europa, em termos de emprego jovem.
2. O aumento de 1 ponto percentual noticiado pelo Público e pelo Expresso resulta da comparação entre o valor definitivo registado em setembro e o valor provisório de outubro (ambos divulgados em dezembro). Contudo, sabendo que o INE tem revisto em baixa as estatísticas mensais de desemprego e caso tivesse sido considerado o valor definitivo de outubro - divulgado no dia a seguir à notícia do Público e quatro dias antes da notícia do Expresso - o alegado aumento do desemprego jovem passaria a ser dez vezes menor: +0,1 pontos percentuais, que resultam da diferença entre uma taxa de 24,5% em setembro e 24,6% em outubro (surgindo novembro já com um valor provisório mais baixo, a cair para os 23,7%).
3. Deve acrescidamente sublinhar-se que existe uma tendência para que o desemprego jovem aumente entre setembro e outubro, refletindo a situação de muitos jovens que terminam ciclos de estudo e formação e que, nessa altura, se encontram disponíveis para ingressar no mercado de trabalho. Deste ponto de vista, aliás, o aumento do desemprego jovem de 2017 é um dos dois mais baixos registados nos últimos dez anos, em que o peso relativo dos jovens desempregados desceu em apenas três deles (2010, 2013 e 2016), como mostra o gráfico seguinte:
4. Numa escala temporal mais ampla (que recorre à comparação da média dos onze primeiros meses de cada ano), refira-se aliás que a tendência tem sido a de um ritmo de diminuição do desemprego jovem superior ao do desemprego: -6 pontos percentuais entre 2013 e 2015 (neste caso certamente inflacionado pelo volume da, então, criação artificial de emprego) e -8 pontos percentuais entre 2015 e 2017. Isto quando a taxa de desemprego apenas cai -4 pontos percentuais em cada um dos períodos. Em termos europeus, a mesma tendência: tendo disparado entre 2011 e 2013, o desemprego jovem tem descido a um ritmo mais expressivo em Portugal que na Europa, ao contrário do que sugerem as recentes e circunstanciais notícias do Público e do Expresso.
5. Quer isto dizer que não há problemas com o desemprego jovem em Portugal? Seguramente que não. Desde logo, porque continuamos a registar, apesar da recuperação, taxas de desemprego neste grupo etário que são das mais elevadas da Europa (apenas superadas por países como a Espanha ou a Itália), persistindo igualmente problemas de precariedade e baixos salários (acentuados pelo facto de uma parte considerável da criação de emprego se verificar em setores onde essas questões têm maior relevo). O que não é possível é sugerir, a partir daí, que estamos em processo de divergência com a Europa, em termos de emprego jovem.
sábado, 13 de janeiro de 2018
Uma filosofia sobre o outro que o torne desumano
«Do ponto de vista de escala de valores, teríamos em primeiro lugar os “europeus” capazes de pensar; em segundo lugar, as máquinas, criadas por eles, capazes de assumir a liquidação de “sub-humanos”; e, em terceiro lugar, todos os bípedes não brancos e não pertencentes às monarquias do Golfo que andam pelas terras pobres. Nas cidades da Europa e dos EUA, a lógica repete-se: ser cidadão depende muito da cor da pele e do bairro onde se habita.
Para isto acontecer com os drones, e como acontece no dia-a-dia em países como Israel, é preciso uma filosofia sobre o outro que o torne desumano. Só isso pode justificar que sejam presos menores e condenados a penas de dezenas de anos de cadeia. Isto só é possível porque há uma ideologia, não publicamente assumida, de que há humanos e que há outros bípedes que podem ser agredidos, detidos, torturados e mortos.
O caso da prisão da adolescente palestiniana Ahed Tamimi é um símbolo dessa ideia de uma raça superior que tem o direito de matar tudo o resto. A jovem de 16 anos tentou a agredir soldados israelitas minutos depois de o seu primo de 15 anos ter recebido na cara um tiro, à queima-roupa, de uma bala de borracha, ficando às portas da morte. Foi detida juntamente com os seus familiares e arrisca, segundo a imprensa local, uma pena de prisão que ultrapassa os dez anos. Não consta que o militar israelita que disparou contra o primo tenha qualquer problema em continuar a fazê-lo. A legislação israelita prevê a prisão de crianças a partir dos 12 anos. O caso que acontece todos os dias na Palestina ocupada só teve um maior destaque porque as redes sociais viralizaram o sucedido e a jovem, que já se tinha oposto, com 12 anos, ao derrube da sua casa, é loura e tem os olhos azuis, como uma europeia.»
