domingo, 30 de junho de 2013

Tomem duas notas


1. A chamada esquerda democrática saiu recentemente do governo grego. Resta saber se continuará a apoiar a desastrosa política do governo em “nome da Europa” e em nome da sua tentativa de sobrevivência político-eleitoral, já que, juntamente com os socialistas, seria merecidamente trucidada nas eleições. Sê-lo-á mais tarde, espero, quando uma esquerda que não esteja disposta a impor mais nenhum sacrifício pelo euro vencer. Em Portugal, os federalistas de esquerda devem tomar nota do que se passa na Grécia, até porque nos vemos gregos, embora a história política não tenha de se repetir.

2. Em França, a recessão está instalada e o círculo vicioso das pressões austeritárias também. O ministro da recuperação industrial que nunca chegará neste euro, Arnaud Montebourg, o da desglobalização com escala europeia, culpa a Comissão Europeia, o cherne, pela subida de uma Frente Nacional que, à sua maneira xenófoba, ocupa um terreno nacional que é popular e que foi deixado vago por grande parte da esquerda francesa entretida com fantasias europeias que só gerarão derrotas. Montebourg pode também culpar um PSF que deu um contributo decisivo para a integração europeia realmente existente. Enquanto a questão europeia não for enfrentada pelos socialistas, enquanto não perceberem que a integração foi, é e será o principal mecanismo de globalização neoliberal na Europa, enquanto não colocarem a alternativa nos termos de ruptura sugeridos, por exemplo, por Jacques Sapir, que de resto já expôs a incoerência do modelo de saída do euro sugerido pela FN, nada feito. Seguro será Hollande, mas na periferia, o que ainda é pior. Tomem também nota da tragédia europeia sem fim da social-democracia.

Se a má-fé pagasse imposto


Perante o estrondoso falhanço da austeridade e a depressão económica em que vivemos, a má-fé tornou-se o último reduto dos nossos propagandistas de serviço. Um excelente exemplo é este editorial publicado no i por Luís Rosa. O jornalista recupera a ideia da curva da Laffer - conceito sem qualquer aderência empírica que defende que a arrecadação fiscal diminui a partir de um determinado nível de impostos - para defender que o único problema do actual programa de governo foi o aumento brutal dos impostos (que, aparentemente, torna o governo numa cambada de intervencionistas, senão mesmo socialistas). Se o artigo já é inacreditável por se basear numa teoria que o próprio autor reconhece não se verificar em Portugal, o chocante é a forma como se entende o Estado como mero aspirador de recursos. Pois bem, infelizmente o Estado também obedece ao sistema de contabilidade de dupla entrada. O Estado tem receitas (impostos) e tem despesas. Os impostos são perda de rendimento para quem os paga, a despesa é fonte de receita para quem a recebe. Como é que se pode escrever um texto sobre impostos em Portugal e ignorar que o que está a ser tentado é aumentar a receita (perda de rendimento) e diminuir a despesa (novamente perda de rendimento), vulgo austeridade. Talvez seja isso que esteja a destruir a economia e não tanto o nível de impostos em si. Isto para não referir o impacto do polémico “multiplicador”, cujo valor é claramente superior a 1, resultando que um corte no défice tem um efeito recessivo mais do que proporcional no produto e vice-versa.

Pode uma diminuição de impostos servir de estímulo à economia? Claro que pode, mas neste contexto não é tão eficaz como um aumento da despesa pública que se traduz directamente em aumento da procura. Não são os defensores da baixa dos impostos (para o capital, diga-se) os mesmos que pregaram o défice público como o problema da nossa economia? O único bom sinal deste tipo de argumento (liberal?, não me atrevo) é o do enterro final da ideia de “austeridade expansionista" . No entanto, como assinala, também no i, Pedro Braz Teixeira, o que não falta são ideias zombie por aí. Mesmo as elaboradas em guardanapos, como foi a de Laffer.

Finalmente, isto quer dizer que o nosso sistema fiscal é adequado? De todo. Existem impostos claramente demasiado elevados, como IVA, e outros demasiado baixos como o IRC (aquele que o governo quer descer, na premissa que o investimento directo estrangeiro é guiado unicamente pela taxação do capital). Há ainda outros que não existem e devem ser introduzidos (taxação sobre as transacções financeiras, novo modelo de imposto sucessório, etc).

Sair do euro implica sair da UE?


Com receio de um imaginário isolamento albanês, em Portugal há quem defenda uma negociação com a UE para que o país obtenha um estatuto igual ao do Reino Unido e da Dinamarca. Quanto a isto, Rui Tavares ("Perguntas à saída do euro", "Público", 19 Junho) não tem dúvidas: "Conseguir o mesmo hoje significaria reabrir os tratados, com uma ratificação por todos os parlamentos nacionais (e, quem sabe, um referendo na Irlanda!) Isto demora meses ou anos. [...] O problema é que as hipóteses de sucesso desta abordagem são reduzidíssimas?" Embora respeitável, esta posição jurídica não é a única possível.

Segundo Marijn van der Sluis, doutorando no Instituto Universitário Europeu em Florença, é juridicamente defensável procurar obter a derrogação atribuída ao Reino Unido e à Dinamarca mediante uma decisão do Conselho que, retroactivamente, anule a decisão inicial de adopção do euro ("How to exit the Eurozone", http://acelg.blogactive.eu.). O fundamento jurídico da competência do Conselho para tomar uma tal decisão residiria no n.º 1 do artigo 352º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que lhe permite tomar as decisões necessárias "para atingir um dos objectivos estabelecidos pelos tratados". Ora no artigo 3º o Tratado da União Europeia estabelece: "1. A União tem por objectivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos. 3. [...] A União promove a coesão económica, social e territorial, e a solidariedade entre os estados-membros [...]".

Assim sendo, um governo decidido a reivindicar a derrogação da moeda única deverá invocar o grave dano ao bem--estar do seu povo, a repercussão negativa de tal dano sobre o bem-estar dos restantes povos da UE e a contradição com os objectivos centrais da UE que resultam da sua participação na zona euro. Perante a evidência do fracasso da política de austeridade, uma estratégia jurídica desta natureza oferece alguma esperança aos que imaginam ser possível um divórcio amigável na zona euro.

Evidentemente, uma derrogação do euro por esta via seria difícil de conquistar porque, além de exigir o prévio consentimento do Parlamento Europeu, encontraria no seio do Conselho resistências à sua aprovação. Ainda assim, o caminho seria mais fácil que o referido por Rui Tavares, já que não passaria pelo parlamento de outros países e, convém não esquecer, seria bem visto por muitos alemães, que não só rejeitam uma UE de transferências mas também consideram indispensável libertar da zona euro os países que nunca aí deveriam ter entrado.

Ou seja, do ponto de vista jurídico é possível sair do euro sem sair da UE e, tudo o mais constante, a probabilidade de este resultado negocial não será tão reduzida como Rui Tavares sugere. Afinal também parecia juridicamente impossível que o BCE pudesse ajudar os estados-membros ou que um destes pudesse impedir a livre circulação de capitais (Chipre) e, no entanto, tudo isso tem tido cobertura jurídica, ainda que de duvidosa legalidade (ver Frédéric Lordon, "Cette Europe-là est irréparable").

Outra coisa é saber se é realista admitir que um governo determinado a salvar o país da miséria poderá abrir negociações para sair do euro sem ficar sujeito a uma corrida aos bancos e sem lançar o pânico nos mercados financeiros. Tendo em conta a degradação financeira, social e política entretanto ocorrida, o novo governo teria de instituir sem pré-aviso um controlo dos movimentos de capitais semelhante ao de Chipre, logo após a tomada de posse. As negociações deveriam incidir também nas cláusulas que bloqueiam a política industrial e a política comercial externa, e sobretudo permitiriam ganhar tempo para preparar a introdução da nova moeda. Entretanto, a UE será varrida por um vendaval financeiro e político de tal força que a questão em título perderá a relevância que hoje ainda tem.

