quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O mito da demografia em Educação (I)

Instalou-se nos últimos anos em Portugal a ideia de que temos professores a mais. De facto, perante a quebra continuada da natalidade e a consequente diminuição da população escolar supõe-se que a redução do número de docentes no sistema educativo, ocorrida nos últimos anos, constitui apenas o reflexo natural e necessário de um «ajustamento à demografia». Esta noção foi insistentemente invocada por Nuno Crato, que assim encontrou uma forma de justificar os cortes orçamentais em educação, no decurso do seu mandato. Numa entrevista em setembro de 2012, por exemplo, o ex-ministro da educação considerou ser «inevitável» a redução de professores no sistema, dada a diminuição do número de alunos, resultante do decréscimo da natalidade.

Um gráfico recentemente publicado pelo Pordata, no «Retrato de Portugal 2017», dá conta da evolução do número de docentes entre 1995 e 2015. Juntando-lhe os dados relativos à educação pré-escolar, percebe-se a dimensão da redução do número de educadores e professores, que é particularmente expressiva no 2º e 3º ciclo do ensino básico e no ensino secundário, com menos 30 mil docentes entre 2010 e 2015.


Ora, quando ponderarmos o número de educadores e professores pelo número de crianças e jovens em idade de frequência dos diferentes níveis de ensino, verificamos que o «fator demográfico» deixa de poder ser invocado, dado o aumento dos rácios que se obtém. Com efeito, na educação pré-escolar esse valor ponderado inverte-se em 2011, passando de 16,6 crianças por educador nesse ano para 17,9 em 2015; no 1º ciclo do ensino básico a inversão de tendência ocorre mais cedo, passando o rácio de 10,8, em 2005, para 14,2, em 2015 e, por último, o aumento do rácio de alunos por docente no 3º ciclo do básico e secundário regista um aumento significativo a partir de 2010, passando de 7,1, nesse ano, para 9,0, em 2015.


Pode discutir-se, evidentemente, qual o rácio adequado entre docentes e crianças e jovens em idade escolar, tal como se pode comparar essa ponderação com os valores registados a nível europeu, sem contudo descurar as especificidades da questão da educação em Portugal e os principais desafios que, nessa matéria, se colocam ao nosso país. O que não se pode, com fundamento, é continuar a invocar o «fator demográfico» como justificação para a redução do universo de educadores e docentes no sistema educativo.

Adenda: Os dados do Pordata relativos ao número de docentes não se restringem ao universo das crianças e jovens, pelo que importa somar, para efeitos da estimativa adequada dos rácios, os adultos inscritos no ensino básico e secundário, o que se traduz num aumento dos valores apurados (quando se consideram apenas as crianças e jovens em idade de frequência escolar), não se alterando contudo, em geral, as tendências verificadas:


terça-feira, 29 de agosto de 2017

Escravatura moderna = "flexibilidade" = "desvalorização interna" = euro. Qual é a saída?


A luta contra a precariedade laboral só pode ser feita no quadro de uma luta mais geral contra a política económica que nos impõe a desvalorização dos sindicatos e da contratação colectiva - negociar na empresa é pôr frente a frente o forte e o fraco -, a política de esmagamento salarial em nome da competitividade-preço. Dentro do euro, dizem-nos, não há alternativa (TINA). E é que não há mesmo!

Se ficarmos sentados, à espera de melhores dias, a situação descrita no texto abaixo irá alimentar o desespero e o voto na direita xenófoba e violenta. É o que está a acontecer na Europa e nos EUA, tal como nos anos 30. Mudar isto exige muita indignação organizada e um grande esforço para a construção de uma alternativa política vitoriosa.
Com experiência do trabalho em comércio, fora de Portugal e, desde há cinco anos, de novo no país natal, Rafael diz que nunca sentiu “tanta pressão, humilhação, desvalorização, e uma escravatura mental, de tal maneira que, nos últimos dois anos, só no meu departamento, já perdemos à volta de 10 colegas, por variadíssimas razões: desde carga horária, reduções salariais, regime de turnos com escalas completamente loucas, que faz com que muitos casais não possam estar com os filhos ao fim de semana e os mais jovens estarem com a família”. Rafael garante que tal ambiente tem reflexos na saúde dos “colaboradores que andam esgotados, tanto física como mentalmente – depressões, esgotamentos, estão estampados no rosto de todos. Há um certo cheiro no ar chamado receio”. Do ponto de vista dos negócios, a “empresa não quer saber, porque sabe que vai buscar novos colaboradores aos cursos [financiados pelo IEFP] que dão internamente para pagarem o ordenado mínimo”. Por enquanto, vai aguentando...

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Rebeldia simples


Não se defende a violência contra cada um dos elementos da classe dominante, nem o uso colectivo de passa-montanhas. Uma classe social é muito mais do que o somatório dos seus elementos ou representantes. E não desaparece assim, muito pelo contrário. Mas há nestes segundos do filme Fight Club de David Fincher uma rebeldia simples, um apelo à consciência emancipatória que tem faltado - por diversas razões - a muitos das pessoas desgraçadas pelo processo de individualização a que a sociedade portuguesa e mundial foi acometida com o dealbar do pensamento conservador reinante.

A par do violento rolo compressor da desvalorização salarial que criou desempregados às carradas como forma de pressionar os salários para a miséria; a diabolização do papel dos sindicatos tidos como organizações de malfeitores, viciados nos seus "interesses instalados"; a defesa de uma negociação individual entre o assalariado e o seu patronato (quando muito ao nível da empresa, promovendo-se comissões de trabalhadores que se despreza e a quem não se liga nenhuma); tudo isso fez parte de um programa de violência social que visou tornar o Emprego cada vez mais num somatório de postos pacificamente descartáveis e sem cara, sob a ideia de que tudo era feito para o seu próprio bem.

E assim foi. Verificou-se a uma lenta transformação de assalariados orgulhosos do seu trabalho e do seu papel social, em vítimas sem auto-estima, esmagadas pela pressão do desemprego, incapazes de se dar ao respeito, presos no sentimento de estar sozinho no mundo e sem ânimo para ver a sua força articulada.

Foi como se lhes quisesse retirar uma ideia da cabeça...

..."as pessoas que vocês estão a perseguir são pessoas de quem vocês dependem. Nós cozinhamos as vossas refeições, recolhemos o vosso lixo, atendemos as vossas chamadas, conduzimos as ambulâncias, guardamo-vos enquanto dormem. Não nos f...!"

sábado, 26 de agosto de 2017

O povo está com o MPLA?

De acordo com os dados finais provisórios das eleições angolanas, o MPLA obteve 150 lugares na Assembleia Nacional de 220 membros, o que lhe permite obter à risca uma maioria parlamentar qualificada de 2/3. Com isto fica em condições de tomar decisões estratégicas - incluindo alterar a Constituição - sem negociar com a oposição. Esta era a vitória mínima que o partido no poder em Angola necessitava para poder continuar a governar o país como tem feito até aqui - ou seja, num regime político que é multipartidário na forma, mas de partido único na prática.