Nuno Ramos de Almeida, Os não europeus não pensam? (a ler na íntegra).
Para isto acontecer com os drones, e como acontece no dia-a-dia em países como Israel, é preciso uma filosofia sobre o outro que o torne desumano. Só isso pode justificar que sejam presos menores e condenados a penas de dezenas de anos de cadeia. Isto só é possível porque há uma ideologia, não publicamente assumida, de que há humanos e que há outros bípedes que podem ser agredidos, detidos, torturados e mortos.
O caso da prisão da adolescente palestiniana Ahed Tamimi é um símbolo dessa ideia de uma raça superior que tem o direito de matar tudo o resto. A jovem de 16 anos tentou a agredir soldados israelitas minutos depois de o seu primo de 15 anos ter recebido na cara um tiro, à queima-roupa, de uma bala de borracha, ficando às portas da morte. Foi detida juntamente com os seus familiares e arrisca, segundo a imprensa local, uma pena de prisão que ultrapassa os dez anos. Não consta que o militar israelita que disparou contra o primo tenha qualquer problema em continuar a fazê-lo. A legislação israelita prevê a prisão de crianças a partir dos 12 anos. O caso que acontece todos os dias na Palestina ocupada só teve um maior destaque porque as redes sociais viralizaram o sucedido e a jovem, que já se tinha oposto, com 12 anos, ao derrube da sua casa, é loura e tem os olhos azuis, como uma europeia.»
Nuno Ramos de Almeida, Os não europeus não pensam? (a ler na íntegra).
sexta-feira, 12 de janeiro de 2018
Virar a página no debate sobre trabalho e competitividade (IV)
Na transição de ano, a questão dos feriados e das «pontes» de 2018 suscitou comentários e análises diversas na imprensa e por parte de representantes do setor empresarial, que incluíram críticas aos seus custos para a economia e para o país. Essas críticas não são novas e, bem o sabemos, chegaram entre outras medidas a tomar forma de lei, com a supressão de quatro feriados em 2013, repostos pela atual maioria de esquerda no início de 2016.
Os «custos dos feriados e pontes» são aliás um tópico recorrente no discurso de uma espécie de «brigada do reumático» do pensamento económico, que continua a dar sinais de vida e que, mesmo quando derrotada pela realidade, insiste na relação causal, linear e absoluta, entre o «fator trabalho» (que é reduzido, na verdade, a «tempo de trabalho»), a produtividade e a competitividade. Isto é, pessoas e entidades que provavelmente continuariam a eleger este como o livro do ano de 2017.
O argumento é simples e faz parte de uma narrativa mais ampla, que continua a vender bem na «opinião pública» que é diariamente intoxicada com balelas moralistas: os feriados e as «pontes» são um luxo e Portugal um país pobre, que não se pode dar a luxos. Aliás, somos pobres porque as pessoas, «regra geral», trabalham pouco. Lá está, o «fator trabalho» é que estraga tudo e é por isso que é preciso pô-lo no lugar, dilatando o tempo de laboração, suprimindo feriados, comprimindo salários e dissolvendo direitos e leis, essas modernices que alimentam a nossa, «regra geral», propensão para não produzir. É trabalhando mais tempo que se progride, é empobrecendo que nos tornamos competitivos.
Se o engodo intelectual persiste, é preciso continuar a responder-lhe com factos. E o que os factos dizem é que tanto na perspetiva da produtividade como da competitividade (ver gráficos), a existir alguma correlação destas variáveis com o tempo de trabalho, essa correlação é negativa. Os países que detém níveis mais elevados de produtividade e competitividade não são, ao contrário do que nos querem fazer crer, os países em que mais se trabalha. A existirem, as correlações são em sentido inverso, sugerindo que a questão do tempo de trabalho é basicamente irrelevante para melhorar o desempenho de uma economia.