(O meu artigo no jornal i)

"Do rabo"

Já é famosa a conversa entre dois quadros do Anglo-Irish Bank em que, em amena cavaqueira sobre o resgate público ao banco falido, um deles afirma ter “tirado do rabo” o valor a pedir ao Banco Central Irlandês – 7 mil milhões de euros. Entretanto a contabilidade criativa não é exclusiva dos irlandeses. Hoje soubemos que o défice públic do primeiro trimestre é de 10,3% do PIB (anualisado), mas que não nos devemos preocupar com isso. Parte dele, 700 milhões, não vale nas contas para a troika. E, como não conta, é como se não existisse. Já os cortes inconstitucionais contaram a dobrar, se observarmos o valor crescente estimado para os cortes na despesa nos próximos anos.

Mas a contabilidade criativa não fica por aqui. O acontecimento da semana foi o anúncio em relação aos mil milhões pagos à banca devido aos exóticos instrumentos financeiros contratados por empresas públicas. “Descobriram” uns contratos – certamente também exóticos – no instituto público que gere a dívida, o IGCP, cujos ganhos (potenciais?) compensam estas perdas. Que sorte, hein? Que contratos são estes? São todos de valor positivo? A que desconto foram finalizados? (só assim se explica o acordo da banca) Afinal há dinheiro?

Tudo demasiado estranho e opaco. Mais uma razão para subscrever a campanha empreendida pela “Iniciativa por uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública”.




O estrondoso «sucesso do programa de ajustamento»

«As contas públicas registaram um défice de 10,6% nos primeiros três meses do ano, de acordo com dados do INE. Vítor Gaspar já tinha anunciado que ficaria acima de 10% por causa da contabilização da injeção de capital no Banif. Os 700 milhões de euros com que o Estado entrou no capital do banco foram considerados despesa, uma vez que o Banif teve prejuízos e, ao mesmo tempo, não houve outros acionistas a entrar em simultâneo.
Mas, a verdade é que mesmo sem os 700 milhões de euros do Banif, o défice situou-se em 8,8%. Trata-se do valor mais elevado desde o segundo trimestre de 2011, ou seja, antes do início do programa da troika.
Para o conjunto do ano está prevista uma meta de 5,5% que será bastante difícil de atingir dado este começo. Basta ver que o défice de 4167 milhões de euros registado no primeiro trimestre esgota praticamente metade do teto definido para o conjunto do ano. Pode dar-se o caso, tal como já aconteceu no passado, de a troika deixar de fora a recapitalização do Banif para efeitos de cumprimento das metas do programa.
Em declarações aos jornalistas, o secretário do Estado do Orçamento, Luis Morais Sarmento, lembrou que o perfil de défice deste ano não é idêntico ao de 2012, entre outras coisas por causa do pagamento dos subsídios em duodécimos, e falou em "sucesso do programa de ajustamento" a partir da leitura dos dados.»
(João Silvestre, no Expresso)

Não tivesse já Vítor Gaspar justificado a quebra do investimento com a chuva (no primeiro trimestre do ano) e poderia agora atribuir esta colossal dilatação do défice a uma qualquer «vaga de calor», ocorrida entre Janeiro e Março.

De reestruturação em reestruturação

As reestruturações da dívida à moda grega – tímidas, sucessivas e mal-sucedidas – já chegaram ao Chipre. Aparentemente, os detentores de dívida no valor de mil milhões de euros, a vencer nos próximos anos, vão ser obrigados a ficar com os títulos mais uns anos (o que se traduz numa diminuição real da dívida). Colocará tal medida a dívida numa trajectória sustentável? Não. Permitirá uma redução da austeridade? Também não. E assim continuamos, a empurrar o problema com a barriga.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

O Direito ao Trabalho, ora aí está

«A greve é um direito, constitucionalmente protegido (...). É um direito que as pessoas têm para exercer o seu protesto. É um direito de resto previsto pela Constituição, como é previsto na Constituição também o Direito ao Trabalho(*). E nesse sentido, registamos também que há pessoas que estão a fazer greve e há pessoas que estão a trabalhar. O país não está parado e a opinião do governo é que é exactamente de trabalho que o país precisa.»

É bem sintomático que Luís Marques Guedes confunda (ou queira que se confunda) o «Direito ao Trabalho», consagrado na Constituição, com o «direito a ir trabalhar». Fora isso tem toda a razão: «é exactamente de trabalho que o país precisa». Que o digam os 945 mil desempregados registados em Abril (255 mil dos quais produzidos pelo governo desde que tomou posse); que o digam, entre estes, os que não dispõem de nenhuma espécie de subsídio de desemprego (56% do total); ou que o diga o número cada vez maior de pessoas que não têm acesso nem sequer ao RSI.

(*) Estabelece a Constituição, no seu Artigo n.º 58, que: «1. Todos têm direito ao trabalho; 2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover (entre outros): a) A execução de políticas de pleno emprego».

Depende mesmo de nós

Já faz parte da tradição do blogue elogiar desta forma a Greve Geral:

Elogio da Dialéctica

A injustiça avança hoje a passo firme 
Os tiranos fazem planos para dez mil anos 
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são 
Nenhuma voz além da dos que mandam 
E em todos os mercados proclama a exploração; 
isto é apenas o meu começo 

Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem 
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos 

Quem ainda está vivo não diga: nunca 
O que é seguro não é seguro 
As coisas não continuarão a ser como são 
Depois de falarem os dominantes 
Falarão os dominados 
Quem pois ousa dizer: nunca 
De quem depende que a opressão prossiga? De nós 
De quem depende que ela acabe? Também de nós 
O que é esmagado que se levante! 
O que está perdido, lute! 
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha 
E nunca será: ainda hoje 
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.

Bertolt Brecht

Peter Gabriel & Simple Minds: Biko (1988)



You can blow out a candleBut you can't blow out a fire
Once the flames begin to catchThe wind will blow it higher

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Greve Geral

A todos os que nos falam da perda de produto de um dia de greve:

Se o facto de se perder um dia de salário e produção vos parece que perturba assim tanto a economia, suponho que compreendam que é inaceitável que haja em Portugal bem mais de 900 mil pessoas que não têm salário nem produzem, 365 dias por ano, porque estão desempregados. Isso sim, é perder produto!

Os custos para o país de não se reivindicar uma política diferente, que relance a economia e o emprego, são infinitamente maiores do que os supostos custos de uma greve (cujas contas são, ainda por cima, muito pouco rigorosas).

Estarei na Greve Geral amanhã e todos os dias que forem necessários!

Quantos pobres foram necessários?

Passos Coelho insiste que todos estão a fazer sacríficos e que estamos na direcção certa. No meio de uma crise socioeconómica que se acentua, multiplicam-se os indicadores que confirmam para quem se dirige a política deste governo: o número de milionários subiu 3,4% no ano passado e está a caminho dos 11 mil portugueses com mais de um milhão de dólares. E quantos pobres foram necessários?

Apelo

O Congresso Democrático das Alternativas [CDA] apela a todos os cidadãos para aderirem à próxima Greve Geral, para participarem nas iniciativas de protesto marcadas no seu âmbito, e para fazerem convergir os seus esforços no combate às políticas de austeridade, na exigência da denúncia do memorando e da demissão do governo.

Do apelo do CDA à participação na Greve Geral nacional, convocada pela CGTP e pela UGT, para amanhã. Sem a luta dos trabalhadores, não será possível resgatar Portugal para um futuro decente.

A ponta do iceberg?

«Um dos executivos pergunta ao outro "como chegou ao número de sete mil milhões como sendo a soma correcta para pedir ao Estado". O outro ri-se e diz que "a tirou do rabo" ["picked it out of my arse"].
Mais a sério, explica que "inicialmente não convém pedir muito". O melhor é deixar que o financiamento pelo Estado vá crescendo discretamente, sempre usando o argumento de que "deixar o banco afundar-se seria pior para toda a gente".
Acima de tudo, sugere o executivo (rindo ainda mais, juntamente com o seu colega) "não se pode deixar que os contribuintes percebam que nunca vão recuperar o que é deles". A cada nova solicitação de fundos, tem de se explicar que é para o cidadão comum proteger "o seu dinheiro".
Com um pouco de sorte, acrescentam os executivos, "o banco ainda acaba nacionalizado e eles os dois conservam os seus lugares".
Ao todo, o Estado irlandês já investiu 30 mil milhões de euros, só naquele banco. Estas novas revelações, surgidas no diário Irish Independent, podem vir a ter consequências.»