A julgar pelo tom da imprensa portuguesa, agora só resta desejar ao novo parlamento e, em particular, ao putativo presidente João Lourenço, toda a inspiração e sucesso para a nova legislatura, esperando que dela resulte um país mais próspero, mais justo e mais estável. Acontece que está longe de ser claro que a extensão da vitória do MPLA anunciada pela Comissão Nacional Eleitoral corresponda aos resultados efectivamente obtidos nas urnas. Vários observadores internacionais (incluindo os deputados portugueses lá presentes) deram conta do bom funcionamento das mesas de voto), mas não se pronunciaram acerca do processo de contagem desses votos. Sobre isto, há vários sinais que suscitam inquietação.

No dia posterior às eleições o porta-voz do MPLA apressou-se a declarar que estava à beira da maioria qualificada, antes ainda de a CNE apresentar quaisquer resultados parciais. Pouco tempo depois, a porta-voz da CNE legitimou os dados apresentados pelo MPLA, sem que porém estivesse na posse oficial dos resultados do escrutínio nas várias províncias. Isto levou os Comissários nacionais da CNE a convocar uma conferência de imprensa (que não foi exibida pelas televisões do regime - TPA e TV Zimbo) para se demarcarem dos resultados apresentados pela porta-voz da CNE.

O anúncio de resultados oficiais que concedem ao MPLA a vitória desejada pelo partido (por uma margem muito próxima do limiar mínimo) sem que sejam cumpridos os trâmites processuais previstos, suscitam desconfiança e perplexidade não apenas entre os partidos da oposição, mas também em organizações da sociedade civil angolana que se organizaram para acompanhar o processo eleitoral.

Aproveitando a difusão generalizada de telemóveis, smartphones e redes sociais em Angola, tanto os principais partidos da oposição (UNITA e CASA-CE) como organizações não partidárias (ver, por exemplo, aqui: https://www.facebook.com/lumessu/) apelaram aos eleitores para que aguardassem junto das assembleias de voto até que fossem afixadas no próprio local as respectivas actas-síntese, fotografando-as e enviando-as depois por internet para os centros não-oficiais de contagem. Isto permite confrontar as somas dos votos contadas a partir da base com os resultados anunciados pela CNE.

Havendo mais de 12 mil mesas de voto no território angolano, a contagem de votos por estes meios alternativos não é expedita, mas está a ser feita. Os dados ainda muito parciais que têm sido disponibilizados apontam para resultados muito inferiores para o MPLA. Embora se apresente, em geral como primeira força política, segundo alguns dados disponíveis o partido no poder poderia não chegar a obter metade do deputados da Assembleia Nacional (o que não impediria a eleição de João Lourenço para a Presidência da República, mas obrigaria o MPLA a negociar com a oposição em várias frentes de governação).

Em vez de se apressarem a dar as eleições angolanas como encerradas, os órgãos de comunicação social e as autoridades portuguesas deveriam aguardar pelo esclarecimento das dúvidas que estão a ser levantadas, que desta vez têm por base evidências palpáveis. Não está aqui em causa interferir na soberania democrática angolana. Trata-se apenas de assumir que a democracia angolana existe de facto, mas não se limita às instituições governamentais que controlam o processo com níveis insatisfatórios de escrutínio. Há outra parte da democracia angolana, incluindo várias iniciativas da sociedade civil (muitas da quais que merecem inclusive a simpatia de alguns membros do partido no poder), que se esforçam para dar dignidade à democracia em Angola.

A atitude condescendente com que muitos partidos e órgãos de comunicação sociais portugueses têm tratado ao longo dos tempos as eleições em Angola (seja por considerarem que em África não é possível fazer melhor, seja por que consideram que não há alterativa ao MPLA para manter a estabilidade governativa em Angola) pouco tem contribuído até aqui para aquilo que os angolanos afirmam sempre ambicionar: desenvolvimento económico e social, distribuição equitativa de recursos, e estabilidade.

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Do «TINA» ao «TIA»: o exemplo português na imprensa britânica


«Quando os bancos mergulharam o mundo ocidental no caos económico, foi-nos dito que apenas os cortes orçamentais permitiriam salvar a economia. Em 2010, quando os conservadores e os liberais constituíram a coligação da austeridade, foi dito ao eleitorado - em tom apocalíptico - que sem o bisturi de George Osborne a Grã-Bretanha seguiria pelo caminho da Grécia. A metáfora, economicamente analfabeta, de comparar o Estado a um orçamento familiar, foi imposta e executada de modo implacável, tornando popular uma falácia ideológica deliberada: se ninguém pode gastar mais quando tem dívidas, por que deveria um país poder fazê-lo?
Mas hoje, graças a Portugal, conhecemos o enorme fracasso da experiência da austeridade aplicada em toda a Europa. O país foi um dos países europeus mais atingidos pela crise económica e, no contexto do resgate da troika, que incluiu o FMI, os credores exigiram medidas severas de austeridade, adotadas com entusiasmo pelo então governo conservador em Lisboa. Serviços e empresas públicas foram privatizados, o IVA aumentou, impôs-se uma sobretaxa aos rendimentos, os salários do setor público, as pensões e benefícios sociais foram reduzidos e o horário de trabalho alargado.
Em dois anos, as despesas na Educação sofreram um corte devastador de 23%, sendo igualmente afetados os serviços de Saúde e Segurança Social. O impacto nas pessoas foi terrível: o desemprego atingiu os 17,5% em 2013, a falência de empresas disparou em 41% e a pobreza aumentou. A lógica era a da necessidade de tudo isto para curar a doença do excesso de despesa.
No final de 2015, esta experiência chegou ao fim. Um novo governo socialista – com o suporte dos partidos mais à esquerda no parlamento – tomou posse. O primeiro ministro, António Costa, prometeu "virar a página da austeridade" que, como então afirmou, fez o país regredir três décadas. Os opositores de direita anteviram um desastre, apelidando a mudança de “economia voodoo”: um novo resgate poderia estar a caminho, conduzindo à recessão e a novos cortes.
(...) A lógica económica do novo governo era clara: os cortes na despesa pública tinham como consequência a retracção da procura. Por isso, uma verdadeira recuperação da economia pressupunha o seu relançamento. O governo aumentou o salário mínimo, reverteu o aumento regressivo de impostos, repôs os salários e as pensões nos níveis anteriores à crise (...) e reintroduziu os quatro feriados eliminados pelo anterior governo. A proteção social das famílias mais pobres foi aumentada, ao mesmo tempo que se aplicou uma taxa de luxo a casas com valor superior a 600.000 euros.
A profecia do desastre não se concretizou. No outono de 2016 – um ano depois de chegar ao poder – o governo podia orgulhar-se de um crescimento sustentado e de um aumento em 13% no investimento das empresas. E em 2017 os números mostram uma redução do défice para mais de metade (2,1%, o valor mais baixo em quarenta anos de democracia). Pela primeira vez, Portugal passava a cumprir as regras da zona euro, com a economia a crescer há treze trimestres consecutivos.
(...) A austeridade na Europa tem sido justificada com o mantra do "não há alternativa", numa lógica de submissão dos povos: no fim de contas temos que ser adultos e encarar a realidade. Mas o caso português permite rejeitar veementemente esta lógica. E por isso a Europa deve inspirar-se na experiência portuguesa para remodelar a União Europeia e pôr fim à austeridade em toda a zona euro.»