Os fatores que contam para um verdadeiro desenvolvimento económico (e social, já agora) são outros. E nesse prisma vale a pena ler na íntegra o recente artigo de Maria de Lurdes Rodrigues, onde se assinala, de forma certeira, que a produtividade do trabalho nem sequer «se deve apenas aos níveis de qualificação e desempenho dos trabalhadores» (sendo fundamental, nesse âmbito, superar o nosso atraso estrutural em matéria de qualificações), mas também «ao investimento em tecnologia, à organização do trabalho e às competências de gestão». Isto é, a «variáveis que dependem sobretudo de decisões empresariais e do contexto da atividade económica».
Aliás, como bem lembra MLR, a história do trabalho e das empresas mostra-nos que «a possibilidade de aumentar sem custos o horário de trabalho nunca constituiu um estímulo à modernização económica». Pelo contrário, «a modernização da atividade económica foi muitas vezes a resposta aos obstáculos políticos levantados (...) à prática de longas jornadas de trabalho ou de salários muito baixos». O que significa, portanto, que «não é cortando direitos sociais e regressando a formas mais primitivas de capitalismo que Portugal ganhará tempo na recuperação do seu atraso económico».
Os «custos dos feriados e pontes» são aliás um tópico recorrente no discurso de uma espécie de «brigada do reumático» do pensamento económico, que continua a dar sinais de vida e que, mesmo quando derrotada pela realidade, insiste na relação causal, linear e absoluta, entre o «fator trabalho» (que é reduzido, na verdade, a «tempo de trabalho»), a produtividade e a competitividade. Isto é, pessoas e entidades que provavelmente continuariam a eleger este como o livro do ano de 2017.
O argumento é simples e faz parte de uma narrativa mais ampla, que continua a vender bem na «opinião pública» que é diariamente intoxicada com balelas moralistas: os feriados e as «pontes» são um luxo e Portugal um país pobre, que não se pode dar a luxos. Aliás, somos pobres porque as pessoas, «regra geral», trabalham pouco. Lá está, o «fator trabalho» é que estraga tudo e é por isso que é preciso pô-lo no lugar, dilatando o tempo de laboração, suprimindo feriados, comprimindo salários e dissolvendo direitos e leis, essas modernices que alimentam a nossa, «regra geral», propensão para não produzir. É trabalhando mais tempo que se progride, é empobrecendo que nos tornamos competitivos.
Se o engodo intelectual persiste, é preciso continuar a responder-lhe com factos. E o que os factos dizem é que tanto na perspetiva da produtividade como da competitividade (ver gráficos), a existir alguma correlação destas variáveis com o tempo de trabalho, essa correlação é negativa. Os países que detém níveis mais elevados de produtividade e competitividade não são, ao contrário do que nos querem fazer crer, os países em que mais se trabalha. A existirem, as correlações são em sentido inverso, sugerindo que a questão do tempo de trabalho é basicamente irrelevante para melhorar o desempenho de uma economia.
Os fatores que contam para um verdadeiro desenvolvimento económico (e social, já agora) são outros. E nesse prisma vale a pena ler na íntegra o recente artigo de Maria de Lurdes Rodrigues, onde se assinala, de forma certeira, que a produtividade do trabalho nem sequer «se deve apenas aos níveis de qualificação e desempenho dos trabalhadores» (sendo fundamental, nesse âmbito, superar o nosso atraso estrutural em matéria de qualificações), mas também «ao investimento em tecnologia, à organização do trabalho e às competências de gestão». Isto é, a «variáveis que dependem sobretudo de decisões empresariais e do contexto da atividade económica».
Aliás, como bem lembra MLR, a história do trabalho e das empresas mostra-nos que «a possibilidade de aumentar sem custos o horário de trabalho nunca constituiu um estímulo à modernização económica». Pelo contrário, «a modernização da atividade económica foi muitas vezes a resposta aos obstáculos políticos levantados (...) à prática de longas jornadas de trabalho ou de salários muito baixos». O que significa, portanto, que «não é cortando direitos sociais e regressando a formas mais primitivas de capitalismo que Portugal ganhará tempo na recuperação do seu atraso económico».
quinta-feira, 11 de janeiro de 2018
Leituras: Revista Crítica - Económica e Social (n.º 14)
A primeira edição de 2018 da revista Crítica inclui reflexões sobre a Europa e a Zona Euro (Francisco Louçã e Ricardo Cabral), o Orçamento de Estado de 2018 (Mariana Mortágua e Ricardo Cabral) e o Relatório mundial das Desigualdades (Alexandre Abreu, Francisco Louçã e Ricardo Paes Mamede). Seguem-se três análises, sobre emprego público e privado, política fiscal e regionalização (Nuno Serra, Eugénio Rosa e Ernesto Figueiredo). O número 14 da revista Crítica está disponível aqui, para download gratuito. Boas leituras.
quarta-feira, 10 de janeiro de 2018
Menos Wilson e mais Lenine?
