quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Temos de nos habituar à perda de poder de compra em 2023?


Depois de um ano de forte perda de poder de compra, há expectativa para saber como vão evoluir os salários em Portugal em 2023. Mas apesar do discurso do governo, nem o setor público nem o privado deverão ter aumentos que compensem a inflação do próximo ano, muito menos deste.

Para o setor público, compreende-se que o governo proponha aumentos mais expressivos para salários mais baixos. Mas a maioria dos funcionários públicos vai ser aumentada em 3,6%, abaixo da inflação esperada (as projeções variam consoante a instituição, mas são superiores a 5%). Ou seja, vão voltar a perder poder de compra em 2023. É uma tendência que já vem de trás: entre 2010 e 2021, os trabalhadores do Estado perderam quase 13% do seu poder de compra, o que só contribui para deteriorar a qualidade da administração pública.

Para o setor privado, o Acordo de Rendimentos assinado pelo governo e confederações patronais pressupunha aumentos salariais de 5,1% no próximo ano. Mas nem as grandes empresas da energia e do retalho, com lucros extraordinários à boleia da subida dos preços, se comprometem a fazê-lo. Neste acordo, o governo aprovou uma série de benefícios fiscais que não dependem dos aumentos salariais, incluindo a possibilidade de dedução ad eternum dos prejuízos fiscais. Ou seja, primeiro beneficia-se as empresas... e depois logo se vê.

Mais: embora o governo diga que o objetivo é aumentar o peso dos salários no PIB - o que implica que os salários cresçam acima da soma da inflação e da produtividade -, mesmo que os aumentos salariais atingissem os 5,1%, provavelmente isso não seria suficiente para o cumprir, uma vez que as principais estimativas apontam para que a soma da produtividade e da inflação no próximo ano seja superior. Neste cenário, não só a maioria dos trabalhadores não recuperaria o poder de compra perdido, como o peso dos salários no PIB voltaria a diminuir em 2023.

O que isto significa é que é bastante provável que o peso dos salários no PIB - isto é, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores - mantenha a tendência decrescente dos últimos vinte anos, apenas invertida ligeiramente durante o período da Geringonça. 

As perspetivas para o novo ano refletem a política económica do governo, que tem imputado os custos da crise aos salários e às pensões da maioria das pessoas à espera que a inflação passe. Há essencialmente duas justificações do governo para defender esta estratégia: o suposto risco de uma "espiral inflacionista" e a necessidade de manter contas certas. Mas nenhuma sobrevive ao confronto com os factos.

Por um lado, o risco de uma espiral salários-preços é manifestamente exagerado, pela natureza da inflação (que tem origem na oferta e não na procura) e pelo facto de os aumentos salariais poderem ser acomodados pela diminuição das margens de lucro e pelo crescimento da produtividade. Por outro lado, as "contas certas" não só não evitam a subida dos juros da dívida pública, que dependem muito mais das decisões tomadas pelo BCE, como prejudicam a atividade económica ao não evitar a quebra do poder de compra e do consumo interno. A compressão dos salários reais é uma opção do governo e é assim que deve ser avaliada.

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