Excertos do artigo imperdível de Owen Jones no The Guardian de ontem, com uma frase de destaque que sintetiza o essencial: «Durante anos disseram-nos que apenas cortes profundos na despesa podiam salvar a nossa economia. Em Portugal, o governo liderado por socialistas provou o contrário». Ou seja, o «TIA» («There Is No Alternative») tirou o tapete ao TINA. Sim, confirma-se: há alternativas à austeridade e à «economia-do-pingo-que-nunca-pinga», por mais que as pessoas e os países empobreçam.

Já agora, e ainda a propósito de pensamento único e de alternativas, parece que o Prof. Cavaco Silva vai participar na Universidade de Verão do PSD. Para tema da sua intervenção, escolheu «Os Jovens e a Política: Quando a realidade tira o tapete à ideologia». Considerando que estamos perante o economista humilde, que «nunca se engana e raramente tem dúvidas», talvez não seja difícil imaginar a motivação e o fio condutor do discurso. Mas devemos ceder à tentação e esperar. Para já, ficámos a saber que uma coisa é a realidade e outra é a ideologia. O que já não é pouco.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A questão da educação

Há dois indicadores particularmente eloquentes para retratar a questão da educação em Portugal. Refletindo o atraso estrutural neste domínio, eles expõem de forma clara os principais problemas e desafios com que o país se confronta e que se avolumam quando projetados no quadro europeu. De facto, como mostra o gráfico seguinte, Portugal é não só o país da União Europeia com a maior percentagem de adultos que apenas terminaram o 9º ano mas também, ao mesmo tempo, aquele que regista na UE a mais elevada percentagem de alunos que reprovaram pelo menos uma vez nos 6 primeiros anos de escolaridade. Mais: quando correlacionados, os valores obtidos distanciam-nos de modo significativo da Europa, incluindo os países que também se encontram acima da média obtida nas duas variáveis.


Estes dois traços estruturais da educação em Portugal são tanto mais relevantes em termos de política educativa quanto se sabe, como se sabe, que a escolaridade dos pais continua a condicionar fortemente o percurso escolar dos filhos. É o que demonstra, por exemplo, o estudo «Reproduzir ou contrariar o destino social?», de 2015, que conclui que «a classe social de origem e a educação dos pais» explicam «uma parte substancial das diferenças no desempenho educacional», propiciando a persistência «de mecanismos de desigualdade de oportunidades num quadro geral de democratização da educação». Outras análises, como as desenvolvidas no âmbito do Projeto Aqeduto (ver aqui e aqui, por exemplo), vão no mesmo sentido, mostrando que o sucesso escolar está estreitamente relacionado com as habilitações escolares dos pais e a situação económica das famílias.

Contrariar esta situação de partida implica a adoção de medidas que assegurem, de facto, o direito a uma educação de qualidade para todos. Isto é, políticas que garantam, por exemplo, o acesso e a equidade no acesso (promovendo a universalização da cobertura no pré-escolar e impedindo mecanismos de seleção de alunos), uma adequada organização pedagógica das escolas (assegurando a constituição de turmas heterogéneas e ajustando a sua dimensão ao perfil dos alunos e aos contextos em que os estabelecimentos de ensino se inserem), ou medidas que apostam no combate ao abandono e o insucesso escolar (reforçando o apoio a alunos com maiores dificuldades, promovendo a flexibilização curricular e valorizando a avaliação formativa e o desenvolvimento de competências, em vez da simples memorização de conteúdos). Isto é, um conjunto de medidas de política educativa como as que estão a ser seguidas pelo atual Governo e que reúnem amplo consenso junto da maioria parlamentar que o suporta.

Aliás, talvez deste modo se perceba melhor, considerando a situação de partida e as questões que a mesma suscita, por que razão as propostas políticas da direita, orientadas para a contração da oferta pública e para a erosão do papel regulador do Estado (como ficou claro no caso das moradas falsas), apenas agravam, em vez de resolver, os nossos défices e problemas. De facto, a liberalização da educação, associada ao reforço das lógicas de «liberdade de escolha» e «autonomia competitiva» das escolas, favorece o acentuar das dinâmicas de divergência cumulativa entre elas, fomentando assim a exclusão e a segregação de alunos em função do perfil socioeconómico das famílias.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Em férias, o essencial em 4 minutos


Isto foi dito na Conferência Internacional "O Pós-Euro: na Europa e em Portugal", organizada pela DS - Democracia Solidária em 15 de Abril de 2015.
Como esperávamos, a comunicação social ignorou a conferência.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

As palavras terroristas

O terrorismo é a guerra por outros meios que, por sua vez, é a política por outros meios.

Quando se declara guerra ao terrorismo, literalmente apenas se está a dizer que se pretende a guerra por outros meios que não os do terrorismo, o que não é nada fácil de garantir que exista tal coisa. Porque se quiséssemos o fim da guerra, diríamos guerra à guerra, o que não deixava de ser uma outra guerra.

Ora, quando um dos lados usa terrorismo alegadamente contra o terrorismo apenas está a dizer que o seu terrorismo se baseia em melhores valores que os do outro terrorismo. Mas, no fim, apenas se duplica terrorismo. E nunca se acaba com a guerra, porque essa não era a finalidade.

Segundo ponto. Um acto de terrorismo não é apenas aquele que provoca deliberadamente mortes de pessoas civis. É, também, aquele que visa criar o terror junto das populações, com uma dada preocupação política. Por isso, as populações visadas são bem mais alargadas do que as directamente visadas por esse acto. Para esse fim, a comunicação social é um elemento essencial nessa estratégia bélica. Seja para ampliar ou atrofiar o efeito do acto, seja para reinterpretar os seus efeitos.

Exemplo estranho que a comunicação social nunca contesta: em qualquer atentado encontra-se sempre um documento de identificação do suposto autor. Foi assim com um dos aviões que atingiu o WTC (!), foi assim no carro dos fugitivos do ataque ao Charlie Hebdo, no camião que atacou em Nice e agora no carro do fugitivo de Barcelona... E geralmente acabam mortos. Ontem a pivot  da SIC Notícias dizia que era bom que o apanhassem "de preferência vivo": assim se podia obter "um pouco mais de informação"!  