Rui Tavares lembrou e bem que se assinalou na segunda-feira os cem anos do famoso discurso dos 14 pontos feito pelo Presidente norte-americano Woodrow Wilson, onde este fixou o entendimento norte-americano para o pós-guerra, considerando que estes pontos “fundaram as bases do sistema internacional e do mundo em que ainda vivemos” e que no fundo Trump ameaçaria, sinalizando de resto o fim do século americano.
Curiosamente, facto omitido num exercício ainda demasiado devedor do idealista Wilson da paz em torno da Sociedade das Nações, estamos neste caso perante um presidente racista e segregacionista, na tradição então democrata do sul dos EUA da altura e que transportou consigo essa tradição para o plano internacional, negando a igualdade racial entre os povos (proposta, por exemplo, pelo Japão) e a universalização do direito à autodeterminação nacional (basta ver o ponto sobre as colónias…). Ho Chi Minh, admirador dos EUA e que Wilson recusou receber em Paris, e os vietnamitas que o digam. O apoio à luta pela libertação nacional e à forma de igualdade que lhe é inerente seria dado por outros. Minh participaria no congresso fundador do PCF nos anos vinte (na foto), sem deixar de ser nacionalista, claro. As dicotomias liberais simplistas hoje de novo em voga – isolacionistas versus cosmopolitas – nunca funcionaram. De resto, acho preferível usar a expressão internacionalista, porque sei que histórica e teoricamente combina com um certo nacionalismo de feição anti-imperialista, indissociável da esquerda que contou no passado e que quer contar no futuro.
Outro elemento ausente é o imperialismo norte-americano, uma expressão inconveniente em certos meios cada vez mais convencionais, realmente, bem como as pesadas responsabilidades que esta nova potência credora, que saiu reforçada da guerra, teve, por via de Wilson, na abordagem à magna questão das dívidas interaliadas e das reparações de guerra impostas à Alemanha a partir de 1919. Se Wilson tivesse sido mais brando financeiramente em relação aos aliados e menos moralista em relação à Alemanha, talvez se tivesse onerado menos esta última e talvez outras tivessem sido as “consequências económicas da paz”, tão bem denunciadas por Keynes logo em 1919 (um livro recomendado por Lenine). Depois de 1945, com os tanques soviéticos em Berlim, os incentivos para a principal potência credora seriam outros.
É, entretanto, preciso não esquecer que Wilson estava sobretudo a responder a Lenine e aos apelos dos bolcheviques (comparem, já agora, os 14 pontos com o Decreto sobre a Paz do novo poder soviético e tirem as vossas conclusões sobre quem era mais progressista). Felizmente, a chamada nova diplomacia não era monopólio do outro lado do Atlântico Norte: do Decreto da Paz à Declaração dos Povos do Oriente, em 1920, ou à fundação da Liga contra o imperialismo, em 1927. Esta última iniciativa, fundamentalmente organizada pela Terceira Internacional e em que participaram Nehru ou Sukarno, faz parte da história do nacionalismo internacionalista, de matriz anti-racista e anti-colonial. Esse, sim, lançou as bases de muito do que ainda há de menos indecente no sistema internacional em que vivemos. Já havia espectros bem reais a lutar por outros mundos. A Sociedade das Nações, enquanto projeto e realidade institucional, esteve marcada por demasiadas exclusões, típicas do liberalismo, económico e político, da época. Os liberalismos são excludentes, de formas historicamente sempre novas e estão sempre prenhes de crises, não o esqueçamos.
Por portas e travessas, hoje estamos longe do tipo de sistema internacional que figuras incompreensivelmente incensadas, ainda que cada vez menos, verdade seja dita, como Wilson planearam. Embora seja cedo para falar no declínio do imperialismo norte-americano, a verdade é que a nossa melhor esperança internacional é a de um mundo multipolar, o que pressupõe que haja estados fortes, que funcionem como freios e contrapesos ao Ocidente: lá para as bandas do Oriente e do Sul...
terça-feira, 9 de janeiro de 2018
Capitalismo imobiliário
A habitação é um tópico relativamente pouco estudado pelos economistas. Parte deste desinteresse deve-se mais à escassez de dados comparáveis, entre economias e para horizontes temporais latos, do que a uma menor relevância económica do sector.