Excertos de uma conversa entre dois executivos do Anglo Irish Bank, gravada em 2008, nas vésperas de o governo irlandês injectar milhares de milhões de euros no banco («o BPN de lá», como refere Luís M. Faria, que assina esta notícia no Expresso).
Trata-se somente de um caso, «documentado» (as gravações podem ser ouvidas na íntegra aqui, em inglês). O que aconselha, obviamente, prudência nas generalizações. Mas não custa mesmo nada captar e perceber, através deste episódio, o estado das coisas e o «espírito do tempo» que antecedeu o início da crise. O início da crise? Não será este, por acaso, o «perfume» que paira no ar, desde então?

(Nem de propósito, este escândalo é conhecido no dia em que Vítor Gaspar avisa que o défice no primeiro trimestre pode ficar acima dos 10%, devido a novas ajudas à banca, nomeadamente ao BANIF).

terça-feira, 25 de junho de 2013

Em busca do santo Graal


O Rui Tavares apresentou ontem, em artigo no Público e em entrevista ao i, algumas ideias para retirar o país da crise. Devo confessar-me um pouco perplexo. Bem sei da cansativa conversa à esquerda de que uma coisa é a economia (coisa de marrões do Excel) e outra a política (coisa para vanguardas que conseguem ler a realidade social). Mas, ver estas propostas vindas de alguém que se rodeia de excelentes economistas, como Varoufakis ou James Galbraith, é um pouco penoso.

O Rui tem três diferentes propostas (na verdade, quatro) para resolver o problema da dívida e relançar o crescimento. Se bem percebo, na primeira, e mais substantiva, proposta sugere-se a criação de créditos ficais por parte do Estado como forma de angariar poupanças. Portanto, o Estado emite títulos que servirão no futuro para pagar impostos com um qualquer desconto que torne o produto apetecível a aforradores. Qual a diferença entre tais títulos e certificados de aforro? Nenhuma. Ambas são formas de dívida pública junto do público, mudando os termos de taxa de juro para desconto fiscal. Não se percebe muito bem.

No entanto, arrisco um pouco. Partindo da afirmação do Rui que tais títulos seriam transaccionáveis (usados como meio de pagamento?), parece-me que o que está a ser proposto é uma forma encapotada de circulação monetária paralela ao euro. Uma ideia requentada de 2010 para a Grécia que pretende desvalorizar salários, pagos com estes títulos convertíveis em euros a uma taxa de desconto, mantendo os pagamentos externos e de impostos em euros (e assim pagar a dívida). Se esta proposta tem o mérito de aliviar os constrangimentos financeiros do Estado, ela consubstancia-se em pouco mais do que num corte salarial. Sim, neste caso, as mirabolantes críticas a quem defende a saída do euro fariam sentido, já que boa parte dos pagamentos internos continuariam a ser feitos em sobrevaliados euros (por exemplo, dívidas ao banco). De qualquer forma, posso estar enganado quanto à proposta do Rui Tavares, já que para tal sistema resultar, estes títulos só poderiam ser aceites como pagamento de impostos num futuro longínquo. Volto à casa de partida: não se percebe.

O que se percebe e não faz sentido é a segunda proposta: "O Governo proporia então pagar dívida com base no seguinte plano: por cada euro pago um euro seria perdoado. É um ‘corte de cabelo’, mas diferente do grego, por ser progressivo no tempo (...)". O que o Rui propõe aqui é um efectivo corte na dívida de 50% que os credores aceitariam "por ser progressivo no tempo". Ou o Rui acha que na reestruturação grega a dívida remanescente dos privados foi logo toda paga (quem lhes dera), ou o que aconteceu na Grécia corta os pagamentos a metade ao longo do tempo, logo é exactamente igual ao que o Rui propõe. Mais interessante era saber a opinião do Rui do que fazer no cenário em que os credores não aceitam a proposta nacional de corte...Fazer voz grossa, com votos parlamentares desafiantes e tudo, já foi tentado no Chipre. 

Outra proposta: a criação de um fundo soberano de poupança para fazer frente a futuras crises. Ou o Rui sabe da existência de vastas reservas de petróleo ao largo do Algarve, ou não se sabe de onde vem esta poupança. Mais austeridade? Tem resultado bem como alavanca do crescimento... Fundos soberanos são coisa de países com vastos recursos, onde as oportunidades internas de investimento escasseiam, como o Qatar ou a Noruega.

Finalmente, chega a proposta de um vago "memorando de desenvolvimento" que una os mais variados sectores sociais portugueses. Tenho muita pena, ou se definem quais são esses sectores, quais os interesses que podem confluir e, sobretudo, qual o programa subjacente, e que instrumentos de política pode mobilizar, ou estamos a propor coisas parecidas com o fim da política, onde todos concordam numa grande união nacional. Estou certo que não é nada disto que propõe o Rui, mas acho que devemos ter cuidado com este tipo de formulações. É sobretudo necessário engajarmo-nos no debate da economia política à esquerda, sem pensar, cada um de nós, ter descoberto um qualquer Graal da saída para a crise a que os partidos só não aderem porque não querem. Caso contrário, arriscamos só a introduzir ruído e confusão no debate político.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Elos fortes e fracos

Uma pergunta que ficou por fazer há uns tempos atrás, mas que retomo em semana de greve geral nacional: por que é que a mobilização europeia do passado 1 de Junho revelou ser tão mobilizadora como as eleições europeias habitualmente o são, ficando-se pelo simbolismo de um gesto de alguns milhares? As pessoas estão cansadas de manifestações e resignadas à sua sorte? Muitas estarão, outras nem por isso. Para além da fraqueza organizacional, da sucessão de manifestações e da ausência de resultados, acho que um dos problemas específicos das mobilizações convocadas à escala europeia é que servem para tornar mais saliente a pesada realidade de estruturas que parecem inamovíveis quando confrontadas a essa escala. O outro problema é que a convocação de uma manifestação europeia não pode obedecer tão facilmente a uma análise concreta, de resto sempre falível, da situação concreta e da disponibilidade concreta para a mobilização ali onde estão as tradições enraizadas de protesto e os alvos que as pessoas sentem que podem atingir num contexto europeu de resto marcado pela crescente heterogeneidade socioeconómica. Além disso, nesta correlação de forças, fixada estruturalmente em tratados e instituições retintamente neoliberais, as reivindicações europeístas que sustentariam programaticamente a mobilização numa escala feita para não gerar mobilização assemelham-se perigosamente aos desejos de paz no mundo dos concursos de beleza. Que fazer? Fazer o que a CGTP e a UGT se preparam para fazer esta semana, num contexto muito difícil para a convocação de uma greve geral, ou não fosse o desemprego o grande mecanismo disciplinar: mobilizar na escala onde se pode mobilizar com mais força, dado que também foi aí que as classes populares obtiveram, e aposto que será aí que obterão, vitórias, uma escala que continua a ser nacional, até porque a morte do Estado-nação é manifestamente exagerada, como sabemos, da Islândia à Argentina. De resto, é importante informar sobre as mobilizações de outros povos, noutros países, conseguir um módico de articulação realista à escala internacional, em especial entre países que partilham a mesma situação de tutela externa e esperar, tal como noutras primaveras neste século e em outros, que o efeito de contágio se dê nas periferias europeias como que por uma mão invisível. É a tal astúcia da razão inter-nacionalista em tempos de euroimperialismo, de desenvolvimento desigual e de elos fracos pelos quais se pode começar a romper toda uma estrutura de dominação.

domingo, 23 de junho de 2013

Os "nossos erros" são as "nossas mentiras"?

O FMI admitiu recentemente vários erros no programa grego, nomeadamente um otimismo excessivo nas estimativas utilizadas no seu cenário base e a necessidade de ter sido reestruturada a dívida pública, ainda antes de se proceder ao programa. Num outro relatório o FMI foca-se especificamente nas questões de reestruturação de dívida pública. Aí diz-se que um dos principais problemas de se fazerem programas de ajustamento antes de se reestruturar a dívida é que esse processo acaba por implicar um financiamento direto ao sistema financeiro, protegendo-o de perdas. Os empréstimos da troika têm sido usados, antes de mais, para pagar divida pública aos bancos, substituindo-se essa dívida, mais fácil de renegociar, por dívida à troika que prende os contribuintes.