Terrorismo é um substantivo que implica uma determina carga de qualificação nem sempre muito clara. E terrorista é um adjectivo que, igualmente, implica uma determina carga de qualificação nem sempre muito clara, mas que se torna mais poderosa quando usada para qualificar alguém.

Em comunicação, ambos terão de ser usados com parcimónia porque usá-lo em casos concretos implica estar a assumir um dos lados da contenda bélica. Porque as palavras também ajudam a matar. As palavras podem ajudar o terrorismo. A História está repleta desses exemplos: foram terroristas, os resistentes aos nazis, os sionistas rebeldes  contra os ingleses, os hindus e muçulmanos índios  contra os ingleses, os irlandeses contra os ingleses, os membros dos movimentos de libertação nas colónias ocidentais, os antifascistas em Portugal, etc., etc.

Não era por acaso que o primeiro livro de estilo do jornal Público, criado em 1989 e editado em livro em Dezembro de 1997, chamava a atenção dos seus jornalistas – e todos os profissionais - para esse risco. No capítulo dedicado aos Princípios e normas de conduta profissional, referia-se a propósito de credibilidade de informação:

 “Rigor na terminologia com determinada carga semântica. Atenção à utilização de vocábulos como: terroristas, nacionalistas, fascistas, rebeldes, bandidos armados, patriotas, revolucionários, contra-revolucionários, democratas, imperialistas, totalitários, reacccionários, progressistas, mundo livre, ou bandidos, forças de ordem, etc. A necessidade de qualificar acontecimentos, organizações ou pessoas não deve ser confundida com juízos de valor”. 

Já a revisão do livro de estilo do mesmo jornal, tornada pública em livro em 2005, concentrou-se no capítulo das normas éticas e deontológicas e, nos trabalhos de revisão, dedicou-se mais tempo precisamente aos Princípios e normas de conduta profissional, tendo-se verificado uma transformação radical. Todos os exemplos sobre o uso de terminologia - como o terrorismo – caíram. O seu texto tornou-se mais geral, mas nem por isso isento de novas regras polémicas que não se abordam hoje aqui.

Na verdade, nem a primeira versão nem a sua revisão impediram o mau uso da palavra terrorismo.

Dez anos, dez mil


No final de julho, a página do facebook do Ladrões atingiu os 10 mil seguidores (e um novo máximo, no mês, de cerca de 153 mil visualizações). Ou seja, em dez anos de blogue, uma média anual de mil novos seguidores. Obrigado a todos os que nos acompanham.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Quem semeia rankings colhe desigualdades


1. O recurso por parte de alguns pais a moradas falsas, para conseguir matricular os filhos na escola da sua preferência, não é um fenómeno novo nem exclusivo da cidade de Lisboa, como poderia pensar-se perante o recente caso do Filipa de Lencastre. O que parece ser novo nesta questão é o facto de as falsificações de morada começarem a comprometer a inscrição de alunos que residem na área de influência das escolas, desencadeando o protesto dos pais. Algo tem que estar a passar-se, e não é de hoje, para se chegar a este ponto.

2. Em artigo recente, Alexandre Homem Cristo interpreta estas situações como um reflexo de as escolas públicas estarem «cada vez mais diferentes entre si», por terem adotado «opções pedagógicas e estratégias educativas diversas», que a «descentralização e o «acréscimo de autonomia» teriam permitido estabelecer e consolidar. Num outro texto, também recente, Carlos Guimarães Pinto sugere que o verdadeiro problema reside na rigidez do sistema público, pois se as escolas mais procuradas fossem privadas, já teriam «aumentado a [sua] lotação» ou tratado de construir «uma escola ao lado», para absorver o excedente de procura.

3. Como estes pontos não são dados sem nó, Homem Cristo conclui que afinal a «liberdade de escolha» já existe na escola pública, instando a que esse «princípio», em vez de corrigido, seja assumido e se estenda ao privado. E Guimarães Pinto sugere que, face à dita rigidez da escola pública («racionamento» foi o termo), se liberalize a educação, entregando também aos privados a prestação desse serviço (com o respetivo «voucher», claro). Ou seja, nada de novo: estamos uma vez mais perante as bandeiras da «liberdade de escolha» e do «cheque-ensino», agora agitadas como solução para o problema das falsas moradas nos processos de matrícula.

4. Estas duas análises assentam contudo em pressupostos frágeis. No primeiro caso, para além de não se identificarem as medidas concretas de «descentralização» e «reforço de autonomia» (quais?), não se demonstra de que modo as mesmas deram lugar a «projetos educativos distintos» (como?), nem se evidenciam as diferenças entre esses projetos (em quê?). No segundo caso, assume-se que a qualidade das escolas é um dado intrínseco (e portanto alheio aos contextos e aos processos cumulativos que vão moldando o perfil dos diferentes estabelecimentos de ensino), bastando por isso ampliar ou «clonar» uma boa escola para que mais alunos possam beneficiar das suas vantagens, além de integrar os privados na rede de oferta pública.

5. O problema das falsas moradas, com os contornos que a questão hoje assume, é reflexo de algo bem mais amplo e profundo. De facto, desde há aproximadamente quinze anos, foi vingando no espaço público a ideia de que a melhoria do sistema educativo passava por fomentar a concorrência entre escolas. Associada aos mitos do «cheque-ensino» e da «liberdade de escolha», esta ideia foi fortemente impulsionada com a divulgação dos rankings, construídos a partir dos resultados dos exames, que contribuíram para gerar uma distinção equívoca entre «boas» e «más» escolas (que escamoteia o facto de os seus resultados refletirem, no essencial, o contexto socioeconómico em que se inserem).

6. Não é difícil perceber os efeitos perversos que os rankings e a competição introduziram no sistema. De facto, pais e alunos foram sendo cada vez mais incentivados a procurar a escola de proximidade com melhores médias. As boas escolas, por seu turno, passaram a querer selecionar os alunos que lhes dão maior garantia de obter o melhor lugar no ranking. Ou seja, criaram-se dinâmicas em que as diferenças de estatuto socioeconómico e de capital relacional contam, contribuindo para acentuar processos de desigualdade e de divergência cumulativa entre escolas, tornando as melhores cada vez melhores e colocando as restantes numa situação cada vez pior.

