sábado, 8 de março de 2025

Dia da Internacional


Em articulação com as organizações políticas e sindicais de classe do proletariado dos seus respectivos países, as mulheres socialistas de todos os países devem assinalar anualmente o Dia da Mulher, com o propósito principal de obter o direito de voto. Esta reivindicação deve ser conjugada com a questão da mulher na sua totalidade, de acordo com os preceitos socialistas. O Dia da Mulher deve ter uma natureza internacional e deve ser cuidadosamente preparado.

Como já é tradição neste blogue, no dia 8 de março: a socialista alemã Luise Zietz fazia a proposta de um dia internacional da mulher trabalhadora na conferência das mulheres socialistas da Segunda Internacional presidida por Clara Zetkin, que seria fundadora do partido comunista alemão a seguir à Guerra. 

É então preciso nunca esquecer as origens deste dia internacional: era, é e será sobre lutas de classes, assim no plural. A luta pela democracia, contra as cláusulas de exclusão formais e informais do liberalismo realmente existente, é realmente parte da luta socialista pela igualdade substantiva, do salário à reprodução social, dos direitos políticos aos sociais, da empresa à casa.

sexta-feira, 7 de março de 2025

A corrida às armas é um bom negócio?

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“Estamos numa era de rearmamento”. Foi desta forma que a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, apresentou o novo plano para aumentar a despesa militar na Europa. No total, a Comissão quer alocar 800 mil milhões de euros à indústria do armamento, com o montante a ser repartido entre os orçamentos nacionais dos países, o orçamento comunitário e o Banco Europeu de Investimentos.

O plano é justificado com a “ameaça existencial” enfrentada pela União Europeia (UE) face à escalada de tensão com outras regiões e há quem veja no investimento em armamento uma oportunidade para relançar a economia europeia. No entanto, há motivos para pensar que a corrida às armas traz mais problemas do que os que pretende resolver


Passou a haver dinheiro, se for para armas?

O anúncio da Comissão Europeia é o mais recente passo numa corrida às armas em que a Europa já estava envolvida. Na última década, a despesa militar dos países da UE que pertencem à NATO aumentou em 50%. Para viabilizar o novo esforço financeiro, a Comissão Europeia avança com três eixos:

  • Disponibilizar €150 mil milhões em empréstimos aos Estados que pretendam investir em mísseis, munições, sistemas de defesa aérea, drones ou outros equipamentos militares;

  • Abrir a possibilidade de que os países gastem mais do que aquilo que seria permitido pelas regras orçamentais, desde que o façam em armamento. A proposta da Comissão é que este tipo de despesa seja excluído do cálculo do défice de cada país até que os novos gastos atinjam 1,5% do PIB respetivo, o que permitiria aumentar a despesa militar total em €650 mil milhões;

  • Permitir que os países redirecionem parte dos fundos estruturais que recebem do orçamento da UE para a indústria militar. A ideia é facilitar a canalização de fundos europeus, teoricamente destinados a promover a coesão e o desenvolvimento regional, para a produção de armas e munições.

É importante ter em conta que esta mudança de posição surge depois de décadas de obsessão com o controlo do défice e da dívida pública. Desde a entrada em vigor das regras orçamentais, os países europeus foram levados a comprimir o investimento público em áreas como a saúde ou a educação sob o pretexto de garantir a sustentabilidade das contas públicas.

Em Portugal, o sub-investimento tem degradado os serviços públicos e constituído um dos principais obstáculos ao desenvolvimento da economia. O investimento público “líquido”, que representa o saldo entre a formação bruta de capital fixo (isto é, o valor investido em obras públicas, equipamentos, I&D, software, etc.) e o consumo de capital fixo (que mede o que se vai perdendo com o desgaste dessas obras públicas e equipamentos), tornou-se negativo neste período. Por outras palavras, o que o Estado investe nem chega para compensar o desgaste das infraestruturas.

Fonte: Eurostat

Agora, a preocupação com as contas públicas é abandonada para reforçar de forma substancial a despesa em armamento, enquanto os limites se mantêm para todas as outras categorias de despesa dos governos. Se esta opção é claramente discutível do ponto de vista político, o caso não melhora quando olhamos para o plano económico.


Investir em armas compensa?