Para além desta viragem no discurso, vale a pena observar os detalhes deste “mea culpa”. O FMI diz que teve de modificar os critérios de acesso aos seus programas para poder financiar a Grécia, dada a baixa probabilidade de sustentabilidade da sua dívida pública a médio prazo (o que seria uma condição determinante para o FMI permitir o empréstimo). Dadas as pressões para o financiamento, a solução foi introduzir o conceito de risco de contágio internacional como critério alternativo de acesso ao programa.

O que é interessante é que essa alteração de critérios não se reflete nos números! Na Grécia, como em Portugal, o programa foi aprovado ancorado num cenário base de previsões que implica sempre uma sustentabilidade da dívida pública a médio prazo: após poucos anos de programa, prevê-se que o seu peso em percentagem do PIB passe a ter uma dinâmica decrescente. Mais: revisão após revisão, após o continuado agravamento dos indicadores macroeconómos e orçamentais, as previsões mantêm inalterada essa sustentabilidade a prazo.

Quando o FMI vem dizer publicamente que fez o empréstimo à Grécia sem estar convencido da sustentabilidade da sua dívida pública, apesar de os seus números dizerem o contrário, isto é a prova de que os seus números não são previsões, são escolhas. E são escolhas deliberadas para obter resultados que levam os cidadãos a acreditar que, se se seguir o programa, então essa sustentabilidade será alcançada.

As realidades portuguesa e grega provaram já que essa sustentabilidade é uma miragem, mas não esperávamos que fosse o próprio FMI a confirmar que os seus técnicos sempre o souberam!

Neste contexto, o FMI não veio admitir que errou: veio admitir que mentiu.

Tudo o que é sólido se dissolve no ar…sem passar pela fase líquida


Semana animada nos mercados financeiros, onde a dissincronia da actual crise em diferentes palcos geográficos se tornou mais saliente. Três diferentes países: EUA, China e Chipre. O mesmo problema: falta de liquidez. A turbulência que se faz sentir no centro da esfera financeira internacional pode ter efeitos exacerbados no resto mundo. Sobretudo na frágil zona Euro, onde Estados sem soberania monetária continuam à mercê dos mercados.

Tudo começou nos EUA, onde, com bons resultados económicos a aparecerem (crescimento, aumento do emprego, etc), o banco central norte-americano anunciou a diminuição do apoio extraordinário concedido ao sector financeiro, nomeadamente através dos seus programas de “quantitative easing”, onde o banco central compra um conjunto alargado de activos ao sistema financeiro, fornecendo-lhes liquidez abundante e quase ilimitada, provocando, por sua vez, uma descida histórica das taxas de juro. Com este anúncio, os mercados financeiros ficaram nervosos. Há boas razões para isso. O aumento esperado das taxas de juro pode trazer más noticias para (sobretudo pequenos) bancos que, entretanto, emprestaram a taxas de juro demasiado baixas e que verão agora os seus custos de refinanciamento aumentar. Não parece existir ainda confiança suficiente para o sector financeiro se suportar a si próprio. A seguir os próximos episódios.

Entretanto, na China, o problema também é falta de liquidez no sistema financeiro, sobretudo no mercado interbancário, onde as taxas de juro dispararam. Tal como nos EUA, a intervenção pública é a chave. No entanto, não necessariamente pelas mesmas razões. Aparentemente, o governo chinês quer constranger a actividade de fundos de investimento, muito dependentes do financiamento interbancário. Até aqui nada de grave, mas esta pode ser uma aposta arriscada do governo chinês face aos riscos sistémicos de potenciais falências que tal medida pode implicar. As enormes reservas detidas pela China e a capacidade de injectar a liquidez reduzem os riscos sobremaneira, mas tais medidas alimentam o nervosismo reinante nos mercados financeiros. Por outro lado, nos mercados financeiros não há coincidências e esta falta de liquidez na China pode bem ser a reversão de fluxos financeiros recentes vindos dos EUA em busca de taxas de juro mais elevadas. Como o diferencial agora se tornou mais pequeno, a capacidade de atracção de capitais por parte da China é menor.

Finalmente, o presidente cipriota veio pedir “humildemente” uma revisão dos termos do resgate financeiro a Chipre. Problema? Falta de liquidez. Segundo a carta enviada ao Conselho Europeu, aquando do resgate a Chipre, o banco Laiki foi forçado a vender as suas sucursais gregas, de forma a prevenir riscos de contágio à Grécia (o que não deixa de ser irónico já que os seus problemas tiveram como causa próxima a reestruturação da dívida grega e subsequentes perdas no sistema bancário cipriota). Ora, nesta transacção o banco que ficou com a “parte boa” do Laiki no seu processo de resolução, o Banco de Chipre, ficou com as dívidas incorridas junto do Eurosistema por parte do Laiki, mas ficou sem os activos que serviam de garantia, sendo forçado a colocar os seus próprios activos como garantia. Conclusão, o acesso ao financiamento de emergência do Eurosistema está agora altamente condicionado, já que este banco tem poucas garantias para fornecer. A sua actividade fica assim completamente paralizada e só não assistimos a um colapso financeiro graças aos controlos de capitais entretanto instituídos (uma mais que provável corrida aos depósitos fica diminuída graças a estes controlos). Assim, a economia cipriota, se já não lhe bastasse a austeridade e a dívida, vê o seu sistema financeiro completamente inoperante. Sem crédito, não há economia.

Agora, acrescentem os mais recentes problemas de liquidez, causados pelos dois primeiros países, e consequente desvalorização dos activos usados pelos bancos cipriotas como garantia dos seus empréstimos junto do Eurosistema. Chipre parece estar entre a espada e a parede. Ou a Europa cede, ou não resta a Chipre declarar incumprimento sobre a dívida e sair do Euro.

sábado, 22 de junho de 2013

A sério, não há dinheiro?

Lembram-se de Vítor Gaspar ter dito, no rescaldo da Sexta Avaliação da troika, que era preciso «decidir qual o modelo de Estado que queremos e como o podemos financiar de forma sustentada»? Para de seguida Abebe Selassie sentenciar que «cabe à sociedade portuguesa decidir que nível de protecção social deseja ter, que nível de impostos e qual o equilíbrio entre estas duas dimensões»?

Foi em Novembro de 2012 e a ideia era, basicamente, a de acenar com a promessa de descida de impostos, uma vez aceite - como condição - proceder a um «ajustamento» do Estado Social à suposta capacidade fiscal do país. Sucede, porém, que desde então se preparou um programa de cortes na função pública, nas pensões e nas despesas sociais, que atingirá os 4 mil e setecentos milhões de euros até ao final de 2014. Mas, então, e a descida de impostos? Pois, quanto a isso, esperem sentados: Passos Coelho assegurou que o governo está a trabalhar para aliviar IRS até 2015, mas não se compromete com a sua efectiva descida (ao contrário do IRC, claro).

Ou seja, primeiro eram as «gorduras do Estado Social». E como estas demonstradamente não existiam, passou-se para a tese de que o Estado Social - não sendo afinal gordo - precisava de se ajustar para reduzir o esforço fiscal do país. Quando do que se trata (como sempre se tratou) é de assegurar, acima de todas as coisas, os recursos necessários para alimentar o sorvedouro dos juros agiotas. De uma dívida que é tanto mais impagável quanto mais exaurida se torna a economia, às mãos dos loucos que nos governam com a cumplicidade irresponsável de Belém.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Ainda o Gaspar do direito

Um dos grandes problemas em Portugal é que tudo é contestado, diz Poiares Maduro; lamenta que contra factos haja sempre argumentos. O que há de digno neste país é precisamente a contestação a estas correias de transmissão de Bruxelas-Frankfurt, é a argumentação que respeita a realidade. Não foi por acaso que quando soube que Maduro tinha sido alcandorado a novo ministro da propaganda, agora mesmo a toda a hora, o designei por Gaspar do direito: atrás do federalismo neoliberal, o único realmente disponível, a mesma lata, a mesma tentação autoritária, ou não fosse o seu projecto político uma rematada distopia sem quaisquer apoios entre os povos realmente existentes, a mesma arrogância que esconde a adesão a modelos político-económicos feitos para não terem de se confrontar com a realidade de um país que está sendo destruído em nome de uma integração disfuncional e feita para gerar todas as humilhações, todos os ressentimentos. Não há mesmo nada de novo.