7. Embora esta cultura de «seleção e concorrência» esteja instalada no sistema, ou tenha pelo menos ficado mais disseminada com os rankings, a verdade é que não é possível avaliar o seu real impacto e significado. Contudo, uma coisa é certa: se estas lógicas têm uma expressão menor do que se poderá supor, muito se deve à existência de critérios nos processos de inscrição e matrícula, que travam o potencial de iniquidade e exclusão e cujo cumprimento importa escrutinar e assegurar. De facto, a supressão absoluta desses critérios, como sustentam os defensores da «liberdade de escolha», apenas se traduziria num reforço do desfavorecimento social e da desigualdade de oportunidades.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

A ponta do golpe em curso

O discurso do Pontal de Passos Coelho foi uma defesa encapotada de um Bloco Central com um PS de direita. Foi uma chamada às armas para dentro de um certo PS e uma manobra de envolvimento de um certo PSD que habitualmente faz frente a Passos Coelho, como o próprio Presidente da República, e que trabalha arduamente na criação de um novo Bloco Central entre PS e PSD.

Uma jogada de antecipação - antes que as eleições autárquicas de Outubro de 2017 levem Passos Coelho - e de esvaziamento dessa ala do PSD que deverá se afirmar pós-eleições, em 2018. Mas foi uma tentativa sem muito jeito.

Daí as críticas à direita: para a próxima, Passos Coelho devia trazer um discurso escrito, o que é o mesmo que dizer que Passos nunca poderá ser a cara desse projecto de isolar a esquerda do PS e a esquerda à esquerda do PS. Mas o programa desconchavado desse envolvimento foi traçado. 

Delimitação de sectores. Passos quer um golpe constitucional (mais uma vez!) e obrigar o Governo a atar as suas mãos, como forma de impedir a “estatização", a "nacionalização”, sem que que haja uma maioria qualificada (leia-se, com o PSD) no Parlamento. Essa é a reforma do Estado que Passos (e não só ele) defende, mas que não teve coragem de assumir. Para colmatar as suas debilidades, tentou galvanizar os comentadores políticos e jornalistas que, de 2011 a 2013, o incentivaram - em vão - a ser mais célere na reforma do Estado: “Porque é que não se avançou nada na reforma do Estado? Por que não é reclamada no espaço público”.

Uma reforma laboral ao nível da empresa. “Era muito importante que nas empresas se chegasse a entendimentos entre quem lá trabalha e quem gere as empresas”. Até defendeu o papel da comissão de Trabalhadores da AutoEuropa... mas que, num “mau prenúncio”, “não conseguiu resistir à pressões dos grandes sindicatos”. A ideia nem é nova nem vem da ala do PSD. O actual ministro das Finanças  defende-a. Emmanuel Macron aprovou-a recentemente em França. Até Temer no Brasil, Que tudo se passe ao nível da empresa – onde a relação de forças é mais desequilibrada a favor da parte patronal. Tudo em detrimento de uma contratação colectiva. Ai esta palavra “colectiva” faz tanta comichão!

Reforma da Segurança Social. “Nós estamos disponíveis para dar confiança...” Claro que estão: contas individualizadas (proposta no programa de governo PSD/CDS), fim da solidariedade intergeracional, plafonamento de contribuições (Passos defende-o), redução das prestações sociais, aumento dos valores dos apoios às instituições não públicas, como o terceiro sector e o sector social...

Reforma educativa. Não se sabe muito sobre o que defende Passos, apenas o que o seu Governo fez e da guerra levantada aos cortes aprovados pelo actual governo aos apoios públicos a escolas privadas... 

Reforma da Saúde. Para Passos Coelho, a reforma que ele acha que fez foi... pôr as contas em dia com os fornecedores do SNS! O resto – a desarticulação e asfixia financeira do SNS, com redução de pessoal e contratação externa de especialistas através opacamente de empresas fornecedoras de trabalho (muitas vezes, contratando médicos que nem sabiam falar português...). Políticas que dificultam agora a actual governação, enquanto Passos Coelho quer cavalgar – desavergonhadamente – as críticas à realidade que ele contribuiu para aprofundar!

Pelo caminho de todo este programa de revisão do programa eleitoral do PS e de um golpe no acordo parlamentar, ficou mais uma vez aquela – má – técnica de criticar sem ter a coragem de dizer o que se quer.

Subida do emprego. Passos acha que a subida do emprego e a descida do desemprego se deve às reformas laborais feitas em 2012. Mas – integrando no seu discurso uma crítica feita à esquerda - achou por bem criticar que o emprego cresce, mas é um emprego de baixos salários, esquecendo-se que essa foi precisamente a finalidade essas reformas! Até na subida do desemprego, só que foi além do esperado... E agora essa política está de facto a dar frutos: mais emprego, com menos salários! E isso acontecendo mesmo dos contratos permanentes. Porque é que, na sua opinião, isto acontece? Não disse! Para Passos, se os salários não crescem, isso deve-se ao facto de o actual Governo... não fazer mais reformas laborais. “O que fazer para termos rendimento a crescer? Era necessário prosseguir reformas”, disse. Mas quais? Não disse!

No PSD de Passos tudo como dantes (ou talvez não)

Duas notas sobressaem no discurso de Passos Coelho no Pontal. Por um lado, o regresso ao passado em termos de narrativa: o ex-primeiro ministro volta a assumir as reformas estruturais como linha política do partido, acusando a atual maioria de imobilismo e o Governo de «não ter um espírito reformista», correndo-se o risco de «ter perdido uma legislatura a viver à conta do que se fez no passado e da conjuntura e nada a preparar o futuro». Para Passos Coelho, era agora necessário «prosseguir algumas reformas lançadas pelo seu executivo com o CDS», para que o país pudesse «ter “fôlego” no futuro». Contudo, para o ex-primeiro ministro, a preferência da atual maioria de esquerda «pela estatização e pela coletivização» está a impedir o avanço de reformas na área do Estado, na Saúde, na Segurança Social e no emprego.

Desta forma, e ao arrepio de tudo o que foi dito durante o último ano sobre supostos cortes nos serviços públicos e a deterioração do Estado Social, ou sobre a excessiva rapidez na reposição de rendimentos, Passos Coelho volta a falar no seu projeto político para o país, fazendo-nos recordar de imediato o Guião para a Reforma do Estado de Paulo Portas, a ideia de que os cortes em salários e pensões deveriam tornar-se permanentes ou, recuando um pouco mais no tempo, a proposta radical de revisão da Constituição discutida em 2010, que entre outras medidas propunha a total liberalização dos despedimentos. E de pouco serve sugerir, de novo, que os bons resultados alcançados pela atual maioria e pelo atual Governo, na economia e no emprego, são mérito das «reformas» empreendidas pela anterior maioria de direita. Como já demonstrámos aqui, o «empobrecimento competitivo» e a «austeridade expansionista» terminaram em 2013, por força do travão do Tribunal Constitucional a uma nova dose de cortes nos salários e nas pensões e pela aproximação das eleições de 2015, que levou o Governo de direita a suspender a fúria austeritária.