É possível encontrar argumentos económicos a favor e contra o aumento da despesa militar: por um lado, um aumento da despesa pública cria procura adicional e pode impulsionar o investimento e a inovação nos setores a que essa procura se dirige (algo que é conhecido como o efeito multiplicador); por outro lado, a canalização de recursos para a defesa limita a capacidade de investimento noutras áreas que podem ser mais produtivas e benéficas para a sociedade.

O impacto deste tipo de despesa depende de onde esta é efetuada, pelo que é preciso perceber onde são produzidas as armas. No que diz respeito à indústria do armamento, há um país que se destaca claramente do resto: os EUA. Nos últimos anos, a indústria do armamento norte-americana reforçou a sua posição dominante nas exportações de armas e tornou-se responsável por quase metade das transações internacionais.

Fonte: Politico

Entre 2019 e 2023, mais de metade das importações de armas da Europa foram provenientes dos EUA, de acordo com o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI). E não há sinais de inversão desta tendência. De acordo com Pieter Wezeman, investigador do SIPRI, “prevê-se que o volume de armas transferido dos EUA para os países europeus aumente significativamente nos próximos anos”. Mesmo que alguns países estejam a investir na sua indústria militar doméstica, uma parte dos fundos terá como destino o exterior. E se olharmos para dentro da Europa, o setor é dominado por um pequeno número de grandes empresas concentradas em quatro países - Alemanha, França, Espanha e Itália. Os benefícios da “era do rearmamento” não serão iguais para todos.

Mesmo admitindo que a nova procura de armamento recai maioritariamente sobre empresas europeias, há outros problemas que se colocam. Com o modelo de intervenção adotado pelas instituições europeias - classificado pela economista Daniela Gabor classifica como “de-risking” -, em que os Estados assumem boa parte dos custos e do risco do investimento para garantir os lucros privados, é dado enorme poder às grandes empresas do armamento, que têm um interesse material na escalada de conflitos.

Além disso, ao contrário do que acontece com outros setores, o investimento na indústria do armamento vai favorecer inovações tecnológicas que tenham aplicação militar, o que nem sempre corresponde a inovação socialmente útil. O facto de, historicamente, o investimento militar ter estado na origem de inovações importantes para a sociedade, como o GPS ou a internet, tem a ver com ter sido um setor em que o Estado investiu de forma significativa com base em objetivos que eram considerados prioritários. Essa lógica pode ser replicada noutras áreas, como a produção de energias renováveis ou a preservação dos recursos naturais, dependendo do que se considera prioritário.


Armas a troco de quê?

Na UE, o combate às alterações climáticas já está a ser relegado para um plano secundário face à urgência do rearmamento. Esta opção tem consequências não apenas para o ambiente, mas para a própria economia. A dependência energética da UE, que importa praticamente todo o petróleo e a maioria do gás natural de que necessita, é um fator de vulnerabilidade económica. A invasão da Ucrânia por parte da Rússia, que fez disparar os custos da energia, provocou um aumento do custo de vida para a maioria das pessoas e atingiu de forma significativa o setor industrial, o que ajuda a explicar o encerramento de fábricas e a crise da economia europeia.

Este contexto sugere que há bons motivos para priorizar o investimento na produção e armazenamento de energias renováveis e em investigação para a reconversão energética da indústria, com o objetivo de reforçar a autonomia energética e reduzir a exposição a choques de preços provenientes do exterior, além de contribuir para o combate às alterações climáticas - o principal risco que enfrentamos enquanto sociedade. Com a corrida às armas, estamos a concentrar os nossos esforços na batalha errada.

Embora a Comissão Europeia tenha feito tudo para incentivar a despesa em armamento, isso não significa que o tenha feito sem contrapartidas. Fontes internas citadas pelo Público admitem que “a prazo, estas despesas terão de ser acomodadas nas contas nacionais, ou através de um aumento de impostos, ou de uma redução na despesa pública”. Não é difícil antever que o reforço extraordinário dos gastos em armamento terá como consequência uma contenção da despesa em outras áreas. Entre os países ocidentais, os que dedicam uma fatia maior do orçamento à indústria militar tendem a gastar menos em proteção social.