Òscar Jordá e colegas têm vindo a compilar de uma forma sistemática informação estatística para um conjunto significativo de países e para longos horizontes temporais que confirma a extraordinária importância da habitação no capitalismo.
Em estudo anterior já haviam sublinhado que o forte crescimento da dívida agregada privada, observada nas principais economias capitalistas na segunda metade do século XX, se deveu ao crescimento do crédito à habitação, que se tornou a principal atividade da banca, crescendo de um terço para dois terços, substituindo a sua tradicional vocação de financiamento às empresas.
Num novo estudo, para uma amostra de 16 países e cobrindo um período de 150 anos, de 1870 a 2015, Jordá e colegas mostram que a habitação é o ativo com a maior taxa de rendibilidade em termos reais (isto é, sem o efeito da inflação), superando a taxa de rendibilidade das ações na generalidade dos países, apesar da sua menor volatilidade, contrariando assim as previsões da teoria económica convencional. Em termos médios, para o conjunto dos países, a taxa de rendibilidade da habitação é 8.0%, enquanto a taxa de rendibilidade das ações é de 6.7%, sendo a taxa de rendibilidade das Obrigações do Tesouro de 2.5%. Estes valores são, respetivamente, 8.5, 7.1 e 2.8 para Portugal.
Suportando a conclusão de Piketty, o mesmo estudo mostra que a taxa de rendibilidade do capital tem sido sistematicamente superior à taxa de crescimento do PIB em todos os países (exceto durante as duas Grandes Guerras), o que significa que a riqueza cresce proporcionalmente mais que o PIB. Como esta está concentrada nos mais ricos, o crescimento desproporcional da riqueza (6.8%) face ao PIB (2.9%) significa o aumento continuado da desigualdade. Portugal não é exceção, registando um crescimento do PIB de 3.4% e uma taxa de rendibilidade de 7.6%.
A inclusão da habitação na análise da evolução das taxas de rendibilidade de longo prazo dos vários tipos de capital não só reforça as conclusões de outros estudos, como mostra que a habitação é parte integral do processo de geração de desigualdade. No atual contexto de baixas taxas de crescimento e de baixas taxas de juro é cada vez mais evidente a metamorfose da habitação em ativo financeiro, ganhando peso crescente nos portfólios de investimento dos muito ricos.
No caso português, estes incluem estrangeiros que enriquecem não só por se tornarem proprietários, mas também porque beneficiam de importantes apoios do Estado, ou seja, enriquecem à custa daqueles que vivem do rendimento do trabalho desigualmente distribuído.
Òscar Jordá e colegas têm vindo a compilar de uma forma sistemática informação estatística para um conjunto significativo de países e para longos horizontes temporais que confirma a extraordinária importância da habitação no capitalismo.
Em estudo anterior já haviam sublinhado que o forte crescimento da dívida agregada privada, observada nas principais economias capitalistas na segunda metade do século XX, se deveu ao crescimento do crédito à habitação, que se tornou a principal atividade da banca, crescendo de um terço para dois terços, substituindo a sua tradicional vocação de financiamento às empresas.
Num novo estudo, para uma amostra de 16 países e cobrindo um período de 150 anos, de 1870 a 2015, Jordá e colegas mostram que a habitação é o ativo com a maior taxa de rendibilidade em termos reais (isto é, sem o efeito da inflação), superando a taxa de rendibilidade das ações na generalidade dos países, apesar da sua menor volatilidade, contrariando assim as previsões da teoria económica convencional. Em termos médios, para o conjunto dos países, a taxa de rendibilidade da habitação é 8.0%, enquanto a taxa de rendibilidade das ações é de 6.7%, sendo a taxa de rendibilidade das Obrigações do Tesouro de 2.5%. Estes valores são, respetivamente, 8.5, 7.1 e 2.8 para Portugal.
