A espiral de desastre em que nos encontramos é agora reconhecida por alguns apoiantes do governo. Um caso notável é Miguel Frasquilho: "Deve ser invertida a quebra da procura interna - nomeadamente o consumo privado - que há dez trimestres consecutivos se regista, sem a qual os incentivos ao investimento acabarão, naturalmente, por ter efeitos limitados" ("Jornal de Negócios", 11-06-2013). Porém, defende apenas a reversão do aumento do IRS em 2013. Como seria de esperar, quando se trata de "incutir expectativas positivas nas famílias", a redução do rendimento disponível através de salários ou pensões pagos pelo Estado não é relevante.Para estes críticos do Memorando "mal desenhado", a grande oportunidade desta crise reside na transformação do nosso Estado social interclassista num estado mínimo assistencial. Através do co--pagamento dos serviços de saúde, da degradação do ensino público, da redução das pensões e das prestações sociais e de uma reforma tributária regressiva, uma parte importante da classe média será empurrada para o negócio privado pendurado no Estado. No final teremos maus serviços públicos para pobres e remediados e uma sociedade ainda mais fracturada, eventualmente com uma rede de bancos alimentares que se terá tornado um caso de sucesso. Os custos globais com a saúde ou com a administração dos seguros privados serão bem superiores, como mostram as estatísticas dos países que fizeram esta viragem, a mobilidade social ter-se-á reduzido e a pobreza aumentado, mas isso não conta para os governantes, que vão transitar para a administração das empresas beneficiárias da liberalização ou para o sector financeiro.
Este projecto de reengenharia da sociedade portuguesa está agora confrontado com um sério obstáculo. A estratégia alemã de germanização da UEM induziu uma depressão na Grécia, em Portugal e Espanha e graves recessões na Irlanda e na Itália, o que arrastou o conjunto da zona euro para a recessão. Os colaboracionistas, como é o caso de Miguel Frasquilho, imploram que se mude qualquer coisa "para podermos, quanto antes, salvar o projecto do euro e o nosso futuro". Quer dizer, para salvar o projecto de empobrecimento do país e uma zona euro germanizada e supervisionada por uma tecnocracia controlada pela Alemanha. Aqui importa lembrar um ponto crucial: "A anomalia democrática que constitucionaliza regras de política económica e anula qualquer possibilidade de uma 'política conjuntural', ou seja, anula a proposta ao corpo social de políticas económicas opostas, através do jogo das alternâncias eleitorais, essa anomalia deve muito, se não tudo, à idiossincrasia alemã" (F. Lordon, "Pour une monaie commune sans l'Alemagne (ou avec, mais pas à la francfortoise)").
Com o europeísmo ordoliberal num impasse, uma boa parte da elite política portuguesa, à esquerda e à direita, agarra-se à miragem de uma mudança na política económica europeia após as eleições alemãs em Setembro. Ainda lhes falta perceber que o ordoliberalismo faz parte da cultura alemã e não mudará tão cedo. Os sociais-democratas do SPD também acreditam que as políticas de conjuntura não devem ser objecto de escolha democrática. Nem é realista imaginar que, para estimular a Europa em crise, estejam dispostos a voltar atrás no esmagamento salarial instituído por Gerhard Schröder, um dos pilares do sucesso mercantilista da Alemanha e em boa parte causador do endividamento dos PIIGS.
Em suma, não parece viável uma alternativa reformista à reengenharia empobrecedora das periferias europeias, pelo menos em tempo útil. Para evitar a miséria e a submissão do país ao Diktat ordoliberal vai ser preciso criar um projecto político vitorioso que prepare e execute o que tem de ser feito, infelizmente a quente. Não é uma questão de custos e benefícios, é uma questão de sobrevivência e dignidade.
(O meu artigo no jornal i)
O que surpreende, é o caminho de auto-mutilação na Soberania, que parte da Esquerda, persiste em prosseguir.
ResponderEliminarSó um erro ( sistemático ! ), na análise da estratégia a adoptar,pode justificar uma posição tão irredutível, nas mentes responsáveis.