O plano da Comissão Europeia tem um mérito: mostrar que, quando existem objetivos que se consideram prioritários para a sociedade, as medidas necessárias para os atingir não podem ficar dependentes de regras cegas de controlo estrito do défice orçamental. O problema fundamental é que as instituições europeias só se mostram dispostas a dar este passo para o rearmamento, depois de décadas em que negaram essa possibilidade para investir em escolas, hospitais, transportes públicos ou habitação acessível, além de terem forçado os países mais vulneráveis a efetuar cortes nestas áreas.

A escalada das tensões entre os países ocorre num contexto de ascensão da extrema-direita nos EUA e na Europa. Décadas de austeridade, erosão dos serviços públicos e compressão dos salários e do poder de compra da maioria das pessoas alimentaram o ressentimento e deram um contributo importante para a emergência de forças políticas reacionárias. Com necessidades de investimento evidentes para reforçar os serviços públicos e promover a transição energética, uma nova vaga de cortes no investimento público e no Estado Social em nome do rearmamento só vai acentuar os problemas.


Contra o rearmamento. Financiem-se os serviços públicos e não a guerra.

“Vamos lá, senhoras e senhores. Por favor, compreendam uma coisa básica. A ideia da invasão da Rússia era manter a NATO fora da Ucrânia. E o que é a NATO, na verdade? É o exército dos EUA, com os seus mísseis, os seus destacamentos da CIA, e tudo o resto. O objetivo da Rússia era manter os EUA afastados da sua fronteira. Porque é que a Rússia está tão interessada nisto? Se a China ou a Rússia decidissem instalar uma base militar no Rio Grande ou na fronteira canadiana, os Estados Unidos não só se passariam como entrariam em guerra em cerca de dez minutos. Quando a União Soviética tentou isto em Cuba em 1962, o mundo quase acabou num Armagedão nuclear”, in transcrição editada do discurso de Jeffrey Sachs no Parlamento Europeu, a 19 de fevereiro de 2025, sobre a UE, a guerra por procuração da NATO na Ucrânia e o genocídio de Israel na Palestina. 

Como dizíamos a 4 de março de 2022, a invasão da Ucrânia pode mesmo ser condenada sem legitimar o imperialismo dos EUA e da UE. 

De resto, o que não falta são intelectuais, políticos, professores e diplomatas que, a seu tempo, avisaram do resultado provável da expansão da NATO para leste e que a desaconselharam. 

No momento histórico em que a Comissão Europeia, imparável num duplo processo de açambarcamento de competências que os tratados não lhe outorgam e de integração neoliberal furtiva, insiste em enterrar a União Europeia numa guerra por procuração que perdeu o mandante, que ninguém pode ganhar e que os europeus a quem foi perguntado não desejam, não vejo nada politicamente tão importante como reafirmar a necessidade de enfrentar os belicistas e a sua guerra de classes. 


Na opinião publicada, enxames de colunistas bem longe da linha da frente e melhor instalados no conforto que o sistema lhes proporciona, asseguram-nos que não há alternativa ao rearmamento.

À direita, por exemplo, sem qualquer surpresa, é-nos garantido que a “Europa deve reduzir o seu Estado-providência para construir um Estado de guerra”. 

À esquerda, para outro exemplo, acena-se com Trump, Putin e Musk e, numa narrativa que – missão impossível - apenas se mantém íntegra se soterrar Biden nos confins do esquecimento, apela-se, pia e inconsequentemente, a um rearmamento que não destrua o que “sobra do Estado Social”. 


É isto que nos vendem como comentário sensato. Isto e o lunático desbragamento militar atómico dos verdes com bombas.  

Nuances de colunistas à parte, a guerra à despesa social para financiar o rearmamento é a verdadeira guerra que a retórica militarista esconde; a guerra que o capital, enredado na armadilha da austeridade, impõe ao trabalho

Se a corrida armamentista revelou uma vez mais quão falaciosa é a ideia de não haver dinheiro, uma espécie bastarda de Keynesianismo de guerra circunscrito a despesas militares não é solução, mas problema. 

A esquerda que não alinha com o neoliberalismo e que defende os direitos de quem trabalha não aceita a falsa narrativa segundo a qual o rearmamento é necessário. 