Suportando a conclusão de Piketty, o mesmo estudo mostra que a taxa de rendibilidade do capital tem sido sistematicamente superior à taxa de crescimento do PIB em todos os países (exceto durante as duas Grandes Guerras), o que significa que a riqueza cresce proporcionalmente mais que o PIB. Como esta está concentrada nos mais ricos, o crescimento desproporcional da riqueza (6.8%) face ao PIB (2.9%) significa o aumento continuado da desigualdade. Portugal não é exceção, registando um crescimento do PIB de 3.4% e uma taxa de rendibilidade de 7.6%.
A inclusão da habitação na análise da evolução das taxas de rendibilidade de longo prazo dos vários tipos de capital não só reforça as conclusões de outros estudos, como mostra que a habitação é parte integral do processo de geração de desigualdade. No atual contexto de baixas taxas de crescimento e de baixas taxas de juro é cada vez mais evidente a metamorfose da habitação em ativo financeiro, ganhando peso crescente nos portfólios de investimento dos muito ricos.
No caso português, estes incluem estrangeiros que enriquecem não só por se tornarem proprietários, mas também porque beneficiam de importantes apoios do Estado, ou seja, enriquecem à custa daqueles que vivem do rendimento do trabalho desigualmente distribuído.
Leituras para recuperar
Sem propriedade pública de sectores estratégicos é sempre muito mais difícil subordinar o poder económico ao poder político, os interesses de alguns às necessidades de todos. Passados quatro anos, a situação dos serviços prestados pelos CTT degradou-se de tal forma que obriga a repensar, não apenas o contrato de concessão, despudoradamente incumprido pela administração da empresa, mas a própria propriedade dos Correios (...) O que pode ser feito para recuperar os CTT? É hoje evidente que reverter cortes de salários e pensões é muito mais fácil do que reverter privatizações e outras engenharias neoliberais como as parcerias público-privadas. Algo a reter quando chegar a próxima vaga privatizadora… Esta maior dificuldade acontece em parte porque, justamente, o Estado dispõe de instrumentos públicos muito mais seguros para actuar sobre os salários e as pensões. E porque, se em relação aos cortes que sobre eles incidiram existe um histórico constitucional e jurídico consolidado em períodos de correlação social de forças mais favorável aos trabalhadores e ao público, já no que diz respeito às privatizações os poderes públicos enfrentam uma máquina jurídica e um ambiente político e institucional (com escala internacional) muito mais adverso. Isto não significa, antes pelo contrário, que devam ser postas de lado as questões sobre as quais a sociedade tem de pensar colectivamente para encontrar maneiras de resolver situações lesivas e que todos reconhecem ser insustentáveis. Neste caso, e tendo em conta os meios de que as administrações de empresas estratégicas como os Correios dispõem para continuar a saqueá-las, para as destruir privando-as dos seus maiores recursos – os trabalhadores –, e para desvirtuar as suas missões estratégicas orientando-as apenas para lógicas mercantis e de distribuição dos dividendos pelos accionistas, não parece haver uma solução para recuperar os CTT que não passe pela sua renacionalização.
Sandra Monteiro, Recuperar os CTT, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Janeiro de 2017.
Sandra Monteiro, Recuperar os CTT, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Janeiro de 2017.
segunda-feira, 8 de janeiro de 2018
domingo, 7 de janeiro de 2018
Memória (XXV)
«Em Janeiro de 2005, as regras sobre o financiamento dos partidos mudaram e, nos últimos dias de 2004, o CDS-PP tinha um problema: tinha 1 060 250 euros em notas no cofre da sua sede nacional. A solução: em quatro dias, de rajada, depositar tudo na conta do partido aos poucos, para evitar que o banco tivesse que alertar as autoridades por suspeitas de corrupção.
O CDS-PP estava, então, no governo demissionário de Santana Lopes e nunca se soube de onde vieram as notas depositadas nesses dias. Os recibos foram comprados e passados já em 2005, onde constava um nome "sonante e anedótico", como caracterizou a Polícia Judiciária (PJ): Jacinto Leite Capelo Rego».
AbrilAbril, Quem já se deu mal com a fiscalização das contas partidárias?
sexta-feira, 5 de janeiro de 2018
Mantra
O debate na opinião publicada em Portugal sobre défice orçamental continua deprimente. Isto a propósito deste editorial do cada vez mais ‘alt-right’ jornal Público: “Portugal tem em 2018 a possibilidade e a obrigação de erradicar o défice do léxico nacional. Se o fizer, será a forma mais fácil de garantir que assim se manterá no futuro. Até porque nesse futuro ninguém ambicionará ficar conhecido como o ministro das Finanças que trouxe o défice de volta”.
