quinta-feira, 6 de outubro de 2011
Pensar a economia social na era da austeridade - I
Já aqui nos referimos por várias vezes (aqui e aqui) à Conferência “Economia Portuguesa: uma Economia com Futuro”, que no passado dia 30/09 reuniu em Lisboa investigadores, activistas e outros cidadãos a fim de discutir os caminhos e dilemas da economia e sociedade portuguesas, recusando os “consensos” impostos e as falsas inevitabilidades. Uma das perspectivas que marcou presença com mais força nesta conferência foi a da economia social e solidária (ESS), particularmente numa óptica de desenvolvimento local (DL). Além da conferência ter contado com muitos representantes de organizações da ESS entre a assistência, a visão, princípios e potencial da ESS e do DL constituíram também uma parte central de várias comunicações, incluindo as de Elena Lasida e Manuela Silva.
Pela minha parte, não podia estar mais de acordo em relação a muitos dos méritos e virtudes da ESS, entendida como a esfera de actividade socioeconómica cujos princípios organizadores consistem na reciprocidade e solidariedade. Esta reciprocidade e solidariedade, quer se manifestem ao nível das relações internas (por exemplo, entre membros de cooperativas) ou externas (por exemplo, através das funções desempenhadas por associações e instituições de solidariedade), reafirma as actividades de produção e reprodução económicas como actividades eminentemente sociais – isto é, como práticas colectivas que concretizam os projectos e modelos de sociedade em que queremos viver. Além do mais, fazem-no, tendencialmente, de um modo que promove a coesão social e territorial e que é não só menos predatório em termos humanos e ambientais do que a produção e provisão mercantis como também mais flexível e territorialmente enraizado do que a provisão pública centralizada. A economia social e solidária – as cooperativas, mutualidades e associações – têm por isso um lugar muito importante no modelo de sociedade que eu e muitos outros à esquerda defendemos, no qual coexistem diferentes formas de organização socioeconómica dentro de um enquadramento político e normativo mais amplo que combata activamente, e progressivamente erradique, as diversas formas de desigualdade e exploração.
Dito isto, porém, vale a pena chamar a atenção para alguns aspectos potencialmente mais problemáticos da ESS de modo a contribuir para evitar que esta seja instrumentalizada, precisamente, por valores e objectivos contrários aos seus. O primeiro destes problemas potenciais consiste no risco de que as práticas que concretizam este modelo alternativo não sejam articuladas com uma crítica sistémica mais ampla. Qualquer proposta ou iniciativa na linha dos princípios da ESS e do DL que não assente numa análise, necessariamente crítica, dos processos sistémicos que dão origem aos problemas que visa enfrentar está à partida condenada a não ter mais do que um carácter caritativo ou paliativo necessariamente limitado. Para ser consequente e eficaz, o discurso e a prática da ESS e do DL não podem limitar-se a aspirar a criar “ilhas de reciprocidade” num oceano de exploração e desigualdade – pelo contrário, têm de articular constantemente a prática concreta e local com a crítica sistémica, mesmo que isto ponha em causa a imagem anódina que muitas organizações preferem apresentar de modo a mais facilmente acederem a apoios e financiamentos.
(continua aqui)
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