Porquê resistir?

 

«Porque somos professores, queremos ser professores e temos memória.
Há quase um ano atrás (Julho de 2012) o MEC, com Nuno Crato, concretizou o maior despedimento coletivo já verificado em Portugal: mais de 20.000 professores inscritos nos centros de emprego, o que corresponde a um aumento de 151% em comparação com igual período em 2011… COMO?
- alterações na carga letiva de alunos e profs pomposamente chamadas de revisão da estrutura curricular (fim do par pedagógico em EVT, área de projeto, estudo acompanhado e desdobramento de turmas para realização de trabalho experimental, diminuição da carga letiva total por disciplina...)
- criação de mais agrupamentos e mega-agrupamentos escolares…
- aumento do número de alunos por turma (em cerca de 15%), iniciado ainda no mandato Sócrates…
- passagem de trabalho letivo (apoio pedagógico acrescido, por exemplo) para componente não letiva e, sobretudo para as horas de redução da componente letiva…
- fim da/as horas de Formação Cívica e a redução obrigatória da componente letiva para a direção de turma…
Os professores que conseguiram ser contratados (muitos com mais de uma década de instabilidade) estão em escolas ainda mais distantes da sua zona de residência, recebem menos salário devido às imposições da tróica+governo, têm horários incompletos e/ou que só iniciaram após o começo do ano letivo, têm horários de 24 horas letivas mas o contrato assinala “22horas”, arcam com direções de turma sem redução letiva e são enxotados com o término das atividades letivas…

E agora? Já está? Não! Nos próximos meses serão despedidos, isto é, não contratados, vários milhares de professores. Como, já todos sabemos: 40 horas semanais de trabalho (como se as 35 horas atuais não nos obrigassem já a trabalhar bem mais que isto!), sobrecarga dos diretores de turma que perdem a redução na componente letiva, mobilidade especial para todos.
Em cerca de 5 anos, desapareceram cerca de 40.000 professores e aumentou brutalmente o trabalho para os que ainda podem ensinar. Os poucos que vierem a ser contratados no próximo ano letivo, poderão estar ainda mais longe de casa, com o seu horário de trabalho aumentado, com contratos ainda mais temporários e salários que não cobrem o custo de trabalhar.

O que fazer? Podes emigrar, reclamar o subsídio de desemprego que há-de terminar, mudar de profissão se houver possibilidade ou… usar as forças que te restam para defender a tua dignidade e a tua sobrevivência.
Ainda me lembro da ansiedade com que alguns de nós, contratados por esta escola, nos conhecemos em Setembro para, juntos, esperarmos uma entrevista que nos permitisse trabalhar e ser professores… Será que nos vamos encontrar novamente em Setembro?...»

(Email de uma professora contratada, dirigido aos seus colegas de escola, sobre as razões para fazerem greve).

Fórum Manifesto: «Há vida para além do euro?»


Dilemas, cenários, bloqueios e impasses. O Fórum Manifesto realiza mais uma Universidade de Verão, dedicada a três questões que encontram na crise um chão comum. Uma discussão aberta e plural sobre a moeda única e os seus incontornáveis constrangimentos, que suscitam diferentes perspectivas sobre a origens da crise e os modos de a superar. A dificuldade em construir convergências partidárias à esquerda e a forma como se preenchem vazios e perplexidades, na procura de alternativas. A condição actual do jornalismo e o seu papel na afirmação e sobrevivência das narrativas hegemónicas que sustentam a tragédia austeritária. Três boas razões para rumar a Almada a 28 e 29 de Junho. Inscrevam-se (forumanifesto.pt@gmail.com), estão todos convidados.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Ataques ao mundo do trabalho

O Alexandre Abreu colocou aqui ontem um gráfico que ilustra, para os EUA, a relação entre a diminuição da taxa de sindicalização e a concentração de rendimentos no topo, um dos traços centrais do regime neoliberal em vigor desde a década de oitenta. A economia política comparada indica-nos que quanto maior é a taxa sindicalização, quanto mais importância assume a negociação colectiva centralizada, menores são as desigualdades de rendimentos. Não é por acaso que a troika quer destruir a contratação colectiva e individualizar as relações laborais, acentuando um processo que não é de agora. Está a conseguir fazê-lo. Este é aliás um dos objectivos primordiais da “Europa social” realmente existente. Adicionalmente, como o gráfico abaixo, obtido via Matias Vernengo, ilustra, o bem-sucedido ataque neoliberal ao mundo do trabalho organizado é visível também numa repartição de rendimento entre trabalho e capital cada vez menos favorável ao primeiro nos países desenvolvidos, uma medida que nem sequer tem em conta o extraordinariamente relevante fenómeno do crescimento generalizado da desigualdade salarial. A crescente desigualdade entre trabalho e capital tem sido acompanhada pelo aumento da taxa de desemprego, até porque é a procura salarial que tende a guiar as economias, como vários estudos da OIT têm enfatizado. O desemprego crescente, por sua vez, funciona como mecanismo disciplinar por excelência, numa economia do medo, garantindo renovados ataques à acção colectiva dos trabalhadores.


Todo um sistema com toda uma história. Uma história e um sistema que João Miguel Tavares parece desconhecer, o que não o impede de escrever sobre o assunto, claro: à falta de melhor, hoje critica a Fenprof por usar o termo neoliberalismo num documento de 2003, vejam lá. A Fenprof podia tê-lo feito desde a década de oitenta, claro. É verdade, como sublinhamos em artigo recente, que se tratou de um neoliberalismo incrustado, com alguma regulação social legitimadora e em crescente tensão, em particular desde a instituição do euro, com a estrutura económica entretanto criada, mas foi neoliberalismo, sem dúvida.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

"Eu até concordo com o direito à greve, mas..."


...sobretudo acho uma pena que uma boa parte das pessoas, sobretudo quando também são trabalhadoras, não entenda realmente o que é que está em causa.

Adenda: gráfico retirado daqui.

Ulisses em Lisboa, na próxima sexta-feira


Dia 21 de Junho, sexta-feira, no Mercado da Ribeira, em Lisboa, duas conferências promovidas pelo Projecto Ulisses, com a presença de eurodeputados dos Verdes Europeus (entre os quais Rui Tavares, Daniel Cohn-Bendit e Rebecca Harms).

Das 11h00 às 13h30, realiza-se a conferência «30 Anos de Integração Europeia», que se propõe avaliar as consequências da política de austeridade imposta às periferias europeias à luz do processo de integração prosseguido ao longo das últimas três décadas. Mais tarde, entre as 18h30 e as 21h00, uma discussão em torno do Projecto Ulisses, na sua proposta de «Salvar a Europa a partir do Sul», através do relançamento das economias europeias periféricas (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha), no contexto dos desafios colocados pela zona euro.

A entrada é livre e está assegurada a tradução e interpretação para português.

Sugarman



"Porque eles dizem que toda a gente tem de pagar as suas dívidas
E eu expliquei que já as tinha pago a mais"

Cause - Rodriguez

terça-feira, 18 de junho de 2013

A austeridade faz mal à saúde

Observatório revela dados que provam impacto da crise na saúde, ou seja, o impacto negativo da política de austeridade na saúde: das cada vez maiores barreiras pecuniárias no acesso aos serviços de saúde às depressões que aumentam. Temos prestado alguma atenção neste blogue à investigação sobre os determinantes sociais da saúde. Temos cada vez mais evidência empírica para dizer que as utopias de mercado, a austeridade e a injustiça social, fazem muito mal ao corpo e à mente, sem separações artificiais. É claro que, como este livro indica, a crise económica não tem um impacto mecânico na saúde. As respostas de política pública que são dadas nesse contexto, a vontade e capacidade que as sociedades têm de combater a crise, mantendo ou reforçando os dispositivos socioeconómicos, na área dos serviços públicos de saúde e não só, é que são decisivas: o contraste entre a catástrofe grega e a saudável resiliência islandesa é clarificador. É caso para dizer então que a austeridade e a tutela externa matam.