Dito assim, peremptório e definitivo, propondo a erradicação de outras possibilidades para a condução das políticas económicas nacionais, com a autoridade de diretor-adjunto, o que pensará o cidadão comum menos versado nestas matérias?
Pessoalmente, parece-me que do trecho acima citado decorre necessariamente que eliminar o défice para todo o sempre é uma obrigação moral, alinhando as políticas públicas com leis económicas inscritas na natureza, conhecidas por todos e disputadas por ninguém capaz e/ou honesto. O que é obviamente, um absurdo.
Como é evidente, cada um tem toda a legitimidade para defender para o país as opções económicas que entender. Mas devia também ser por demais evidente que opções de cada um são isso mesmo, opções de cada um e não imperativos categóricos ou leis inquestionáveis da economia. Uma peça de opinião escrita nestes termos presta, assim, um mau serviço ao muito necessário debate público acerca destas matérias com forte impacto no futuro coletivo.
Vitor Costa pode, claro, alegar que não se trata apenas da sua opinião uma vez que a obrigação de orçamentos públicos equilibrados ou superavitários tem cobertura legal no artigo 3.º do Tratado Orçamental (2012) e no artigo 10.º da Lei de Enquadramento Orçamental (2015) o que, claro, é verdade.
Contudo, por mais que a direita europeia insista em autoritariamente blindar legalmente as suas preferências económicas e em proscrever as alternativas, isso não transforma as suas opções em leis económicas ou, tão pouco, desqualifica as alternativas. É matéria de opinião, eu sei, mas, ao contrário, para muitos daqueles que partilham de uma perspectiva não neoliberal da Economia, as regras orçamentais estatuídas no Tratado Orçamental são nada menos que tecnicamente absurdas e democraticamente inaceitáveis.
Do meu ponto de vista, estabelecer a obrigação legal de orçamentos equilibrados e sanções para os prevaricadores é tão absurdo como seria estabelecer a obrigação legal do pleno emprego e uma correspondente sanção do desemprego.
Dez anos depois da Grande Crise Financeira de 2007/2008, é este o calamitoso estado do debate. Na defesa de uma sociedade incrustada na economia e de uma economia mercantil onde o controle democrático efetivo e a provisão pública não assistencial estão, por design, ausentes, a direita indígena repete o mantra: Não há alternativa, déficit zero! E estamos nisto desde 2010.
E, contudo, em Economia e, como sabe, em tudo que é humano exceto a morte, há sempre alternativa. Se a direita repete o mantra, embora seja um cansaço, é necessário que nunca a deixemos sem réplica:
“[O] saldo orçamental é igual à diferença entre as receitas e as despesas públicas, mas é também igual, por definição, à soma da poupança privada líquida (famílias e empresas) com o défice da balança de pagamentos.
Se o sector privado decidir poupar mais, o governo não tem alternativa a permitir que o défice suba a menos que esteja preparado para sacrificar o pleno emprego; o mesmo princípio se aplica se tendências não corrigidas no comércio externo provocam crescimento do défice da balança de pagamentos.
[Assim] [u]m sensato objetivo para o saldo orçamental não pode ser estabelecido a menos que esteja integrado numa visão acerca do que acontecerá a tendências autónomas e propensões na poupança líquida privada e no comércio externo. Acresce que, como essas tendências e propensões mudam, nunca será possível determinar objetivos realizáveis para o défice que sejam fixos no tempo como, por exemplo, que aquele défice nunca pode exceder algum número como 3 por cento do PIB ou que em média deve ser zero”.
Emprego bom e emprego mau
O primeiro-ministro tem dois discursos, que não são incompatíveis.
No primeiro, António Costa elogia o tipo de emprego que a retoma tem criado. No último debate quinzenal de 2017, frisou que 75% dos empregos criados em 2016 e 2017 foram com contratos permanentes. Mas ao mesmo tempo, na sua mensagem de Natal, António Costa fixou para 2018 o ano a “vencer os bloqueios ao nosso desenvolvimento” e que, por isso, terá o emprego como cerne da política:
É sobre este dilema que o mais recente barómetro do Observatório sobre Crises e Alternativas trata. Leia-se, porque é importante encontrar uma visão de futuro. E não necessariamente alguma reinvenção. Apenas outras políticas.