Passos pode e deve voltar a assumir publicamente as suas ideias para o país. É politicamente mais honesto e claramente preferível ao vazio de propostas em que o seu partido mergulhou nos últimos dois anos. Mas como o ex-primeiro ministro tem hoje noção de que essas ideias perderam apoio eleitoral (não só pelo seu comprovado fracasso mas também pela demonstração de que afinal havia alternativa), vale tudo para tentar conquistar votos. E é nesse contexto que surge a segunda nota digna de registo no discurso do Pontal: a deriva populista e xenófoba que a frase da noite proferida por Passos encerra, e cuja análise - no seu significado e demagogia - é feita de modo certeiro aqui e aqui. Sim, há algo de novo no PSD para lá da ideia de regresso ao empobrecimento e à austeridade: o apoio a André Ventura em Loures não foi uma coisa circunstancial, foi mesmo o primeiro passo para «testar Trump» no nosso país.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Poupar não ajuda o crescimento. É o crescimento que determina o nível da poupança

Ângelo Correia a dizer disparates sobre economia na RTP3 (22h30m). Fez a apologia da poupança sem a qual, segundo julga, o país não consegue investir e crescer. É asneira.

Os bancos não emprestam os nossos depósitos. Estes fazem parte das reservas de liquidez dos bancos, normalmente depositadas no banco central. A decisão de conceder o crédito não depende directamente dos depósitos, depende do risco do cliente, do risco do projecto e do nível do juro que consegue negociar, tendo em conta a concorrência. Quando o crédito é aprovado, o valor concedido é registado na conta do cliente, aumentando-lhe o saldo. O dinheiro é electrónico e é criado apenas com o teclado do computador do banco.

A procura do financiamento bancário depende da procura da economia e das expectativas de futuras vendas, ou da convicção das famílias de que os seus empregos lhes permitem pagar a mensalidade ao banco. Se a economia está deprimida, não é por falta de poupança que o investimento privado se reduz. É por falta de procura! Mesmo com taxas de juro baixíssimas o investimento pode não arrancar se o pessimismo for dominante.

Se a economia estiver a crescer de forma consistente, os rendimentos dos agentes económicos aumentam e, por isso mesmo, também poupam mais. Ou seja, a poupança resulta do processo de crescimento. A poupança não gera o crescimento. Aliás, a poupança das famílias retira dinheiro do circuito económico, reduzindo o consumo.


Infelizmente, muitos economistas nem sequer sabem como funciona o sistema bancário o qual, de facto, tem sido erradamente explicado nos manuais de economia dos primeiros anos dos cursos universitários. A teoria está ultrapassada e a inércia é tremenda. Ninguém quer perder a face.

Há relativamente pouco tempo o Bank of England produziu um texto muito didáctico que envergonha os professores que ainda ensinam que os bancos são intermediários entre a poupança e o investimento. Não são. Eles criam directamente, quer dizer, electronicamente ("a partir do nada"), o dinheiro a emprestar, o que não passa de um registo contabilístico.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

O fim do capitalismo abundante...

... ou a austeridade chega ao rodízio.

No início, era só fartura. Parecia magia. Cornucópias de comida iam encher as mesas. Não se percebia como é que um negócio privado podia ter lucro, dando tudo o que tinha para quem tivesse fome. Parecia a alternativa ao Manifesto do Partido Comunista que consignou algo como "de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades".

Claro que, com a prática, foi se descobrindo os truques. Mas eram truques contornáveis; bastava evitar as superabundantes entradas e aguentar até às melhores peças distribuídas no final. A reacção do povo foi a de comer sem fartar, de tudo, até cair para o lado, horas a fio e até o restaurante fechar. Face ao assalto, a privatização da distribuição de alimentos deixou de ser lucrativa.

Agora, é mesmo necessário levar um advogado para o jantar. Este regulamento foi exposto à porta de um restaurante na Ericeira. Leiam com atenção.



Olhar para o euro sem paixão

No auge da crise, quando a taxa de desemprego atingiu o seu máximo, 42% dos portugueses estavam contra o euro, de acordo com o Eurobarómetro (um inquérito de opinião regular realizado pela Comissão Europeia). Hoje a taxa de aprovação da UE entre os portugueses é a mais alta desde que existe moeda única na Europa, conforme constata o jornalista Luís Reis Ribeiro num artigo publicado no Dinheiro Vivo.

O nível de eurocepticismo em Portugal tem uma relação directa com a taxa de desemprego, o que faz algum sentido, já que o euro nos retirou instrumentos fundamentais para combater o desemprego sem os substituir por outros (note-se que a taxa de desemprego ainda é hoje o dobro do que era no início do século). No entanto, esta tendência que os portugueses parecem ter para avaliar o euro com base na situação económica do país em cada momento tem dois problemas fundamentais.

Primeiro, sugere que tudo o que acontece de bom ou de mau à economia portuguesa depende da nossa presença no euro, o que não é verdade (pense-se no preço do petróleo ou da evolução do comércio mundial, que influenciam fortemente o que por cá se passa).

Segundo - o que é pior, mas não surpreendente - sugere que grande parte dos portugueses não avalia a participação de Portugal no euro em função dos seus impactos estruturais na economia nacional, mas apenas em função da situação conjuntural. Isto é um problema, pois é aí que reside o principal busílis da questão.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Ideologia, défice, euro, saúde: está tudo ligado


Quatro milhões de cidadãos à espera de cirurgia há muitos meses. O maior número da última década.

Este modelo de Serviço Nacional de Saúde britânico foi desenvolvido pelos governos Trabalhistas pós-Thatcher e aprofundado pelos Conservadores. A ideologia neoliberal foi plenamente absorvida pelos trabalhistas liderados por Tony Blair. Os métodos da gestão privada revelaram-se um desastre, mas a ideologia é cega face à realidade.

É também isto que nos está a acontecer por termos de executar as políticas orçamentais restritivas da UE e, ainda por cima, vermos António Costa e Marcelo exultarem com os défices orçamentais mais baixos de sempre.

Os médicos e restante pessoal estão nos limites, a sua saúde degrada-se com o stress a que são sujeitos e os pacientes correm mais riscos de erros clínicos. Isto para não falar de ruptura de stocks de material.

De facto, o euro e as políticas dos Tratados fazem mal à saúde. E têm o mesmo efeito se forem aplicadas por livre iniciativa do governo, em países que estão fora do euro, apenas por razões ideológicas para agradar aos mercados financeiros. Por isso, é preciso reafirmar que sair do euro (ou o seu fim por iniciativa de um grande país) é apenas uma condição necessária para o nosso desenvolvimento. Precisamos de romper com as políticas neoliberais no orçamento, no mercado de trabalho, no sistema financeiro, na segurança social, na política industrial, nos métodos de gestão dos serviços públicos, etc.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Manhã emergida

Depois de muitos anos, o Instituto Nacional de Estatística (INE) volta a publicar regularmente, desde o 2º trimestre deste ano, informação sobre o desemprego em sentido lato, agora designado-o por indicador de subutilização do trabalho

O INE publicava já os valores de cada uma das parcelas que constituem esse indicador, mas não os agregava num indicador.

