«Imagine que esteve uns dias sem ler jornais nem saber nada do nosso país, nem internet nem televisão. Chega hoje a sua casa, liga o mundo e fica a saber que Marcelo deu uma longa entrevista. Tem então duas possibilidades: ou lê o que se diz sobre a entrevista, ou lê a entrevista.
(...) Ao contrário dos comentadores que se amofinam com a modorra nas declarações do presidente, eu leio nelas a percepção de que o país prefere viver sem sustos; ao contrário dos que se encantam com as ameaças que descobrem nos não-ditos, eu vejo continuidade.
O que Marcelo e Costa perceberam, cada um à sua maneira, é que o modo da sua política deve estabelecer uma diferença marcada com o passado recente. Marcelo separa-se de Cavaco, que interpretava a austeridade melhor do que ninguém (e por isso se perdeu, com a lamúria sobre a sua pensão) e Costa separa-se do tempo da troika e do PSD e CDS (e por isso se perderam, com a sua gula de empobrecerem o país). Isso é totalmente óbvio na sua linguagem: ao contrário de Passos, que se passeia como se fora um primeiro-ministro no exílio e à espera de poder desembarcar no Terreiro do Paço, zangado com o mundo que o esqueceu, Costa sorri e é uma pessoa normal, enquanto Marcelo corre o país a acarinhar o povo.
De facto, ambos perceberam um segredo que pouco mais gente partilha: é que na política há dois mundos e dois tempos bem separados. Um é o frenesim de políticos e jornalistas, das grandes intrigas e das grandes frases (os suicidados de Pedrógão, ou que vivemos sob um governo totalitário porque o Ministério Público não juntou a senhora atropelada à outra lista das vítimas directas da tragédia!), outro é o da gente normal, que prefere que lhe garantam que não vão ser reduzidas as pensões dos nossos pais e que quer ver esforço para resolver as muitas dificuldades da sua vida.
Quem vive na esfera da publicidade entusiasma-se com nada; em contrapartida, quem percebe a dessintonia entre esses dois mundos tem na mão a chave da política.
Parece portanto que esses mundos não estão a falar um com o outro. Pois não, só um deles fala para as pessoas, o outro fala para si próprio».
Francisco Louçã, A chave da política
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