Se há dinheiro, e há, esse dinheiro deve ser investido em pão, saúde, habitação, educação e ambiente. É isto que gera a paz. A manteiga e não os canhões que Trump nos quer impingir e que as lideranças europeias, vassalos despeitados, lhe querem comprar.

quinta-feira, 6 de março de 2025

Colóquio A Revolução e a Economia, 15/03 (sábado), ISEG (Lisboa)



Até que ponto e de que forma é que a irrupção revolucionária de 25 de Abril de 1974 foi consequência do esgotamento do modelo económico do Estado Novo? Numa altura em que as leituras revisionistas sobre esse modelo ganham fulgor, que balanço devemos fazer das contradições e bloqueios que caracterizavam a sociedade e economia portuguesas nas vésperas da Revolução? Que novas experiências de organização económica foram ensaiadas nas fábricas e nos campos no período revolucionário? Que visões e modelos de sociedade é que essas experiências procuravam concretizar e quais os limites e desafios que enfrentaram? Como, com que atores e com que consequências teve lugar a transição liberal na ressaca da Revolução?

Cinquenta anos volvidos sobre o período revolucionário desencadeado pelo 25 de Abril de 1974, o Abril é Agora e o CEsA - Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento promovem um colóquio para analisar a Revolução de Abril nas suas relações com a economia, incluindo ao nível da política económica e da economia política. Ao longo de um dia de comunicações e debates, pretendemos discutir os antecedentes da Revolução, o processo revolucionário propriamente dito e o legado da experiência revolucionária em termos daquilo que foi conquistado, aquilo que permaneceu e aquilo que foi desmantelado.

No ISEG, em Lisboa, a campanha Abril é agora reúne historiadores, economistas e outros especialistas no dia 15 de março para debater estas e outras questões de forma rigorosa e tomando partido, como deve fazer toda a boa ciência social. Estão todas e todos convidados a juntar-se a nós para este evento.

Inscrição livre e gratuita, mas obrigatória, aqui. 

quarta-feira, 5 de março de 2025

Censurar o desgoverno

 

Naturalmente, o Governo, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, veio logo aplaudir o perigoso impulso belicista da Comissão Europeia, o negócio estrangeiro tão promíscuo, o novo pretexto para erodir ainda mais as funções sociais do Estado. Entretanto, a arte de Peter Kennard ajuda a sintetizar muitas palavras de merecida censura a este desgoverno.

terça-feira, 4 de março de 2025

Censurar o belicismo


A avaliar pelas sondagens na Alemanha e na França, os serviços de propaganda da Comissão Europeia vão ter imensas dificuldades em convencer os cidadãos dos países da UE de que a corrida armamentista serve outra coisa que não as indústrias da morte e a guerra. 

Há que investir no medo, sempre no medo, no medo dos de baixo, porque os de cima estão demasiado seguros. 

Creio que a maioria compreende a acrescida insegurança social e geopolítica que tal desperdício representa, mas isso não dispensa um poderoso movimento pela paz. 

É claro que a Comissão Europeia, a mesma que apoia o genocídio perpetrado por Israel na Palestina, pode contar com uma falange de intelectuais para justificar a necessidade de sacrificar os Estados sociais e o investimento socialmente necessário para transferir 800 mil milhões para os bolsos da mais lucrativa e opaca das indústrias capitalistas. 

É para isto que existem verdes com armas, em plena crise climática; ou social-democratas com armas, em plena crise social. Fim do mundo, fim do mês, a mesma luta, como diz um slogan que ganha sempre novos sentidos.

Montenegro também já tinha dito que era favorável a tal desperdício: «Os próximos anos serão de acréscimo de investimento em segurança e defesa (…) Não há como evitar». Imaginem as promiscuidades, as oportunidades, que tais parcerias público-privadas vão gerar.

A UE precisa de muito mais do que gastar em armas

Os mesmos que até há pouco defendiam a disciplina orçamental acima de tudo, defendem agora que o cumprimento das regras pode ser posto de lado – desde que seja para gastar em armamento.

O paradoxo é evidente. Se os constrangimentos financeiros eram tão intransponíveis que não permitiam investimentos fundamentais para a coesão social, para a modernização da economia ou para a transição energética, como se justifica que agora haja margem para financiar um aumento substancial da despesa militar? Das duas, uma: ou os argumentos sobre a insustentabilidade das finanças públicas europeias foram um pretexto para impor um modelo de sociedade, ou há quem acredite que gastar em armas faz bem às contas públicas.

