Como é público, o orçamento de Estado vai ser entregue no parlamento no próximo dia 10. A sua votação, contudo, só acontecerá no fim do mês.
Este calendário significa que, quando a Comissão Europeia, do alto da sua soberba generosidade, decide, como fez ontem, adiar para 13 de outubro e estender meia dúzia de dias o prazo que dá ao governo para este se comprometer com um valor máximo de despesa pública que necessariamente acate o limite que aquela instituição impôs, unilateral e previamente, ao país (e que continuamos sem saber qual é e como foi calculado), o que está de facto a fazer é, diria, a exigir que o simulacro de discussão orçamental a que temos assistido dê lugar ao logro em que consistirá votar no parlamento de Portugal um orçamento com o qual o país foi previamente comprometido perante entidades externas.
Partilhada a ideia acima com um amigo de cuja capacidade analítica disponho sempre que posso, partilhei também as minhas interrogações.
O que acontece se o parlamento aprovar, como é prerrogativa de um parlamento soberano, uma despesa superior ao limite decidido pela Comissão?
Os protagonistas deste simulacro estão a atuar de acordo com o seu dever de defender a legalidade constitucional, a integridade nacional, a transparência do processo político?
Àquelas questões, o meu amigo, usando da síntese de que é capaz, simplesmente, respondeu: “os atores deste simulacro não querem sair do euro”.
Dá-me ideia de que o meu amigo, como acontece muitas vezes nas nossas conversas, tem razão.
Fico, contudo, com algumas questões só para mim dado que, provavelmente, já lhas coloquei vezes demais.
Sendo, a meu ver, certo que os protagonistas deste simulacro de discussão e logro de decisão soberana detêm a legitimidade política que uma democracia pode conferir, pergunto-me se a esmagadora maioria do povo que aqui vive e trabalha tem consciência desta transferência de poderes para o exterior, desta federalização furtiva que deixa o país sem política orçamental e o vincula de forma subordinada a uma entidade externa que também não a possui.
No período 2011-2014 o país foi obrigado a viver uma reestruturação brutal, assente na feroz repressão da procura interna, que acentuou as vulnerabilidades da economia portuguesa, tornando-a dependente de um turismo em claro excesso que cria problemas ambientais e sociais, disneyfica as cidades e bloqueia o crescimento da produtividade.
Uma transformação externamente imposta que amputou a capacidade do Estado para desempenhar as funções constitucionais a que está a obrigado, da proteção social à administração interna.
Um ‘ajustamento’ que só muito parcialmente foi revertido pelos governos da geringonça e que, de modo regressivo e significativo, fez recuar a parcela de riqueza que cabe a quem trabalha.
Uma mudança conforme a um certo capitalismo, que nega o direito à habitação a quem tem de a disputar com turistas, afluentes reformados e transumantes ditos digitais com direito a benesses fiscais e se vê confrontado com escassez quase total de habitação pública.
Uma mercadorização desenfreada que nada poupou exceto banqueiros ociosos e dependentes de benesses públicas.
No país onde a despesa pública total em percentagem do PIB é 7,7 pontos percentuais inferior à média da zona euro, o SNS é deixado a vegetar entre a vida e morte.
No período que se segue é-nos imposto que continuemos assim e dizem-nos que agora só temos de ‘ajustar’ mais um bocadinho.
Recordam-se todos aqueles que, no extremo-centro, vendem, interessadamente, táticas de negociação orçamental não polarizadoras e anti-bulgarização que, entre o último ajustamento e o que se segue, entraram 50 deputados de extrema direita na parlamento nacional.
“[E]stas regras, com as quais os países europeus se vão comprometer nos próximos anos, impedem o investimento público necessário para relançar a economia europeia” diz-nos o mesmo influente think tank que também afiança que “as novas regras são muito melhores do que as anteriores”. Melhor ilustração de dissonância cognitiva não se obtém com facilidade.
“Prosseguimos uma estratégia deliberada para tentar diminuir os custos salariais uns em relação aos outros, combinando isso com uma política orçamental pró-cíclica [de austeridade], o que teve como efeito líquido enfraquecer a nossa procura interna e minar o nosso modelo social” admitia, em Abril passado, apesar das suas pesadas responsabilidades neste assunto, Mario Draghi.
“Draghi apela a um aumento do investimento, mas os governos da UE estão fixados na consolidação orçamental, que, se for implementada, agravará o défice de crescimento” diz-nos Tooze. É isto que nos ensinou o período anterior de austeridade. É isto que sustenta a teoria económica: “[e]m média, as consolidações orçamentais não reduzem os rácios da dívida em relação ao PIB”.
Encerro, pois, este texto com uma última pergunta que é, sobretudo, uma perplexidade.
Compreende-se bem que a direita se sinta confortável quando lhe é oferecida de bandeja a proscrição liminar de qualquer política económica de inclinação meramente keynesiana, mas como pode uma certa esquerda que ainda se reclama de alguma social-democracia rejubilar (e de forma tão despropositadamente narcisista) com a reforma do quadro de governação económica que nos trouxe aqui?
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