Ou seja, a subutilização do Trabalho agrega agora os desempregados oficiais (seguindo o critério oficial de desemprego), os empregados que gostariam de trabalhar mais horas do que aquelas que trabalham, os inactivos disponíveis mas que não procuraram emprego e os inactivos indisponíveis para trabalhar na semana em que o INE fez o inquérito.

A nova designação segue as indicações do Eurostat, que segue a metodologia do US Bureau of Labour Statistics, que segue a recomendação da 19ª Conferência de Estaticistas da OIT... de Outubro de 2013!

Trata-se de uma importante informação que, por acaso, há muito tempo muita gente - sindicalistas, economistas, sociólogos, etc., incluindo os autores deste blogue e, há bem mais pouco tempo, o FMI e o Banco de Portugal - já vinha a chamar a atenção, por se tratar de um retrato importante de um novo fenómeno que os indicadores até então oficiais deixavam de fora. Um novo fenómeno que explica porque os salários têm caído tão abruptramente mesmo com uma recuperação da criação de emprego. São mais de 900 mil pessoas que, ainda no 2º trimestre deste ano, gostariam de ter um emprego a tempo completo (16,6% da população activa).

Aliás, se o INE alerta para que este novo indicador pode sobreavaliar a dimensão dos "subtilizados", valoriza a dimensão daqueles que não são abrangidos pelo conceito de desemprego oficial. A taxa de subutilização do trabalho "tem vindo a aumentar" face à taxa oficial de desemprego.  

Depois de aumentada devidamente a população activa, verifica-se que a taxa de subutilização do trabalho tem subido, quando comparada com os valores da taxa de desemprego. No 2º trimestre deste ano, era quase o dobro (de 16,6% face a 8,8%), quando um ano antes era inferior (de 19,3% para 10,8%).

Ou seja, o emprego criado parece ter tem absorvido mais "desempregados oficiais" do que "desempregados não oficiais", revelando um problema que a actual situação do Trabalho está a gerar junto de camadas extensas de trabalhadores: a incapacidade do regresso ao Trabalho depois de uma prolongada situação de desemprego.

E isso acontece sobretudo entre as trabalhadoras. A diferença entre a taxa de subutilização do trabalho das mulheres e dos homens é bem maior do que a diferença entre a taxa de desemprego entre homens e mulheres.

Ou seja, a taxa de desemprego não reflecte verdadeiramente muito da desigualdade de género que se passa presentemente em Portugal.


É, pois, de aplaudir esta decisão. Agora, espera-se uma maior consciência política deste fenómeno e, consequentemente, políticas que aproveitem esse novo indicador.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Toda uma história da economia política


Realmente, Gillian Tett do Financial Times tem razão: o gráfico acima, retirado de um estudo convencional, é um dos mais impressionantes, ajudando a compreender o contexto da última crise, cujo início faz agora dez anos. Nele podem ver como as fases de “desregulação financeira”, ou seja, de regulação conforme aos interesses da finança, foram acompanhadas, desde o início do século XX até à actualidade, de um aumento dos salários no sector financeiro em relação aos que são pagos no resto da economia dos EUA. Aposto que isto vale para a generalidade das economias financeirizadas, incluindo a nossa: lembrem-se das inacreditáveis justificações para os salários dos Paulos Macedos desta banca, com o sector público a ser contaminado pelas lógicas de um sector privado por reformar. Deve ser por causa da produtividade...

Enfim, o primado de uma regulação consciente dos desmandos da finança de mercado tem sido acompanhada de uma normalização, de uma maior moralização, digamos, dos rendimentos neste sector crucial. Este retrato é ainda mais impressionante quando o juntamos com outro gráfico histórico de alguma forma relacionado: a circulação irrestrita de capitais à escala internacional (a vermelho), a tal mobilidade de capitais indissociável dos períodos de liberalização financeira, é acompanhada por um aumento do número de crises bancárias (a azul); pelo contrário, e como o gráfico abaixo também ilustra, os períodos de menor mobilidade são muito mais tranquilos financeiramente. Reparem, por exemplo, nos chamados trinta gloriosos anos a seguir à Segunda Guerra Mundial. É toda uma história da economia política dos capitalismos realmente existentes.


segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Cafeína matinal


Não sei do que gosto mais: do chapéu dela, do facto de os dançarinos não saberem como dançar a música, se do ambiente bem comportado de fake rock, se do ar feliz pós recessão nos anos 80, se ser um descarado play-back e um fingimento pegado ou de ter ficado sem saber o que é N.L.P.

De qualquer maneira só funciona com o volume no máximo!

"Don't harass me, can't you tell
I'm going home, I'm tired as hell
I'm not the cat I used to be
I got a kid, I'm thirty-three

Baby, get in the road
Come on now"

domingo, 6 de agosto de 2017

Contra os logros

A contradição é simples: não é possível degradar as condições de produção da informação e, ao mesmo tempo, produzir informação de qualidade que resista às críticas dos cidadãos, nas redes sociais e não só. Quem anda à chuva, molha-se. O problema, para a democracia, é que é mais grave: ao querer garantir desta maneira a sua sobrevivência, os media, não só não o fazem, como potenciam a generalização da desconfiança em relação a todo o jornalismo, quando é sabido que as redes sociais não têm condições, nem vocação, para o substituírem. Pelo contrário, as redes sociais beneficiariam muito de um jornalismo exigente e de qualidade.

Sandra Monteiro, Media queixam-se: a chuva molha, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Agosto.

A água ferve a 100°C, isso é certo. Mas seria melhor não ter esperança que a vida das sociedades se vergue às leis da física. É certo que 1% da população atribuiu a si própria a maioria das riquezas produzidas na Terra; mas isso não faz dos 99% que sobram um grupo social solidário, e menos ainda uma força política em ebulição.

Serge Halimi, O logro dos 99%, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Agosto.

Fiquem também com o resumo deste número: “Na edição de Agosto continuamos a reflectir sobre a realidade e o futuro do mundo rural em Portugal, das tendências demográficas, com a litoralização e a concentração nas áreas metropolitanas, até à gestão dos baldios (Daniela Craveiro, Eduardo Costa, Jorge Malheiros, João Peixoto, Diogo Abreu e Rita Serra). Analisamos também as evoluções no país do emprego público (César Madureira) e das experiências dos Orçamentos Participativos (Nelson Dias). No internacional, destaque para uma reflexão de Régis Debray sobre a União Europeia e para uma investigação de Augusta Conchiglia: ‘Quem matou Samora Machel?’. A globalização da climatização, com  ‘o ar condicionado ao assalto do planeta’, e a especificidade do modelo de Internet desenvolvido na Rússia, ‘uma excepção que vem de longe’, dão-nos instrumentos para compreender importantes questões mundiais. Um poster infográfico nas páginas centrais leva-nos a conhecer a diversidade de sistemas de escrita no mundo e a geopolítica das batalhas a eles associados.”