No primeiro, António Costa elogia o tipo de emprego que a retoma tem criado. No último debate quinzenal de 2017, frisou que 75% dos empregos criados em 2016 e 2017 foram com contratos permanentes. Mas ao mesmo tempo, na sua mensagem de Natal, António Costa fixou para 2018 o ano a “vencer os bloqueios ao nosso desenvolvimento” e que, por isso, terá o emprego como cerne da política:
“O emprego está no centro da nossa capacidade de conquistarmos o futuro. Não apenas mais, mas sobretudo melhor emprego. Essa é a prioridade que definimos para o ano de 2018. Emprego digno, salário justo, oportunidade de realização profissional são condições essenciais para os jovens perspetivarem o seu futuro aqui connosco, em Portugal.”O primeiro dos raciocínios parece ter como objectivo o combate de barricada, corpo a corpo. Trata-se de uma formulação que - ainda que decorra dos dados do INE - é imcompleta. E assim é porque apenas parte da criação líquida de postos de trabalho, nunca entrando em conta com o ritmo de criação e de destruição de contratos de trabalho, real indicador da precariedade do trabalho. O segundo dos raciocínios parece ser um olhar mais estrutural da realidade e que tem presente as dificuldades de uma aposta num emprego criado conjunturalmente, mas que - mais grave - tende a perpetuar-se como modelo de crescimento: trabalhos em actividades pouco produtivas que, por sua vez, remuneram mal e em baixas condições contratuais quem empregam.
É sobre este dilema que o mais recente barómetro do Observatório sobre Crises e Alternativas trata. Leia-se, porque é importante encontrar uma visão de futuro. E não necessariamente alguma reinvenção. Apenas outras políticas.
O destino da comunidade
Está prometida a privatização dos CTT – Correios de Portugal, entretanto já amputados das suas «lojas» menos rentáveis. Uma das instituições públicas seculares, que deu densidade ao território nacional, que garantiu com segurança o acesso a um bem social fundamental, que em suma criou comunidade, será entregue a uma empresa privada que cuidará de outros interesses que não os que estão associados a uma necessidade dos cidadãos que aqui vivem. Uma comunidade nacional não é só um produto, maleável e mutável, socialmente imaginado, ainda que este imaginar seja decisivo, bem como a luta pela sua hegemonia. Uma comunidade nacional ganha densidade material através de instituições como os correios, a escola pública, o serviço nacional de saúde ou a segurança social e é letalmente ameaçada pela destruição do que é de todos, dos serviços públicos universais que são um dos momentos em que se conjuga, com validade, uma politicamente poderosa primeira pessoa do plural, um «nós» com implicações igualitárias. O socialismo democrático sempre dependeu desta conjugação, o que de resto não passou despercebido, por exemplo, a Friedrich Hayek, um dos seus adversários e defensor de um regime pós-nacional, de tipo federal, como melhor garantia de uma democracia limitada e de fraquíssimo alcance redistributivo, até porque necessariamente desprovida da noção de «comunidade de destino».
Recupero um excerto de um artigo que escrevi para o Le Monde diplomatique – edição portuguesa de Julho de 2013. Isto está mesmo tudo ligado, como se sabe, mas tudo o que se passou entretanto nos CTT parece confirmar com particular intensidade as ligações, antecipadas por tantos, entre privatização, degradação do serviço público e das relações laborais que o sustentam, aumentos das desigualdades territoriais e da insegurança cidadã perante accionistas rapaces. Tudo conspira entretanto para tornar cada dia mais difícil a conjugação institucional da primeira pessoa do plural, sem a qual de resto não há confiança que possa ser reinventada. Também é assim que se destrói uma comunidade nacional.
Perante isto, nós temos mesmo de recuperar o controlo público dos CTT. O PS chumbou já tal hipótese, confirmando que pouco ou nada mudou, ao contrário do que se verificou, por exemplo, no Partido Trabalhista britânico que já tanto o inspirou nos tempos da terceira via. Enfim, há agora quem no PS proponha o “estudo da renacionalização” dos CTT como meio para travar um processo de degradação classificado de “abjecto”. Apesar de tudo, estudar é melhor do que abrir garrafas de champanhe cada vez que uma uma empresa era privatizada, como dizia fazer um secretário de Estado de Guterres...