As ideias dominantes entre as submissas elites portuguesas, hoje reafirmadas por Cavaco, também não fazem nada bem. Numa iniciativa da Caritas, que infelizmente deu para o peditório de um empreendedorismo cada vez mais perverso, Cavaco aproveitou para, ao lado de Carlos Costa do Banco que não é de Portugal, mostrar o programa desta gente ao serviço da troika: “criou-se uma cultura de protecionismo social protagonizado pelo Estado, desresponsabilizando de algum modo os cidadãos e menosprezando os valores da cultura cívica, da participação, do voluntariado e do espírito de solidariedade.” Estes protegidos acham sempre que vale tudo para destruir o Estado social, a protecção que pode valer à maioria em áreas fundamentais. Acontece que sabemos que o tal proteccionismo social é o que mais favorece a saúde dos individuos e das comunidades, a sua possibilidade de acção colectiva democrática e cidadã. Os grandes dramas tendem a ocorrer em Estados que não dispõem precisamente de atributos essenciais de soberania democrática, que abdicaram de instrumentos de política para proteger os cidadãos e para pilotar as economias para fora da crise; Estados que permitem assim que se atrofiem as capacidades colectivas de que dependem dimensões decisivas do florescimento individual, onde se inclui a possibilidade de ter uma vida saudável. Também neste contexto, Portugal vê-se cada vez mais grego.

Para lançar a contra-hegemonia

Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas ‘originais’. Significa também e especialmente difundir criticamente verdades já descobertas, socializá-las por assim dizer e fazer com que se tornem em bases de acções vitais, elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral.

Volto a colocar aqui uma das minhas formulações preferidas de um dos meus pensadores preferidos, Antonio Gramsci. Este será o ponto de partida para discutir amanhã o livro mais “gramsciano” publicado entre nós nos últimos tempos (ver post abaixo), uma daquelas bem pensadas acções colectivas no campo das ideias que, para retomar os termos do fundador do PCI, assume que “não é a estrutura económica que determina directamente a acção política, mas a interpretação que dela se faz”. Como já defendi várias vezes noutros lugares, a resolução política de uma brutal crise socioeconómica, como aquela que atravessamos, nunca é evidente e depende sempre das interpretações e das soluções que se tornam hegemónicas nos campos intelectual e político e, logo, factor de mobilização ou de desmobilização cidadã. Este livro, ao desmontar várias ideias do senso comum neoliberal, contribui para a criação do tal bom senso igualitário e democrático, de que falam os organizadores na introdução. As observações críticas ficam para o debate…

Lançamento em Coimbra


Amanhã, 19 de Junho, a partir das 18h30 na Livraria Almedina-Estádio. A apresentação do livro, editado pela Tinta da China e inspirado nas «Conversas do Senso Comum» promovidas pela Cultra, estará a cargo de João Rodrigues (economista, investigador e ladrão de bicicletas), João Figueira (jornalista e professor universitário) e Adriana Bebiano (investigadora e professora universitária). Estão todos convidados.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Renegociar já, mas não como os credores querem

«Só a renegociação, acompanhada de uma moratória, e a reestruturação, com anulação de uma parte do valor da dívida, redução das taxas de juro e alongamento das maturidades, pode reduzir o peso dos juros na despesa pública, evitar o colapso da provisão pública de bens e serviços e libertar recursos para o investimento e a criação de emprego.
Mas a reestruturação de que Portugal e a Grécia precisam não é a dos credores. Aos credores interessa aliviar o fardo para que o "animal" continue a ser capaz de puxar a carroça. Aos povos grego e português interessa alijar a carga para caminhar em frente, sem condições impostas pelos credores.
A renegociação tendente à reestruturação da dívida de que precisamos tem de ser conduzida em nome do interesse nacional, contra o interesse dos grandes credores e salvaguardando os pequenos aforradores. O Estado português tem de tomar a iniciativa e conduzir todo o processo.
Mas o Governo português, o Presidente da República e a maioria dos deputados da Assembleia da República fingem não perceber. Estão sentados à espera que os credores mandem. Em contrapartida, cresce na sociedade a compreensão da necessidade de agir.»

Do excelente artigo do José Castro Caldas no Público de hoje, cuja leitura na íntegra se recomenda vivamente.

Encontra-se em curso a petição «Pobreza não paga a dívida: Renegociação já» (que permite subscrições online), um instrumento da maior relevância para exigir que a Assembleia da República se pronuncie pela abertura urgente de um processo de renegociação e pela criação de uma entidade que acompanhe a auditoria à dívida pública, com participação cidadã qualificada. A discussão desta petição permitirá, adicionalmente, confrontar a narrativa dominante sobre as origens da crise com as suas fraudes, falsidades e fracassos, que se tornam cada vez mais indisfarçáveis.

domingo, 16 de junho de 2013

Fundamentos da economia


Amanhã à tarde no CES, Ricardo Crespo, Alexandre Abreu e eu estaremos a discutir, com outros, o bem comum e o interesse público na economia. O meu ponto de partida para pensar o bem comum e os limites dos mercados será o caso da privatização dos correios, um exemplo de ataque às instituições de que é feita uma comunidade política digna desse nome.

Eles têm mesmo culpa

A recessão deve agora ser mais profunda do que se pensava anteriormente, com consequências negativas para o desemprego. Dada a existente rigidez nominal, este é um aviso do risco elevado de que o ajustamento continuará a ter lugar através de maior contracção económica, em vez de uma melhor resposta da oferta. 

O FMI na sua penosa sétima autoavaliação faz o mesmo de sempre, antes de um hipócrita mea culpa à grega que chegará em breve. O FMI queixa-se de que os salários não descem à velocidade que seria requerida, segundo um bizarro modelo, para que uma misteriosa “oferta” irrompesse dos escombros da austeridade e das reformas regressivas geradoras de quebra da procura e de medo sem fim. Para esta gente, se existe desemprego, por definição, é porque os salários são demasiado elevados. Uma teoria do trabalho como uma batata, já aqui denunciada, e que está feita para não ter de se confrontar com o real.

O FMI, no fundo, queixa-se das pessoas que sempre povoam uma economia, das suas lógicas de reciprocidade, das normas e direitos que ainda sobrevivem e que garantem as cada vez mais pequenas ilhas de civilidade num oceano de selvajaria. O FMI quer, olha a surpresa, continuar a cortar directamente nos salários e pensões públicos e indirectamente nos privados, através do contágio, cada vez mais facilitado pela redução de direitos e aumento de obrigações laborais, ou seja, pelo aumento de direitos e redução de obrigações patronais. A esta tendência, em decisiva aceleração, mas que dura há mais de uma década, chama-se redução da rigidez, o que diz tudo sobre a ideologia desta gente. Esta redução é acompanhada por centenas de milhares de postos de trabalho destruídos, cerca de 450 mil depois da troika, o que diz tudo sobre a validade desta ideologia. Eugénio Rosa tem um gráfico sobre o verdadeiro sucesso de Gaspar e destes seus amigos:


É claro que o outro lado disto é a recessão, a cada vez maior capacidade produtiva instalada por utilizar. Quem quer investir nesta economia do desperdício? Os empresários dizem que não o fazem, porque, vejam lá, as expectativas de vendas são cada vez mais negativas. As grandes crises, tambem induzidas pela utopia de um sistema monetário rigido no quadro de uma economia global, são precedidas, acompanhadas e aprofundadas por vitórias demasiado estrepitosas das facções dominantes do capital nas lutas das classes. Precisamos cada vez mais de ter em linha de conta os problemas colocados por Marx, Keynes e Polanyi, como bem lembrou há uma dúzia de anos Bob Pollin, um dos co-autores do recente e justamente famoso estudo que derrubou um dos pilares da austeridade imposta por Gaspar e pelos seus amigos.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

João Pinto e Castro

Morreu João Pinto e Castro. Perdemos um dos raros economistas que qualificava o debate público nacional. Seguíamos com atenção os seus postes no jugular ou as suas crónicas no Negócios e muitas vezes dialogámos com ele, até porque era difícil encontrar quem escrevesse coisas mais estimulantes nestes meios: fosse sobre os mitos do empreendedorismo ou do euro, sobre a economia pacóvia dominante ou sobre os 12 mil milhões de euros que Gaspar e seus amigos queimaram. A sua última crónica sobre o futuro do capitalismo é representativa de uma reflexão social-democrata original e consistente que vai fazer falta. À sua família e amigos enviamos sentidas condolências.