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

"Precariedade" é um conceito bem-comportado

Fonte: Gráfico 1, Inquérito ao Emprego e Quadros de Pessoal, valores actualizados a preços de 2016; Gráfico 2: Inquérito ao Emprego (INE), desemprego em sentido lato (milhares) = desemprego oficial + subemprego + inactivos que querem trabalhar

Qual dos dois gráficos explica o outro?
1) O desemprego está a cair porque os salários estão a baixar? Menores encargos salariais e de despedimento aumentam a margem das empresas para contratar mais mão-de-obra de baixos salários. E, por isso, deve adoptar-se todos os dispositivos legais que impeçam os salários de subir;
2) Ou os salários estão a cair porque o desemprego nunca atingiu tanta gente? Ainda há um milhão de pessoas por empregar. Isto sem contar com a emigração. E isso quer dizer que os salários apenas subirão quando se absorver este desemprego crónico, que se prolonga há década e meia, reduzindo o potencial económico de Portugal, degradando as suas contas orçamentais e da Segurança Social e contaminando o nosso futuro ao empurrar para fora jovens especializados que apenas encontram empregos de baixos salários.

Claro que o aumento da margem de exploração das empresas contribui para um maior investimento. Mas essa subida até poderia ser maior se os trabalhadores fossem escravos.

Ou seja, por alguma razão essa não é uma opção aceitável: há limites à lógica de redução das condições laborais. Mas nesse caso, até onde se está disposto a prescindir de civilização? Será pois vantajoso - porque já nem se fala de justiça - que o emprego cresça, mas os salários desçam, em vez de subir? Como é possível que, mesmo numa conjuntura de recuperação, os trabalhadores não ganhem com isso? Como é possível viver sem revolta a velha máxima "é melhor ter um emprego mal pago do que estar no desemprego", que cria um falso dilema: coloca em cada trabalhador o fardo da responsabilidade, da culpa e do dever submisso, deixando incólume os excedentes das empresas e o papel das empresas em sociedade. E do Estado.

A precariedade contamina cada vez mais os ditos trabalhadores "protegidos", fragilizando vínculos contratuais, mesmo para os contratos permanentes de quem já tenha emprego, reduzindo salários, degradando vidas, envelhecendo populações por incapacidade desta de se rejuvenescer, ou de se renovar.

Isso só acontece porque se abraçou há décadas uma lógica que defende "quem cria emprego são as empresas". E essa lógica aceita - e a palavra é mesmo essa - que haja ainda um milhão de desempregados a exercer uma efectiva pressão sobre os assalariados.

Como é possível que um conceito que é uma degradação social, tenha uma forma de expressão tão civilizada, sem que as campainhas toquem?

É possível porque tudo foi propositado. Tudo foi pensado para ter este efeito. Vem da teoria seguida. Uma teoria errada.


quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Dois tempos e dois mundos

«Imagine que esteve uns dias sem ler jornais nem saber nada do nosso país, nem internet nem televisão. Chega hoje a sua casa, liga o mundo e fica a saber que Marcelo deu uma longa entrevista. Tem então duas possibilidades: ou lê o que se diz sobre a entrevista, ou lê a entrevista.
(...) Ao contrário dos comentadores que se amofinam com a modorra nas declarações do presidente, eu leio nelas a percepção de que o país prefere viver sem sustos; ao contrário dos que se encantam com as ameaças que descobrem nos não-ditos, eu vejo continuidade.
O que Marcelo e Costa perceberam, cada um à sua maneira, é que o modo da sua política deve estabelecer uma diferença marcada com o passado recente. Marcelo separa-se de Cavaco, que interpretava a austeridade melhor do que ninguém (e por isso se perdeu, com a lamúria sobre a sua pensão) e Costa separa-se do tempo da troika e do PSD e CDS (e por isso se perderam, com a sua gula de empobrecerem o país). Isso é totalmente óbvio na sua linguagem: ao contrário de Passos, que se passeia como se fora um primeiro-ministro no exílio e à espera de poder desembarcar no Terreiro do Paço, zangado com o mundo que o esqueceu, Costa sorri e é uma pessoa normal, enquanto Marcelo corre o país a acarinhar o povo.
De facto, ambos perceberam um segredo que pouco mais gente partilha: é que na política há dois mundos e dois tempos bem separados. Um é o frenesim de políticos e jornalistas, das grandes intrigas e das grandes frases (os suicidados de Pedrógão, ou que vivemos sob um governo totalitário porque o Ministério Público não juntou a senhora atropelada à outra lista das vítimas directas da tragédia!), outro é o da gente normal, que prefere que lhe garantam que não vão ser reduzidas as pensões dos nossos pais e que quer ver esforço para resolver as muitas dificuldades da sua vida.
Quem vive na esfera da publicidade entusiasma-se com nada; em contrapartida, quem percebe a dessintonia entre esses dois mundos tem na mão a chave da política.

Parece portanto que esses mundos não estão a falar um com o outro. Pois não, só um deles fala para as pessoas, o outro fala para si próprio».

Francisco Louçã, A chave da política

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Ainda o mito do congelamento das rendas (2)

Por coincidência, tendo em conta o meu texto, o congelamento das rendas foi ontem convocado por Fernanda Câncio, à mistura com um conjunto variado de outros fatores muito mais relevantes, para explicar a preocupante situação da habitação no município de Lisboa.

Para tornar ainda mais claro o argumento que ontem aqui apresentei, em 2015: a) apenas 32% dos contratos de arrendamento em vigor foram celebrados antes de 1990 e, portanto, poderão ser associados a «rendas congeladas» (já que a partir de então o mercado foi liberalizado); b) nesse contingente, apenas 21% dos contratos (face ao total) correspondem a rendas baixas; c) e entre estes contratos, apenas 9% (face ao total) referem-se a alojamentos da propriedade de particulares ou empresas privadas. Quer isto dizer que o impacto que o «congelamento de rendas» poderá ter no mercado da habitação é inferior a 10%, sendo que - mesmo assim - não tem um efeito dissuasor na celebração de novos contratos (uma vez que estes já são celebrados sem esse condicionamento). Mas se considerarmos o caso especial de Lisboa, este efeito será significativamente menor dado que, como é sabido, há uma maior proporção de alojamentos da propriedade do Estado, da autarquia e de empresas públicas face ao resto do país.


O continuado enfoque nas marginais rendas congeladas em pouco ou nada contribui para a discussão sobre o arrendamento de longa duração. Contribui, isso sim, para intensificar a liberalização do mercado de arrendamento, com crescente perda de direitos dos inquilinos, ao invés de pressionar e responsabilizar o Estado e as autarquias pela garantia de um direito essencial.