A situação actual vai revelando aquilo que já se suspeitava: os limites orçamentais europeus não são neutros nem tecnicamente inevitáveis. São o resultado de escolhas políticas que determinam que certos tipos de despesa são indesejáveis, enquanto outros podem ser tolerados, independentemente do impacto que tenham na estabilidade financeira da zona euro. A ironia é que, ao longo das últimas décadas, muitos dos investimentos adiados ou sacrificados em nome da disciplina orçamental foram precisamente aqueles que poderiam ter tornado a Europa mais capaz de lidar com alguns dos problemas que agora enfrenta.

O resto do meu texto pode ser lido no Público

Quinta-feira, em Lisboa


Considerando que a questão da habitação constitui «um fator de reprodução das desigualdades sociais, que acentua os determinantes de classe social, idade, género, nacionalidade ou etnia», o estudo identifica «um mercado de arrendamento tripartido» na Área Metropolitana de Lisboa, do qual faz parte um segmento liberalizado, «que se dirige sobretudo a uma população em idade ativa que enfrenta uma elevada sobrecarga com os custos habitacionais e instabilidade contratual», um segmento protegido, mas que «concentra más condições de habitabilidade, albergando uma população inquilina sem capacidade financeira para transitar para o mercado liberalizado» e um segmento informal, que «acolhe uma população que acumula precariedade laboral, habitacional e de cidadania».

O lançamento do nº 21 dos Cadernos do Observatório sobre Crises e Alternativas do CES, sobre «O Arrendamento Habitacional na AML: um mercado segmentado, inacessível e inseguro», da autoria de Ana Cordeiro Santos, Raquel Ribeiro, Rita Silva e Carlotta Monini, tem lugar na próxima quinta-feira, 6 de março, no Auditório da Biblioteca Nacional, em Lisboa, a partir das 17h00. Juntamente com Ana Drago, participarei nos comentários ao estudo, na sequência da sua apresentação. A entrada é livre, apareçam.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Qual é o custo de ter o verão no ano todo?

Texto disponível no substack (de acesso livre)

Em 2025, o verão parece ter chegado mais cedo à Índia. As previsões meteorológicas apontam para que o mês de março seja o mais quente de que há registo no país. É uma tendência que se tem verificado nos últimos anos: não só o calor é cada vez mais intenso - no verão do ano passado, as temperaturas em Nova Delhi atingiram os 50ºC, provocando enormes dificuldades às pessoas -, como as ondas de calor começam mais cedo no ano.

A onda de calor precoce vem na sequência de um inverno mais seco do que o comum. Entre janeiro e fevereiro, as regiões de Gujarat e Goa tiveram um défice de precipitação de 100% - por outras palavras, não houve chuvas neste período. Maharashtra teve um défice de 99% e houve muito pouca chuva noutras regiões. A maioria dos cientistas reconhece o papel das alterações climáticas neste processo. Um especialista citado pelo jornal britânico Independent explica que “o aquecimento global afetou a precipitação na Índia durante o inverno. Os verões têm-se alargado e a época de inverno tem-se reduzido, com os padrões de precipitação erráticos a ter impacto nos perfis de temperatura no país”.

As temperaturas anormalmente elevadas para esta altura colocam riscos para a produção agrícola, em especial no caso do trigo. A Índia, que é o segundo maior produtor de trigo do mundo, já tem tido problemas com as colheitas nos últimos anos devido às ondas de calor que afetam o norte e o centro do país, onde se concentra a produção.

As previsões para este ano não são animadoras e o impacto das colheitas mais fracas já se faz sentir: os preços do trigo atingiram valores recorde neste mês devido aos constrangimentos da oferta. A subida dos preços traduz-se num aumento do custo de vida para a maioria.

Não é uma tendência nova. Nos últimos anos, a Índia tem registado níveis elevados de inflação dos alimentos, em boa medida devido ao impacto das alterações climáticas. Além das colheitas de trigo, as produções de açúcar e de tomate também foram afetadas pelo clima, aumentando o custo da alimentação e acentuando tensões sociais. Esta tendência é especialmente preocupante num país que tem um quarto da população subnutrida de todo o mundo e onde 190 milhões de pessoas passam fome.

