Lembro-me regularmente do historiador José Medeiros Ferreira (1942-2014), um antifascista que foi dos mais argutos e críticos representantes da elite nacional na democracia. Para tomar o pulso ao declínio desta elite, é só comparar este socialista com os pigmeus intelectuais e políticos que dominam hoje a política externa do bloco central, dentro e fora da academia.
Estes últimos, tal como os economistas dominantes – as duas áreas mais policiadas de ciências sempre sociais e políticas –, consideram que a melhor política externa é a ausência de política externa nacional, ou seja, a submissão ao eixo Washington-Berlim, no caso das relações internacionais, e ao eixo Bruxelas-Frankfurt, no caso da política económica. Como dizia Medeiros Ferreira, são bons alunos de maus, péssimos, mestres. Aqui estamos, estagnados e cada vez mais submissos. Neste longo interregno surgem todo o tipo de monstros, alimentados pela ação e abstenção da social-democracia rendida ao euro-liberalismo.
Olhar e ver. Ao invés da busca de soluções diplomáticas, eventualmente aceitando uma reconfiguração territorial da Ucrânia, em linha com o precedente por si aberto nos Balcãs, a UE apostou tudo na guerra, sobretudo depois que esta foi agigantada com a condenável invasão russa. Entretanto, as contraproducentes sanções encareceram uma parte da energia a uma parte do continente. A UE, vassala da NATO, ou seja, dos EUA, aceitou alimentar uma catástrofe militar e humanitária, cada dia mais perigosa e que irá terminar com as tais concessões territoriais em zona de maioria russa, num quadro de eventual neutralidade da Ucrânia, se tudo correr pelo melhor, na ausência de um conflito generalizado entre potências nucleares. E, não, a economia russa não está a sofrer, pelo contrário, já que se adaptou, com o uso de todos os instrumentos de política económica imagináveis e por imaginar. E, não, a Rússia não está isolada, como será atestado pela cimeira dos BRICS em Moscovo, com Xi, Modi ou Lula.
Olhar e ver. Os EUA estão relaxados, porque são mais do que autossuficientes energeticamente, têm para vender, mas nunca para dar, têm a UE na mão e quase um continente, mais um oceano, a separá-los do enredo no leste europeu, no qual testam armas, ajudando os lucros de um complexo militar-industrial gigantesco. Este financia toda a propaganda de tanques ideológicos, jornalistas, académicos, campanhas políticas, tudo o que for necessário. Ajudaram a criar o enredo ucraniano, com a expansão da NATO para leste, para lá das responsabilidades russas e das do cada dia mais forte setor nazifascista ucraniano. No fundo, tudo isto é parte do trágico fim da URSS, uma catástrofe sem fim.
Olhar e ver. Em flagrante contradição com a posição sobre a invasão da Ucrânia (ou talvez não), a UE, pela voz da sinistra Presidente da Comissão Europeia, apoia o genocídio na Palestina, perpetrado pelo Estado colonial sionista. Há aqui uma indesmentível e racista linha de cor, que combina bem com a história sombria da integração europeia, de recorte colonial e neocolonial, já bem escalpelizada. Aos palestinianos ninguém dá armas, só a Israel.
Olhar e ver. A UE, depois do interlúdio pandémico, voltou à sua essência austeritária desde Maastricht, a sua fundação, agora com controlo antidemocrático da despesa, como tem assinalado Paulo Coimbra, quase sozinho nesta tarefa crucial. Tudo é ainda pior, com a aposta na corrida armamentista, como também advogado num relatório de que já ninguém se lembra, mas que Vicente Ferreira escalpelizou como ninguém. Esta corrida é mais um dos muitos pretextos para futuros cortes nos Estados sociais; os pigmeus da economia e das relações internacionais do bloco central já o disseram.
Sim, excelentes alunos de maus mestres, piores a cada ano que passa.
Num dos seus últimos livros - Não há Mapa Cor-de-Rosa. A História (Mal)dita da Integração Europeia - Medeiros Ferreira lembra que o seu amigo Vítor Cunha Rego lhe tinha pedido, pouco antes de morrer, para fazer soar a campainha quando fosse a hora de sairmos. Afinal de contas, tinha sido Medeiros Ferreira a fazer o pedido de adesão à então CEE, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro Governo Constitucional, em 1977, o ano em que nasci. Medeiros Ferreira nunca se sentiu preparado para o fazer, mas a questão passou-lhe reconhecidamente pela cabeça. Tem de continuar a passar pelas cabeças que estão vivas e que recusam este declínio.
Mais vale uma jangada de pedra, realmente, sem mapas cor-de-rosa, obviamente, numa integração de geometria mais variável, sem esta amarra monetária, por exemplo. Este retângulo e dois arquipélagos bastam. E há muito mar, para ir e voltar.
"Condenável invasão russa"?!
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