(continuação daqui)
O segundo problema de algumas organizações da ESS é o da falta de consistência na aplicação dos principios da reciprocidade, democracia e cooperação. Refiro-me, por exemplo, aos casos de organizações da ESS (por mais meritório que seja o seu trabalho) cujo funcionamento interno é profundamente autocrático, ou que compactuam com a exploração e precariedade laboral através do recurso indevido ao voluntariado ou a relações laborais precárias e mal remuneradas. De pouco serve dar com uma mão e tirar com a outra – as organizações e iniciativas que pretendam realmente afirmar a ESS como modelo alternativo têm de ser especialmente cautelosas e consequentes, cultivando e afirmando o respeito pela reciprocidade, pela democracia e pelo valor do trabalho em todas as suas esferas de acção – tanto internas como externas – mesmo que isso implique reduzir a escala das suas actividades e assumir objectivos mais modestos.
O terceiro problema potencial da ESS é o da sua instrumentalização pela agenda neoliberal de destruição dos serviços públicos e redução do papel redistributivo do Estado. Embora, como referi acima, as organizações da ESS possam e devam assumir-se como parceiros importantes da provisão e acção públicas, em virtude do seu enraizamento territorial, conhecimento dos problemas e capacidade de evitar constrangimentos burocráticos e ineficiências centralistas, é fundamental ter presente que não podem nem devem almejar substituir-se à acção do Estado – pelo simples motivo que só o Estado dispõe do poder de mobilizar coercivamente os recursos necessários à satisfação das necessidades colectivas. O maior ou menor grau de satisfação destas necessidades colectivas não pode depender da maior ou menor disponibilidade dos agentes individuais para contribuírem voluntariamente – a salvaguarda dos princípios republicanos da liberdade, igualdade e fraternidade tem de assentar, sempre que necessário, na imposição legítima de normas e na mobilização coerciva de recursos. À ESS cabe constituir-se como espaço de associação voluntária de cidadãos a fim de prosseguirem determinados fins, que quando possuam méritos colectivos mais vastos podem e devem ser apoiados pelo Estado; não lhe cabe constituir-se como um tecido de organizações neo-governamentais ao serviço de uma agenda de redução do papel social e redistributivo do Estado num contexto neoliberal. Por isso, o terceiro grande princípio de acção que deverá nortear a acção dos agentes da ESS que queiram afirmar este modelo de forma consequente é que a defesa dos méritos e vantagens da ESS não pode nunca ser feita de uma forma cúmplice com a redução do papel social do Estado – por mais que, no curto prazo, muitas organizações da ESS até possam considerar ter vantagem em fazê-lo, na medida em que consigam captar recursos ‘libertados’ pelos cortes na provisão pública.
A economia social e solidária pode constituir uma alternativa válida, progressista e emancipatória… mas para isso tem de assentar numa crítica sistémica, de ser consistente e intransigente na salvaguarda dos seus princípios a nível tanto interno como externo e de denunciar a agenda neoliberal de redução do papel social do Estado.
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