Os fenómenos meteorológicos extremos (como as ondas de calor, secas prolongadas, incêndios ou cheias), que têm sido amplificados pelas alterações climáticas, estão a afetar a produção agrícola e, com isso, os preços que pagamos pelos produtos. É uma parte importante da explicação para o aumento dos custos do café ou do chocolate, aqui discutidos recentemente.

Uma análise publicada no ano passado pelo banco central da Índia alerta para os riscos que as alterações climáticas colocam para a inflação dos produtos alimentares. A subida média dos preços dos alimentos passou de 2,9% entre 2016 e 2020 para 6,3% nos anos mais recentes. De acordo com os autores, “um fator distintivo determinante para esta diferença significativa tem sido a incidência de múltiplos choques da oferta simultâneos devido a eventos climáticos”.

E os impactos não se resumem à Índia. As fracas colheitas levaram o governo a impôr restrições às exportações de trigo ou arroz não-basmati. Como a Índia é um dos principais produtores mundiais, as restrições afetam o acesso a alimentos e o custo de vida em muitos outros países, sobretudo em África e na Ásia. Por sua vez, a disrupção na produção de açúcar repercutiu-se num aumento dos preços das bolachas e outros doces a nível mundial.

Embora os problemas sejam mais acentuados nos países mais pobres, esta está longe de ser uma realidade distante. Este tipo de choques tem-se tornado mais frequente um pouco por todo o mundo devido às alterações climáticas. Um estudo publicado por investigadores do Banco Central Europeu (BCE) concluiu que, em 2022, as temperaturas-recorde registadas no verão aumentaram a inflação dos alimentos entre 0,43 a 0,93 pontos percentuais na Europa. Com o aquecimento projetado para o continente nos próximos anos, poderá haver um aumento da taxa de inflação dos alimentos de até 3,2 pontos percentuais, o que levaria a uma subida de até 1,2 pontos percentuais na taxa de inflação total, aumentando o custo de vida.

Este fenómeno pode ser descrito como “shockflation” – inflação provocada por choques que afetam a produção (e os preços) em setores específicos e depois se repercutem no resto das atividades económicas que dependem destes. Com o aquecimento global, é provável que este tipo de choques se torne mais frequente no futuro, sendo que a pressão sobre os preços é amplificada pelo poder das grandes empresas para proteger (ou aumentar) as margens de lucro.

Aumentar as taxas de juro para combater a inflação não ajuda a resolver nenhum destes problemas. Uma das alternativas que têm sido propostas é a criação de stocks de reserva de bens alimentares e matérias-primas à escala internacional, que permitem aos países estabilizar a oferta e evitar oscilações excessivas dos preços.

A Índia possui uma reserva de trigo e tem utilizado essa reserva nos últimos anos. Para compensar a quebra das colheitas, as autoridades aumentaram o volume de trigo vendido aos compradores (como produtores de farinha ou de bolachas), com o objetivo de reforçar a oferta e conter a pressão sobre os preços. No entanto, no ano passado, as reservas de trigo atingiram o valor mais baixo desde 2008. Se as colheitas não recuperarem, esta estratégia tem limites.

Face a estes constrangimentos, é cada vez mais difícil justificar adiar o investimento em medidas de adaptação às alterações climáticas. É necessária uma discussão mais abrangente sobre a transformação estrutural dos sistemas de produção e distribuição de bens essenciais, sem ceder a teses catastrofistas que asseguram que não há soluções. Como argumenta o economista James Meadway, “à medida que a crise de adaptação [às alterações climáticas] se acentua, é expectável que sejamos confrontados com questões mais determinantes: sobre como produzimos o que comemos, quem o produz e como deveria ser distribuído de forma justa”. O preço a pagar pela inércia é demasiado alto.

Este texto também está disponível no substack. Se gostarem, podem aceder e subscrever de forma gratuita.

domingo, 2 de março de 2025

Censurar o neoliberalismo


Confirma-se que Luís Montenegro é um videirinho, para usar a linguagem técnica da ciência política. É a última e bem sórdida encarnação da subordinação do poder político democrático ao poder económico, ao arrepio da Constituição. 

Isto não é só defeito, é também, e sobretudo, feitio de uma política que substituiu a economia mista, prevista na Constituição, por uma economia neoliberal, através de privatizações e de liberalizações sem fim, de erosões sem fim da base material da autoridade do Estado democrático. 

Sim, esta política e os seus cada vez mais venais executantes merecem censura.