Adenda: Em sua homenagem, o Le Monde diplomatique - edição portuguesa disponibiliza, na íntegra, um artigo que escreveu na edição de Março de 2010: PIIGS versus FUKD: dilemas do pensamento económico provinciano.

Hoje, no Espaço MOB, em Lisboa



José Vítor Malheiros, jornalista e cronista do Público, apresentará o livro «Não acredite em tudo o que pensa: Mitos do senso comum na era da austeridade», editado pela Tinta da China e que nasceu das «Conversas do Senso Comum», promovidas pela Cultra. É a partir das 21h30, no Espaço MOB (Travessa da Queimada, 33, no Bairro Alto).

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Uma questão de sobrevivência e dignidade


A espiral de desastre em que nos encontramos é agora reconhecida por alguns apoiantes do governo. Um caso notável é Miguel Frasquilho: "Deve ser invertida a quebra da procura interna - nomeadamente o consumo privado - que há dez trimestres consecutivos se regista, sem a qual os incentivos ao investimento acabarão, naturalmente, por ter efeitos limitados" ("Jornal de Negócios", 11-06-2013). Porém, defende apenas a reversão do aumento do IRS em 2013. Como seria de esperar, quando se trata de "incutir expectativas positivas nas famílias", a redução do rendimento disponível através de salários ou pensões pagos pelo Estado não é relevante.

Para estes críticos do Memorando "mal desenhado", a grande oportunidade desta crise reside na transformação do nosso Estado social interclassista num estado mínimo assistencial. Através do co--pagamento dos serviços de saúde, da degradação do ensino público, da redução das pensões e das prestações sociais e de uma reforma tributária regressiva, uma parte importante da classe média será empurrada para o negócio privado pendurado no Estado. No final teremos maus serviços públicos para pobres e remediados e uma sociedade ainda mais fracturada, eventualmente com uma rede de bancos alimentares que se terá tornado um caso de sucesso. Os custos globais com a saúde ou com a administração dos seguros privados serão bem superiores, como mostram as estatísticas dos países que fizeram esta viragem, a mobilidade social ter-se-á reduzido e a pobreza aumentado, mas isso não conta para os governantes, que vão transitar para a administração das empresas beneficiárias da liberalização ou para o sector financeiro.

Este projecto de reengenharia da sociedade portuguesa está agora confrontado com um sério obstáculo. A estratégia alemã de germanização da UEM induziu uma depressão na Grécia, em Portugal e Espanha e graves recessões na Irlanda e na Itália, o que arrastou o conjunto da zona euro para a recessão. Os colaboracionistas, como é o caso de Miguel Frasquilho, imploram que se mude qualquer coisa "para podermos, quanto antes, salvar o projecto do euro e o nosso futuro". Quer dizer, para salvar o projecto de empobrecimento do país e uma zona euro germanizada e supervisionada por uma tecnocracia controlada pela Alemanha. Aqui importa lembrar um ponto crucial: "A anomalia democrática que constitucionaliza regras de política económica e anula qualquer possibilidade de uma 'política conjuntural', ou seja, anula a proposta ao corpo social de políticas económicas opostas, através do jogo das alternâncias eleitorais, essa anomalia deve muito, se não tudo, à idiossincrasia alemã" (F. Lordon, "Pour une monaie commune sans l'Alemagne (ou avec, mais pas à la francfortoise)").

Com o europeísmo ordoliberal num impasse, uma boa parte da elite política portuguesa, à esquerda e à direita, agarra-se à miragem de uma mudança na política económica europeia após as eleições alemãs em Setembro. Ainda lhes falta perceber que o ordoliberalismo faz parte da cultura alemã e não mudará tão cedo. Os sociais-democratas do SPD também acreditam que as políticas de conjuntura não devem ser objecto de escolha democrática. Nem é realista imaginar que, para estimular a Europa em crise, estejam dispostos a voltar atrás no esmagamento salarial instituído por Gerhard Schröder, um dos pilares do sucesso mercantilista da Alemanha e em boa parte causador do endividamento dos PIIGS.

Em suma, não parece viável uma alternativa reformista à reengenharia empobrecedora das periferias europeias, pelo menos em tempo útil. Para evitar a miséria e a submissão do país ao Diktat ordoliberal vai ser preciso criar um projecto político vitorioso que prepare e execute o que tem de ser feito, infelizmente a quente. Não é uma questão de custos e benefícios, é uma questão de sobrevivência e dignidade.

(O meu artigo no jornal i)

A casa ganha sempre


O pós-crise financeira de 2008 tem sido profícuo em escândalos envolvendo a grande banca internacional. Primeiro foi a manipulação da principal taxa de juro de referência dos mercados financeiros (a Libor), depois as acusações de lavagem de dinheiro. Talvez devido à complexidade do que está em causa (distante do dia-a-dia do cidadão comum) e, certamente, devido ao poder destes agentes financeiros, estes escândalos não saem das páginas da imprensa financeira e são resolvidos através de umas chorudas multas, facilmente suportadas pela banca. De resto, tirando o despedimento de alguma da arraia-miúda, ninguém é responsabilizado e nada muda. O cálculo da Libor continua a ser feito da mesma maneira, não?

O último caso é ilustrativo da cortina de silêncio que se abate quando algo emerge. A Bloomberg, numa extensa investigação, denunciou a forma como a grande banca internacional manipula as taxas de referência de câmbios (indexantes para activos financeiros no valor de 4,7 biliões (trillions) de dólares) em seu proveito, através de ordens concertadas de compra e venda de moeda durante a curta janela de tempo utilizada pela Reuters (rival da Bloomberg) no cálculo destas taxas. Este novo escândalo, além de ilustrativo da ficção dos mercados financeiros concorrenciais, realmente dominados por quem tem poder, mostra, mais uma vez, que o problema do sector financeiro não são uns quantos funcionários mal-intencionados. O problema está na arquitectura desta “economia de casino” onde a casa ganha sempre. A manipulação e consequente transferência de riqueza para o sector financeiro são o "novo normal" dos nossos dias. 

Entretanto, fico à espera de ler algo sobre o assunto na imprensa portuguesa.

Destroikar e desconversar

Na semana passada, o FMI veio reconhecer um conjunto de erros no programa de ajustamento à Grécia, ao mesmo tempo que sacudiu a água do capote, responsabilizando a UE. As comadres chatearam-se,  confirmaram-se as verdades, mas ficou tudo na mesma. Entretanto, enquanto na Grécia se louvava o mea culpa do FMI, em Portugal, o Primeiro-Ministro queixava-se da instabilidade gerada pela admissão de erros da troika e o Presidente da República, num momento bem coreografado, veio pedir o abandono do FMI da troika. Segundo Cavaco Silva, a UE está muito preocupada com a coesão e o crescimento económico, enquanto ao FMI só interessaria pela correcção dos desequilíbrios macroeconómicos. Isto, para quem não vê alternativa à troika e ao actual programa de ajustamento, não parece fazer muito sentido, pois não? Então quem assume erros não estaria mais disponível para aligeirar a dose do que todos reconhecem que nos está a matar?

As divergências entre o FMI e a Comissão Europeia/BCE não são de agora. Cavaco tem razão quando diz que o FMI tem mais olhos para os desequilíbrios macroeconómicos, mas efabula a posição da UE (esta, na verdade, está mais focada nas questões do défice e da dívida). No entanto, o que está em curso é uma manobra de diversão. Primeiro culpamos o FMI (até já assumiram a sua incompetência!) e, assim, acabamos por absolver uma UE para a qual continuamos a apelar esperançosos e cheio de pensamento mágico: numa parte da economia far-se-ia austeridade e na outra promover-se-ia o crescimento. Depois, como já está previsto, dispensamos os incompetentes e ficamos nos braços europeus. Grande vitória nacional.

O que acontece é que, de facto, quer seja através das operações do BCE de compra de dívida pública, quer seja através da intervenção do recentemente criado Mecanismo de Estabilidade Financeira (substituto do Fundo Europeu de Estabilização Financeira) com capacidade para comprar dívida pública no mercado primário e secundário, estamos nas vésperas de um futuro pós-troika sem FMI. Quer isto dizer o fim da austeridade? Não, o recurso a qualquer destes mecanismos de apoio financeiro, essenciais no sucesso do "regresso aos mercados", implicará novos memorandos (talvez com outro nome), como está formalmente previsto. O actual Governo de "iniciativa presidencial" procura assim ganhar tempo para continuar a aplicar o seu programa ao mesmo tempo que proclamará vitórias contra moinhos de vento. Plus ça change...

Poder decidir

“Democracia é poder decidir o nosso futuro. Sair do euro não é uma condição suficiente, mas é uma condição necessária, para que isso possa acontecer.” O resto do artigo do Alexandre Abreu e do Nuno Teles, publicado no Le Monde diplomatique - edição portuguesa de Maio, pode ser lido aqui.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Nós e eles

Antes que a sociedade se convença de que o «Estado democrático» é dispensável, que só tira e não dá nada em troca, é altura de pensarmos que a austeridade não é um mero somatório de medidas avulsas; ela actua sobre este ecossistema que nos liga a todos e está a destruir toda a sociedade. Até ao dia em que surgirem medidas que façam os ricos perder o sono, a nossa pergunta perante cada escalada austeritária tem de deixar de ser «isto afecta-me?» e passar a ser «o que fazer para isto não nos afectar?». Dia 27 de Junho há Greve Geral.

Sandra Monteiro, Greve Geral, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Junho de 2013. Entretanto, as intervenções no debate sobre o euro, organizado pelo jornal no passado dia 6 de Junho, no seguimento do dossiê de Maio sobre o tema, podem ser vistas aqui.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Eles e nós

Três quartos da rede dos correios assegurada por entidades externas. Tudo pronto para a privatização dos CTT, incluindo o famoso banco JP Morgan, especialista em intoxicações financeiras. A banca está sempre pronta para prosperar à custa dos poderes públicos. Tudo então está pronto para mais uma machadada nas instituições de que é feita uma comunidade política digna desse nome. Assim se destrói um país. Cavaco, que iniciou esta moda das privatizações sem fim, com os seus espectaculares resultados, só pode apoiar, claro. De resto, e aplicando aqui os termos de Michael Sandel, no seu último e muito recomendável livro sobre os limites morais dos mercados, a privatização de mais um bem social não é apenas um problema de geração de desigualdade no seu acesso, mas também é um problema de corrupção, de subversão dos fins da instituição que o provisiona, de corrosão das normas sociais que lhe dão sentido, da ética dos seus profissionais e das relações laborais que a assegura, da confiança num serviço público fundamental. Os serviços públicos são um momento em que se conjuga a primeira pessoa do plural de que é feita uma comunidade. Se eles conseguirem privatizar os CTT, nós teremos de voltar a nacionalizá-los: esta é que é uma daquelas questões nacionais que tem de merecer o compromisso de uma imensa maioria, para usar um termo muito em voga ontem em Elvas. As verdadeiras questões nacionais são hoje profundamente subversivas ou não estivéssemos sob tutela de fora através das elites cá de dentro.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Crise

Hollande: “A crise na Europa acabou”. Com afirmações destas, e com as apostas políticas que lhes subjazem, será de admirar que, também em França, clown e presidente seja uma das associações na mente de cada vez mais cidadãos? Esta ideia absurda foi defendida por Hollande logo em pleno Japão. O contraste entre a Abenomics, a mobilização dos instrumentos de política – orçamental, monetária ou cambial – por um governo de um Estado soberano e a situação na Zona Euro não podia ser mais gritante: enquanto que o Japão revê crescimento do primeiro trimestre em alta para 4,1%, na Zona Euro o crescimento é sempre revisto em baixa e o desemprego em alta, claro, ao mesmo tempo que o desenvolvimento desigual se aprofunda e a própria França está numa posição cada vez mais subalterna. Hollande ou Seguro, leiam a confrangedora entrevista deste último no Público de sexta-feira e depois releiam o realista poste do Alexandre Abreu escrito antes, são as expressões do triste estado da social-democracia europeia, participante num dos mais desgraçados episódios da história das ideologias: o da sua autodestruição por via de um processo de integração que não cessou e não cessa de promover.

domingo, 9 de junho de 2013

Le débat

[U]ma apreciação compartilhada: a União Europeia e, mais especificamente, a união económica e monetária são dispositivos de poder hostis aos interesses da maioria da população europeia e devem ser designados e combatidos como tais pela esquerda (…) Não dispondo de alavancas institucionais para investir no campo estratégico europeu, os assalariados não influem de maneira alguma na agenda integracionista que não pode senão lhes ser desfavorável. É preciso portanto procurar uma forma de ruptura com a UE o que implica, mecanicamente, vir a uma recentragem – pelo menos temporária – num espaço nacional de definição das políticas económicas e sociais (…) A viragem nacional que implica a ruptura com a Europa é para mim sobretudo uma astúcia da razão internacionalista; um movimento estratégico, não um alinhamento à quimera da independência nacional.
 Esta viragem é imposta pelo carácter dessincronizado dos ritmos da luta das classes nos diferentes países europeus. Esta dessincronização não provém apenas – nem mesmo essencialmente – de heranças históricas distintas mas muito mais do carácter desigual do desenvolvimento capitalista que resulta de combinações produtivas idiossincráticas e alimenta dinâmicas sociais e políticas singulares. 

Excertos da resposta de Cédric Durand, em boa hora traduzida pelo resistir.info, à recensão de Jacques Sapir ao livro por si coordenado e que compila contributos de vários académicos, maioritariamente marxistas, incluindo Lapavitsas ou Kouvelakis, já aqui referidos, sobre a crise europeia e os meios de a superar. As muitas convergências entre Durand e Sapir, que lhe responde aqui, não apagam uma divergência, que me parece transponível, entre as tais astúcias das várias razões mobilizáveis para superar este desastre: a importância da soberania. Creio que Sapir está em terreno firme quando afirma que sem soberania é impossível colocar a questão da legitimidade das instituições e da possibilidade da democracia (a soberania é condição necessária, mas não suficiente, como sublinha repetidas vezes Sapir). A tal independência nacional não é quimérica, caso contrário o próprio projecto de Durand seria inviável. Obviamente que o objectivo de independência à esquerda não se confunde com autarcia, nem com recusa de cooperação internacional, muito pelo contrário. A questão social e a questão da soberania democrática têm então de ser articuladas politicamente e se o forem as hipóteses de começar a enfrentar a grande derrota em curso aumentam imenso. Mais um útil debate para robustecer intelectualmente a necessária convergência política entre as esquerdas que não desistiram.

sábado, 8 de junho de 2013

Tapar o fracasso com a chuva

 «O investimento no primeiro trimestre deste ano é adversamente afectado pelas condições meteorológicas nos primeiros três meses do ano, que prejudicaram a actividade da construção» (Vítor Gaspar, ontem, na Assembleia da República, durante o debate do Orçamento Rectificativo).

Uma vez mais a realidade encarrega-se de desmentir de imediato o ministro das Finanças, cuja desfaçatez parece não conhecer limites. De acordo com dados recentes do «Inquérito Qualitativo de Conjuntura à Construção e Obras Públicas» (realizado mensalmente pelo INE junto dos empresários do sector), a insuficiência da procura é o obstáculo mais referido pelos inquiridos (85%) no primeiro trimestre de 2013, seguindo-se a deterioração das perspectivas de venda (58%) e a dificuldade na obtenção de crédito bancário (54%).

As famosas condições climatéricas desfavoráveis, que segundo Gaspar teriam sido responsáveis pela quebra do investimento e pela contracção da economia nos primeiros meses do ano, surgem na cauda da tabela (sendo referidas por apenas 5% dos inquiridos), antecedendo a dificuldade em recrutar pessoal qualificado (obstáculo assinalado por apenas 4% dos empresários do sector). Este último dado demonstra também, aliás, uma outra fraude, recorrente, dos acólitos da austeridade: pelos vistos não é difícil convencer desempregados a deixar as suas «zonas de conforto», supostamente proporcionadas pelo subsídio de desemprego e demais apoios sociais.